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Quando chegaria sua vez? pensava Maria do Carmo nessa noite, sem poder conciliar o sono, com um desalento profundo no coração apreensivo. Que tal, hein? O Sr. Zuza não se resolvia a pedi-la em casamento, sempre com evasivas, pretextando tolices, como se estivesse tratando com uma biraia qualquer! Por que isso? por que não se decidia logo a dizer a verdade fosse ela qual fosse!

Era sempre melhor do que estar perdendo tempo sem tomar uma resolução franca e definitiva. Quem sabe? talvez o padrinho não fizesse questão agora que a tratava tão bem, que lhe fazia todas as vontades... Uma felizarda, a Lídia!... Casara com um guarda-livros, mas embora, casara...

E imediatamente vinha-lhe uma confiança ilimitada no estudante. Já estava tão acostumada com ele que nem era bom pensar em uma deslealdade. Paciência, paciência -Roma não se fez em um dia... Consolava-se ao pensar nas confidências íntimas do futuro bacharel, embebidas de ingênua e tocante sinceridade, na franqueza altiva com que ele dizia todas as suas idéias e todas as suas ações, como se já fossem noivos. Zuza contava-lhe tudo com a maior simplicidade, dava-lhe conta de seus passeios, de seus planos, de suas intenções.

Pode-se mesmo dizer que não havia segredo entre os dois. Era lá possível que o Zuza, aquele Zuza tão amável, tão sincero, tão bom a esquecesse, ele que reprovava com frases repassadas de indignação o procedimento de certos indivíduos para quem a mulher outra coisa não é senão uma espécie de fruto amargo que a gente prova e deita fora? Qual! O Zuza era incapaz de descer até onde começa o rebaixamento do caráter de um homem...

Animava-se ao fazer estas considerações tão simples, tão espontâneas, saídas do mais íntimo de sua alma enamorada. Tinha momentos em que tudo afigurava-se-lhe uma comédia, cujo protagonista -o estudante- aprazia-se em vê-la rendida a seus pés por um simples capricho de rapaz do mundo que se diverte à custa de muitas raparigas como ela, ainda não corrompidas pelos costumes modernos. Nascida no interior de uma província essencialmente católica, educada em um colégio religioso, o convívio com as suas colegas da Escola Normal não lhe apagara de todo essa bondade característica dos filhos do sertão, que se revela em uma confiança ingênua nos outros. Por isso é que ao mesmo tempo Maria não podia acreditar que o Zuza faltasse à sua palavra para com ela. Duvidava às vezes, mas não perdia de todo a confiança, porque amava deveras, e o amor transforma a pessoa ou objeto querido numa espécie de ídolo, que a gente adora como a um modelo de virtudes incomparáveis.

Quando chegaria sua vez? E a figura de João da Mata surgia-lhe aos olhos como uma visão pavorosa, que a fazia estremecer da cabeça aos pés. Sim, o padrinho não gostava que se falasse no Zuza, implicava com ele, odiava-o gratuitamente, sim, gratuitamente, porque o rapaz nunca lhe fizera o menor mal, até pelo contrário uma vez emprestara-lhe cinqüenta mil-réis, e ela o sabia pela boca de D. Terezinha. Que infelicidade, a sua, que caiporismo! além de o padrinho não gostar do Zuza, aquela casa parecia agora um verdadeiro inferno: era o padrinho para um lado e a madrinha para outro, ambos de cara fechada, sem se trocarem palavras, e ela, Maria, para um canto, coitada, sem amigas, sem parentes, vivendo uma vida de criminosa...

Que maldito inferno!... Antes nunca tivesse nascido.

Onze horas... meia-noite! e ela ainda velava, sem um bocadinho de sono, a matutar na vida, a pensar em frioleiras.

Entrou a parafusar no casamento da Lídia, rememorando toda a festa, tintim por tintim, com a pachorra de quem procura armar um castelo de cartas. -Assim mesmo tinha ido muita gente, sim senhora, parecia até uma festa de gente rica, inegavelmente a Lídia estava encantadora debaixo do véu de noiva. Nunca vira a igreja de N. S. do Patrocínio tão cheia de povo! ah! mas fora uma coisa horrorosa o escândalo provocado pelo Guedes. Que horror! Se fosse ela, Maria do Carmo, teria caído no meio da rua com um ataque...

