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Nota introductória a «Martin Codax»


Elsa Gonçalves





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Em 1967, ao publicar o Repertorio metrico della lirica galego-portoghese1, Giuseppe Tavani registava seis edições completas das sete cantigas de Martin Codax: entre estas, a edição preparada por Celso Ferreira da Cunha2 fora a escolhida para a elaboração das fichas métricas dos textos3 __o que não surpreende, pois a personalidade do editor era a «sicura garanzia» de que fala Tavani, ao expor os critérios do seu levantamento bibliográfico4. Para a transcrição das melodias, o elenco reduzia-se a duas edições.

Passados trinta anos sobre a publicação do Repertorio, o cantor das ondas do mar de Vigo continua a ser o poeta da lírica galego-portuguesa mais editado: depois das várias edições, integrais e parciais, cuidadosamente recenseadas e comentadas por Celso Cunha5, duas novas edições, a de Barbara Spaggiari, Il Canzoniere di Martim Codax6,

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e a de Manuel P. Ferreira, em O Som de Martin Codax7, vieram juntar-se, nos anos 80, à vasta bibliografia sobre o jogral viguês8; o ano de 1998 __«ano de Martín Codax, Mendiño e Johán de Cangas»__ viu sair dos prelos varias «edições especiais» destinadas a assinalar o «Día das Letras Galegas 1998»9, algumas das quais se revelam particularmente   -301-   úteis, por incluirem uma boa reprodução a cores do Pergaminho Vindel e um disco com as melodias de Martin Codax10. Os acontecimentos que desencadearam a animação editorial dos anos 80 em torno de Martin Codax são bem conhecidos: por um lado, a famosa incursão de Roman Jakobson no terreno do paralelismo galego-português com a análise da textura poética da quinta cantiga de Martin Codax11; por outro, a redescoberta do Pergaminho Vindel na Pierpont Morgan Library, após mais de meio século de misteriosa ocultação12. Procuraremos explicar brevemente a ligação entre estes dois acontecimentos e o aparecimento das novas edições.

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A repercussão que a experiência de Jakobson teve no ambiente literário e filológico deverá ser avaliada, não apenas pelo entusiasmo com que a crítica em geral acolheu o seu inovador exercício de aplicação da gramática da poesia à cantiga Quantas sabedes amar amigo13, mas também pela apreciação negativa que mereceu de G. Tavani, centrada sobre dois aspectos fundamentais: I.º) a limitação da análise a uma única cantiga; 2.º) a sobrevalorização da iterabilidade como critério de pertinência aplicado a textos poéticos medievais de estrutura paralelística14. O propósito de demonstrar que, nas cantigas d'amigo paralelísticas, as iterações fónicas e vocabulares, longe de assumirem a relevancia que Jakobson lhes atribui, se revelam consequência da rigidez do próprio esquema paralelístico ofereceu a Tavani o ensejo para experimentar um outro método de abordagem da poesia codaciana que, pondo em causa a produtividade da análise de uma única cantiga, propõe a leitura das sete cantigas como um discurso poético único, no qual os elementos privilegiados a nível de estruturas rítmicas (os «ritmemas») são também dotados de particular relevância a nivel do significado15.

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O eco deste evento literãrio não se esgotou com a crítica de Tavani. O contributo de Jakobson e a apreciação do filólogo italiano estão na origem de dois trabalhos de Barbara Spaggiari: precisamente a edição atrás referida e um estudo de carácter estruturalista16 que, retomando a análise jakobsoniana, alarga a aplicação do método a todo o cancioneirinho de Martin Codax17, com vista a definir os traços pertinentes da cantiga d'amigo como género poético. Ora, enquanto este contributo de grande fôlego (noventa páginas de não fácil leitura) parece não ter suscitado resenhas assinaláveis18, a leitura crítica das sete cantigas de Martin Codax por B. Spaggiari __intencionalmente destinada a emendar a edição de Celso Cunha, com base no testemunho dos apógrafos quinhentistas, contra o do Pergaminho Vindel, que o editor brasileiro escolhera como manuscrito-base__ foi objecto de duas minuciosas recensões por parte de Tavani (uma de 1981, publicada na Rassegna Iberistica, outra, de 1982, na Romanische Forschungen19 e de   -304-   uma notável comunicação de C. Cunha ao Colóquio sobre «Crítica Textual Portuguesa» realizado em 1981 no Centro Cultural Portugués da Fundação Gulbenkian, em Paris20.

