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A condessa Vésper

Aluisio Azevedo

As memórias de um condenado

Uma noite, trabalhava eu no silêncio do meu gabinete, quando fui procurado por uma velhinha, toda engelhada e trêmula, que me disse em voz misteriosa ter uma carta para mim.

-De quem? perguntei.

-De um moço que está na casa de Detenção.

-De um preso?! Como se chama ele?

-V. S. vai ficar sabendo pelo que vem nesse papel. Tenha a bondade de ler.

Abri a carta e li o seguinte:

«Prezado Romancista.

»Apesar de nunca ter tido a honra de trocar uma palavra com o Sr., já o conheço perfeitamente por suas obras, e por elas lhe aprecio o coração e o caráter. Pode ser que me engane, mas a um rapaz, sem bens de fortuna e sem influência de família, que teve a coragem de reagir contra velhos preconceitos do nosso país, abrindo caminho com a sua pena de escritor transformada em picareta, e posta só a serviço dos fracos e desprotegidos, não pode ser indiferente à desgraça de quem se vê encerrado entre as negras paredes de uma prisão, sem outro companheiro além da própria consciência que o tortura.

»Sei que sou criminoso e mereço castigo - matei e não me arrependo de haver matado; matei porque amava loucamente, porque sacrifiquei alma coração e riqueza a uma mulher indigna e má. Entretanto, se incorri na punição da lei, não fiz, por merecer o anátema dos homens justos e generosos; minha vida deve inspirar mais compaixão do que desprezo por mim, e deve aproveitar como lição aos infelizes nascidos nas desastrosas circunstâncias em que vim ao mundo.

»Juro que ninguém foi mais leal, nem mais compassivo do que eu, juro que nunca sequer me passou pela mente a mais ligeira idéia de traição ou de fraude; quando, porém, cheguei a compreender até a que ponto de aviltamento e de degradação me arrastara o meu fatídico amor, quando toquei com a fronte no fundo do inferno da perfídia, da ingratidão e de toda a infâmia de que é capaz uma mulher, sucumbi de compaixão por mim próprio, e friamente arranquei a vida daquela por quem houvera eu sacrificado mil vidas que tivesse.

»Ao senhor, que conta apenas vinte e três anos de idade, e já conhece tão profundamente o coração dos seus semelhantes, não será com certeza indiferente a história do meu amor, nem lhe repugnarão as confidências enviadas deste cárcere, onde um desgraçado chora e padece, menos pelos remorsos do seu crime do que pelas saudades da sua vítima.

»O manuscrito que a esta carta acompanha, feito ao correr da pena sob a imediata impressão dos acontecimentos relatados é flagrante cópia da verdade, e só aspira servir de medonho espelho a outros infelizes, que se deixem como eu cegar por um amor irrefletido.

»Desse triste montão de gemidos esmagados em lodo, pode o seu engenho de romancista tirar uma obra que interesse ao público, substituindo, está claro, os nomes nele apontados por outros supostos. E quem sabe se o seu livro, uma vez posto em circulação, não irá ainda acordar nos corações singelos um impulso de condolência para com o pobre assassino por todos agora amaldiçoado?

»No meu manuscrito verá o senhor que sou eu o menos responsável pelo grande mal que fiz. O verdadeiro culpado foram os elementos em que se formou e desenvolveu o meu ser, foi o ardente romantismo em que palpitaram aqueles a quem coube a formação do meu temperamento e do meu caráter, foi a ausência de trabalho, foi a má educação sentimental, e foi o excesso de dinheiro.

»Hoje, que afinal me acho varrido para sempre da comunhão social e arredado daquelas fatais perturbações, reconheço que passei pelo meu tempo sem compreender, nem distinguir a feição do meio em que existi. Não vivi. Apenas vinguei para o egoístico repasto do meu deplorável amor. Fui nada mais que o tardio produto de uma geração moribunda, atropelado pelo choque de uma geração nascente e forte. Todavia, se eu não tivera sido tão negligentemente rico e tão erradamente amado pelo mísero sonhador que se encarregou da minha educação, é possível que não houvesse sucumbido ao choque das duas épocas, ou pelo menos não houvesse resvalado tão sinistramente na lobrega vala dos presidiários.

»Não estava preparado para receber o embate da onda, e caí. A onda passou adiante, e eu fiquei de rastros, para nunca mais me erguer.

»Enquanto nesta penitenciária lamento a inutilidade da minha vinda ao mundo, outros, que nasceram comigo, mas que, no esforço de cada dia e na luta pela conquista do ideal, aprenderam a ser fortes e vencedores, levantam além nos arraiais revolucionários, os seus vitoriosos estandartes.

»Mães! Que concentrais vossa esperança no futuro de vossos filhos; pais! Que pretendeis deixar um rico testamento - olhai para a minha vida, e considerai o perigo do dinheiro em excesso aos vinte anos, e o perigo, ainda maior, da educação romântica!»

Assim que a velhinha me viu terminar a leitura da carta, tirou de sob o xale um rolo de papéis, volumoso e sujo de tinta, que me entregou discretamente, saindo logo depois, a mastigar palavras de despedida.

Fechei de novo a porta do meu gabinete de trabalho, pus de parte o serviço dessa noite, e atirei-me de corpo e alma ao manuscrito.

Li-o todo.

Ao devorar a última página, o sol das seis horas da manhã invadia-me a casa pela ampla janela que eu acabava de abrir, enquanto uma funda melancolia e uma piedosa amargura me assaltavam o coração.

Tateei os olhos, e os meus dedos voltaram relentados de pranto.

As confidências do pobre assassino deixaram-me em extremo comovido. Eram uma torrente vertiginosa de episódios dramáticos e originais, em que toda a miséria humana se estorcia convulsionada, ora pela dor, ora pelo prazer, mas sempre de rojo o na mesma lameira de lágrimas ensangüentadas.

Não hesitei, tomei da pena e escrevi o livro que se segue, para mostrar ao meu leitor quanto é perigosa a beleza de uma mulher do jaez da Condessa Vésper, posta ao mau serviço do egoísmo e da vaidade.

O namorado da noiva

Nos fins de um verão que já vai longe, uma carruagem, de cúpula erguida e faróis apagados, seguia a todo o trote pela pitoresca estrada da Gávea.

Seriam onze horas da noite.

À certa altura, no lugar mais sombreado do caminho, a carruagem parou, e dela se apearam dois sujeitos vestidos de casaca. O mais velho destes, que teria o duplo dos vinte anos do outro, pagou ao cocheiro, e logo que o carro tornou por onde viera, puseram-se os dois apeados a caminhar silenciosamente pela estrada acima.

Ao cabo de alguns minutos, o mais velho, percebendo que o companheiro chorava, estacou, sacudindo-lhe o braço:

-Então, Gabriel! Não tencionas acabar com isso por uma vez? Olha, que sempre me saíste um romântico ainda mais doido do que eu! E batendo-lhe no ombro: Ora vamos, meu rapaz! Não te deixes agora dominar tão estupidamente por uma paixão quase ridícula! O que por aí não falta são mulheres tão lindas ou mais do que a filha do comendador Moscoso, e tu, por bem dizer, ainda nem principiaste a gozar a tua mocidade. Para mim é que toas elas já não existem... Vamos! Se continuas desse modo, acabarei por te não tomar a sério!

O mais moço não respondeu, e continuaram os dois a caminhar em silêncio.

No fim de nova pausa, acrescentou o mais velho, sem interromper o passo:

-Que diabo! Quiseste a todo o transe assistir ao casamento de Ambrosina... não te contrariei, apesar de me parecer isso disparada loucura; exigiste que eu te acompanhasse... eu cá estou ao teu lado; declaraste que entraríamos misteriosamente na casa dos noivos à meia-noite, como dois gatunos... eu não respinguei palavra!... (E sacando do relógio) São doze menos um quarto... A chácara do comendador fica-nos a poucas braças... e o cocheiro que nos trouxe roda a estas horas longe daqui, sem saber quem conduziu no seu carro... Parece-me, pois, que anui a todos os teus caprichos; entretanto, tu, o herói desta complicada aventura, tu, que me prometeste te portares como homem, que juraste não soltares um gemido de dor ou de queixa, desatas agora a chorar como uma mulher! Ah! Deste modo, meu caro, não contes comigo!... Prefiro até desistir da viagem que combinamos fazer à Europa, sob a condição de acompanhar-te eu nesta romântica empresa; desisto de tudo!

-Gaspar!

-Pois não! retrucou este, estacando de novo no meio da estrada. Se continuas assim, está claro que não obterás de mim um passo adiante!

-Irei só! Declarou o outro, enxugando os olhos.

-Para fazer-te a vontade, prosseguiu aquele, tive que reagir contra os meus hábitos e até contra o meu caráter; não te é nada estranho o mortal e velho ódio que mantinha contra meu pai, o pai de Ambrosina, esse infame comendador Moscoso, a quem eu, como toda a gente honrada, desprezo e detesto... Pois bem; não me arrependo do que fiz, e estou por tudo que quiseres, mas, com a breca! Exijo por minha vez que, ou tu te hás de portar como homem, ou agora mesmo, desistas de tal idéia de ir hoje à casa da noiva! Lá para lamúrias e pieguices de namorado infeliz, é que absolutamente não vim disposto! Vamos! é decidires!

Gabriel passou-lhe o braço em volta do pescoço, exclamando:

-Não me recrimines, meu bom amigo! Sei quanto te devo, e sei melhor que o teu coração é o único de que ainda não descri inteiramente; mas, por isso mesmo, não me abandones, não me deixes a sós com este desespero, que só espera pela tua ausência para me devorar. Fica ao meu lado... eu me farei forte, eu terei coragem! Hei de vê-la aparecer, enlevada no seu véu nupcial, branca e fugitiva como a nuvem que se some para sempre; hei de vê-la, coroada de flores amorosas, as faces enrubescidas de sensual enleio, os olhos fulgurantes de desejo por outro homem!... E não soltarei um lamento, e não proferirei uma blasfêmia! Inveja, decepções, mortíferos ciúmes, tudo me ficará cá dentro, premido e recalcado com os escombros do meu pobre amor! Tudo sofrerei, vencido e humilhado, contanto que ma deixem ver hoje, contanto que me deixem penetrar, pela última vez, da suprema luz daqueles olhos ainda de virgem, e aperceber minha alma com a imagem dela, antes que ela se despoje eternamente da sua castidade! Depois, farei o que quiseres... fugiremos para longe do Brasil... tomaremos o primeiro paquete para a Europa... percorreremos o mundo inteiro, abriremos uma ruidosa vida de prazeres e de perigos! teremos amantes em todas as cidades, orgias e duelos em todas as paragens; mas, por piedade! Deixem-me ver Ambrosina, antes que ela resvale nos braços do miserável que ma roubou! E tu, meu bom Gaspar, não me abandonarás, não é verdade?... Tu continuarás a ser para mim o mesmo amigo fiel, o mesmo inseparável irmão, o mesmo extremoso pai!

O outro apertou-o contra o peito.

-Sim, sim... respondeu comovido; bem sabes que sim! Serei sempre o mesmo, não para te deixar correr à solta, como um boêmio, por esse mundo afora, mas para despertar em ti o gosto pela vida real e pelo trabalho fecundo... Olha! já daqui se avista a chácara do grande velhaco. Deitam fogos! Deve ir animado o bródio! Mas vê se me compõe um pouco esse teu ar, homem! Não sei que parecerás aos folgazões com essa cara de carpideira de velório!

E, à proporção que se adiantavam, iam já sentindo com efeito avultar-se no ar um quente rumor de festa que ferve ao longe; ao passo que em torno deles vinha, do fundo negrume daquela noite sem estrêlas e sem lua, um monótono coaxar de charco e um agoureiro corvejar de aves sinistras.

Os dois amigos chegaram defronte da bela chácara do comendador. O mais velho bateu no ombro do outro:

-Vê lá como te portas, hein!...

E, embrenhando-se pelo empavezado jardim, galgaram depois uma escadaria de granito, que dava para sombria e vasta varanda, trasbordante de roseiras em flor; transposta a qual, se acharam eles num luzido salão, ainda quente de estrondoso banquete que aí ardera durante a noite.

Via-se ao centro a grande mesa, devastada e abandonada, como um campo depois de medieválica peleja a ferro frio, e, no meio, do destroço, dominante, e altiva, erguia-se intacta, numa apoteose de açúcar e fios de ovos, uma noivazinha de alfenim, coroada de áureos caramelos e vestidas de papel de seda.

Essa ridícula boneca, que se poderia derreter com um bochecho d'água, representava, entretanto, ali, naquele centro burguês e pretensioso, nada menos que a instituição mais respeitável da sociedade, representava a família. Naquele alfenim, frágil, cândido e consagrado, havia a doçura do lar doméstico, toda a pureza do amor conjugal e também toda a fragilidade da honra de um marido.

No meio do geral desbaratamento das vitualhas e dos postres, a simbólica boneca fôra respeitada, por damas e cavalheiros, como ídolo divino.

Gabriel teve vontade de despedaçá-la.

Já quase ninguém havia no salão do banquete. Tinham-se os convivas despejado pelas outras salas e pelo jardim, cuja luminária à veneziana começava a derreter-se; alguns coziam a digestão refestelada pelas poltronas e pelos divãs macios; outros bebericavam ainda aos bufetes e faziam brindes, sobre a posse, à ventura dos cônjuges. A festa, que havia começado desde a véspera, tocava afinal no seu término e dissolvia-se em cansaço.

Gaspar e Gabriel conseguiram, sem chamar a atenção de pessoa alguma, chegar a um aposento mais afastado, onde se não via viva alma.

-O que é da noiva!... perguntou Gabriel a um criado do libré, que apareceu depois, indagando deles se precisavam de alguma cousa.

-A noiva? Acaba, neste instante, de retirar-se com o noivo para o rico pavilhãozinho cor-de-rosa que lhes foi preparado... Olhe! Olhe! Meu senhor! Aqui desta janela ainda os pode ver! Ali vão eles!

-Gabriel correu ao lugar indicado. Ambrosina, pelo braço do noivo, fugia efetivamente para o escondido ninho dos seus amores, esgueirando-se arisca por entre as sombrias árvores do jardim.

-Onde fica o pavilhão?...

-O pavilhãozinho dos noivos? Pois vossemecê não sabe?! Fica, meu rico senhor, ao fundo da chácara, para o lado do mar... Que pena não o ter ido ver enquanto esteve ontem franqueado... De tudo o que se preparou aqui para esta festa, é sem dúvida a peça mais bonita!

Ao fundo da chácara... para o lado do mar... repetia entredentes Gabriel, apalpando contra o peito um punhal que levava oculto.

-Bem, disse Gaspar, assim que o criado se arredou; já viste afinal a noiva, creio que agora podemos bater em retirada... Não nos convém ficar por muito tempo aqui!...

-Vai tu, se quiseres... eu inda fico...

-Mal começa a cheirar-me a brincadeira! Bem sabes que te não abandonarei, mas não deves abusar da minha condescendência... Ouvi por acaso dizer há pouco que os pais dos noivos já se tinham também recolhido e que poucos convidados haveria de pé... São duas horas da madrugada!

Só em verdade um reduzido grupo de convivas recalcitrantes insistia em prolongar a festa, bebendo, já sem olhar o que, entre arrastadas cantigas à meia voz e descaídos abraços de borracheira; os outros, ou se tinham retirado para casa, ou recolhido aos dormitórios que o comendador mandara improvisar para os seus hóspedes.

Os criados, moídos e taciturnos, encostavam-se pelos umbrais das portas, a fitar os retardatários com um olhar humilde e suplicante. Um deles foi ter, bocejando, com Gaspar e Gabriel, e perguntou-lhes, quase de olhos fechados, se pernoitavam na chácara.

-Sim, respondeu o mais moço, sem consultar o outro.

-Mas precisamos de um quarto, donde se possa sair pela madrugada... Observou Gaspar; nossa carruagem chega às quatro horas...

O criado, a coçar-se todo, conduziu-os a uma câmara ao rés do chão, onde já havia dois sujeitos a dormir profundamente.

-Mas afinal, a que pretendes tu chegar com tudo isto?! perguntou Gaspar em voz baixa ao companheiro, quando se acharam a sós.

-A nada mais do que descansar um pouco, e partir em seguida... Contudo, se quiseres ir, ainda está em tempo... Eu, como já disse, não vou por ora.

-Ao contrário, preciso de repouso, e não tenho condução... volveu Gaspar, afetando um bocejo.

E acrescentou, estirando-se num sofá, depois de desfazer-se da casaca e das botinas:

-Contanto que antes de amanhecer estejamos a caminho... Não me convém de modo algum encontrar com o comendador.

-Podes ficar descansado... prometeu o outro, recolhendo por sua vez a uma poltrona de couro.

E, apagando a lâmpada que levara para junto desta, fingiu que adormecia.

Ao fim de algum tempo, a casa mergulhava de todo em silêncio e trevas. Gabriel ergueu-se cautelosamente; foi à porta, abriu-a com sumo cuidado, e saiu para o jardim, em mangas de camisa e sem sapatos. Levava o punhal consigo.

A noite era cada vez mais negra.

Gaspar, porém, que continuava alerta, mal percebeu a escápula do companheiro, enfiou num relance as botinas e a casaca, e atirou-se sorrateiramente no encalço dele.

O médico misterioso

Gabriel, sem dar pelo amigo, que o seguia à distância, atravessou o jardim e ganhou a chácara. Tinham-lhe falado no pavilhão ao fundo... do lado do mar...

-É ali!... balbuciou ele, cheio de febre. Deve ser aquele chalezinho sonolento, que se esconde na folhagem...

E dirigiu-se para lá.

Das janelas do pavilhão derramava-se no mar uma doce claridade, cor de pérola, que se embebia no silêncio da noite como um plácido suspiro de absoluto repouso.

Gabriel comprimiu o peito com as mãos. Sentia por dentro o ciúme comer-lhe o coração a dentadas.

Ah! Como poderia o mísero suportar a idéia de que Ambrosina naquele instante desfalecesse de amor nos braços de outro homem? Como poderia admitir que aqueles lábios, que só com uma única palavra lhe enlearam toda a existência, dissessem a outro o mesmo «Amo-te», que a ele encheu o coração de esperanças, transformadas agora em negras fezes?... E que aqueles olhos, e que aquele colo, e que toda aquela divina carne, desmaiassem e palpitassem na síncope do primeiro enlace dos sentidos, sem ser nos braços dele?... Dele, que tanto a reclamava no ardor do seu desejo apaixonado!

-Ambrosina! Minha formosa Ambrosina!... balbuciava o infeliz, a fitar a dúbia claridade das janelas do pavilhão; como te deixaste fascinar por outro... como pudeste, infiel e querida companheira de meus sonhos, crer, houvesse neste mundo alguém, a não ser eu, capaz de merecer-te e capaz de amar-te como deves ser amada? Louca! Tu me perdeste para a tua felicidade, e de mim próprio me privaste! Repousa no teu engano, embriaga-te de traição, bebe, indiferente e feliz, as curtas horas sobejadas do amor, porque amanhã o teu despertar há de ser amargo e pressago! Hei de com o meu sangue enodar-te as núpcias! Hei de com o meu cadáver tolher-te a estrada! O morto, que ao alvorecer terás sob as tuas janelas, há de quebrar-te na mentirosa bôca o sorriso que trouxeres para a luz do dia! há de gelar-te no peito a doce recordação da tua primeira noite de mulher, e há de acompanhar-te pela vida como a própria sombra da perfídia que habita tua alma!