Palpitavam-lhe na imaginação, como num sonho, os menores acidentes daquela noite, em que todos tomaram o seu cálice de vinho e só ela, irresistivelmente mordida de inveja por ver a sua maior amiga num trono de felicidade, ela somente se deixara ficar esquecida como qualquer lagalhé, na impotência da sua tristeza. Entretanto, se não fora o padrinho, ela também podia breve estar de caminho para a igreja, ao lado de seu noivo, metendo inveja às outras. Então é que a festa seria de estrondo! O coronel Souza Nunes abriria o seu salão iluminado como um palácio real, e haveria dança e música e um banquete lauto. E iria o presidente da Província e toda a gente grande do Ceará. Que bom seria!...

Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão com as calças arregaçadas, um barril na cabeça, a gritar -Arre corno! cercado de garotos que lhe atiravam pedras e sacudiamlhe punhados de farinha-do-reino na carapinha, por detrás, no meio de gritos e assobios.

Depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de imundícias, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de circo, uivando uma porção de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo estribilho, a uma voz: -É sim sinhô!

Depois... (não se lembrava do resto).

Davam duas horas no relógio do vizinho, quando acordou muito assustada e nervosa a olhar para todos os lados, sem consciência exata do ambiente que a cercava. Teve um sobressalto ao ver sobre uma cadeira, perto da rede, o vestido com que fora ao casamento. -Credo, que susto!

A luzinha da vela de carnaúba agonizava numa poça de cera derretida.

E essa! Era a segunda vez que sonhava com o Romão, sem quê nem pra quê... Com certeza estava para lhe suceder alguma desgraça. Que esquisitice! Um-um...

A porta do quarto, que se conservara entreaberta, rangeu nas dobradiças, como se alguém a empurrasse de manso. Apoderou-se de Maria um pavor terrível; arrepiaram-se-lhe os cabelos, e uma extraordinária sensação de frio percorreu-lhe o sangue. Ficou assombrada, sem se mexer, com o ouvido alerta e os olhos fechados, numa prostração de quem está sem sentidos. Pareceu-lhe ouvir chamar por seu nome e então subiu de ponto o terror que lhe tapava a boca como uma mordaça de ferro. Abriu os olhos para verificar se com efeito estava acordada e tornou a fechá-los mais que depressa. Instintivamente fez um esforço supremo para gritar, para chamar alguém, mas não podia abrir a boca, estarrecida.

-Maria! repetiu a mesma voz, que ela julgara ouvir, uma voz fina, mas abafada, como se saísse das entranhas da terra.

E logo:

-Sou eu, Maria. É o padrinho...

De feito, João da Mata vinha se chegando, pé ante pé, sutilmente, segurando-se à parede, equilibrando-se na ponta dos pés, como um ladrão, sem o menor ruído, com estalinhos de juntas.

Maria encolheu-se toda debaixo do lençol, duvidando. Tremia como um doente de sezões embiocada que nem caracol.

-Não grites, Maria, olha que sou eu, teu padrinho, tornou João da Mata agora quase ao ouvido da afilhada, agarrando-se ao punho da rede.

A rapariga respirou forte, como se saísse de dentro de um buraco, e pôde abrir os olhos, meio aliviada, presa ainda de uma grande comoção. Ao medo sucedera-lhe uma apreensão dolorosa, que o seu espírito repelia como impossível. Não teve tempo de associar idéias, porque o amanuense foi-se sentando na rede, a seu lado. -O padrinho por ali, no quarto dela, àquelas horas?... Estaria sonhando?

-Padrinho...

-Sou eu mesmo, minha flor... Olha, queres saber uma coisa?... Deixa-me descansar um bocadinho e eu te direi, ouviste?... Espera...

-Mas, padrinho!...

-Olha, não fales alto... Sou eu, estás ouvindo, eu, teu padrinho mesmo... Bico...