Resolutamente empenhado em demonstrar que as inovações introduzidas no texto das cantigas por B. Spaggiari eram injustificadas, Tavani, após cuidadoso exame das divergências entre a nova leitura e a que C. Cunha havia preparado em 1956, concluiu que a edição de B. Spaggiari era, não só «pretensiosa», mas também «inútil». Mais tarde, retomando a discussão do problema estemático, completou a sua argumentação e reafirmou a superioridade da lição do Pergaminho Vindel relativamente à lição dos manuscritos quinhentistas.

Sendo a «preexcelência concedida às lições dos Cancioneiros da Vaticana e da Biblioteca Nacional de Lisboa e a marginalização da do Pergaminho Vindel» a característica fundamental que contrapõe a edição de B. Spaggiari à de C. Cunha, não admira que o ilustre filólogo brasileiro tenha desenvolvido a sua comunicação «Sobre o texto e a interpretação das Cantigas de Martin Codax» em torno deste problema. O rigor metodológico da exposição, o interesse da reflexão sobre questões preliminares à edição crítica de textos medievais (como a distinção entre factos fonéticos e factos meramente gráficos) e a ponderada defesa da escolha das lições do Pergaminho Vindel para o estabelecimento do texto crítico que C. Cunha editara em 1956 fazem deste seu artigo um instrumento útil ao leitor que venha a utilizar a reprodução anastática de O cancioneiro de Martin Codax. Por isso, decidimos incluí-lo, em «Apêndice».

A redescoberta do Pergaminho Vindel, nos anos 80, teve especial repercussão no meio musicológico, vindo a permitir uma fecunda revisão das transcrições mélicas anteriormente propostas por musicólogos como Tafall Abad, Julián Ribera, Isabel Pope, Higino   -305-   Anglés21. Embora o primeiro estudo posterior à redescoberta do Pergaminho se deva a Ismael Fernández de la Cuesta22 __a quem cabe o mérito de haver finalmente revelado aos medievalistas a actual localização do manuscrito e o seu estado de conservação, além de ter fornecido uma descrição do manuscrito e novos fac-símiles__ o contributo mais significativo para o estudo da letra e da música das cantigas de Martin Codax é representado pela obra de Manuel Pedro Ferreira23, cuja «Parte Terceira» oferece uma nova leitura crítica do texto das sete cantigas, feita directamente sobre o manuscrito e baseada na relação entre texto musical e texto poético. Do elegante Prefácio que Celso Cunha escreveu para o livro de M. P. Ferreira ressalta imediatamente o entusiasmo com que o Mestre brasileiro acolheu a obra na sua globalidade e a fundamentada opinião de que, à luz da nova descrição do Pergaminho Vindel (que podemos ver nas pp. 61-73, seguida da reprodução do Pergaminho a cores, e de oito grandes ampliações a preto e branco de cada um dos textos), seria necessário «os editores do cancioneiro do jogral de Vigo refazerem em certos pontos as lições por eles propostas»24.

Acerca da «revisão textual» operada por M. P. Ferreira com o propósito de procurar «infirmar ou confirmar leituras anteriores com base na estreita correlação que estabelece entre a sua interpretação musical e a lingüística»25, o comentário de Celso Cunha __nao isento de algumas restrições devidamente justificadas__ incide sobre cinco pontos: «a extensão concedida ao emprego do -e paragógico» (aplicada a versos das cantigas VII, I e V); «o condicionamento maior da   -306-   pontuação ao ritmo da melodia» (cant. I, IV e VI); «a possibilidade de hiatizarem-se ditongos já consolidados não só no galego-português, mas no próprio latim» (cant. I e III); «a reautonomia dada a duas vogais contraídas por crase» (cant. I e III); «a conservação da ordem das palavras e dos dísticos que contrariam os princípios, supostamente inflexíveis, que comandavam a estruturação paralelística» (cant. III e IV)26. Ao reproduzir os exemplos que concretizam cada um dos tópicos enunciados, o competente editor de O cancioneiro de Martin Codax não deixa de reflectir sobre a sua própria leitura e interpretação de alguns dos versos em apreço e ainda sobre questões de versificação por si abordadas em outros estudos e agora comprovadas pelo testemunho da música27.