E, ao terminar estas palavras, já Gabriel se havia arrastado até à flórida porta do pavilhão cor-de-rosa, e aí arrancando do punhal, pousou sobre estes os olhos com profunda e magoada expressão de ternura.

Depois de contemplar por longo tempo a primorosa arma, enquanto dos olhos lhe corriam as derradeiras lágrimas, levou-a piedosamente aos lábios, murmurando de joelho, como se orasse a mais íntima das preces:

-Em ti, leal companheiro dos meus antepassados, beijo o sangue generoso de minha mãe, que a mim te transmitiu, sem contigo me transmitir o seu valor. E ela que me envie, lá da sua etérea morada, perdão para esta minha morte tão mesquinha, tão covarde e tão indigna da sua raça!

Mas, antes de alçar a arma, um forte rugido de fera, um rouco surdo e cavernoso, que parecia sair dos aposentos dos noivos, empolgou-lhe a atenção.

Prestou ouvidos. Um novo ronco sucedeu ao primeiro.

Dir-se-ia um tigre a roncar amordaçado.

E pouco depois os rugidos começaram a repetir-se quase sem intermitência.

-Socorro! gritou daquele mesmo ponto uma voz de mulher.

Gabriel não esperou por mais para meter ombros à frágil porta do pavilhão, arrombando-a com estrondo e precipitando-se lá para dentro como um raio.

-Socorro! Socorro!

Atravessou de carreira um corredor, ao fundo do qual havia uma cancela com vidros de cor, iluminados; despedaçou um dos vidros, e enfiou a cabeça pelo esvazamento aberto. Era aí o quarto dos noivos. Gabriel sentiu ouriçar-lhe o cabelo à vista da terrível cena que se patenteava a seus olhos.

O noivo de Ambrosina estava em posse de um ataque de loucura furiosa.

Leonardo, assim se chamava ele, já desde antes do banquete nupcial havia sentido um princípio de vertigem e um estranho sobressalto de nervos, que lhe alteravam a respiração e lhe punham o sangue desassossegado.

Não ligou a isso grande importância, tratando, porém, ao sair da mesa, de apressar o momento feliz de fugir com a desposada, para a grata independência do ninho que os esperava.

Mas, nem aí conseguiu tranqüilizar-se; continuava sobressaltado, quase ofegante. E, mal havia trocado com a esposa as primeiras e ainda formais expressões da íntima ternura, um novo e mais forte rebate dos nervos lhe agitou todos os membros a um só tempo, como por efeito de uma formidável descarga elétrica.

Leonardo estremeceu da cabeça aos pés, contraindo os lábios, abrolhando os olhos e rilhando os dentes. E começou a tartamudear inarticulados sons e a extorcer-se no luxuoso divã em que havia resvalado.

Ambrosina, já recolhida ao leito, afogada de finos lençóis até à garganta, acompanhava-lhe os menores gestos, tiritando de susto e pronta a pedir socorro.

O infeliz ergueu-se por fim, e pôs-se a andar ao comprido da alcova, muito alvoroçado, sem largar de fazer com a boca e com os olhos contorsões epilépticas. E, ao passar defronte do vasto espelho de uma linda psichê de moldura dourada, encarou-se, soltou um tremendo berro e despedaçou a lâmina de cristal com um murro.

A noiva, de um salto da cama, procurou fugir da alcova, clamando socorro. Ele, porém, a apanhou nos braços, antes que ela conseguisse abrir a porta.

Ambrosina, retorcendo o corpo com uma agilidade de serpe, logrou, aos gritos, escapar-lhe das mãos; mas Leonardo cortou-lhe a saída, rojando-se diante da porta, na destra posição de um tigre que arma o pulo sobre a presa. Faiscavam-lhe os olhos, espumava-lhe a boca e fungavam-lhe as ventas, como de faminta fera fariscando sangue. A punhada no espelho cortara-lhe o pulso, e dos golpes todo ele se tingia de rubras manchas.

Ambrosina estonteada de pavor e já sem voz para gritar, corria, seminua, de um canto a outro da atravancada câmara, ora a esconder-se no cortinado do leito, ora a agachar-se por detrás dos mimosos biombos de seda e dos elegantes moveizinhos de laca japonesa.

Ele afinal, grunindo, pinchou-se sobre ela, e apresou-lhe com os dentes a sutil camisa de claras rendas e laços cor-de-rosa. A bela rapariga soltou um grito mais forte, e caiu por terra sem sentidos, rachando o crânio contra as patas de bronze de um jarrão de porcelana oriental.

Leonardo apoderou-se da desgraçada com uma alegria feroz.

Foi nessa ocasião que Gabriel rompeu o vidro da porta. A fera, ao dar com ele, abandonou a presa e, entre medonhos uivos, engatinhou-se para o intruso.

Gabriel viu-a aproximar-se, e sentiu o coração saltar-lhe por dentro como outra fera também furiosa. Em um abrir e fechar de olhos, levou de arranco a ogival cancela que os separava, e achou-se em frente do louco.

Leonardo, já de pé, recuou dois saltos, e de um bote se arrojou sobre o adversário, fazendo voar-lhe do punho a arma estremecida.

Engalfinharam-se, lutando peito a peito, cara a cara,como dois demônios possessos da mesma raiva; e afinal rolaram no chão, feitos num só, numa só massa iracunda e ofegante, que rodava na estreiteza da alcova, levando de roldão o que topava, despedaçando móveis, faianças e cristais, fundidos num infernal abraço de extermínio. Gabriel sentia as garras e os dentes do louco rasgarem-lhe as carnes, mas insistia em estrangulá-lo, tentando empolgar-lhe o pescoço.

Felizmente, Gaspar, que havia apanhado no ar a situação e correra a chamar pelos de casa, invadia agora, acompanhado por outros, o revolto aposento dos noivos.

Custou-lhe obter aquela gente prostrada por dois dias de festa.

Quatro homens atiraram-se à unha a Leonardo, como a um touro: o insano, porém não largava dos dentes a espádua esquerda do rival. Então Gaspar, que acabava de abrir o seu portátil estojo de cirurgia, despejou no lenço o conteúdo de um frasquinho de prata que tirou dele, e conseguindo colar contra o nariz e a boca do furioso o pano ensopado. Leonardo acabou por fechar os olhos e deixar-se cair exânime nos braços dos que o detinham.

-Carreguem com ele para lugar seguro, disse o operador; donde não possa fugir quando voltar a si. E tratemos agora destes!

Estendeu-se a Gabriel sobre um divã, e carregou-se com Ambrosina para o seu infeliz e faustoso leito conjugal. A desditosa noiva continuava estarrecida e banhada em sangue.

Gaspar pediu pontos falsos, trapos de linho, todos os recursos desse gênero que houvesse em casa; assentou-se expeditamente ao lado da cama, arregaçando as mangas, e pôs-se a observar atentamente a ferida da enferma.

Só nessa ocasião apareceu na alcova o pai da noiva.

Fora de si e quase sem poder falar, perguntava o comendador muito aflito que estranha e grande desgraça havia sucedido à sua pobre filha; mas dando com Gaspar ao lado dela, a auscultar-lhe o colo, estacou, exclamando fulminado:

-O Médico Misterioso?!

E rugiu de cólera.

Gaspar, sem largar de mão o que fazia, olhou para ele de esguelha, e sacudiu os ombros.

-O filho do coronel Pinto Leite em minha casa?! bramiu Moscoso, cerrando os punhos. Saia daqui, senhor! Saia imediatamente, ou o farei despejar lá fora pelos meus escravos!

Gaspar, ainda sem largar de mão a desfalecida, respondeu com toda a calma:

-Sim, mas deixe-me primeiro cumprir com o meu dever profissional, medicando estes dois infelizes; uma é sua filha, e outro é a quem deve ela a vida, à custa do estado em que o vê... Há depois tempo de sobra para o comendador enxotar-me de sua casa uma vez por todas...

Ascendentes

O comendador Moscoso não se podia conformar com a idéia de que ali estivesse, debaixo de suas telhas e no seio de sua família, o filho do homem a quem ele mais odiara no mundo, do homem, pelo qual fizera verdadeiros sacrifícios para vingar-se, e a quem devia as duas mais penosas cenas de toda a sua vida -o filho do coronel Pinto Leite.

Como há de ver o leitor lá para diante, havia, pouco antes do casamento de Ambrosina, sofrido o comendador das mãos do coronel, no meio do maior escândalo social, a maior afronta que se pode fazer a um inimigo.

Todavia, o coronel Pinto Leite fora sempre um modelo de franqueza e de generosidade. A vida militar dera-lhe à fisionomia e às maneiras certo cunho de desabrida aspereza, mas ao mesmo tempo lhe temperara o caráter com essa bondade, natural e sêca, que moralmente distingue, dos materialistas sensuais, ávidos e fracos, os homens castos, sentimentais e fortes.

A história do velho ódio que lhe tributava o comendador vinha de longe, e só poderá ser bem compreendida com uma rápida exposição dos traços gerais da vida do coronel.

Pinto Leite, aos vinte anos, como simples alferes, fazia parte das aventurosas expedições a São Paulo e Minas, quando o Brasil, ainda estremunhando com a Independência, palpitava nas lutas militares e políticas, que depois firmaram definitivamente a sua nacionalidade. Fez carreira pelo valor, pela sisudez de caráter e leal cumprimento do dever. Ainda muito moço já era capitão e desempenhava os mais honrosos cargos de confiança do governo regencial.

Foi por esse tempo que, em campanha nas fronteiras rio-grandenses, se enamorou da filha de um estancieiro, e no intervalo de dois combates se casou com ela. Deste consórcio nasceram primeiro dois filhos gêmeos: Ana e Gaspar, e cinco anos depois falecia em Uruguai a infeliz mãe, por ocasião de dar à luz mais uma filha: Virgínia.

A situação política do país havia mudado inteiramente com a precoce e forçada maioridade do príncipe D. Pedro II, que mal acabava de completar quinze anos, e o soldado, vendo-se ao cabo da guerra preterido por bisonhos e engravatados filhotes do novo governo, e de mais a mais viúvo, enfermo de inúteis e gloriosas feridas, só por ele próprio ainda lembradas, e sobrecarregado com a responsabilidade da educação de três filhos, pediu e obteve reforma no posto de coronel, capitalizou o que tinha, e transferiu-se definitivamente para a Corte.

Só então, pela primeira vez na vida, desfrutou paz e estabilidade. Os bens adquiridos davam-lhe para viver decentemente; e quanto às suas ambições, essas, pobre delas! Quedariam, talvez para sempre, sepultadas na bainha com a sua desiludida espada de reformado.

Ana e Gaspar, ao lado do viúvo, chegaram aos mais belos e bem aproveitados dezesseis anos. O rapaz matriculou-se na Academia de Medicina, enquanto a rapariga, chamando a si os cuidados domésticos da casa, fazia as vezes de mãe junto à irmã pequena.

Mas, com volver-se púbere, entrou Ana logo a penar no próprio ninho e a procurar com os olhos, em volta dos seus primeiros devaneios de donzela, quem a ajudasse a construí-lo.

Ora, a casa do veterano era mais freqüentada por velhos e ásperos camaradas dele, gente tostada de pólvora e tabaco, entre a qual não encontraria de certo a tímida rola o companheiro desejado. E o coronel tão alheio parecia aos solitários arrulhos da filha, que a menina chegou a desconfiar que o pai se não queria separar dela.

Com mais três anos por cima, e sem que aquele o percebesse, começou a irmã de Gaspar a revelar perturbações mais sérias no organismo e a tornar-se sumamente nervosa e macambúzia.

Foi então que o caixeiro da taverna em frente da casa, um rapaz português de pouco mais de vinte anos, bonito e forte, deu em requestá-la com sorrisos e olhares ternos.

E o caso é que a filha do coronel, a princípio revoltada, depois apenas retraída, e afinal já hesitante, acabou por aceitar abertamente o namoro do caixeiro.

Trocaram cartas, e os protestos amorosos do rapaz, escritos com pouca ortografia e muito faro no dote da pequena, a esta enchiam de deliciosos anseios e a deixavam a cismar horas perdidas nas felicidades do lar doméstico.

Um belo dia autorizou-o ela a pedi-la, ao pai, e o rapaz, no primeiro domingo de descanso, enfiou um fato novo, embolsou a carta em que vinha a autorização do pedido, e apresentou-se ao veterano com um discurso na ponta da língua.

A resposta que teve foi uma formidável gargalhada, uma dessas gargalhadas escandalosas de soldado velho, mais pungentes e agressivas que qualquer formal injúria.

O pobre moço desceu as escadas cambaleando, ébrio de confusão e sufocado de cólera.

Esse moço era, um punhado de anos mais tarde, o jovial e próspero comendador Moscoso.

Ao sair da casa do coronel, Moscoso jurou vingar-se. Atravessou a rua apoplético e, metendo-se no cubículo que lhe servia de quarto de dormir, atirou-se ao catre com uma explosão de soluços.

À noite escaldava de febre. Foi uma noite de vertigem, cálculos de fortuna e planos de vingança. O caixeiro via-se mentalmente a economizar, a passar misérias, para ajuntar pecúlio e armar um princípio sólido de vida. As fontes estalavam-lhe. Sonhava-se rico, já cercado de considerações, levantando inveja nos vencidos, abrindo por todos os lados cumprimentos e sorrisos de adulação. Então é que aquele triste do coronel havia de saber o que era bom! Oh! Ele, o pobre caixeiro, seria implacável no seu ódio! O coronel havia de pagar duro! havia de puxar pelas orelhas sem deitar sangue; havia de arrepender-se de lhe não ter dado a filha! Moscoso havia de ver Anita amarrada a um diabo, que a enchesse de maus tratos e necessidades! O tempo é que havia de mostrar

E inteiramente devorado por estas idéias, o caixeiro virava-se e revirava-se na cama, sem conciliar o sono.

Amanhecera abatido, cheio de febre e possuído de uma grande má vontade por tudo e por todos.

Desde então principiou para ele uma nova existência. Tinha uma idéia fixa: tratava-se agora de ajuntar dinheiro; estava disposto a suportar tudo, contanto que o capital se fizesse e avultasse!

Moscoso principiou por mudar de gênero de comércio; meteu-se para a rua da Saúde, arranjando-se em uma casa de café.

E o grande fato é que, ao fim de algum tempo, todo o seu esforço principiava já a produzir o desejado efeito, e o caixeiro contava todos os meses o fruto das suas economias, amontoadas com o sacrifício de todos os instantes.

Pôde então realizar uma idéia, que lhe trabalhava havia muito no cérebro: escrever no Jornal do Comércio uma série de mofinas contra o coronel.

Moscoso, uma noite depois do trabalho, foi à redação daquela folha e entregou a primeira à publicação.

A mofina dizia assim:

«Pergunta-se ao coronel Pinto Leite por que razão S. S. não entra em explicação de contas a respeito de certa viúva da cidade?... -A sentinela

Consistiu nestas estranhas palavras a primeira mofina do comendador. Ninguém as sabia explicar, não tinham fundamento algum, eram inventadas; mas quem as lesse ficaria com o juízo suspenso, diria talvez consigo que ali andava misteriosa e grossa maroteira; e era isso justamente o que Moscoso desejava, era levantar dúvida, promover desconfiança, arranjar qualquer prevenção contra o coronel.

Este, quando viu a mofina, riu-se, persuadindo-se vítima de algum engano. Mas em breve se convenceu do contrário, porque o fato começou a repetir-se.

Moscoso punha já de parte certa verba para aquela despesa; a mofina entrou no seu orçamento ao lado do dinheiro para o cabeleireiro e para o rol da roupa suja. De quinze em quinze dias apareciam elas impreterivelmente, com uma regularidade impressionadora.

O coronel já não ria, sacudia os ombros, e ao ver passar o redator-chefe do jornal, o Luís de Castro, torcia o nariz com repugnância.

Entretanto, pouco depois, Ana foi pedida por um empregado público, e o pai deu-a de bom grado.

Moscoso, por portas travessas, fez o que pôde para desmanchar o casamento. Serviu-se da carta anônima, não trepidou em difamar a filha do coronel, atribuindo ao próprio pai dela a autoria da sua desonra; mas nada disso produziu efeito, e o invejoso teve de roer na obscuridade de seu ódio mais essa decepção.

Ah! O que o havia de vingar eram as mofinas! Para isso estava ali o Jornal do Comércio!

E Moscoso meneava a cabeça, com a calma e a resignação de quem tem toda a confiança na sua paciência e plena certeza de alcançar os seus fins.

-Havia de vingar-se, olé! repetia consigo de vez em quando. Seu tempo de gozo havia de chegar!...

Por essa época sucedeu que o dono da casa comercial em que estava ele empregado, fosse acometido mais fortemente pela moléstia que padecia.

Moscoso tornou-se desvelado e incansável com o patrão, a quem passou a servir de enfermeiro. Perdia noites, andava na ponta dos pés, só falava à meia voz e vivia amarelo, feio e taciturno.

Assim se passaram cinco meses, sem uma queixa, sem uma exigência. Afinal o patrão uma noite o chamou ao quarto e, mostrando-lhe uma rapariga, que criara e com quem vivia, disse-lhe com as lágrimas nos olhos:

-Moscoso! Eu sou um homem rico, tenho esta pequena que eduquei como filha, sinto que vou morrer e não deixo família para herdar. Mortifica-me a idéia de ficar aí tanto dinheiro, que representa o meu trabalho da vida inteira exposto a cair na mão de algum vadio que o deite à rua, como quem não sabe quanto me custou a ganhá-lo, e acabe por atirar na miséria a esta pobre de Cristo!

Moscoso abriu a chorar, e entre soluços pediu ao patrão que se calasse por amor de Deus, e não se estivesse a mortificar com semelhantes idéias.

Mas o homem não o atendeu e, segurando uma das mãos do caixeiro e outra da pupila, continuou com a voz sufocada:

-Deixa-te disso, Luís! Sei que morro e não quero, pela primeira vez em minha vida, largar os meus negócios desamparados... Não me posso ir, sem cuidar do futuro desta criatura; eu já lhe toquei a teu respeito, ela concordou; de tua parte espero que não me hás de deixar mal... Minha pupila, coitada! Não é nenhuma beleza, nem é nenhuma senhora de salão, mas tem boa cabeça e um coração que é uma jóia. Fica-te com ela, toma-a por esposa. Só desejo que a trates sempre como eu sempre a tratei, e que sustentes o nome e o crédito desta casa, que fiz com a minha atividade e com a minha perseverança. Tu és econômico e sensato, virás a dar um bom marido, e...

O enfermo, não pôde continuar, e com um gesto pediu o remédio.