Maria do Carmo não compreendeu logo a presença de João da Mata ali, no seu quarto, àquela hora.

Fez-se uma confusão inextricável, caótica, no seu espírito subitamente assaltado por um turbilhão de idéias sem nexo, disparatadas; o coração pulsava-lhe forte, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço; operava-se em seu duplo ser moral e físico um desses abalos extraordinários, que deixam a gente numa prostração invencível. Pela primeira vez em sua vida achava-se frente a frente com um homem, alta noite, no silêncio de um quarto escuro. Mal acordada do terrível pesadelo que acabava de ter, vendo ainda esboçada na sua imaginação a figura hedionda do negro com os bugalhos injetados, a boca abrindo-se num riso nervoso e alvar, o peito à mostra, a venta chata, ela permanecia imóvel, olhando para o escuro como uma idiota.

A luz tinha-se apagado completamente. Ouvia-se a respiração asmática da criada no quarto pegado à sala de jantar. Longe, em algum quintal, ladrava um cão. Ao calor insuportável sucedia o friozinho bom da madrugada.

João estava em ceroula, nu da cintura para cima. Desde que chegara da festa do Loureiro não fechara os olhos, a fumar no seu cachimbo curto, que preferia às vezes aos cigarros e andava-lhe na cabeça o plano, há muito formado, de ir ao quarto da afilhada uma noite. Nada mais fácil: da sala de jantar, onde dormia agora, ao quarto eram dois passos; o diabo era se a menina abrisse a goela a chamar por gente, isto é que era o diabo!... Qual! ela não tinha coragem para tanto, mormente sabendo logo que era ele, o padrinho. - Mãos à obra, João; nada de pensar em asneiras. Isso a gente inventa uma história de embalar crianças, diz que a vida é esta, e... foi um dia uma donzela. Oh! pois ela não é tua afilhada? Demais, meu besta, já lhe pegaste umas tantas vezes no bico dos seios, sem que ela reagisse, a Maria, naturalmente porque sabes encampar a tua autoridade de padrinho. E depois, que diabo! quem arrisca... Um, dois...

E, com um salto, o amanuense levantou-se, dirigindo-se ao quarto da rapariga, cosendo-se às paredes, macio, cauteloso, todo agachado, pisando devagar, no bico dos pés descalços.

A fresca da madrugada arrepiava-lhe o tronco magro e cabeludo.

Ah! como se sentia bem agora, sentado na mesma rede em que ela dormia, sozinho com ela, adivinhando, no escuro, toda a incomparável perfeição de suas formas rechonchudinhas de rapariga nova! O calor brando do corpo dela comunicava-se agora a seu corpo, infiltrandolhe no sangue um fluido bom e vigoroso.

Sentia-se forte como um touro, ali, assim a seu lado, ele, um pobre homem sem força, um magricela sem carnes.

E Maria esperava, numa aflição, o desenlace daquela trapalhada, que ela não compreendia bem.

Estiveram ambos calados alguns minutos até que o amanuense, escorregando para o fundo da rede, pousou a mão sobre o ombro da afilhada, segredando-lhe -se ela estava com frio?

-Frio?... não...

-Pois olha, na sala de jantar faz um frio dos demônios. Por isso eu vim para junto de ti...

Maria não disse nada.

Então o amanuense começou uma lengalenga, um despropósito de palavras murmuradas como uma oração, numa voz que mal se ouvia, inclinado sobre a afilhada, sufocando-a com seu hálito nauseabundo, roçando-lhe no rosto a ponta da barba.

-Olha, Maria, dizia-lhe, tu não sabes quanto eu abomino o Zuza... Há muito que estava para te dizer umas certas coisas, mas era preciso segredo, muito segredo... Agora, que estamos sós, deixa que te fale com franqueza... Tu amas o rapaz, não é assim? Não mintas... sei que gostas muito dele, e até já se fala, na rua, em casamento. Ainda hoje alguém afirmou-me que vocês se beijam na Escola Normal. Eu sei de tudo, minha afilhada, eu sei de tudo. Mas, olha bem o que te digo, tudo depende de ti, só de ti...