Não sabemos se, numa segunda edição, Celso Cunha teria acolhido todas as propostas de M. P. Ferreira. Um quadro das divergências textuais entre a sua edição e a do jovem musicólogo, agrupadas por tipos, mostra:

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Teria Celso Cunha, numa segunda edição da sua obra, acolhido as alterações agrupadas sob o n.º 1? Elas decorrem da aplicação a textos de Martin Codax da regra da «obrigatoriedade do -e paragógico nos versos das paralelísticas terminados ou cesurados em palavras agudas», defendida pelo filólogo brasileiro desde 1949, quando ele próprio a aplicou na edição de Joan Zorro. Aliás, ao estender o emprego do -e paragógico às cantigas I, V e VII de Martin Codax, apoiando-se no testemunho da escrita musical no Pergaminho Vindel, M. P. Ferreira não deixa de invocar a autoridade de Celso Cunha28.

Teria igualmente aceitado as modificações introduzidas por M. P. Ferreira nos lugares indicados sob o n.º 2? No Prefácio já varias vezes por nós citado, o próprio Autor declara: «Levando em conta a   -308-   aparente rigidez na concatenação estrófica das paralelísticas, alteramos em nossa edição a ordem desses dísticos [das cantigas III e IV] para a que seria normal, e estava documentada nas lições do CBN e do CV. A Eugenio Asensio, porém, se afigurou que melhor seria termos deixado como estavam na folha volante mais essas infringências de Codax às regras formais do paralelismo, crítica que hoje nos parece justa»29. E já no artigo «Sobre o texto e a interpretação das cantigas de Martin Codax», parecia mostrar-se receptivo a esta alteração, ao declarar: «Martin Codax é um excelente poeta, que não obedece rigorosamente às leis do paralelismo»30.

Interrogação análoga pode ser feita em relação às divergências indicadas sob o n.º 3. Celso Cunha, que vê na leitura dos versos 8 e 11 da cantiga III proposta por M. P. Ferreira uma confirmação da validade da sua interpretação de 1956, parece concordar, não só com as leituras propostas pelo novo editor, mas também com a explicação scriptológica da lição fornecida pelo Pergaminho para estes versos e para o verso 10 da cantiga I, acrescentando até um exemplo da mesma «prática scriptoral» colhido na edição princeps de Os Lusíadas31.

E quanto à leitura do refran da sétima cantiga? Na sua edição de 1956, Celso Cunha rejeitara a transcrição feita por Isabel Pope, que apresentava o refran como um único verso. As razões agora aduzidas por M. P. Ferreira ao adoptar o mesmo procedimento teriam sido suficientemente convincentes para que o editor abandonasse a disposição do refran em dois versos?

A atenção de Celso Cunha às relações entre texto musical e texto poético, ou seja, as informações vindas dos musicólogos que, à data,   -309-   tinham estudado o «cancioneiro» de Martin Codax, está já presente na edição de 1956. Mas as preocupações dos musicólogos, ao transcreverem a letra das cantigas codacianas a partir dos fac-símiles do Pergaminho Vindel, não respondiam ao rigor exigido pela crítica textual. O trabalho de M. P. Ferreira veio, porém, dissipar o pessimismo com que, ainda em 1985, Celso Cunha, citando Daniel Poirion, verificava o reduzido contributo que a análise musical trazia à explicação do ritmo poético das cantigas trovadorescas32. Ao prefaciar O som de Martin Codax, o ilustre filólogo parece ter mudado de opinião, rematando com estas significativas palavras: «Terminan do, diremos que a reflexão melancólica de Daniel Poirion relativamente à contribuição dos musicólogos para o aclaramento de questões básicas da versificação medieval, começa a perder sentido à vista de trabalhos como este, cujas conclusões __é fácil de prever__ não serão aceites pacificamente. Nem seria desejável que o fossem. O livro não e polêmico, mas instiga a controvérsia»33. A esta salutar «controvérsia» teria Celso Cunha dado, seguramente, mais de uma achega estimável.

Concluindo. Em 1957, na breve nota acerca da edição de Martin Codax por Celso Cunha, Yakov Malkiel punha em evidência o facto de o editor ter utilizado 200 páginas de grande formato para editar 98 versos cujo texto não se pode dizer propriamente críptico34 e comentava: «Cunha's chief preoccupation, one gathers, was with setting the highest possible standard for present and future Brazilian scholarship, as regards stringency of textual analysis, completeness of bibliographic   -310-   information, and fairness in assessing other scholars' efforts. This triple aim he has fully reached». Cremos que os presentes e futuros editores da poesia trovadoresca galego-portuguesa, não só os brasileiros, mas também os portugueses e de outras nacionalidades, poderão encontrar nesta «velha» edição um modelo a seguir nos seus fundamentos metodológicos35. Mais uma razão para a reeditarmos tal como saiu das mãos do seu Autor, ha precisamente quarenta e dois anos.





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