Moscoso serviu-lhe, recomendando que se calasse.

Havia tempo, que diabo! Para tratarem daquilo. Ficasse o patrão descansado; ele cumpriria as suas últimas ordens, com o mesmo zelo com que cumpriu as primeiras recebidas naquela casa!

O patrão fez um gesto afirmativo e puxou para o seu peito descarnado as cabeças dos seus dois herdeiros, que se vergaram condescendentemente, em uma posição forçada, cada qual uma careta mais feia.

A pequena chorava, e o Moscoso fazia-lhe sinais com os olhos para que sustivesse o pranto defronte do moribundo.

O médico chegou depois à hora do costume, demorou-se o tempo que a formalidade exigia, e saiu, dando de ombros.

O doente expirou no dia seguinte.

Meses depois, casava-se Moscoso com a pupila do defunto patrão. Chamava-se Genoveva e era uma raparigaça de seus vinte e poucos anos, muito tola de uma gordura desengraçada. Parecia toda feita de almofadas; as carnes da cara tremiam-lhe quando ela andava, os olhos tinham uns tons amarelados e mortos; o cabelo vivia-lhe pregado ao casco da cabeça com suor, por falta de asseio. Era de uma brancura de sebo velho, falava muito descansado e com um hálito azedo; as suas mãos papudas e umidamente macias, davam em quem as tocasse a sensação repulsiva que se experimentava ao pegar na barriga de uma lagartixa.

Moscoso apossou-se sofregamente dessa mulher, como quem se abraça a um colchão infecto e sebento, cheio porém, de apólices da dívida pública.

Amou-a com todo o ardor da sua ambição, cercou-a de carinhos, de desvelos, de meiguices. Melhorou a sua casa comum de residência, comprou boa roupa, assinou jornais, freqüentou teatros e reuniões familiares, afinal conspirou com alguns colegas a respeito de uma comenda da Vila Viçosa, e aumentou sorrateiramente duas linhas em cada mofina contra o coronel.

No prazo marcado pela fisiologia, Genoveva, deitou ao mundo uma criança. Era menina e foi batizada com o doce nome de Ambrosina.

É deste ponto que principia o maior interesse das memórias do nosso pobre condenado.

Moscoso começava a presenciar a realização dos seus dourados sonhos de vingança, já era rico, respeitado, estava em vésperas de ser comendador e em breve seria milionário; ao passo que o marido da outra -o pobre empregado público, não passava ainda de miserável chefe de secção, e continuava a medir o seu ordenado pelas despesas indispensáveis da casa.

Ah! Que bastantes vezes teriam ocasião de comparar os dois destinos, pensava aquele. De um lado o magro funcionário público, seco, modestamente vestido, curvado pelo serviço, com o espírito consumido pelo trabalho oficial, pela papelada da secretaria, e traduzindo na cara o nenhum caso que lhe votava a sociedade; em quanto do outro lado, resplandecia o belo comendador, o futuro barão, o homem das altas transações, a alma de mil negócios, o nédio ricaço que brincava com muitos contos de réis, gozando a boa carruagem, fumando o seu bom charuto, rindo na praça, dizendo pilhérias aos colegas tão ricos como ele.

E Moscoso revia-se na própria prosperidade, imponente na sua barriga esticada e egoísta, a destilar todo ele um ar petulante da fartura e proteção, a esconder enfim com uma simples aba da sua larga sobrecasaca o vulto franzino do miserável empregado público.

-Esfreguei-os! exclamou o marido de Genoveva em um assomo de contentamento. -Esfreguei-os em regra!

Entretanto, a vida do coronel ia muito pior do que podia imaginar o comendador Moscoso. O bom veterano, percebendo que os seus bens de fortuna tendiam a enfraquecer consideravelmente, teve um palpite de ambição e meteu-se a especular com eles. Foi um desastre que deixou o pobre homem quase reduzido ao soldo militar.

Por essa época, o filho habitava em S. Francisco da Califórmia depois de ter estado na Europa a aperfeiçoar-se em medicina. O velho participou-lhe o estado em que se achava, e pediu-lhe que voltasse quanto antes. Gaspar, que até aí gozara ordem franca, não acreditou em semelhante notícia, calculou que o pai desejava vê-lo e tratou de partir sem pressa.

Tinha ele então vinte e quatro anos e era um belo moço. Tomou uma passagem no «Pacific Star», disposto a voltar definitivamente para a companhia do pai.

Mas, enquanto o navio ancorava em Montevidéu para refrescar, Gaspar resolveu aproveitar o dia, visitando a cidade com outros rapazes companheiros de bordo.

Só quem não viajou deixará de compreender o que é passar vinte e quatro horas numa cidade estranha, quando se tem outros tantos anos de idade e dinheiro nas algibeiras. Jantaram em casa de uma rapariga; o vinho era excelente e a tarde encantadora. As horas voaram no turbilhão do prazer e da desordem; ferveu o champanha, as canções rebentaram estrepitosamente entre gargalhadas.

O navio largava no dia seguinte às onze horas.

À meia-noite os rapazes levantaram-se da mesa, mas a rapariga passou os braços no pescoço de Gaspar e pediu-lhe que ficasse. Ele cedeu, tinha a cabeça pesada e o corpo lhe exigia repouso. Não foi sem prazer que viu a vasta cama e o confortável aposento, que lhe franqueou a dona da casa.

Deitou-se e pediu que lhe servissem chá antes de dormir. Foi ela própria levar-lhe ao leito uma chávena, em que tinha lançado duas gotas de ópio.

Gaspar, depois de beber, sentiu um grande entorpecimento e adormeceu profundamente.

Então, a um sinal da rapariga, acudiu da alcova imediata um homem musculoso, que se apoderou dele e o levou consigo.

Gaspar foi carregado em trajes menores; todos os seus objetos de valor, o seu dinheiro e a sua roupa externa ficaram no quarto da ratoneira.

O homem que o colheu atirou-o dentro de uma carruagem à porta da casa, e trepou para a boléia.

O carro percorreu várias ruas, e afinal parou em uma das mais sombrias e desertas.

O ladrão desceu então da boléia, sacou Gaspar da sege, deitou-se ao comprido do macadame, galgou de novo o seu posto e afastou-se fustigando os cavalos.

A noite fizera-se escura e um vento frio ameaçava chuva. Gaspar continuava a dormir, estendido no chão.

Só voltou a si às três horas da tarde. Ao abrir os olhos, reparou que estava deitado em um rico aposento, e que o tinham envolvido em magníficas casimiras e agasalhado os pés em edredão legítimo. Ao lado da cama, de pé, olhando para ele, havia uma mulher, que resplandecia em toda a exuberância de mocidade e beleza

Gaspar supôs-se num sonho; esfregou os olhos, estendeu a cabeça. E a linda visão, com o mais amável dos sorrisos, passou-lhe uma das mãos no ombro e com a outra lhe fez sinal de silêncio.

Ele tomou aquela mãozinha branca e nervosa e ficou a fitá-la por longo tempo. Depois traçou um circo com o olhar e perguntou verdadeiramente surpreendido de tudo que via em torno de si:

-O que quer isto dizer? Onde me acho eu?!

-Mais tarde o saberá, disse a bela desconhecida; por ora trate de fazer a sua toilette e tomar o chocolate que já está servido sobre aquela mesa. O senhor deve estar a cair de fraqueza.

E saiu.

Gaspar acompanhou-a com a vista, e procurou mentalmente descobrir a relação que havia nesta casa com a outra em que adormecera. Nada descobriu e resolveu aceitar o conselho que lhe dera a desconhecida. Foi ao toucador e preparou-se tomou em seguida o chocolate, e tratou de vestir-se. Mas embalde procurava pela roupa -no quarto só havia um robe-de-chambre de seda. Gaspar enfronhou-se nele.

Tinha feito isto, quando sentiu passos. Era novamente a bela e misteriosa mulher.

-Ainda bem, resmungou Gaspar um tanto impacientado.

Ela voltou-se muito familiarmente para ele, e disse com a voz firme:

-Antes de lhe explicar a razão pela qual espontaneamente o hospedei em minha casa, tenho a declarar-lhe que sou uma mulher honesta. Um pouco caprichosa talvez, mas com a consciência satisfeita pelo bom cumprimento do dever. Encontrei-o hoje, às quatro horas da manhã, desfalecido em uma das ruas menos transitadas desta cidade; a sua fisionomia impressionou-me extraordinariamente, por uma circunstância que mais tarde saberá. Calculei que o senhor tivesse sido vítima de algum roubo: fiz conduzi-lo à minha casa e aqui o tenho. Espero que me perdoará tal procedimento, se ele não for do seu agrado.

Gaspar, por única resposta, ferrou-lhe um olhar grosseiramente incisivo e curioso, como se lhe procuras se descobrir no rosto o que havia de verdade naquelas palavras.

Ela suportou o olhar sem pestanejar, e replicou-lhe com uma firmeza que não admitia réplica:

-Não tolero que ninguém duvide do que afirmo!

E voltando-se, acrescentou consigo: «Não me enganei! É ele com certeza!»

Violante

-Perdão, minha senhora, disse Gaspar em continuação à conversa com a bela desconhecida; eu, nem só creio na sinceridade de sua palavras como estou possuído do mais profundo reconhecimento pelos obséquios que recebi; mas não posso disfarçar o embaraço da minha situação...

-Por quê? interrogou a senhora com um tom indiferente.

-Por tudo. Em primeiro lugar, a perda total de minha roupa quer dizer que se me extraviaram papéis de importância, entre os quais estava o meu passaporte, o conhecimento de minhas bagagens e o meu bilhete de passagem no Pacific Star...

-O Pacific Star partiu ao meio-dia.

-Partiu?! Bravo! Então, minhas malas? Minhas...?

-Irão ter ao primeiro porto; cumpre ao senhor providenciar para que elas não se desencaminhem.

-Mas que situação a minha! exclamou Gaspar, olhando para o seu robe-de-chambre com um ar infeliz. Ficar desta sorte em uma cidade completamente estranha para mim... sem um amigo, sem um parente, e vestido desta forma! Isto não tem jeito! É caso para dar-se com a cabeça pelas paredes! Aqui ninguém me conhece! E além de tudo, se a senhora me não puder arranjar um par de calças, eu nem do quarto poderei sair! Esta só a mim sucederia!

-Ora! O senhor está criando dificuldades imaginárias...

-Imaginárias?! gritou Gaspar, escancarando os olhos. Se lhe parece, minha senhora, que eu não devo estar seriamente atrapalhado! Imaginárias!...

Decerto. Olhe! Ali está uma secretária: passe uma letra da importância de que precisa para viver algum tempo nesta cidade: depois...

-Que mulher singular! considerou Gaspar com os seus botões, e voltando-se cheio de embaraço para a oriental: Perdão minha senhora! mas é que...

-Não pode hesitar! Atalhou ela, sorrindo; o senhor não tem outro recurso...

-Mas é que eu nem ao menos sei a quem devo passar a letra...

-Tem razão, respondeu ela, encaminhando-se para a secretária, onde escreveu um vale à casa comercial de Viúva Rios & Comp. E passando-o depois a Gaspar, acrescentou:

-Tenha a bondade de assinar.

-Dois mil pesos! protestou Gaspar, lendo o papel. Porém eu não preciso por ora de tão grande soma...

-Em todo o caso, nada perderá, nem ganhará com aceitá-la. Esse papel representa uma quantia que o senhor terá de pagar com um pequeno juro. Creio que não será lesado...

-Estou convencido disso, mas a questão é que eu não conheço esta firma, e ela muito menos a mim. Que valor pode ter minha assinatura para semelhante casa?

-Engana-se. O senhor merece todo o crédito para ela...

-Eu?!

-Sim, meu caro senhor.

-Creio que a senhora me confunde com outro...

-Pode ser, mas suponho que não!

-E como sabe se eu mereço confiança para a casa de Viúva Rios & Comp.?

-Porque sou eu a própria viúva Rios.

Estou pasmado.

-Disso sei eu... Assine

-Mas, minha senhora, deixe ao menos que lhe beije primeiro as mãos...

A viúva olhou-o de alto a baixo; tinha-lhe fugido dos lábios o sorriso carinhoso com que até aí mimoseara o hóspede Gaspar abaixou os olhos, sem compreender o que se passava.

-Beijar-me as mãos... disse ela por fim. Só se lembrou disso depois da transação comercial! E são assim todos os homens!... Enquanto se trata de cousas verdadeiramente raras e preciosas, porque dependem só do coração e da pureza dos sentimentos, não se abalam sequer! A meiguice, a ternura, a feminilidade, que uma pobre mulher desenvolve desinteressadamente para cumprir com eles o seu destino de amor e de sacrifício, nada mais obtém de seus lábios que algumas palavras banais de reconhecimento e cortesia. Mas logo que se trata de materializar o bem, logo que o sacrifício, que o obséquio, que a abnegação, se acham representados por um valor real, por uma quantia enfim... ah! Então querem beijar-nos as mãos e encontram facilmente exclamações de entusiasmo e de gratidão!... Não beijará! exclamou ela, fazendo um gesto de energia. Estou cada vez mais convencida de que os homens são todos os mesmos... Visionária e tola é a mulher, que espera encontrar entre eles um coração justo e perfeito. Se eu não fosse rica, se eu não pudesse oferecer-lhe agora uma quantia, de que aliás o senhor tem absoluta necessidade, é muito natural que o senhor não encontrasse uma palavra afetuosa para os meus desvelos, e é possível até que, uma vez que já não precisasse deles, chegasse a desprezar-me e fazer mau juízo da minha conduta, porque, no fim de contas, eu tinha cometido a imperdoável leveza de recolher em minha casa um homem quase morto, e de proporcionar-lhe todos os serviços que o seu mísero estado reclamava. E afinal os senhores acabam por ter razão! Toda nossa vida, toda nossa dedicação, toda nossa ternura, toda nossa paciência, não valem um obséquio praticado por um homem a outro homem! Tudo o que pode fazer o coração de uma mulher não vale um empréstimo de dinheiro, uma fiança, uma comenda, um elogio pela imprensa ou qualquer outra bagatela, que afague o amor próprio de algum parvo, ou salve a suposta honra de qualquer fátuo!

-Minha senhora, eu peço-lhe mil perdões, se...

-É melhor não dizer cousa alguma! Vamos, assine o vale, e depois há de preparar-se para jantar. Pode receber de minhas mãos o miserável serviço que me propus oferecer-lhe: em breve o senhor terá ocasião de prestar-me um outro muito maior.

Com todo o gosto! respondeu Gaspar, assinando o vale e entregando-o à sua salvadora.

Esta leu consigo a assinatura, e disse com sinais de satisfação: -Logo vi que me não tinha enganado! É justamente quem eu supunha!...

Em seguida, retirou-se, sem dar tempo ao hóspede para voltar a si da estranheza daquelas palavras.

Ele encostou-se a um móvel, e deixou-se arrastar por um cardume de raciocínios. -Quem seria aquela mulher tão extraordinária?... Que relação haveria entre ela e um pobre viajante, pouco conhecido em qualquer parte e inteiramente ignorado naquela cidade onde pisava pela primeira vez?

Estava a fazer tais considerações, quando a porta se abriu de novo, e apareceu um homem de uns sessenta anos, acompanhado por um rapaz que trazia uma caixa na cabeça.

O velho era limpo, discreto e sumamente cortês; via-se nele um desses bons servos do tempo da regência, que não sabiam aprumar-se como o criado inglês, nem sorrir maliciosamente como o francês. Foi a Gaspar e cortejou-o sem afetação e sem servilismo: fez o companheiro depor no chão a caixa que trazia, e principiou a tirar dela várias peças de roupa.

-Meu amo tenha a bondade de escolher daqui o que lhe convém, disse ele, como se estivesse de muito tempo a serviço de Gaspar.

Este tomou o expediente de deixar que as cousas corressem ao bel-prazer da fada que fazia girar a roda daquela fortuna, e escolheu a roupa de que podia precisar.

O criado tomou-lhe a medida do pescoço e da cintura, e encheu uma gaveta com o mais completo enxoval de roupa branca. Em seguida, voltou-se para o rapaz da caixa e disse-lhe que podia retirar-se.

Gaspar olhava para tudo aquilo, completamente intrigado.

O sexagenário entregou-lhe uma carta com o dinheiro oferecido pela oriental e perguntou-lhe depois se já queria vestir-se. Passaram para a próxima saleta, que era um brinco de luxo e de bom gosto.

Pois senhor meu amo, dizia o velho, a pentear a bonita barba castanha de Gaspar; estimo bem ver afinal vossemecê à testa de sua casa... Só dessa forma a minha pobre patroazinha passará uma vida menos amarga! Ela coitada, vivia tão triste, que metia dó!...

Gaspar sentiu arrepios. Ia desembrulhar semelhante mistificação; mas, receoso de fazer alguma tolice, deliberou conter-se.

-Então, a senhora, vivia muito triste?... perguntou ele.

-É como lhe estou a dizer, meu rico amo, a pobrezinha só o que fazia era chorar e falar na próxima chegada do marido!

-E esta? disse Gaspar consigo. Pois eu era esperado já por aqui?

-Ainda assim, acrescentou o criado; o que às vezes a consolava era a companhia do menino, mas este foi para o colégio, e...

Gaspar não se animava a dar mais uma palavra; enfim perguntou:

-E ela ama muito essa criança?

-Se ama o filho? Oh! meu amo, adora-o! E a graça é que o diabinho se parece deveras com ela e com vossemecê!... é como se o estivesse a ver neste momento, com aquela cabecinha muito redonda, os olhos muito pestanudos e os beiços muito vermelhos, a dizer-me:

«Jacó! Jacó! Olha que te bato!» E corria a bater-me nas pernas com a mãozinha fechada!

E o velho, disse ainda, a limpar uma lágrima:

-Que bela criança!... Não se ria vossemecê destas cousas, mas é que a gente, quando vai ficando inútil, como eu, toma um não sei quê pelas crianças, que é mesmo uma esquisitice! Fica-se tolo, babão, por aqueles diabinhos!...

-Você não tem algum neto, Jacó?

-Qual, meu senhor! Essa fortuna não é para este pobre velho; o meu Ernesto morreu aos quinze anos, e depois disso não tive mais parentes, nem felicidade completa...

E o desgraçado chorava.

-Está bom! Está bom! atalhou Gaspar; deixemo-nos de recordações penosas e vá arranjar-me charutos.

O criado saiu, vergando sob os seus sessenta anos e arrastando pacificamente os seus sapatões de bezerro, engraxado. O filho do coronel reparou então que havia na saleta uma biblioteca; colheu um Espronceda e leu distraidamente alguns versos. O velho voltou com os charutos, e perguntou se o amo queria jantar mesmo no quarto ou se resolvia a passar ao «comedor».

-Diga à senhora que faça como melhor entender, respondeu ele.

-D. Violante já está à mesa e conta que meu amo lhe fará companhia.

-Nesse caso, irei.

E Gaspar, sem saber por que, teve uma alegriazinha com descobrir que a sua misteriosa feiticeira se chamava Violante.

