A comédia humana dos animais
Armindo Teixeira Mesquita
UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Portugal) e Presidente do OBLIJ (Observatório da Literatura Infanto-Juvenil)
Actualmente, o papel da fábula ainda continua a ser muito importante na literatura para crianças, apesar dos novos desafios, dos novos suportes e das novas tecnologias, porque a presença dos animais permanece bem viva no imaginário infantil, tal como nas tradições orais, nos mitos e nas lendas.
Tratando-se de uma narração de sucessos fingidos, inventados para instruir e divertir, como diz o Mestre La Fontaine na dedicatória das suas Fábulas ao Delfim de França, filho do rei Luís XIV (criança de apenas sete anos de idade), a fábula é «passatempo conveniente para os vossos tenros anos, mas ao mesmo tempo deveis conceder alguns dos vossos pensamentos a reflexões mais sérias. Tudo isto se encontra nas fábulas»
(La Fontaine, s/d:17). Aqui, estamos perante a imagem tradicional do poeta educador de reis, associada à da literatura dotada de uma funcionalidade edificante e de prazer.
Sendo o mais modesto dos géneros poéticos, já que «assenta numa tradição que maioritariamente perfilha o discurso versificado»
(Reis e Lopes, 1991:152-153), a fábula é um género comum a todas as literaturas e a todos os tempos, porque pertence ao folclore primitivo. É um produto espontâneo da imaginação, já que consiste numa narração fictícia breve, escrita em estilo simples e fácil, destinada a divertir e a instruir, realçando, sob acção alegórica, uma ideia abstracta, permitindo, desta forma, apresentar de maneira aceitável, muitas vezes mesmo agradável, uma verdade moral, o que de outro modo seria árido e difícil.
Apesar da aparência pueril das fábulas, isto em termos das objecções e das consequências que podemos retirar deste tipo de narrações, estas puerilidades favorecem o disfarce a importantes verdades, servindo, geralmente, para zombar e/ou criticar. Logo, a fábula é uma ficção artificiosa.
O ensino moral, que é o fim, e a ficção, que é o meio, devem entrar numa justa proporção. Aliás, o grande fabulista francês La Fontaine diz que o «corpo é a fábula, a alma, a moralidade»
(La Fontaine, s/d:21). Nesta perspectiva, a fábula comporta duas partes: «corpo e alma»
, ou seja, a narrativa e a moralidade. Esta opera com conceitos gerais que é a verdade a falar aos homens, enquanto aquela (narrativa) trabalha as imagens que constituem a forma sensível, isto é, o copo dinâmico e figurado da acção.
A acção destas pequenas narrações está, geralmente, confiada aos animais irracionais que desempenham o papel de personagens, porque, sem perderem as suas características próprias, vivem, amam, sofrem, falam como os seres humanos. Portanto, os animais experimentam as nosas sensações, sendo animados pelos nossos sentimentos.
As origens da fábula perdem-se na mais remota Antiguidade. Segundo Lúcia Pimentel Góes, estas narrações «provêm da necessidade natural que o homem sente de expressar seus sentimentos por meio de imagens, emblemas ou símbolos»
(Góes, 1984:144). As fábulas indianas, e que foram popularizadas pela tradução árabe do século VIII, Calila e Dimna (dois chacais conselheiros do rei Leão), também conhecidas sob o título de Fábulas de Pilpai, remontam ao original sânscrito Pantchatantra, atribuído ao velho e, provavelmente, lendário brânmane Visnú-Sarman, conhecido, na Europa, por Pilpai e que se supõe ter sido escrito para a educação dos três filhos mandriões de um famoso e poderoso monarca.
Não é por acaso que os animais são normalmente as personagens das fábulas, pois é vulgarmente aceite que a fábula tenha nascido no Oriente, o berço do mundo. Para introduzir as personagens em cena, os povos do Sol Nascente tinham as suas [suas] boas razões, porque acreditavam na metempsicose, isto é, as almas dos homens, segundo os orientais, transmigram para os animais. Então, nada mais natural do que fazer falar os animais e pedir-lhes conselhos.
Vejamos o exemplo de um apólogo indiano, contado por um colega, também indiano, aquando estudantes da Sobonne, em Paris:
A fábula terá tido três épocas, três fases distintas:
Na primeira fase, podemos destacar Esopo (620 a.C.-560 a.C.) como o «pai» da fábula, porque, a partir de temas antigos das histórias orientais, soube criar novos temas adaptados à sabedoria grega, em que os protagonistas são geralmente os animais.
Esopo é uma espécie de pregador popular que conta para persuadir os ouvintes a perceber de acordo com o bom senso e na defesa dos seus próprios interesses. Pois, numa sociedade que condena todos aqueles que dizem a verdade, a única saída é «fintar», isto é, mentir, falando verdade. Para isto nada melhor do que pôr os animais a falar.