Maria estremeceu no fundo da rede, debaixo do lençol, e sentiuse irresistivelmente presa às palavras de João da Mata. Se ele a quisesse deixar, nesse momento, ela não consentiria, tão viva era a sua curiosidade, agora que o padrinho lhe falara no Zuza; e o movimento quase imperceptível da rapariga não passou despercebido a João da Mata.

-Sim, minha cabocla, tudo depende de ti, porque eu também te quero muito bem e não consentiria nunca nesse casamento, se... Olha, deixa dizer-te ao ouvido...

E, colando a boca ao ouvido de Maria:

-... se não fosses boa para teu padrinho.

Pouco a pouco o amanuense ia-se deitando ao lado da rapariga, acotovelando-a, machucando-a com o seu corpo ossudo, devagar, cautelosamente:

«-Estava bem armada a rede? Era preciso comprar outra, mais larga, mais rica...»

Um grilo abriu a cantar monotonamente num canto do quarto -testemunha oculta daquela cena inacreditável.

Entretanto Maria não dava palavra, com as pálpebras pesadas de sono, respirando a custo, numa espécie de inconsciência muda, como hipnotizada. Este estado porém durou pouco; espreguiçou-se, repuxando o lençol para se cobrir melhor; e começou a achar certo encanto naquela intimidade secreta, ombro a ombro com o padrinho. Seu instinto de mulher nova acordara agora obscurecendo-lhe todas as outras faculdades, ao cheiro almiscarado que transudava dos sovacos de João da Mata. Coisa extraordinária! aquele fartum de suor e sarro de cachimbo produzia-lhe um efeito singular nos sentidos, como uma mistura de essências sutis e deliciosas, desconcertandolhe as idéias. Uma coisa impelia-a para o padrinho, sem que ela compreendesse exatamente essa força oculta e misteriosa.

E quando ele, num tom paternal e amoroso, lhe falou no Zuza, Maria teve um frêmito bom, como se tivesse caído por terra o paradeiro que mediava entre ela e o estudante. Tudo dependia dela, somente dela... Ficou a pensar nestas palavras, sem atinar com o seu verdadeiro sentido, alheada, os olhos fitos, quase sem pestanejar, na telha de vidro por onde escoava agora uma claridade tênue de alvorada.

João respirou, e passando-lhe o braço por trás do pescoço:

-Então?...

-É quase dia, padrinho, podem nos ver assim...

-E que tem! já nos têm visto tantas vezes? Agora espera, só me vou se me deres uma boquinha...

E, sem esperar resposta, o amanuense beijou-a na face, apertandoa contra si, numa impaciência de quem não tem tempo a perder.

Maria repeliu-o brandamente.

-Juro-te, continuou ele, juro-te que casarás com o Zuza, mas, por amor de Deus, deixa... ou não contes mais comigo para coisíssima alguma. Por alma de tua mãe, que está no céu. Olha, sou eu quem te pede... Ninguém saberá, o próprio Zuza não poderá saber nunca... É como se não tivesse havido nada, são segredos que não aparecem, sabes? Eu te peço...

Tinha-se feito a verdade aos olhos da normalista, como um clarão que de repente iluminasse todo o quarto, ao mesmo tempo que uma luta medonha travava-se dentro de si, sem lhe dar tempo a pensar. Estava justamente em vésperas de ter incômodo. Toda ela vibrava como uma lâmina de aço ao contato daquele homem que comunicava-lhe ao corpo um fluido misterioso, transformando-a numa criatura inconsciente atraída por um poder extraordinário como o da cobra sobre o rato.