A sala de jantar era pequenita, alegre; paredes guarnecidas de aquarelas espanholas. Havia distinção no gosto que presidia à escolha dos móveis, e um certo perfume artístico na disposição dos bronzes e dos cristais. Sentia-se logo que ali palpitava um espírito caprichoso e romanesco.

Gaspar, mal entrou, correu a apertar a mão da sua benfeitora; e ela, sorrindo, felicitou-o pelo seu completo restabelecimento.

-Só à senhora o devo, que foi o meu bom anjo; e acho tão delicioso este sonho, que receio acordar...

-Acordará quando eu lhe disser francamente a situação em que nos achamos... Mas desde já o previno de que tenho um grande favor a pedir-lhe...

-Será minha maior ventura! Desde já...

-Não prometa ainda, porque a cousa é muito mais séria do que o senhor se persuade...

-Estou convencido, todavia, de que a senhora não exigirá que eu cometa algum crime ou alguma infâmia!...

-Quem sabe lá?... disse preocupada a bela mulher.

-Sei eu! aposto, arrisco tudo! Desde já prometo cumprir as suas ordens com a submissão de um escravo.

-O senhor é casado?...

-Não, minha senhora.

-Bem! Então tudo se poderá arranjar... O senhor vai passar por meu marido.

-Como?...

-Daqui a pouco saberá. Jantemos primeiro, teremos depois tempo para conversar.

Refluxo do passado

Correu muito agradável o jantar. A mesa era pequena e punha os dois em confidêncial intimidade.

Violante mantinha a palestra com a sedutora volubilidade das mulheres que sabem esconder o pensamento com a palavra, falando para não dizer o que lhes convém calar; e ele, enquanto a caprichosa tecia e destecia as no nadas da conversação, ia reparando bem para a cor dos olhos dela, para as violetas das suas pálpebras, para a formosura da sua boca e para aquele moreno pálido e fresco, que é nas raças espanholas um luminoso e fugitivo reflexo do Oriente.

E os olhares sofregos do rapaz insinuavam-se pelas sutilezas daquelas deliciosas formas de mulher, serpeando-lhes por entre as curvas da garganta e por entre as macias ondulações do colo, a tatear os menores acidentes da divina argila, e adormecendo embriagados de volúpia à sombra embalsamada dos cabelos negros; para logo acordarem e de novo se porem a subir de rastros pela doce curvilineação das espáduas, e deixarem-se depois rolar pela encosta dos quadris ou pelo branco despenhadeiro dos braços nus.

E sem querer, e sem poder conter-se, Gaspar imaginava como não seria o contato real de tudo aquilo! Que delírios não havia de se esconder num beijo as endiabradas covinhas daqueles cotovelos cor-de-rosa!...

-Então, o senhor não janta, nem conversa! Disse-lhe Violante a rir. Há boas horas que me olha com duas brasas!...

E a formosa oriental estendeu a mão ao hóspede, pedindo-lhe que lhe passasse um pessego.

-A mão! exclamou ele, tomando no ar a mão de Violante. Oh! Como é bela!

E ficou a contemplá-la, a enluvá-la com um olhar de êxtase.

Era branca, fina, delgada, de longos dedos roliços e bem guarnecidos.

-Então! repetiu ela, fazendo um gesto de impaciência com o braço. Tenha a bondade de passar-me a fruteira.

Gaspar caiu em si e pediu-lhe mil perdões. Violante que lhe desculpasse aquela abstração -ele continuava a sonhar!...

E depois de servi-la de frutas e de vinho, encheu o próprio copo, e bebeu à gentil estrêla que o conduzira ali.

Violante olhava-o com um sorriso. Terminado o jantar, ergueu-se ela e ordenou-se ao camareiro que servisse o café no fumoir.

-Dê-me o seu braço, disse a Gaspar.

E passaram-se para a sala próxima.

Violante ofereceu uma poltrona ao hóspede e assentou-se em outra. Depois tomando uma cigarrilha de tabaco turco de sobre o bufete, e cruzando negligentemente as pernas, com o cotovelo apoiado ao rebordo da cadeira e a cabeça um tanto pendida para trás, disse a soprar o primeiro hausto de fumo.

-Preste-me agora toda a atenção, porque, só depois de ouvir o que lhe vou dizer leal e francamente, é que poderá o senhor decidir se fica desde já em minha companhia, ou se se retira hoje mesmo desta casa...

Gaspar tomou o café, acendeu um charuto, reclinou-se mais na poltrona e disse, afagando a barba:

-Pode principiar. Estou às suas ordens...

-Quando eu tinha cinco anos, começou Violante, depois de fitar o teto, como quem evoca o passado, minha mãe sucumbia à miséria nesta cidade, e meu pai aos golpes do partido revolucionário em Cadiz. Ora, eu, que sempre acompanhara minha mãe em todas as suas peregrinações, achei-me de repente com ela morta nos braços, sem saber, coitada de mim! fazer outra cousa que não fosse chorar. Saí, entretanto, pedindo, à-toa, a quem encontrava pela rua, onde fosse comigo por piedade à casa para tratarmos de enterrar o cadáver. Todos me davam as costas; e eu, já desesperada, estalando de fome e de frio, cheia de terrores, atirei-me contra uma porta, a soluçar e a pedir a Deus que me levasse também para si.

Nessa conjuntura, senti no ombro uma carinhosa mão que me fez voltar a cabeça. Tinha defronte dos lhos um oficial brasileiro. A princípio, fez-me medo com o uniforme e as suas barbas; mas era tão calma e compassiva a expressão da sua fisionomia, que me animei a encará-lo; além disso, a presença de uma senhora e duas crianças de minha idade, que o acompanhavam, me restituíam logo a tranqüilidade e, sem saber por que, sorri para aquela gente.

Oh! Nunca mais me esqueci da fisionomia desse oficial! «Que tens tu?!» disse-me ele em mau espanhol, passando-me a mão pela cabeça.

«Tenho minha mãe morta em casa, naquela rua, e falta-me o ânimo de voltar para lá sozinha!»

O oficial refletiu um instante e trocou algumas palavras em português com a mulher. Depois, deu-lhe o braço, e começaram a acompanhar-me com os pequenos.

(Gaspar apertou os olhos, fazendo um esforço de memória.)

-Quando chegamos à casa, continuou Violante, ficaram todos horrorizados. O espetáculo da miséria completava-se com o cadáver de minha pobre mãe, que jazia por terra. Não era só compaixão o que inspirava aquilo; era mais: era revolta e ódio contra tamanha incúria de Deus!

«Esta criança naturalmente está caindo de fome», disse a senhora ao marido.

«Muito!» afirmei eu, que compreendera essas palavras.

Então tirou aquela da sua maleta de mão alguns biscoitos, que trazia para os filhos, e deu-mos, acrescentando: «Em casa jantaremos juntos».

O marido perguntou-lhe se ela sabia ir só para o hotel.

«Perfeitamente», respondeu a senhora.

«Pois leva os nossos pequenos e esta infelizinha; eu fico para provindenciar sobre o enterro.»

Quis eu então atirar-me aos pés do meu benfeitor; mas a idéia de que nunca mais veria minha mãe, fez-me abrir em soluços e precipitar-me sobre o seu cadáver, para lhe dar o último beijo.

A senhora do oficial arrancou-me dali, e levou-me para sua casa pela mão.

Só no dia seguinte, quando acordei, na melhor cama da minha vida, soube que minha mãe fora dignamente sepultada, e que eu ficaria morando ali onde me achava.

O oficial, de que lhe acabo de falar, chamava-se Pinto Leite, e seus dois filhinhos eram: um Gaspar e o outro Ana.

-É exato! E! Bem me recordo da pequenita que brincou comigo em outro tempo! confirmou Gaspar com muito interesse. Mas se me não engano, essa pequenita fora para um colégio, quando...

-Já lá vamos! Já lá vamos! respondeu Violante; ouça o resto.

E continuou:

-Passei um ano em casa de seu pai. Aí aprendi a ler, rezar e cozer com sua mãe. Foi nessa época que nasceu sua irmã mais moça; a Virgínia. O senhor não calcula que boas recordações tenho eu desse tempo! Também não podia ser por menos: até aí só conhecera sofrimentos e privações, e lá fui encontrar a paz, o conforto e até o amor. Sua mãe, a quem Deus haja, era uma santa!

Gaspar ouvia cada vez com mais interesse, as palavras de Violante.

-Entretanto, prosseguiu ela fazendo um ar triste, seu pai foi constrangido a mudar-se para o Rio de Janeiro, e como eu na minha qualidade de órfá, não podia ser carregada da pátria, assim sem mais nem menos, resolveu ele meter-me como pensionista em um colégio aqui, onde nada me faltaria.

E dando piparotes na cinza do cigarro, a oriental acrescentou, mudando de tom:

-No colégio levei até aos dezesseis anos, quando tive o meu primeiro namoro foi com o filho da diretora, Paulo Mostella; um mocetão vivo, forte e velhaco. Por duas vezes furtou-me beijos, de uma quis ir mais longe; eu, porém, tinha felizmente algum juízo e cortei-lhe o arrojo com uma tremenda bofetada. Paulo declarou-me então, cheio de raiva, que nunca tencionava casar comigo, porque sua família não consentiria em tal loucura -eu afinal era uma rapariga sem eira, nem beira! Todavia, fui, pouco depois, pedida por um negociante muito rico e sumamente estimado da sociedade de Montevidéu; chamava-se D. Tomás de los Rios. Era um homenzarrão, ainda fresco, muito amável, muito bom e com muito caráter. Casei-me e fui feliz durante esse tempo. Meu marido adorava-me, fazia-me todas as vontades. Levou-me a correr a Europa, mostrando-se ser agrádavel. Quando voltamos do nosso longo passeio, trazíamos um filhinho - Gabriel. Tomás principiava, entretanto, a sofrer da moléstia que o havia de matar. Tornamos a sair daqui em busca de ares mais favoráveis. Meu filho ficou. Tínhamos-nos dirigido para a Espanha; cheguei viúva a Madrid.

Fiquei bastante contrariada com a situação, e resolvi esperar que alguém de cá me quisesse ir buscar. Estava nestas circunstâncias, quando fui surpreendida um dia por um rapaz, que se atirou a meus pés, chorando e rindo com grande contentamento. Era Paulo Mostella.

Olhei-o sobressaltada, e certo é que então o diabo do homem me pareceu melhor do que dantes. Cheguei a calcular que o tempo e o traquejo do mundo lhe tivessem modificado o espírito, como lhe modificaram a fisionomia. Propôs imediatamente a casar comigo, e eu lhe declarei que não pensava ainda em preencher a vaga de meu marido, e que, se mais tarde me viesse semelhante idéia, só a realizaria um ano depois da morte de Tomás. Paulo falou-me com entusiasmo de uma grande paixão que por mim o devorava, e jurou que me amara sempre, e que aquele mesmo fato de se ter humilhado a procurar-me ainda, provava de sobra o muito que me queria. Enfim, tanto disse e tanto chorou, que acabou por me comover e persuadir. Fiz-lhe ver que, em todo caso, eu não me casaria aquele ano. Ele esperaria. Só o que desejava era possuir uma promessa. Prometi. E desde então o demônio do rapaz não me largou mais a porta. Passeios, teatros, bailes, touradas; tudo inventava para me agradar. Parecia viver unicamente para mim; dir-se-ia que todo o seu ideal era fazer com que o tempo corresse o mais depressa possível e que chegasse afinal o dia feliz da nossa união.

«Só voltaremos a Montevidéu casadinhos!» dizia-me ele, a beijar-me as mãos. E eu, em verdade, nem só já o suportava perfeitamente, como até sentia já por ele certa inclinação.

-Nós, as mulheres, somos muito fracas! Explicou Violante com um olhar lastimoso. Se soubessem os homens o esforço que às vezes fazemos para sustentar o que a sociedade exige como tributo da nossa honestidade, dariam eles muito mais importância às nossas virtudes! Houve ocasiões, confesso, em que se me afigurou que Paulo tinha direito de ser mais atrevido do que realmente era.

E, voltando-se na cadeira, a oriental continuou:

-Uma vez propus-me um passeio ao campo. Aceitei e fomos.

A manhã era esplêndida. Uma bela manhã cheia de luz e temperada por um calor comunicativo e doce. Às seis horas metemo-nos em um carrinho de vime, leve como uma cesta, rasteiro como um divã e cômodo como um leito.

Paulo deu rédeas ao animal, e o carro nos conduziu para fora da cidade.

Paulo Mostella

-Eu sentia um bom humor extraordinário, presseguiu Violante: o ar puro e consolador da manhã, pulverizado no espaço em vapores cor-de-rosa, enchia-me toda como de uma grande alma nova, feita de cousas alegres e generosas. Tive vontade de rir e cantar.

O sol principiava a destacar o contorno irregular das árvores e derramava-se transparente e suave. Sentia-me expansiva, alegre, tinha repentes de criança; e, não sei por que, Paulo nessa ocasião se me afigurou muito melhor do que das outras. Cheguei a achar-lhe graça e a desfazer-me em risadas com algumas pilhérias suas que fora dali me fariam bocejar.

Em certa altura paramos. Ele ajudou-me a descer, prendeu o cavalo, abriu a minha sombrinha, e começamos a andar de braço dado por debaixo das árvores.

Que delicioso passeio! O Senhor não pode imaginar quanto eu me senti feliz... Mais alguns passos, e tínhamos chegado a um caramanchão ou, melhor, a um alpendre de verdura misterioso, tépido, todo impregnado dos perfumes do campo e das sombras da folhagem. Ao lado uma cascata corria em sussurros, e as suas águas quebravam-se nas pedras, irradiando a fulguração do sol.

Paulo deixou-me por um instante, para ir buscar o carro. E nesse momento de independência, quando senti que não era observada por ninguém, levantei-me, bati palmas e pus-me a dançar como uma doida; depois galguei aos saltos o lado da cascata e recebi no rosto o pó úmido das águas. Abaxei-me, colhi água na concha das mãos e bebi. Afinal assentei-me no chão, e abri a cantar.

Paulo voltou com o carro e recolheu ao pavilhão o cesto do almoço. Estendeu a toalha sobre uma mesinha de pedra que havia, e pousou nesta uma máquina de café, duas garafas de bordeaux, uma de champanha, uma botija de curaçau, uma empada, um assado, queijo, frutas e pão.

Eu sentia apetite, e confesso que estava encantada com tudo aquilo. Era a primeira vez que me animava a fazer uma folia desse gênero -um almoço ao ar livre ao lado de um rapaz.

E Paulo não me parecia o mesmo homem, descobria-lhe maneiras e qualidades, para as quais jamais atentara enquanto o vira somente nas frias atitudes circunspectas da vida, notava-lhe agora a distinta estroinice dos pândegos de boa família, criados e animados entre senhoras finas e orgulhosas; um certo pouco caso, fidalgo e elegante, pelas virtudes comuns e pelos vícios vulgares; um ar altivo e másculo de quem está habituado a gastar forte com os seus prazeres; uma linha moderna, libertina e gentil a um tempo, feita de extravagâncias de bom gosto, e um pouco de viagens, alguns conhecimentos de música, um nada de política, anedotas francesas, algum dinheiro, charutos caros, um monóculo, o uso de várias línguas, um bigode, duas gotas de mel inglês no lenço, um fato bem feito, um chapéu de palha, luvas amarelas, polainas e uma bengala.

E o grande caso é que estava um rapagão, cheio de gestos largos, de atiramentos de perna, e de grandes exclamações em inglês.

Assentei-me no banco que circundava a mesa, e ele fez o mesmo defronte de mim. Informou-se se eu estava satisfeita com o passeio, falou em repeti-lo. Era preciso aproveitar o verão! Mas aos domingos nada! havia muita gente!

E abria garrafas, dava lume à máquina de café, servia-me de mariscos e falava-me do seu amor. Eu contei-lhe francamente as impressões que recebera àquela manhã, e mostrei-me satisfeita.

«Se soubesse, minha amiga, dizia-me ele, quanto me sinto bem ao seu lado!... Nem mesmo me reconheço, creia! Fico tolo só com pensar em nossa futura felicidade, em nossa casa e em nossos...

Ia falar nos filhos, mas deteve-se e ficou a olhar-me com uma grande insistência humilde. Parecia haver um pranto escondido por detrás das suas pupilas azuis.

«Descanse. Falta pouco!» respondi eu, possuída de alguma cousa, que não sei bem se era compaixão.

«Falta um século!...» emendou ele com um suspiro. E chegou-se mais para mim. Tinha o ar tão respeitoso que não fugi.

«Por que não fica mais à vontade?» disse-me. E ajudou-me a tirar o chapéu e desfazer-me do mantelete.

Houve um silêncio. Ele queixou-se da falta de gelo, abriu uma nova garrafa de bordeaux e encheu os copos. Depois, leu-me uns versos, que a mim fizera no tempo do colégio. Vieram logo as recordações da infância, o nosso namoro. -Quanta criancice!

«-E o bofetão?...»

Esta lembrança trouxe-me uma risada, que me fez engasgar. Sobreveiu-me tosse, fiquei um pouco sufocada; ele levantou-se logo, começou a bater-me delicadamente nas costas. E, a pretexto de auxiliar-me, afagava-me os cabelos e a fronte.

«Não é nada! Não é nada!» dizia Paulo; «vá um gole de champanha!»

«Não! Antes água!...»

Ele correu à cascata, e voltou com um copo d'água.

Tornamos à palestra, e eu não reparei logo que o rapaz desta vez ficara inteiramente encostado a mim. Passamos à sobremesa. As pilhérias repetiam-se mais amiúde.

Paulo pôs-se a fumar.

Consenti nisso e disse até que gostava do cheiro do fumo. Ele fêz saltar a rolha do champanha.

Sentia-me enlanguecer; os olhos ardiam-me um tanto e o corpo me pedia repouso. Insensivelmente fui perdendo alguma cousa da minha cerimônia e me pondo à vontade; estiquei mais as pernas, recostei-me nas costas do banco e inclinei para trás a cabeça.

Ele ficou a olhar-me muito, com um ar sério e infeliz. Eu tive vontade de dizer alguma cousa, e nada mais consegui do que sorrir. Estava prostrada.

Paulo aconselhou-me que fumasse um cigarrinho, e essa idéia extravagante não me pareceu má. Fumei o meu primeiro cigarro.

Em seguida senti um vago desejo de dormir. Ele serviu o café e o licor.

E continuamos a conversar.

As recordações do tempo do colégio vinham a todo o instante.

«Isto sempre teve gênio!» dizia ele, ameigando-me o queixo. Chamava-me criaturinha má, sem coração; ameaçava-me com vingançazinhas, que se realizariam quando fôssemos casados. Tinha ditos maliciosos, palavras de sentido dúbio e olhares cheios de paixão. Eu estendia-me cada vez mais no banco, amolecida por um entorpecimento agradável; as pálpebras fechavam-se-me. Sentia vontade de ser menos severa com aquele pobre companheiro de infância; tanto que me não sobressaltei quando senti a sua mão empolgar-me a cintura.