As fábulas esopianas são muito breves e representam a sabedoria antiga sob uma forma popular e quase infantil, cuja narração é simples, uma vez que Esopo nasceu do povo e as suas fábulas eram dirigidas ao povo, mas com um fim didáctico, isto é, com uma moral que enuncia a importância da fábula.
(Esopo, s/d:108) |
Através destas pequenas narrações, Esopo dá-nos conselhos, colhidos da sua própria experiência, no sentido de sermos prudentes para nos prevenirmos contra os perigos da vida:
(Esopo s/d:22) |
No fundo, a fábula esopiana é uma advertência crítica e mordaz que esconde a censura sob a ficção de um acontecimento sucedido entre animais.
A segunda fase da fábula é iniciada com as inovações formais do fabulista latino Fedro (15 a. C. - 50 d. C.) que introduziu a fábula esopiana na literatura latina, conferindo-lhe uma nova feição, procurando, assim, torná-la mais literária, já que a sua elaboração se torna cada vez mais livre, até se transformar num disfarce que lhe permitia camuflar o seu pensamento.
Com Esopo, a fábula era uma planta ainda não desabrochada. Com Fedro, essa planta vai tornar-se flor. Por outras palavras, na primeira idade, a fábula conservara-se como flutuante, enquanto, na segunda idade, Fedro, com a sua pena, cristalizou a fábula. Aliás, apesar de a influência de Fedro ser nula na Antiguidade, porque, nessa altura, a fábula era considerada um género inferior, derivado da sátira, vai ser grande nos séculos XVI e XVII.
Quase todas as fábulas fedrianas são sátiras mordentes e ásperas que visam os homens ou os abusos do seu tempo. Demais a mais, o próprio Fedro considerava a fábula como uma arma de combate, por isso, a fábula nunca poderia ser alegre. Sem grande esforço, pode ler-se nas entrelinhas das fábulas a revolta contra o crime e contra a injustiça. Veja-se o exemplo de «O lobo e o cordeiro» em que os mais fortes oprimem os inocentes sob qualquer pretexto:
(Fedro, s/d:23-24) |
Moral: É fácil oprimir o inocente. |
Na fábula «A vaca, a cabrinha, a ovelha e o leão», este, tendo formado uma sociedade com os outros três animais, acaba por apropriar-se da parte de cada um deles:
(Fedro, s/d:26:27) |
Moral: Não acompanhes com quem pode mais do que tu. |
Em Fedro, já encontramos fábulas em que o diálogo é tratado com mestria, é o caso da fábula «O lobo para o cão». É difícil pintar melhor. Todo o artífice de profissão já aparece. A composição é cuidada: primeiro, o lugar da cena, os «décors»; depois, a fisionomia e o traje das personagens. Vejamos o exemplo:
(Fedro, s/d: 63-64) |
O assunto das fábulas mantém-se sempre actual através das gerações e das suas camadas sociais, devido ao proveito que as lições encerram. Veja-se a fábula:
(Fedro, s/d:135-136) |
Moral: É bonito que os filhos obedeçam aos pais. |
A terceira e última fase, que pode ser chamada a Idade de Ouro da fábula, é protagonizada por um homem talentoso chamado Jean de la Fontaine (1621-1695) que dá um brilho incomparável à fábula, já que aproveitou os sucessivos ensaios tentados antes dele: leu Esopo, Fedro, os fabliaux, imitou todos estes modelos, ficando original. Alias, comparados com ele, todos os fabulistas se eclipsaram. La Fontaine não tem rival, por isso é considerado inimitável e a posteridade tem confirmado esta opinião. O grande Mestre da fábula não é apenas francês, é português, é espanhol, é inglês, é alemão, pertence a todas as nações: todas as literaturas podem reivindicá-lo, porque La Fontaine identifica-se com o génio humano nas suas profundezas mais íntimas.
Com efeito, La Fontaine foi criador, fazendo da fábula um drama, um verdadeiro drama em que se pode encontrar toda uma acção cheia de unidade e de interesse, um teatro com cenários de frescura e de um relevo extraordinários, uma riqueza de encenação. O grande recurso que ele encontrou é o pitoresco. Eis a sua descoberta e a sua criação. Veja-se os exemplos de «A andorinha e os passarinhos» (La Fontaine, s/d:34), «A cotovia e os filhos» (La Fontaine s/d:127) e «O cavalo e o lobo» (La Fontaine, s/d:139).
La Fontaine não teme demorar-se no meio dos animais. Apenas os tomou por exemplo, fazendo-os as personagens principais, os verdadeiros heróis do seu drama, acabando por admirá-los, por amá-los. La Fontaine foi um caricaturista animalista, ao evocar a fisionomia, a silhueta ou o movimento dos animais. É o caso das fábulas «O rato que se retirou do mundo» (La Fontaine s/d:192), «O gato, a doninha e o láparo» (La Fontaine, s/d:211), «O lobo e os pastores» (La Fontaine s/d:301) e «A doninha na despensa» (La Fontaine, s/d:98).