«Como eu te amo!» murmurou ele, com a boca muito perto do meu rosto. O seu hálito abrasava-me as faces.

«Não faça isto!», pedi, repelindo-o frouxamente.

Mas ele passou-me a outra mão na cintura e puxou-me para si.

Fiz ainda alguma resistência. Sentia-me, porém tão mole, e além disso sabia-me tanto ser abraçada naquela ocasião, que me deixei levar e caí sobre ele, com a cabeça desfalecida no seu ombro.

Paulo segurou-me o rosto e estonteou-me de beijos. Eram ardentes, vivos, repetidos, como os tiros de uma metralhadora.

E Violante calou-se, respirando forte, enquanto Gaspar, de olhos muito abertos, lhe acompanhava todos os movimentos.

-Depois desse fatal passeio, continuou ela ao fim de uma pausa, a situação mudou completamente. Paulo se tinha convertido em meu legítimo amante. Entretanto, escreviam-me daqui a respeito do inventário de meu marido, e eu respondia com evasivas às repetidas reclamações. Afinal, autorizada por Paulo, declarei abertamente que só voltaria a Montevidéu acompanhada por um cavalheiro com quem havia ajustado casamento.

A viagem seria dai a um mês; Paulo disse-me então que só se casaria na América Meridional, na primeira república em que pisássemos, ou no Brasil, e que então, logo depois no dia seguinte até, poderíamos levantar o vôo definitivo para cá. Concordei, não sem estranhar semelhantes exigências. Dentro de alguns dias partimos da Europa, depois de haver eu escrito aos meus amigos e conhecidos, participando-lhes que em breve me casaria no Brasil. E ainda nisso houve da parte de meu noivo alguma cousa que me fez desconfiar: Paulo exigiu que eu não declarasse o seu nome nas minhas participações...

-Oh! exclamou Gaspar, interessado vivamente pela história de Violante. E a senhora consentiu?

-Que remédio! explicou ela, eu estava em situação falsa: qualquer resistência podia provocar um rompimento, com o qual só eu tinha a perder. Assim, pensei na dependência em que me havia colocado, e concordei de cabeça baixa...

-Depois? perguntou Gaspar.

-Depois, partimos para o Brasil e, na véspera do dia em que haviamos de casar, Paulo desapareceu.

-Canalha!

-Fiz minhas malas, enxuguei minhas lágrimas, traguei em silêncio a minha cólera, e cá estou há cinco meses, sequiosa por efetuar meus planos de vingança!

-Ah! Tenciona tirar uma vingança de Paulo?...

-Decerto! Como sabiam que eu estava no Brasil e como me esperavam com impaciência, calculei o ridículo que me aguardava se me apresentasse ainda viúva, e tomei a resolução de mentir: disse que meu marido viria buscar-me para viajarmos, ou iria eu encontrar-me com ele fora de Montevidéu. O senhor é a única pessoa que sabe da verdade...

-Mas isso foi uma temeridade! exclamou Gaspar.

-Nem só uma temeridade, acrescentou Violante; como foi uma grande asneira: criando um marido imaginário, não me passou pela idéia que ia com isso dar uma nova direção ao inventário do primeiro...

-E agora?

-Agora, é que estava na situação que lhe acabei de pintar francamente, quando ontem li no jornal o seu nome na lista dos passageiros do Pacific Star. «Deve ser o filho do meu benfeitor!» disse eu comigo, e mais me convenci disso ao vê-lo à tarde no Prado com os seus companheiros de viagem, tal é a semelhança que existe entre o seu tipo e o de seu pai na idade em que me recolheu. Pois bem, imagine agora que hoje, ao voltar de um baile pela madrugada, os cavalos do meu carro se espantaram em certa rua; quis saber o que havia: o cocheiro disse-me que um homem estava estendido no chão e escapara de ser esmagado pelas rodas. O carro tinha parado, e ao lado das rodas estava com efeito um corpo inanimado. O cocheiro apeou-se, e com uma de suas lanternas iluminou-lhe o rosto. Soltei um grito -a fisionomia que eu tinha defronte dos olhos, era a do moço estrangeiro que encontrei no Prado, e justamente a mesma que se gravara há vinte anos em meu espírito, no dia em que morreu minha mãe; era a doce fisionomia do oficial brasileiro, que me recolhera da miséria. E, para poder o senhor julgar bem da impressão que recebi, basta ver este retrato...

E a oriental passou a Gaspar um de porte guerreiro, que tirou da algibeira.

-Oh! exclamou ele. Efetivamente é o retrato de meu pai há vinte anos! Quanto me pareço com ele! Tem toda a razão: isto é o seu retrato fardado de oficial.

-Desci do carro, prosseguiu Violante, e disse ao cocheiro que pousasse a lanterna no chão. Era aflitivo o meu estado, tendo assim defronte dos olhos o filho do meu benfeitor, ao qual Deus me enviava para socorrer. Havia em tudo aquilo um mistério, e a mim competia desvendá-lo, por gratidão, por dignidade, por cumprimento de dever. Aquele corpo tinha sofrido qualquer violência; procuramos descobrir-lhe uma ferida ou vestígio de algum veneno - nada! Todavia, não era um cadáver, porque o coração batia perfeitamente. Eu não sabia que partido tomar -abandonar ali aquele homem, era impossível, mas carregá-lo comigo, não era também tão fácil; não me animava a seguir ao lado de um desconhecido, e de um desconhecido em trajes menores... Fiquei perplexa! A rua estava deserta; não passava perto dali uma só carruagem... O cocheiro olhava-me com grande surpresa, eu ficava cada vez mais aflita. Ameçava chuva, e daí a pouco amanheceria. Tomei afinal um partido e disse ao cocheiro: «Você conhece este homem?» O cocheiro olhou mais atentamente para o desfalecido, e respondeu que era a primeira vez que o via. «Pois imagine que este homem é o parente mais próximo que eu possuo aqui!» expliquei eu. «O que diz, minha senhora?!» perguntou-me espantado o cocheiro. «Olha como o diabo as armas e acrescentou: «E o caso é que os gatunos o deixaram em lastimável estado!» -Mas é preciso tomar uma resolução! disse-lhe eu impaciente. -Este homem não pode ficar aqui! Descanse minha senhora, eu o arranjarei cá na boléia». -Mas então mexa-se! Que pode aparecer a polícia e atrapalhar-nos... O dia está quase aí! O corpo foi acomodado pelo melhor modo na boléia, e eu disse ao cocheiro: «Logo que chegarmos à casa, você chame o Jacó, e com ele trate de recolher este homem ao melhor aposento que se puder arranjar. É preciso que lhe não venha a faltar o mais insignificante cuidado.»

E Violante, voltando-me mais para Gaspar, resumiu nestas palavras a sua narrativa:

-O senhor foi conduzido aqui por mão misteriosa, que o quis ligar aos meus segredos. Sua chegada a esta casa, não sei por que, diminuiu consideravelmente o sobressalto em que eu vivia. Sinto-me agora muito mais animada. O senhor inspira-me uma confiança inexplicável; só me falta saber se está disposto a auxiliar-me...

Gaspar levantou-se e segurou as mãos da oriental: -Pode contar comigo!

-Bem, disse ela, nesse caso o senhor principia por ser apresentado como meu marido; já é nesse estado que todos cá em casa o consideram. O senhor será em tudo, completamente em tudo, contrário do miserável que me colocou nesta situação. Ele era um marido de fato e não de direito, o senhor será...

-O marido das aparências, concluiu Gaspar de bom humor; mas confesso-lhe, se mo permite, que preferia o outro lado da medalha.

-Não zombe da minha triste situação.

-De forma alguma; mas, desde que me apossei do meu cargo de marido honorário, tenho ao menos o direito de falar mal do outro, do marido de fato.

-Espero que não nos havemos de arrepender do passo que vamos dar...

-Pelo meu lado, farei por isso; mas o diabo é que meu pai me espera, talvez ansioso pela minha presença...

-Para tudo há remédio neste mundo! Faça vir as suas malas; tranqüilize o seu bom velho com uma carta, e, para não ficar de braços cruzados, pode, como meu marido, negociar vantajosamente com os capitais que disponho...

-Mas...

-Por que não? Quando, porém, tivesse o senhor escrúpulos em especular com o capital que lhe franqueio na qualidade de sua esposa, poderia aceitá-lo, com juros, das minhas mãos de negociante. Hoje represento a antiga casa de meu defunto marido. Não tenho sócios, sou rica e posso dispor do que possuo como melhor entender...

-Bem, nesse caso, serei um simples empregado seu.

-Pois vá feito! contanto que, ao zelo pelo serviço, ligue sempre amigável interesse pela patroa. Amanhã o senhor será apresentado aos meus conhecidos como marido desta sua criada, e dentro de uma semana deixaremos Montevidéu.

-Para onde vamos?

-À toa! até encontrar o infame que zombou de mim.

-E o que dele pretende?

-Simplesmente matá-lo.

E Violante estendeu o braço e disse resolutamente:

Juro por meu filho que lhe darei a morte!

Punhal de família

No dia seguinte, Gaspar foi apresentado por sua suposta esposa a vários grupos da elegante sociedade de Montevidéu, e uma semana depois escrevia ao pai, participando-lhe que só mais tarde voltaria a seus braços.

E os dois coligados partiram para Buenos Aires, na esperança de que era aí que se achava Paulo.

Principiou então para eles uma existência bastante singular. À bordo, nas estações, nos hotéis, em qualquer lugar enfim onde pudessem ser observados, apresentavam o exemplo mais completo e invejável da felicidade conjugal; eram mutuamente meigos, unidos, bem casados. Um não aparecia sem o outro, viviam juntos, como se desfrutassem com efeito a mais saborosa das luas-de-mel. Cada um deles trazia no dedo uma aliança, e na medalha do relógio ou do broche o retrato do consorte.

Contudo, não se descuidavam um só instante do principal objeto da viagem; conseguiram apanhar o encalço do fugitivo, e Violante desenvolveu nas suas pesquisas uma tal sagacidade e finura de raciocínio, que fariam o desespero do melhor polícia.

Paulo tinha passado do Brasil para a República Argentina, depois para o Chile, depois para a Bolívia e afinal para o Peru.

Gaspar, ao fim de alguns meses, já não podia suportar aquela vida airada. Estava sempre em vésperas de viagem e gastava os dias a tomar informações sobre o perseguido. Ora, fossem lá descobrir o homem das calças pardas! Vivia prostrado de tanto viajar; além disso a ausência completa de estabilidade impedia que ele se correspondesse com a família.

Uma vez, estava então no Chile, descobriu nos correios de S. Tiago uma carta de seu pai. O pobre velho queixava-se amargamente do procedimento do filho, dizia ter-lhe já escrito duas longas cartas, das quais não recebera respostas, havendo aliás em uma delas lhe dado a participação do casamento de Virgínia, irmã mais moça de Gaspar.

Este acabou por fazer justiça à palavra do coronel, pedindo-lhe que lhe escrevesse para o Chile e lhe comunicasse o nome do marido de Virgínia.

Mas, pouco depois disto, Gaspar teve de seguir com Violante para o México, ficando na ignorância do nome do cunhado. Estava completamente resolvido a voltar para o Brasil; agora, porém, uma nova dificuldade se lhe antolhava: é que já não tinha ânimo de separar-se da suposta esposa. A convivência criara entre eles uma tal reciprocidade de estima, que os dois acabaram por se tornar indispensáveis um para o outro.

Viviam na mais feliz intimidade, mas particularmente separados para todos os efeitos conjugais. E isto apoquentava em extremo o pobre moço. Por várias vezes se viu ele em situações bem ridículas, que o levavam ao desespero; uma ocasião, por exemplo, tinham de pernoitar no único hotel que havia no lugar, e só existia no quarto uma cama para os dois. Violante não hesitou em aceitá-lo, a despeito dos sinais negativos que fazia o falso marido por detrás do estalajadeiro.

E logo que ficou a sós com ele, disse-lhe:

-O senhor se tem portado tão bem para comigo, que seria fazer-lhe uma injustiça suspeitar do seu caráter ou recear a sua conduta...

-Mas é que não devemos abusar, respondeu Gaspar, um pouco contrariado. O sacrifício tem limites! Ora essa!

-Que sacrifício?

-Que sacrifício?! Pergunta-me a senhora. Acaso merecerá outro nome o que faço, desde que a acompanho embrulhado no incômodo disfarce de seu marido!... Poderá a senhora calcular o que é viver com uma mulher encantadora, ver nos outros o ar de inveja causado por uma felicidade que não existe, afetar os confortos do amor satisfeito e completo, e não obstante, sofrer o mais cruel isolamento que se pode impor a um homem da minha idade!... Confesso-lhe, minha senhora, que se há alguma virtude no meu procedimento, ela me tem custado enormes sacrifícios!

Violante ouviu-o com certo ar de satisfação.

-Vamos! disse ela afinal, repreendendo-o. Seja bom para mim, como foi seu pai. Lembra-se de que um miserável abusou da minha fraqueza e zombou da minha boa-fé. Sou uma pobre mulher que deseja ter dignidade, e o senhor, se possui alguma cousa do caráter daquele a quem devo a vida, não se negará certamente a ajudar-me. Por quem é! Já agora conclua a delicada tarefa, a que, com tanto cavalheirismo, se dedicou.

Gaspar aproximou-se dela, com estas palavras:

-Minha amiga, vou falar-lhe com toda a franqueza.

-Está dito! respondeu Violante; proponho até que passemos a noite a conversar. É um excelente meio de ficarmos recolhidos, sem nos ser necessário recolher à cama.

E fecharam-se no mesmo quarto.

Era uma sala vasta, confortável, cheia de trastes. Gaspar traçou no chão uma linha com o pé, e disse rindo:

-Esta linha separa-nos. Cada um tem de contentar-se com o espaço que lhe toca, e não pode meter o pé no terreno alheio; todavia, se a senhora quiser estar mais à vontade, é meter-se na cama, fechar os cortinados, e ficará completamente abrigada contra qualquer olhar meu, involuntàriamente indiscreto...

-E o senhor, nesse caso, como tenciona acomodar-se?

-Ah! Eu me arranjarei nesta poltrona. Não lhe dê isso lástima, porque já estou habituado a tais situações. Só peço licença para, depois que a senhora já esteja recolhida, tirar a sobrecasaca e os sapatos.

-Concordo. Mas por enquanto conversemos. Eu servirei o chá. E Violante colocou a mesinha do chá entre duas cadeiras, e passou uma chávena ao companheiro.

-O senhor declarou que me queria falar com franqueza... a ocasião não pode ser melhor. Podemos conversar à larga.

-Porque a senhora faz de mim um juízo que eu não mereço; supõe-me o mais leal dos homens, e eu não passo de um grande velhaco.

-Está gracejando!

-Afianço-lhe que não, infelizmente. E para meu castigo, vou dizer-lhe tudo: A primeira impressão que recebi em sua presença, foi muito diversa da que a senhora se persuade. Calculei ter defronte dos olhos uma mulher escandalosa, amiga das aventuras, e grande conhecedora de todos os segredos do amor; pensei vaidosamente comigo mesmo que a tinha impressionado e que podia em breve colher os saborosos frutos dessa fortuna. A senhora, porém, desviou logo semelhante presunção, narrando-me com muito talento uma história, na qual figurava minha família, e pedindo-me que a acompanhasse por toda a parte, como seu protetor, seu amigo, seu irmão... Não é verdade que, se me confiou tão delicado papel, foi porque lhe inspirei a mais cega das confianças?

-Justamente.

-Pois declaro-lhe que a não merecia. Quando aceitei o espinhoso disfarce de seu marido, foi ainda na esperança de alguma venturosa ocorrência; a senhora, porém tem desenvolvido uma tal dignidade, tem se portado com tal circunspecção, que eu, confesso-lhe, estou envergonhado, e para meu castigo falo-lhe com esta franqueza. Se soubesse que noites tenho passado em um alcova junto à sua! Que lutas tenho travado comigo mesmo, para manter o ar grave e as maneiras reservadas a que me condenam as circunstâncias desde que nos achamos a sós! Cheguei algumas vezes a odiá-la! Parecia-me que a senhora zombava de mim; que me havia lesado nos meus direitos, e que a rispidez da sua conduta era um roubo feito à minha felicidade!

-O senhor amava-me então?

-Não! Não era amor; apenas a desejava com todo o ardor do meu temperamento brasileiro. O que então me arrebatava não era o seu caráter nem as suas virtudes, mas sim a cor dos seus cabelos, a transparência da sua pele, o fogo dos seus olhos e a frescura do seu hálito. Não a amava, tanto que a desejava para minha amante. Depois que conheci, porém, todos os tesouros de bondade, que a senhora escondia sob as aparências de uma mulher leviana; depois que compreendi tudo quanto há de franqueza e lealdade nos seus sentimentos; quando descobri a sua abnegação, a sua coragem e a castidade de sua alma, amei-a, amei-a conscienciosamente, com entusiasmo e com honra! A senhora, se quiser, fará parte de minha família -eu serei seu marido!

-Gaspar, disse Violante, segurando-lhe as mãos, eu te amo também; há muito! Sempre! Amei-te primeiro na casta figura de teu pai, que foi o bom anjo da minha infância; amei-te nos teus folguedos de criança, nos teus progressos de estudante e nos teus estouvamentos de rapaz. Amei-te quando te vi estendido na rua, quando depois te vi ao meu lado, e amo-te agora com toda a segurança de minha dignidade. Todavia, tenho um juramento a cumprir... Eu só serei tua, esposa ou amante, amiga ou escrava, no dia em que Paulo Mostella cair debaixo deste punhal!

E com os olhos incendiados de cólera, os lábios trêmulos, brandia o afiado estilete que ela trazia sempre consigo, desde que empreendera vingar-se.

-Mas eu não exijo tanto, contraveio Gaspar. Posso esquecer o passado. Tenho plena confiança em teu caráter e de nada mais preciso para fazer de minha legítima esposa.

-Não se trata do que exijas tu, nem do que tu não queiras; trata-se unicamente daquilo que eu jurei ao meu próprio coração. Um homem ultrajou-me. Eu tenho de vingar-me dele. Ou ele morrerá ou eu me matarei!

Gaspar, mais tarde, empregou ainda todos os esforços para dissuadir Violante daquelas sinistras idéias de vingança, mas a oriental abanou a cabeça, com a calma de quem se sente firme na sua resolução, e disse, sorrindo tristemente para o companheiro:

Cala-te, meu amigo! Tu ainda me não conheces... eu sou inabalável no meu ódio. é um temperamento de família; meu pai já era assim e ligou-se à minha mãe, porque encontrou nela a mesma rigidez de sentimentos. Nasci de duas tempestades, que me concentraram no coração todos os seus raios, todos os seus vendavais, todos os delírios do céu e do inferno. Meu pai morreu na guerra e minha mãe na miséria -foram igualmente fortes; um lutou contra a maldade dos homens e outro, contra a maldade de Deus. Deles eu só herdei além do caráter, este punhal. É um punhal de família, que passará, com a minha morte, às mãos de meu filho.

Gaspar, à vista daquelas palavras e do ar resoluto da oriental, tomou o partido de a não contrariar e deixar que as cousas corressem a merce do tempo.

Por essa ocasião, um dos homens encarregados de espreitar os rastros de Mostella, comunicou à Violante que este, em companhia da esposa, havia tomado passagem num paquete brasileiro da linha costeira.

-Prepara as malas, disse ela ao criado; partiremos hoje mesmo.

-Mas, minha amiga, observou Gaspar, lembra-te de que só amanhã há paquete, e esse da linha do Pacífico.

Partiram no dia seguinte com efeito para o norte do Brasil, e, dois meses depois, recebiam na capital do Ceará o seguinte telegrama:

«Paulo Mostella chegou hoje a Pernambuco; mora com a mulher no hotel do Universo».

Os dois incansáveis perseguidores do sedutor seguiram imediatamente para Pernambuco.

Mal se tinham instalado no hotel Estaminet, que desapareceu muito depois do célebre motim religioso chefiado por José Mariano, Gaspar pediu à oriental que se não precipitasse, e saiu ele mesmo a obter informações sobre Paulo Mostella. Já tinha este abandonado o hotel, e morava agora com a mulher em uma casa particular à rua do Crespo.

Gaspar seguiu para lá impaciente por ver terminada aquela campanha em que há tanto tempo vivia empenhado. Oh! Como ardia ele de desejos por poder afinal confirmar a sua união com Violante!

Esta fechara-se no quarto, para rezar.

Gaspar, por esse tempo, apeava-se à porta de Paulo Mostella.

Virginia

Fizeram-no entrar para uma sala de espera e conduziram-no depois para uma recepção, onde já o aguardava a mulher de Paulo.

-Gaspar! exclamou esta, atirando-se nos braços dele.

Gaspar estacou, pálido e trêmulo, sem poder articular palavra.

-Virgínia!... disse afinal o infeliz, com a voz estrangulada.

Era com efeito Virgínia, sua irmã mais moça, que se havia casado com Mostella. Gaspar não a via de muito tempo, mas reconheceu-a logo. Estava forte, bonita e com uma gravidez adiantada.

-Que boa surpresa! Dizia a mulher de Paulo. Estalava de desejo por ver alguém de nossa família! Não admira, é a primeira vez que me separo dela... Acredita que choro de saudades todos os dias... Mas o que fazes que não te pões à vontade, seu ingratalhão? Larga o chapéu! Entra para a varanda. Infelizmente Paulo saiu, mas não se pode demorar...

-Em que se ocupa o teu marido?

-Negocia em pedras finas. É bom negócio, mas que o obriga a viagens consecutivas. Agora temos de seguir para o Cabo.

-Tens sido feliz?

-Muito. Paulo é um excelente companheiro, ama-me tanto!

-Nosso pai comunicou-me o teu casamento, mas a carta em que vinha o nome de teu marido extraviou-se. Eu ainda não sabia como se chamava ele.

-Sempre o mesmo cabeça de vento! Mas que tens? Estás tão sobressalto? Sentes alguma cousa?...

-Nada! É porque há tanto tempo que não nos víamos!...

-Pois então toma lá um beijo e vê se com ele voltas a ti!

Gaspar passou à varanda, e ficou a conversar com Virgínia. Ela, coitada! Estava radiante de prazer.

-Amas então muito teu marido!...

Loucamente. Não podes imaginar quanto somos felizes!...

Gaspar quedou-se a cismar, e a irmã repreendeu-o

-Então que é isso? Ficas agora triste! Tu dantes eras assim! Ainda nem sequer pediste noticias de papai!...

-Sentirias muito a morte de teu marido, Virgínia?...

Que pergunta, Gaspar!

-Mas dize; é uma fantasia esta pergunta.

-E esta?! Se Paulo morresse, eu morreria também, ou ficaria louca.

-Bom! É justamente como entendo o casamento. Quem me dera ter alguém que dissesse o mesmo a meu respeito..

-Se ainda não tens, virás a ter; mas parece-me que não cansaste da vidinha de solteiro!...

-Se cansei!...

-Ah! É Paulo que chega!

Ouviram-se com efeito passos no corredor.

Gaspar sentiu grande sobressalto, mas conteve-se.

Houve apresentação, abraços e oferecimentos mútuos. Paulo declarou simpatizar muito com o cunhado, cercou-o de obséquios; foi buscar curiosidades do Peru e alto Amazonas, e mostrou-as; ofereceu-lhe charutos e livros, e pediu-lhe que se hospedasse em sua casa enquanto estivesse em Pernambuco.

No hotel, dizia ele, comia-se mal e passava-se vida de boêmio.

-Ah! Ele não nos deixa agora! a não ser que esteja resolvido a brigar deveras conosco! interveio Virgínia.

Gaspar desfazia-se em agradecimentos, pedindo que o dispensassem.

-Mas nós podemos lá consentir que mores sozinho nesta cidade, tendo tu aqui família? Se não aceitares o nosso convite, maço-me deveras! Olha: amanhã sai um paquete para o sul, e eu quero na carta de papai dizer que tu estás conosco...

-Pois bem, tudo se arranjará!

Gaspar chegou ao hotel às sete horas da noite. Estava abatido, pálido, com uma grande irresolução.

-Então? perguntou-lhe Violante.

-Está tudo perdido! disse ele, arrojando o chapéu; Paulo foi prevenido de teus projetos e acaba de pedir a proteção da polícia... Estamos vigiados! Se Paulo sofrer a menor violência, seremos presos imediatamente. O que devemos é abandonar Pernambuco quanto antes!...

Que me importa a polícia! Não sairei daqui sem ter consumado meu plano. Condenada? presa? executada? embora! mas hei de matá-lo! hei de primeiro satisfazer minha vingança!

-Isso é de um egoísmo revoltante! exclamou Gaspar, atirando-se sobre uma cadeira; e acrescentou depois de uma pausa: -E pensarás que eu consentiria em tal? Até aqui tratava-se apenas de dar cabo de um canalha, que havia zombado da mulher com quem eu tencionava casar. Muito bem! Era perfeitamente razoável! Mas agora, trata-se nada menos do que me privarem da mulher que eu amo, da única que poderá fazer a minha felicidade! E eu, de forma alguma, consentirei em semelhante cousa! Ah! a questão é de egoísmo? eu também sou egoísta!

E mudando de tom: -Queres que te fale com franqueza? Principio a acreditar que só amas ao Paulo; que tudo isto foi um meio ardiloso para te aproximares dele; que nunca me amaste e nunca tencionaste pertencer-me!

-Duvidas de mim?! exclamou a oriental. Tens ânimo de supor que eu seria capaz de dizer a alguém que o amo, sem com efeito o amar? Pensarás que eu, por qualquer circunstância, negaria meu amor por aquele miserável, no caso que tivesse a desgraça de sentir esse amor? Já tinhas tempo de sobra para me conhecer melhor! Só a ti amo presentemente, bem o sabes; mas fica também sabendo que, coloco acima de tudo a minha vingança e o meu orgulho! Amo-te, é verdade, mas previno-te de que, se tens a intenção de desviar o meu punhal do coração de Paulo Mostella, podes partir quando entenderes, porque tudo o que fizeres será inútil! Só! Embora só! hei de matá-lo.

-Ah! replicou Gaspar; sentes ódio demais por aquele desgraçado, para que não ames! O coração da mulher é lâmina de dois gumes: -como Paulo se incompatibilizou para os teus beijos, queres acariciá-lo com o teu punhal! Mas aqui há um homem! Proibo que cometas o crime que premeditas, ou hás de primeiro consumá-lo em mim!

-E pensas que não seria capaz? Não te disse já que acima de tudo coloco a minha vingança?

Gaspar cravou-lhe os olhos, e os de Violante, sempre firmes, não se abaixaram. Compreendeu ele que, na alma daquela mulher, a idéia fixa da vingança estava encravada como um veio de pórfiro no granito. Era impossível extraí-lo, sem despedaçar a montanha. Voltou-se afinal para ela, tomou-lhe as mãos, falhou-lhe com ternura.

-É a tua e a minha desgraça, que vais fazer! disse ele. Habituei-me à esperança de possuir-te na dignidade do lar e da familia, perder-te agora seria impossível. Como conciliar a tenebrosa idéia de um crime com a idéia doce e tranqüila da nossa felicidade!... Tens o paraíso a teus pés, risonho, calmo, azul, e queres ensangüenta-lo! Se fosse possível matar o culpado sem prejudicar a mais ninguém -vá. Mas não! Para cometer esse crime, tens de fazer outras vítimas, que sofrerão muito mais do que ele, e que, no entanto, nunca te fizeram mal. Eu vi a mulher de Paulo... Está grávida! A morte do marido vai deixar uma viúva sem amparo e um inocentinho sem pai e sem pão... Tu também tens um filho, Violante, e já sabes, por experiência própria, quanto padece uma criança desamparada... Não roubes o pai àquele entezinho, que nenhuma culpa tem de tudo o que te sucedeu! Se conseguires matar Paulo, ele será de todas as tuas vítimas a menos castigada. Não compreendes que a morte daquele miserável acarretará outras consigo? não sabes que a pobre velha, que vê nele toda a sua esperança e toda a sua felicidade, tombará também, quando o teu punhal arrancar a vida do seu querido filho? E não te lembras que essa pobre velha, se te merece algum ódio, é simplesmente porque foi tua mestra, porque te traduziu na infância e te iluminou a inteligência? Não te dói a idéia de que vais encher de fel os últimos dias daquela que encheu os teus primeiros anos de amor e desvelos? Não te parece mau que a mesma que substituiu tua mãe encontre a sepultura suja de sangue derramado por ti? E, além de tudo isso, minha querida Violante, não te acusa a consciência de pertencer-te grande parte da culpa de que criminas tanta gente!... Não conhecias já porventura o caráter de Paulo, desde o tempo de colégio? não lhe tinhas adivinhado as intenções? não o castigaste um dia com uma bofetada? Para que então te deixaste seduzir por ele?! Tu, que és tão perspicaz e tão inteligente, não percebeste logo que o homem que faz de uma mulher a sua amante, não tencionava fazer dela jamais a sua esposa? não percebeste um amor inaugurado entre meia dúzia de gargalhadas e outras tantas taças de champanha, só pode acabar como acabou o teu, e não na responsabilidade fria e digna do matrimônio!... Não sabias por acaso que todo homem tem na vida certa época de loucura, pela qual não podemos responsabilizar o seu caráter, nem as suas intenções?...

Tu eras bela, livre venturosa, romanesca; ele, moço extravagante e sedutor. Viu-te, falou-te em amor, estremeceu em pensar nos teus beijos... talvez até mesmo resolvesse casar contigo. Mas tu lhe deste liberadade, lhe aceleraste os desejos, lhe fustigaste o arrojo, lhe proporcionaste ocasiões. Ele nada mais fez do que aproveitar-se de tudo isso. A verdadeira culpada foste tu!... Pelo menos, grande parte da responsabilidade deves atirar para o teu temperamento, para o teu sangue, para a tua fraqueza! Para que sucumbiste?! Acaso não tomaram alguma parte nisso os reclamos da tua carne e as alucinações do teu espírito?! Ele excitou-te com os mistérios voluptuosos de um passeio ao campo, longe do teu meio social, por entre a sombra balsâmica das árvores, ao rumorejar das folhas, ao arrular das aves, ao sussurrar de uma cascata; estimulou-te com um almoço de boêmia, cheio de malícia, cheio de riso e cheio de amor! Tu bebeste, fumaste, sonhaste, riste, e afinal... amaste. Para isso tudo contribuiu -o céu o ar, os murmúrios da natureza, as espumas do champanha, os perfumes do cigarro, a riqueza do teu sangue e a diabrura dos vinte anos. Queres agora criminá-lo exclusivamente! Não! Seria uma injustiça!

Violante ergueu-se, sacudiu com o pé a cauda do vestido, e disse com toda a calma:

-Contudo, hei de matá-lo!

-Tu o amas, desgraçada! exclamou Gaspar encolerizado.

Violante não deu resposta, recolheu-se à sua alcova, fechando a porta com violência.

Gaspar atirou-se a uma poltrona e segurou a cabeça com as duas mãos.

-Dá licença!... disse da porta uma voz. Era de Paulo Mostella.

Momento da vingança

Gaspar correu à porta da sala e atravessou-se defronte de Paulo.

-Desculpe, disse ele, mas não entre! Peço-lhe que não entre!

-Como está sobressaltado! Observou o outro parando no corredor. Vinha fazer-lhe uma visita...

Gaspar deitou o chapéu, e segurou Paulo pela mão:

-Saiamos! Saiamos! Não repare não o fazer entrar, mas...

-Sei o que são estas cousas... também já fui solteiro! Descanse que não serei indiscreto.

-Não é por isso; mas é que... Desçamos, sim? Pelo caminho dir-lhe-ei o que é...

-Bem me pareceu que havia lá dentro algum contrabando!

-Efetivamente lá está alguém que não pode ser visto...

-Maganão! Não o levarei a mal. Em todo caso, precisava falar-lhe hoje.

E os dois saíram conversando, enquanto Violante atirada sobre a cama, soluçava.

Arrancaram-na desse estado duas pancadinhas sistemáticas na porta. Ela ergueu-se e correu a abrir era o toque de um dos espiões.

-Então o que há de novo!... perguntou a oriental, procurando dissimular a comoção.

-O homem passará sozinho, amanhã às quatro horas da madrugada, pela ponte de Santo Antônio. O lugar é magnífico, e a ocasião não pode ser melhor! Atira-se com o corpo ao mar, depois de sangrado...

-Donde virá ele a essas horas?

-Não vem; vai tomar o trem para uma viagem.

-Bem! Retire-se, mas não se afaste; fique aí fora até que o chame. Você tem de acompanhar-me; irei infalivelmente!

-Ordena mais alguma coisa?...

-Não.

O homem retirou-se, e Violante recolheu-se à alcova, para rezar. Acometeu-a um grande fervor religioso.

Quando Gaspar voltou, às dez horas, ainda a encontrou nas suas orações. Acendeu o candeeiro, e pôs-se a ler. Depois foi à janela respirar um pouco de ar, e viu na rua, encostado ao lampião, o homem que falara com Violante. Desceu sem ruído ao encontro dele.

-Então?... disse-lhe.

-A senhora mando-me esperar...

-Bem! resmungou Gaspar, disfarçando; o encontro é no mesmo lugar?

-Sim, senhor, na ponte de Santo Antônio. O homem passa às quatro da madrugada...

Gaspar afastou-se, afetando calma, mas levava uma grande agonia no coração. Correu à casa da irmã. Esta preparava as malas do marido.

-Você a estas horas, mano?

-Sim. Onde está Paulo? Ainda não voltou? Estive com ele até às nove horas...

-É! Ele me falou de que te ia procurar.

-Diz-me uma cousa, Virgínia: teu marido sai infalivelmente esta madrugada?

-Infalivelmente. Vai a uma viagem de negócio. Por quê?

-É preciso que ele não vá!

-Por quê? Tu assustas-me!

-Porque o querem matar. Presta atenção ao que te digo; isto é um segredo perigoso, que não deve transparecer: há alguém que tenciona matá-lo esta madrugada, na ponte de Santo Antônio. Só eu sei disso, além dos encarregados do crime; por conseguinte, se descobrires alguma cousa do segredo, só eu o pagarei pela tua indiscrição. O resto fica por tua conta! Se não quiseres arriscar a vida de teu marido, evita que ele saia esta madrugada!...

Virgínia ficou aflita.

-Adeus, disse Gaspar! Faze o que te digo!

-Mas, atende, Gaspar. E se eu nada puder conseguir? Esta viagem é muito urgente. Trata-se de salvar tudo o que possuímos. Paulo não me atenderá com certeza! valha-me Deus!

-Mas se te digo que se trata de salvar-lhe a vida!

-Porém, proibida como estou de dizer-lhe que o querem matar, ele será muito capaz de me não atender!...

-Bem! Nesse caso porás um sinal à janela. Às duas e meia passarei por aí fora; se naquela sacada estiver um lenço embrulhado à maçaneta, é que não obtiveste cousa alguma, e nesse caso tratarei eu de providenciar por outro lado.

-Pois bem! disse Virgínia; mas por que o querem matar?!

-É segredo... Mais tarde o saberás!

Gaspar saiu.

Paulo chegou à casa pouco antes da meia-noite.

-Então, minha querida, está tudo pronto? Mete estes pacotes em uma das malas.

Virgínia aproximou-se e deu-lhe um beijo.

-Paulo, disse ela, tenho uma cousa a pedir-te...

-A pedir-me?

-Sim. É uma cousa, que desejo muito, muito! Uma cousa para o interesse de nós ambos!...

-É a respeito do pequenito?...

-Não; é a teu respeito: Não saias hoje de casa, sim?

-Sim, não sairei hoje; sairei amanhã às quatro da madrugada...

-Ou isso...

-Mas afinal, o que tinhas tu a pedir?

-Era isso mesmo. Desejava que transferisses esta viagem...

-O que há? temos alguma novidade? Sentes alguma cousa?!...

-Não sinto, mas pressinto... Faze-me a vontade, sim?

-Ora, o que, filha? Pois isso é lá cousa que se faça!... Não sabes que esta viagem é negócio muito sério?!...

-Sei, sei! mas é que...

-Deixa-te de tolices! Ora, para que te havia de dar!...

-Se soubesses...

-Se soubesse o quê?...

-Sinto-me oprimida... Receio que te vá suceder qualquer desgraça! Não partas, eu te peço, meu amigo!

-Isso é nervoso! Olha: vai para o piano. Toca um pouco de música, que a crise passa.

-Em todo o caso, se me quiseres fazer um grande serviço, não partas...

-Estás a brincar, Virgínia; pois se te disse já qual é o interesse que me leva.

-Ora, não pode haver maior interesse do que o meu em que não vás!

-Com certeza, não falas a sério...

-Falo, meu querido, falo! É que rigorosamente preciso que não partas!

-Ora, adeus! Caprichos!

-Não são! Juro-te!

-Então, o que vem a ser?

-Não te posso dizer!...

-Pois sim; mas vê que me não falte cousa alguma nas malas...

-Então, sempre estás resolvido a ir!...

-Pois eu desmanchava lá uma viagem, porque... porque entrou agora a noite no quarto alguma borboleta preta, ou...

-Afianço-te que tenho razões sérias para...

-Estás agora a inventar motivos! Perdes teu tempo. Eu vou.

Às duas horas, Paulo não tinha ainda mudado de resolução. Virgínia fora gradualmente se tornando mais e mais aflita; era já entre lágrimas que rogava ao marido para ficar.

Paulo impacientava-se.

A mulher pedia-lhe por tudo que desistisse da viagem: pelo seu amor, pelo amor da mãe dele e pelo de filhinho que ela tinha nas entranhas.

-Ora, adeus! disse Paulo asperamente e perdendo afinal a paciência. Já me vai cheirando mal a brincadeira! Já te disse o que tinha a dizer! Cala-te!