Como vimos, os actores preferidos de La Fontaine são, geralmente, os animais que se movem na imensa natureza e que falam a linguagem que ele lhes presta. Como se sabe, as crianças sempre gostaram dos animais, logo as fábulas estão muito próximas das crianças. Daí, como diz o grande fabulista francês, a conveniência de as crianças se alimentarem de «fábulas ao mesmo tempo que sugam o leite: compete às amas proporcionar-lhas, pois não há outro meio de acostumar desde cedo à sabedoria e à virtude»
(La Fontaine, s/d:20). Quantas crianças não se apaixonaram por determinado animal: um cão, um gato, um pássaro, etc.? As fábulas «A formiga e a cigarra», «O corvo e a raposa», «O lobo e o cordeiro», «A raposa e a cegonha», «Os dois ratos, um do campo e o outro da cidade» são «exemplos de fábulas famosas que as crianças de todo o mundo recitaram quando estudaram as primeiras letras»
(Bravo-Villasante, s/d:69).
La Fontaine gostava muito de teatro, por isso aproveitou a estrutura das fábulas para evocar a de um drama em miniatura. Aliás, o próprio fabulista afirma que a sua obra é uma «vasta comédia em cem actos diferentes e cuja cena é o mundo»
e que as fábulas «são um quadro onde cada um de nós se acha retratado»
(La Fontaine, s/d:21).
Para dar mais vivacidade e mais colorido a este tipo de narrações, La Fontaine utilizou a linguagem oral, especialmente o diálogo, como é o caso das fábulas «O lobo e o cão», «O homem e a serpente» e «O quintaleiro e o senhor das terras».
Vejamos um exemplo paradigmático. Na fábula «O corvo e a raposa», esta passa numa floresta onde mora o corvo.
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(Bocage, s/d: 247) |
A manhosa da raposa aproxima-se da árvore onde estava o corvo e pensa como conseguir obter aquele belo queijo.
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(Bocage, s/d: 248) |
A raposa preocupa-se em enobrecer o corvo. Como não prestar atenção a tão lisonjeira e afável linguagem? Não é aticismo, não é elogio, certamente. É antes um galanteio. A raposa sabe que é necessário tomar muitas preocupações, por isso, lisonjeia o corvo, dirigindo-lhe os seus elogios. Poderemos comparar esta lisonja ao arganel que se põe no focinho, por exemplo, dos porcos, e pelo qual puxamos o animal na nossa direcção: «És outra Fénix, se acaso / Tens a voz como a figura»
(Bocage, s/d: 248), isto é, «Quelo belo talhe que tens / Que linda cor de plumagem!»
(Bocage, s/d: 248).
Estes dois versos formam batologia, um pleonasmo, porque o lisonjeador, no seu desejo ardente de agradar, não receio repetir-se. Escarnece: «É dor que o Céu não quisesse / Fazer-te amável em tudo, / Foras o assombro da Terra / A teres voz, mas és mudo»
(Bocage, s/d: 248).
Repare-se que a raposa toma precauções oratórias. Ela pretende levar o corvo a abrir o bico, isto é, a cantar, mas não o diz desde o início do diálogo. Ela só consegue a proexza depois de ter preparado as vias: «Foras o assombro da nossa Terra / A teres voz, mas és mudo»
(Bocage, s/d: 248). Por outras palavras, a raposa diz ao corvo que canta muito, muito bem, que ele é o rei dos animais. É claro que o corvo ficou muito contente por ouvir estas palavras, por ouvir este galanteio. E «Para mostrar que é bom solfista / Abre o bico e solta a presa»
(Bocage, s/d: 248), isto é, deixa cair o queijo.
Imediatamente a raposa lança o «gadanho»
ao queijo e diz «adeus queijo, és meu!»
. Esta rapidez indica o ardor da raposa em se precipitar sobre a presa, sobre o queijo, que tantas «flores»
de retórica lhe custou.
No entanto, antes de se ir embora, a raposa quer dar uma lição de moral ao corvo: «Meu amigo, aprende / Como vive o lisonjeiro / À custa de quem o atende. / Esta lição vale um queijo, / Tem destas para teu uso»
(Bocage, s/d: 248).
Não se pode dar ouvidos às lindas palavras, porque a «lisonja é sempre filha do interesse».
Poderíamos, ainda, imaginar a estupidez do corvo ludibriado, com ar envergonhado, batendo as asas no ar, a discordar deste mau agoiro, dizendo: «Velhaca! Deixou-me em branco, / Fui tolo m fiar-me nela; / Mas este logro me livra / De cair noutra esparrela»
(Bocage, s/d: 248).
- BOCAGE (s/d): Apólogos, adivinhações e epigramas. Mem Martins: Publicações Europa-América.
- BRAVO-VILLASANTE, Carmen (s/d): História da Literatura Infantil Universal. Lisboa: Vega.
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