E, passeando pelo quarto, gesticulava irritado. -O que ele bem dispensava era maçar-se antes de sair!

-E pensas que estou muito satisfeita?! perguntou Virgínia.

-Tolices! Estariam os homens bem avisados, se se deixassem levar pela fantasia de vocês mulheres!...

E, voltando-se para ela, disse-lhe em tom de ordem:

-Não quero ouvir mais falar aqui em semelhante cousa!

Ela passou-lhe os braços em volta do pescoço.

-Mas é que te querem matar, toleirão! Percebes? armam-te uma cilada! Eu não podia dizer tanto, porém, tu me obrigas a isso!

Paulo soltou uma risada.

-Querem matar-me!... Tem graça! Por quê?

-Sei cá. Por que!... O que sei é que vais ser agredido!

-Ora, minha mulher, a senhora afinal está ridícula!

O relógio marcou duas e meia.

-Enfim, sempre vais?! Perguntou Virgínia.

-Não me aborreças! disse Paulo, dando-lhe as costas.

Virgínia correu à janela.

-Que fazes? perguntou-lhe o marido.

-Previno alguém de que partes, para evitar a emboscada.

-Que alguém é esse? Que diabo quer isto dizer?!

-Já te disse tudo o que podia; insistes em ir...

-Mas, vem cá! Conta-me o que há!

-Ora, Paulo! Se eu pudesse dizer, mais, já teria dito!

-Onde está meu estojo de armas?

-Naquela estante.

-Fica descansada. Se houver qualquer cousa, eu saberei defender-me!

E às quatro horas, encaminhava-se Paulo Mostella para a ponte de Santo Antônio, apertando na mão um revólver de seis tiros.

As ruas estavam completamente desertas e silenciosas.

Sangue

Gaspar, entretanto, ao perceber que Virgínia amarrava o lenço na janela, perguntou-lhe da rua:

-Então? O que decidiu teu marido?

-Vai! Sempre vai! Não o pude convencer do contrário!

-Bem! disse o irmão.

E deitou a correr para o hotel. Temia já não encontrar Violante, mas, ao subir as escadas do Estaminet, viu luz nos aposentos da oriental; ficou mais tranqüilo e entrou no seu próprio quarto, fingindo a melhor calma que pôde.

-Boa noite, disse ele, em voz alta, para ser ouvido pela companheira.

-Boa noite, Gaspar, respondeu Violante, com a voz meiga. Supunha que se não recolhese hoje...

-Ao contrário, estou caindo de sono...

-Divertiu-se?

-Fiz um passeio...

-À Olinda?

-Não. A Cachangá.

-Que tal?

-Bonito.

Você vai escrever?

-Não; Por quê?

-Por nada. É que precisei do seu tinteiro, e esqueci-me de levá-lo de novo para aí...

-Não preciso dele agora.

-Então boa noite.

-Até amanhã, minha amiga.

E cada um apagou a vela de seu quarto.

Violante fingiu que se preparava para dormir, enquanto Gaspar fazia, a cantarolar, justamente a mesma cousa.

Daí a meia hora, este obteve o que ambos desejavam conseguir: enganar o outro.

Eram três horas, pouco mais ou menos. Então, Violante, descalça e cheia de precauções, abriu imperceptivelmente a porta do seu quarto e, tateando nas trevas, alongou para fora um dos braços.

Mas, na ocasião em que ia sair, sentiu uma nervosa mão segurá-la pelo pulso.

-Onde vai? perguntou Gaspar.

-Deixe-me! impôs a oriental, com alvoroço na voz.

-Quero saber onde vai, minha senhora. Disse-lhe já quais são as intenções que tenho a seu respeito, e creio que elas me autorizam a semelhante exigência!

-Dir-lhe-ei tudo depois; agora não posso. Preciso sair imediatamente.

Não irá!

E Gaspar forçou Violante a entrar novamente para o quarto, e obstruiu a porta com o corpo.

-Com que direito se atreve o senhor a tanto?!

-Com o direito do homem, que tem sido publicamente seu marido; o homem, a quem a senhora prometeu a mão de esposa e a quem disse ser uma mulher honesta!

-Juro que não vou cometer nenhuma deslealdade; além disso, desisto dos votos que fiz, desisto de tudo! mas deixe-me passar, com todos os diabos!

Esta cena realizava-se no escuro. Gaspar deu volta à chave e, fechando com a oriental por dentro da alcova, riscou um fósforo e acendeu a vela.

-Não sairá daqui! Já disse!

-Ah! Que o senhor abusa! rosnou Violante com um olhar terrível.

-De que, minha senhora?

-De minha paciência!

E a oriental sacou o punhal do seio.

-Lembre-se de que, ao herdar este ferro, exclamou lívida de cólera, já ele tinha servido muitas vezes! Lembre-se de que com ele herdei igualmente o caráter de meu pai e o sangue de minha mãe! Afaste-se, ou eu abrirei caminho!

-Pode abrir! disse Gaspar, apresentando o peito. Já que vai matar o filho da mulher que lhe serviu de mãe, é justo que primeiro assassine o filho daquele que lhe serviu de pai... é muito razoável que os dois velhos se cubram de luto na mesma ocasião. Vamos! uma vez que tão depressa se apagou desse coração a memória do honrado militar que a recolheu um dia ao seu amor, não é muito que lhe roube a última consolação da velhice... Mate-me! Não me defenderei, porque não levanto mão contra quem amo!

Violante atirou para trás o punhal, caiu aos pés de Gaspar:

-Perdoa, meu amigo, meu esposo, meu senhor! Sei que sou má e que só mereço desdém e menosprezo dos homens sensatos, sei que és um moço generoso e leal, e que para mim só desejas o bem e a ventura; mas, deixa-me ir, por piedade! Eu preciso descarregar do coração esta sede terrível, que se tem alimentado até hoje do meu próprio sangue; eu preciso arrancar da minha consciência o desespero de não haver cumprido o meu voto! Deixa-me seguir o destino da minha raça, deixa-me dar de beber ao meu ódio, e de mim farás depois o que entenderes! Poderás desprezar-me à vontade, e eu te beijarei os pés e te servirei como escrava! Mas deixa-me ir! O tempo urge! a hora da fortuna vai fugir! E amanhã o covarde sabe que quero matá-lo e esconde-se nos braços da mulher! Pelo amor que tens a teu pai, pelo respeito que te merece a memória de tua mãe, deixa-me passar, meu amigo, meu protetor!

Gaspar levantou-a do chão e amparou-a nos braços.

-Pois bem, vai disse ele; mas, antes deixa que te faça uma revelação suprema: Eu detesto Paulo Mostella; aborreci-o logo que me falaste dele, e abominei-o encarniçadamente quando o vi pela primeira vez. Até ai tinha por ele apenas um vago desprezo, mas ao vê-lo, moço forte, bonito e não repulsivo como o pintaste, odiei-o! Odiei-o com ciúme, com inveja, com desespero! Lembrei-me que Paulo te gozou como eu nunca te gozarei, porque o miserável multiplicou os teus encantos com os mistérios do crime e com as alucinações do vício! Gozou-te pelo prisma do prazer pelo prazer, sem conseqüências, sem tédios, sem obrigações positivas; colheu com a boca, entre sorrisos, a flor do teu temperamento meridional, e deixou na haste os espinhos, para que eu neles sangrasse depois meu coração e meu lábios! Por isso o execrei com todo o ardor da minha vaidade de homem e do meu egoísmo de macho! Queria vê-lo cair aos golpes do teu punhal, porque a sua morte seria a minha vida; matando-o tu, eu te amaria muito mais! Porém não posso consentir em tal: esse homem que odeio, esse monstro que te enganou, é meu cunhado e é o marido de Virgínia, minha irmã mais moça! Matá-lo seria matar a mulher, porque ela o adora com todo o entusiasmo do primeiro amor e da primeira maternidade! E como posso eu ser cúmplice na viuvez de Virgínia, no luto de meu pai e no sacrifício de seu primeiro neto?!

E Gaspar, segurando a oriental pela cintura, acrescentou com a voz suplicante:

-Vê, reflete, minha doce amiga, minha estremecida companheira! disse-te francamente os motivos por que não consinto que realizes os teus planos de vingança; confessei-te tudo, e peço-te agora com amor, com humilhação, que sacrifique ao bem de minha família alguma cousa da tua suposta ventura... Só no caso de não atenderes às súplicas de teu mal-avenutrado amante, é que o irmão de Virgínia defenderá do teu punhal o marido de sua irmã!

-Não será preciso, respondeu Violante, afastando-se. Uma vez que Paulo Mostella é necessário à felicidade de teu pai, ele viverá. Minha mão jamais se levantará para o ferir. Podes ficar tranqüilo...

-Obrigado! Obrigado! exclamou Gaspar, atirando-se aos pés da oriental. Bem sabia eu que em teu coração não tinha morrido ainda a idéia do bem e da justiça; obrigado! Obrigado, minha amiga!

-Não me agradeças cousa alguma. Eu cumpro um destino...

E mudando de tom:

-Desce, vai à rua e dize ao homem que lá está à minha espera, que já não preciso dele. Dá-lhe dinheiro e ordena-lhe que nunca mais me apareça.

Gaspar desceu a escada a três e três degraus.

Ao voltar ao quarto de Violante, soltou um grito; a bela mulher estava estendida no tapete, aos pés do leito, e seu colo nadava em sangue.

Apunhalara-se.

-Perdôa-me! disse ela, ofegante, ao ver entrar Gaspar. Eu sou uma desgraçada! Reconheço que é mau tudo o que cometi, mas não estava em mim poder evitá-lo... Não sei odiar de outro modo. Meu ódio só se pode esvair em sangue... Estou agora mais aliviada... parece-me ver correr do próprio peito a cólera vermelha e ardente, que dentro dele se tinha acumulado... Ai! Quanto me desafronta o sangue que derramo! Sinto-me melhor... mais propensa à piedade... Vou compreendendo toda a razão das tuas palavras, meu bom companheiro... Cerraram-se-me os olhos, desfaleço, como se adormecesse no elevamento de um amor ideal... Já vejo assomar além, por entre as névoas que me ensombram, o vulto singelo e casto de teu pai... Ele sorri para mim... envolve-me toda no seu olhar compassivo e doce... Não me despertes...

E a oriental deixou pender a cabeça, e desfaleceu. Gaspar correu aos aparelhos cirúrgicos e apressou-se a tomar-lhe a ferida. Mas a mão tremia-lhe, o coração saltava-lhe dentro com força, e as lágrimas corriam-lhe dos olhos em borbotão. Contudo, o médico operava, e Violante vivia.

No dia seguinte, ela abriu os olhos e recuperou a fala.

Suas primeiras palavras foram para pedir água. Gaspar negou-lha. A infeliz tinha a voz muito fraca, palidez mortal, e uma profunda melancolia espalhada por todo o semblante.

Gaspar estava ajoelhado à cabeceira da cama em que a depusera. O outro médico já se tinha retirado.

Os dois amantes ficaram longo tempo a se olharem com a mesma tristeza. Ela passou-lhe depois a mão pelos cabelos e chamou a cabeça dele para seu colo. Gaspar não podia articular uma palavra; as lágrimas corriam-lhe apressadas e quentes pela barba.

-Como tu és bom, mem amigo! como tu merecias ser feliz...

-Não estejas a falar, que isto te faz mal... observou Gaspar, no fim de alguns instantes. Vê se sossegas. Eu fico aqui, ao pé de ti...

-Sim, sim; mas preciso muito que me faças um grande favor; manda chamar um padre. Eu quero casar-me contigo antes de morrer.

-Tu não morrerás!...

-Sim, mas manda chamá-lo...

O padre veio e cumpriu-se a cerimônia. Depois Violante exigiu que se lavrasse um documento assinado por ela, declarando o modo pelo qual morria.

Ficou tudo feito. Era ela a que parecia menos aflita.

-Bem, disse quando viu que já não precisava dos estranhos, deixe-me agora com meu marido...

Ficaram a sós os dois.

-Vem cá, balbuciou ela, tomando as mãos de Gaspar, vem dar-me o teu primeiro beijo... Chega-te mais para mim!... Afaga-me! Dize-me as ternuras que reservavas para a nossa noite de núpcias, fala-me do nosso pobre amor! Tu choras, meu amigo!... Então sempre é verdade que me amavas muito!... Sim! bem sei que era!... E teu amor foi sempre puro e consolador como uma boa ação. Não me repreendas; deixa-me conversar contigo!... Coloca teu braço debaixo da minha cabeça.... Assim! Mas a ferida começa a doer-me muito! Se me desse um pouco d'água! Tenho uma sede horrível! Ai quanto custa morrer!...

-Não te aflijas, Violante! Não fales em morrer! Havemos ambos de gozar ainda do nosso amor em plena exuberância da vida!

-Gaspar, disse ela, dá-me de sobre aquela cômoda uma caixinha de xarão que lá está. Bom! É isso mesmo. Toma esse leque para ti, é de sândalo: foi o único presente que fez Paulo, além da nossa desgraça... Fica-te com ele; conserve-o depois da minha morte, como uma lembrança de tua esposa... Agora, apanha o meu punhal e guarde-o bem para entregares a meu filho, logo que este se emancipe. Peço-te que a meu filho nunca desampares. Ele, coitado! Desde que eu feche os olhos, só a ti terá no mundo; dá-lhe um pouco de teu coração, e cria aquela alma com a substância do teu amor e do teu caráter. Educa-o à tua semelhança, faze dele um homem honrado. Conta-lhe a história desse punhal, e ensina-lhe a não odiar a memória de sua mãe... Tu serás o pai de Gabriel... Ele é rico; incumbe-te de todos os seus interesse... nunca o abandones, continua nele a obra de teu pai em mim principiada e...

Mas Violante interrompeu-se com um grito agudo.

-Sinto-me convulsionada! exclamou ela. Meu Deus! Já será a morte!... Gaspar! Gaspar! Vê se me obtens mais um bocado de vida! Tu és médico! Então?! Mas o que? Choras desse modo?!

E Violante, com um novo grito, estirou-se em todo o comprimento da cama; entesou os braços, deixou cair para trás a cabeça, e deu um arranco surdo e muito prolongado, que se foi transformando em um gemido doloroso e profundo e lhe foi morrendo na garganta, lentamente...

Duas lágrimas, grossas e mornas, correram-lhe pelo mármore das faces, com os últimos restos da vida que a abandonava.

Gaspar dobrou os braços sobre a cômoda e abafou com as duas mãos os seus soluços.

Estava tudo consumado! De suas esperanças, de seu amor, de seus sonhos de felicidade, só restava ali aquele corpo inânime, que ia desaparecer para sempre!

-Pobre mulher! disse ele, ajoelhando-se ao lado do cadáver; pobre mulher, que amei sem possuir, e que possuí sem gozar! Tinha no teu sangue o veneno do ódio e todas as doçuras da dedicação e do sacrifício! Por que havia a porção má de estrangular a outra? Por que não fizeste vingar em proveito do nosso amor as açucenas da tua ternura?... Por que as deixaste tão expostas ao fogo do teu temperamento?... E vais partir, minha pobre esposa! vais partir sem me teres dado o meu quinhão de felicidade a que tinha direito como teu marido! Partes, quando eu mais me ligava a ti pelo casamento, pelo dever, pela dignidade! O que fiz para merecer os tormentos que sofri a teu lado?... para que guardei eu à vista, com tanto empenho, o tesouro da tua beleza, se o guardava para a sensualidade do sepulcro?!...

E Gaspar deixou-se ficar abraçado ao cadáver de Violante, com a cabeça escondida no montão negro dos cabelos dela.

E assim ficou longamente, sem percepção do que se passava em torno, sem consciência do tempo, nem do lugar.

Só volveu a si quando alguém lhe tocou no ombro. Voltou-se com os olhos afogados em lágrimas. Defronte dele estava o coronel.

-Meu pai! Estaria sonhando?!

-Não, disse o velho. Abraça-me, depois explica-me o que tudo isso quer dizer...

A Mofina

Gaspar contou francamente ao pai tudo o que se passara entre ele e Violante.

O pobre velho comoveu-se com as desgraças do filho e lamentou o triste fim daquela infeliz rapariga, que ele, vinte anos antes, havia recolhido da miséria em Montevidéu.

-Mas, por que não me escreveste a respeito dela? perguntou o coronel, impressionado por não ter podido evitar tanto infortúnio.

-Tencionava fazê-lo juntamente com o pedido do seu consentimento para a nossa união...

-Em todo caso, cumpre-nos tratar do mais urgente: vou daqui à casa de Virgínia; para lá irá o cadáver, e de lá sairá o enterro. Paulo está fora, mas é o mesmo. Tu ficas aqui; eu voltarei com os homens necessários para transportar o corpo. Até logo. Coragem!

O enterro fêz-se com efeito no dia seguinte pela manhã, por um tempo abafado e triste.

Gaspar, a partir daí, parecia dominado por um desgosto profundo, que nunca mais o abandonaria. Tornou ao hotel; apoderou-se dos objetos que pertenceram à falecida, e instalou-se em casa da irmã, sepultando-se no quarto, sem ânimo para nada.

-Tu tens que mudar de vida! disse-lhe o pai. Seguiremos quanto antes para o Rio de Janeiro; preciso de ti ao meu lado. Estou só. Ana mora lá com o marido; esta também cá está com o seu, e não tenciona repatriar-se tão cedo... por conseguinte, só me resta a tua companhia, eu não a posso dispensar. Sinto-me velho e desamparado. Meus negócios vão ultimamente de mal a pior; minhas especulações falharam todas; fiquei reduzido ao simples soldo! Não tenho uma comissão, nem esperança de obter cousa alguma; não há quem se empenhe por mim... E, além de tudo isso, meu filho, sofro uma guerra implacável, uma guerra cruel, e sem saber de quem!

-Como assim?...

Refiro-me a certas mofinas, que de bons tempos a esta parte se publicam invariavelmente duas vezes por mês no Jornal do Comércio. É uma infâmia! Dizem o diabo de mim! Chegaram já a chamar-me de ladrão!

-Mas quem será o autor dessa perfídia!... perguntou Gaspar, indignado.

-Sei cá quem é! respondeu o pai, sacudindo os ombros. Não me dói na consciência haver feito mal a ninguém; não tenho em minha vida glórias tais que possam despertar inveja; nunca pratiquei baixezas, nem cometi crimes que pudessem levantar a indignação ou o ódio de quem quer que seja... Digo-te com franqueza que não sei absolutamente a quem possa atribuir semelhante cousa! Mas o que te afianço é que o tal autor das mofinas não se descuida... Tudo deixará de aparecer, menos uma injúria contra mim no dia quinze e no dia trinta de cada mês. Já tenho, por todos os modos, procurado ver se descubro a quem devo tão estranha perseguição, mas qual! O miserável esconde-se deveras.

-Ora, havemos de ver se o descobriremos ou não. E juro-lhe, meu pai, que, se o não descobrirmos, quem mais há de pagar é o redator do jornal!

-Bem! Bem! Mas não é disso que se trata agora! Observou o coronel. O que desejo saber é se podes seguir para o Rio no primeiro vapor...

-Posso, mas não para ficar de vez, porque tenho ainda o que fazer em Montevidéu; tenho que proceder ao inventário dos bens de Violante em beneficio de meu enteado. Só depois de tudo muito bem disposto, é que poderei voltar para o Rio de Janeiro e fazer-lhe companhia. Porém, de tudo, o que me parece mais razoável é que o senhor venha comigo dar um passeio à República Oriental...

-Não! Estou cansado e quero morrer onde nasci; além de que, ficando na Corte, verei sempre a minha querida Ana, o que me fará bem. Em todo caso, meu filho, se os teus interesses te aconselharem que abandones o Brasil, não serei eu que a isso me oponha, posto que precise como nunca de ti ao meu lado. Não quero prejudicar-te.

-De forma alguma, meu pai; terminado o que tenho a fazer em Montevidéu, mudo-me definitivamente para o Rio, e aí viveremos juntos. Tenciono dedicar-me exclusivamente à minha profissão de médico.

Partiram no primeiro vapor, e Gaspar seguiu para Montevidéu. Tratou este logo do inventário, ficando Gabriel patrimoniado com trezentos mil pesos ouro.

O padrasto pensou em retirar-se com ele para o Brasil.

O filho de Violante orçava então pelos oito anos; era um menino sadio, forte e bem tratado. Gaspar é que não parecia o mesmo. Nada o distraía, nada conseguia espantar o bando de aves negras do seu tédio. Passava uma vida concentrada e aborrecida; tudo lhe trazia à idéia a sua pobre Violante, deixando-lhe o coração embebido em uma saudade imensa e desesperadora. Tinha ele seus então vinte e sete anos e parecia ter muito mais; estava magro, com grandes olheiras. Entre todos os rostos formosos das mulheres de Montevidéu, nem um só havia que lhe chamasse um pouco de luz aos olhos, ou um pouco de riso aos lábios. Seu único prazer, sua consolação única, era ter Gabriel nos braços.

A bela criança, apesar de loura, lembrava muita cousa da mãe. Os olhos rasgados e pestanudos da oriental ali estavam com o filho como preciosas jóias herdadas da família.

Gaspar ficava horas esquecidas a fitá-los, nem que se procurasse descobrir neles a alma da sua amante. Só aquela criança tinha o mágico poder de interessá-lo e distraí-lo. Dedicava ao pequeno a maior parte de seu tempo, e por tal forma foi tomando por ele uma amizade tão profunda e exclusiva, que acabou por fazer de Gabriel todo o cuidado e toda a preocupação da sua vida.

Passaram-se dois anos. Durante esse tempo, Gaspar havia dado, com o maior amor e a mais paternal paciência, as primeiras lições ao querido órfão. Seus negócios estavam concluídos; partiu com ele para o Rio de Janeiro.

O coronel, como todos os que tinham dantes conhecido Gaspar, espantou-se com o aspecto deste; vinha o desgraçado relativamente velho. Nos últimos tempos entregava-se com exagero ao estudo da medicina e andava a farejar doentes pobres, que curava de graça.

Foi morar com o pai, na velha propriedade que o coronel possuía em uma das mais escusas travessas do Catete, e lá vivia ao lado de Gabriel. Começaram então a distingui-lo pela alcunha de «Médico Misterioso.»

Ele próprio se tinha encarregado ainda da instrução primária do enteado, e dedicava a esse trabalho grande parte do seu lazer. Gabriel o estremecia loucamente.

E o tempo decorria.

Gaspar era já apontado no Rio de Janeiro como um tipo singular. Parecia um Positivista ortodoxo. Viam-no passar sombrio e sinistramente calmo, pálido e misterioso, de olhos fundos e fixos, porte elevado e magro, um tanto curvado, a conduzir pela mão uma criança, em cuja fisionomia, aliás fresca e pura, se refletia já a sombra da melancolia que lhe projetara o inseparável companheiro.

Levavam os dois uma vida bem concentrada e tíbia! Gaspar, que se tornara seco para com todos, gastava, entretanto, boas horas a discorrer com o pupilo. Ouvia-o com toda atenção. Conversavam, discutiam, como se fossem dois amigos da mesma idade. Entre eles não havia segredos, tratavam-se por tu, e liam comumente os mesmos livros.

Ao lado deles definhava o coronel, cujo destino mais se descompunha de dia para dia. Por este tempo, como para o prostrar de todo, faleceu Ana, a sua filha mais velha, casada com o empregado público, o inconsciente rival do comendador Moscoso.

E o viúvo de Ana ausentou-se para Cantagalo, doente e triste. A moléstia da mulher comera-lhe muito dinheiro e o obrigara a tomar compromissos superiores aos seus recursos; além disso, a falta de saúde o forçava a prolongar uma licença sem vencimentos.

Fazia má impressão vê-lo com a sobrecasaca puída do uso e das teimosas escoriações, com os seus sapatos remontados, o seu espinhoso colarinho a arrancar-lhe as cordoveias do magro pescoço com as caprichosas franjas dos fiapos do linho.

O comendador Moscoso sorria de vaidade ao vê-lo passar, tossindo e arrastando aquele ar de indigência.

-Aquilo mesmo já era de esperar! dizia. Olhem só que tipo! A mulher lá ficou morta! Naturalmente de maus tratos1. Talvez de fome!

E, para gozar um triunfo completo, meditou os meios de tirar o emprego ao pobre diabo.

A cousa não seria difícil: o comendador tinha boas amizades, alguns figurões tomavam chá em casa dele. O rancoroso deu a entender que desejava empregar no lugar do viúvo de Ana um seu afilhado, e o genro do coronel recebeu em Cantagalo a notícia de que, a pretexto de abandono de emprego, lhe haviam lavrado a demissão.

O infeliz esteve a perder a cabeça.

E todas estas novas mal-aventuras afligiam consideravelmente o pai de Gaspar. Era justamente por ocasião delas, que as tais mofinas do Jornal do Comércio recrudesciam de mordacidade.

Aquela perseguição covarde e mesquinha, pingando-lhe todos os meses duas gotas de fel no coração, acabara no fim de alguns anos por enchê-lo de um grande desgosto, que lhe estragava, de todo, o resto da existência.

O comendador torcia-se de gozo com os efeitos de semelhante vingança.

O pai de Gaspar ultimamente confessava já a sua amargura quando um lia uma das tais; mofinas. Ele e o filho empregavam todos os esforços para descobrir quem seria o infame detrator, nada porém, conseguiam: O Jornal do Comércio guardava segredo, e o testa de ferro, o Romão José de Lima, estava pronto a surgir desde que o injuriado chamasse o jornal à responsabilidade. Ninguém sabia explicar aquilo, mas afinal já liam todos as chacotas do comendador, e muitos parvos já gostavam delas e já as esperavam com a risadinha pronta.

Quando o viúvo de Ana foi demitido, o Jornal do Comércio publicou as seguintes palavras:

«Não podemos deixar de dar ao nosso velho amigo, o coronel Pinto Marmelo, os mais bombásticos parabéns pela prova de consideração que o governo acaba de manifestar-lhe, lavrando a demissão de seu condigno genro -o Marmelada. Foi uma medida justa e bem aceita!

«Consta que o Marmelada de ora em diante, à falta de outro meio de vida, passará a tocar realejo na rua, e não sabemos se o sogro, que também anda por baixo, o acompanhará, fardado ou vestido de mono.

Deve ter graça! Cá estamos nós para apreciar.

A Sentinela

Como e onde cresceu Ambrosina

O viúvo de Ana ficou desde então çonhecido pela alcunha de «Marmelada».

Gabriel, feitos alguns preparatórios na Corte seguiu para S. Paulo em companhia de Gaspar, que o destinava a matricular-se na escola de Direito.

Enquanto para esse se arrastava a existência desse modo, corria a vida petulante e fagueira para a gente do comendador.

Bem diferentes eram os dois destinos!

O comendador Moscoso, segundo os cálculos que o leitor se dará ao trabalho de fazer, era casado havia já quinze anos, pois há quatorze dera-lhe a sua Genoveva uma filha, a que batizaram os dois com o doce nome de Ambrosina.

Ambrosina era uma mocinha pálida, de cabelos negros e crespos, lábios sensuais, dentes muito brancos, mãos finas, compridas e transparentes. Um todo linfático. Tinha os ombros estreitos, levemente contraídos, como por uma constante sensação de frio, os braços longos e fracos.

Aos doze anos ainda se não lhe percebia que havia de ter seios, mas em compensação, possuía já um par de olhos retintos, bem guarnecidos e tão belos, que faziam, só por si, toda ela ficar bonita.

O comendador babava-se pela filha e não media dinheiro para lhe dar o que ele chamava uma boa educação: o belo mestre de francês, mestre de piano, mestre de canto, mestre de dança, mestre de gramática e de retórica.

Ambrosina, entretanto, logo que começou a fazer-se rapariga, dava-se com mais amor do que tudo isso à leitura dos romances franceses. Sabia de cor a Dama das Camélias, o Rafael, Olímpia de Clêves, Monsieur de Carmors e outras quejandas encantadoras vias de corrupção. Muita vez tinham que lhe guardar o jantar, porque ela não queria largar o diabo do livro!

O pai dizia-lhe:

-Olha lá, minha jóia! Não vá isso fazer-te mal!... mas não se animava a contrariá-la.

Ela não lhe dava ouvidos, e aparecia às vezes visivelmente excitada, com os olhos lacrimosos, o ar cheio de fastio, de má vontade e de maus modos.

A mãe acudia-lhe com repreensões, porém o pai intervinha a favor da filha, e acabava sempre, para a esta tranqüilizar de todo, lhe prometendo trazer um vestido novo e quatro velhos romances de Alexandre Dumas.

-Você está mas é estragando a pequena com essas bobagens! dizia Genoveva ao marido, com uma voz mole, como se saísse de uma boca de manteiga. Eu nunca tive desses mimos!...

-E é justamente por isso que é quem é! replicava o comendador, pondo em sua frase uma intenção sutil e profunda. Le monde marche, minha rica senhora! E se fôssemos a ser o que foram nossos avós, você seria a estas horas... nem sei mesmo o quê!...

-Se eu fosse o que foi minha avó, seria muito boa lavadeira. Minha mãe dizia constantemente que minha avó era a melhor lavadeira do Rocio Pequeno!

-Ora, não esteja aí a dizer blasfêmias! repreendia o pai de Ambrosina a olhar para os lados. A senhora não sabe ao certo o que é, quanto mais o que foi sua avó torta! Ora; pelo amor de Deus, dona Genoveva!

A Genoveva afastava-se, sem ânimo de protestar contra os remoques do marido.

-O diacho do homem sempre tinha uns repentes! Credo!

E assim cresceu Ambrosina fêz-se mocetona, entre os enervantes zelos do pai e as inércias do amor de Genoveva.

Reunia-se gente quase todas as noites em casa do comendador, e fazia-se um cavaco antes do chá. Ambrosina solfejava ao piano; as visitas fumavam ou bebiam cerveja, e o dono da casa falava de política ou de negócios.

Entre essa gente destacava-se D. Ursulina, casada com um negociante inglês, que se tornava muito notável entre os de sua raça, porque jamais ia além do primeiro copo. Tinha o casal duas filhas, uma das quais fazia as delícias dos rapazes namoradores, e a outra os cuidados da mãe, que enxergava nela, com olhos experimentados, todas as qualidades precursoras de um eterno celibato.

A namoradeira chamava-se Emília e acudia o chistoso nome de Nhanhã Miló; a outra era pura e simplesmente Eugênia. Uma bonita; e a ontra simpática.

Miló era travessa, alegre, faceira; tinha os olhos vivos, a língua solta, o pé ligeiro e um moreninho delicioso. A outra era tristonha e pálida, de olhos azuis, os movimentos compassados, os gestos frios; entretinha-se esta em casa a ler revistas inglesas, à noite, antes do chá, enquanto Miló cantarolava uma modinha ao piano ou ia para o portão da chácara ver quem passava na rua. Emilia puxara à mãe; Eugênia saíra ao pai.

Da família, a mais tola era Ursulina, cuja conservação dos seus fugitivos dotes de beleza a trazia em constante e ridículo sobressalto.

O marido nunca dera por isso. Fôra sempre um verdadeiro negociante inglês -seco, áspero, sem bigode, falando português a socos, e mostrando-se sistematicamente indiferente a tudo que não fosse de interesse prático.

À noite lia o Times ou jogava O wist com Eugênia, a sua filha predileta.

Ainda convém citar dois tipos da roda fiel do comendador:

Um era o Reguinho. Rapaz de vinte e tantos anos, filho de um fazendeiro estúpido e rico, que lhe fornecia dinheiro para a pândega. Muito conhecido; todos sabiam das suas asneiras e até de uma ou outra estrangeirinha, mas ninguém lhe ia às mãos por isso.

A sua linha mais acentuada, a sua mania, a sua moléstia, era a mentira. O Reguinho mentia por hábito, mentia por índole, por gosto; mentia, porque mentia.

Não estava em suas mãos proceder de outro modo: ele às vezes, coitado! Não tinha intenção de dizer senão a verdade mas era bastante que suas palavras produzissem algum efeito em quem as escutasse, para vir logo a primeira mentira, abrindo a porta a um chorrilho delas. E ei-lo a aumentar, a exagerar, a meter no assunto episódios falsos; a dizer, enfim, aquilo que não era, e a mentir.

Um dia, encontrou ele na rua o infortunado viúvo de Ana, a quem conhecia de longa data. O pobre de Cristo, desde que perdera o emprego, vivia por aí aos paus, comendo a maior parte das vezes em casa do sogro ou nas águas de alguma velha amizade de melhores tempos.

-Vem cá, homem! como vai tu? disse-lhe o intrujão, batendo-lhe no ombro.

O Marmelada queixou-se da sorte com a resignação tétrica.

-Andas apoquentando, meu... (Queria dizer-lhe o nome, mas não se lembrava dele -Como é mesmo que te chamas?...

-Já nem de meu nome te lembras!... Também o que há nisso de extraordinário? Outros nem sequer me conhecem mais!...

O Reguinho deu a sua palavra de honra em como se esquecia do nome de toda a gente.

-Chamo-me Alfredo da Silva Bessa...

-É isso! Ë! Mas tu estás desempregado, hem, meu Bessa?

Marmelada meneou afirmativamente a cabeça num desânimo sombrio.

O outro acrescentou:

-Pois tenho um emprego às tuas ordens. É negociozinho para de pronto meteres na algibeira um bom par de notas de cem! Estou convencido de que não me recusarás!...

O rosto lívido do Marmelada iluminou-se de um clarão de esperanço.

-Um emprego?! interrogou ele, acompanhando ansioso os movimentos do Reguinho.

-Por ora, tens duzentos mil-réis por mês... disse este; não te podemos dar mais... Porém em breve ganharás o duplo e terás interesse na empresa!...

Alfredo ouvia estas palavras como se despertasse ao toque de uma alvorada celestial.

-Pois sim! Pois sim! balbuciava o infeliz; mas do que se trata?

-É uma empresa que estou criando com meu pai...

O nome do pai era quase sempre o fiador das patranhas do Reguinho.

Ainda te não posso dizer abertamente qual o fim da nossa empresa, ajuntou este; mas descansa, que a cousa é decente e lucrativa. Sabes que o velho não se meteria, se o negócio me ficasse mal!... Enfim, meu Bessa, seremos três: ele, eu e tu. O velho fornece os cobres, eu agencio cá por fora os nossos interesses, e tu te encarregas do escritório e da caixa, farás férias aos empregados, serás o gerente. Hein? serve-te? Espero que me não digas não!

-Ao contrário! Já te não largo! Ó meu Deus, foi uma fortuna encontrar-te! Vou daqui ao Raposo, dizer-lhe que em breve principio a dar-lhe por mês alguma cousa por conta do que lhe devo, mandarei depois fazer um fato, que este é uma vergonha!..

-Um fato! Havemos de fazer o diabo! dizia o Reguinho em ar de mistério. -Queremos dinheiro, sebo! Tu entras só com o teu serviço. Quer-se é zelo e inteligência!... Quanto a considerações e escrúpulos -nada! Tudo para o fundo da gaveta! Queremos dinheiro, sebo!

Mas afastou-se, correndo atrás de um sujeito que passava na ocasião.

-Até logo! gritou para o Marmelada. Preciso falar àquele rapaz. Ó Lima! Ó Lima!

E desapareceu.

Alfredo não pôde seguir logo, tão grande comoção se havia dele apoderado.

Entretanto, tudo o que dissera o Rêgo não tinha o menor fundamento.

O outro tipo a apontar da roda do comendador Moscoso, era Melo Rosa; moço da mesma idade do Reguinho. Vivia este da esperança de umas tantas peças dramáticas que havia de escrever com muito talento, desde que tivesse de seu um bom bocado de tempo.

Falava nesses trabalhos, como se já os houvera realizado. Surgia sempre, com um rolo de papeis debaixo do braço, a singrar, muito apressado, por entre os magotes da rua do Ouvidor. Quem o não conhecesse de perto, diria que ele levava uma vida cheia de cuidados e fadigas.

À noite, chovesse ou não, encontravam-no impreterivelmente na caixa dos teatros. Tinha neles entrada franca e dava-se com todos os artistas do Rio de Janeiro.

Alguns destes o tratavam com uma liberdade grosseira, batiam-lhe no ombro e diziam-se chufas. Era entretanto, considerado pelas atrizes como tipo útil. Tinha intimidade com muitas; viam-no às vezes acompanhar alguma delas para o ensaio, prestando-lhes os mais solícitos serviços; encarregavam-no de fazer compras, confiavam-lhe dinheiro, com que ele regateava nos armarinhos, mercando luvas, fitas, rendas e chapéus. O dinheiro nas mãos do Melo chegava para tudo! Dava para comprar o objeto e ainda para um troco, que o tipo levava religiosamente à dona da encomenda.

E, por isso e outras cousas, era bem tratado pelas mulheres. Comia, bebia e fumava com elas, sem que nenhuma lhe exigisse tributos de outra espécie.

Este, como Reguinho, apresentava a melhor aparência deste mundo -fraque, chapéu alto, lunetas e bigode.

Foi o Reguinho quem o apresentou em casa do comendador Moscoso, impingindo-o como autor de várias peças literárias e colaborador de vários jornais.

O comendador afirmou que já o conhecia muito de nome, e certa noite, em que o Melo apareceu mais cedo para o cavaco, aquele o tomou pelo braço e disse-lhe ao ouvido:

-Você é quem me podia prestar um serviço...

-O que quiser, comendador!

-Você é um moço inteligente, e estou convencido que será capaz de guardar um segredo...

Meio compôs o ar e respondeu:

-O comendador já tem tempo para apreciar o meu caráter!...

-Sim, mas olhe que o negócio é muito sério!...

-Pode confiar de mim sem receio!

-Promete então guardar segredo?

-Dou-lhe a minha palavra de honra!

-Pois vamos cá ao gabinete, e você ficará sabendo do que se trata...

E os dois encerraram-se no grave escritório do comendador Moscoso.

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