As palavras do padrinho, embebidas de voluptuosidade e ternura, o nome do Zuza pronunciado naquele instante, e, mais que tudo isso, a invocação feita à alma de sua mãe, confundiam-lhe os sentidos, acordando no seu coração de donzela o que ele tinha de mais delicado. Teve piedade de João, como se ele fosse na verdade o mais desgraçado de todos os homens, sentia-o a seu lado, humilde como um ser desprezível que reconhece a sua baixeza, com uma tremura na voz, rendido, suplicante, e não teve coragem de o enxotar, de darlhe com a mão na cara e de desaparecer para sempre daquela casa imoral onde ela vivia tristemente com as doces recordações de seu passado, como uma flor que vegeta num montão de ruínas. Ao contrário disto, a visível submissão do padrinho, doera-lhe nalma como a ponta duma lanceta. Sem o saber, João da Mata encontrou a afilhada numa dessas extraordinárias predisposições de corpo e alma, em que, por mais forte que seja, a mulher não tem forças para resistir às seduções de um homem astuto e audacioso. Conhecia suficientemente o gênio de Maria -nada mais, e isto lhe bastava para que a vitória fosse certa, infalível.

De resto algumas palavras à toa murmuradas à surdina, o contato morno de um corpo viril... e Maria do Carmo aumentava o número de suas dores.

A madrugada veio encontrá-la de joelhos, mãos juntas, duas grandes lágrimas no olhar, como um anjo de sepultura, defronte da oleografia de Cristo abrindo o coração à humanidade. Nunca o doce e meigo olhar de Jesus pareceu-lhe tão doce e meigo.

Era domingo. Cantavam galos de campina nas ateiras do quintal. E enquanto, lá fora, a cidade acordava e a vida recomeçava o seu eterno poema de alegrias e dores, Maria procurava no coração de Jesus um conforto para o seu doloroso arrependimento.

Maria do Carmo passou uma semana inteira, oito dias consecutivos, sem ir à Escola Normal, sem pôr os pés na rua, sucumbida, mortificada, com receios de encarar os conhecidos, sem ânimo para se apresentar em público.

Se até então a vida fora-lhe um nunca acabar de desgostos e contrariedades, o que seria agora, depois de se ter comprometido levianamente para todo o resto da sua existência, entregando-se, num momento de desvario dos sentidos, aos desejos concupiscentes do padrinho?

Estava doida, não havia que ver, estava doida naquele momento, não tinha um bocadinho de juízo! Devia ter visto logo que uma mulher de certa ordem não se entrega por força alguma deste mundo a outro homem, que não seja o seu marido, o dono de seu coração, o legítimo esposo de seu corpo e de sua alma. Que desgraçada imprudência a sua! Que vergonha, santo Deus, que vergonha! Era para isso que se tinha coração, para se deixar cair numa armadilha daquela... Se fosse uma mulher forte e resoluta, capaz de todos os escândalos, contanto que soubesse guardar sua honra... bem, não teria sucedido nada. Mas, não: fora uma grandíssima tola, uma menina de escola, deixando-se levar pelo coração até o ponto de compadecer-se do padrinho! Que infelicidade!...

E chorava que nem uma criança, com a cabeça no travesseiro, metida no seu quarto, dizendo-se a mais infeliz de todas as mulheres, supersticiosa ao peso de sua culpa irremediável, com grandes manchas lívidas ao redor dos olhos, inconsolável na sua dor.

Às vezes supunha estar sonhando, como que procurava iludir-se a si própria, enxugava os olhos na ponta do lençol, via-se ao espelho e experimentava um bem-estar passageiro, um conforto muito íntimo; mas punha-se logo a pensar, a fazer consigo mesma mil conjecturas, e desandava outra vez num choro silencioso, que lhe sacudia o corpo todo em estremecimentos nervosos. Não sabia bem por que chorava; uma coisa, porém, dizia-lhe que nunca mais seria feliz em sua vida, desde o momento que, por uma condescendência imperdoável, entregara seu corpo àquele homem...

À proporção que os dias passavam, sucedendo-se numa monotonia aborrecida, uniformes como os elos de uma grande cadeia de ferro, crescia o desânimo em Maria do Carmo, cujas feições transformavamse a olhos vistos. Tomava-lhe o rosto uma palidez de reclusa macerada pelos jejuns, cavavam-se-lhe os olhos, onde se refletia visivelmente o estado de sua alma, e os cabelos iam perdendo aquele brilho resplandecente que era o desespero do Zuza. Em uma semana sua fisionomia adquirira uma expressão iniludível de dor concentrada.

No sábado recebeu um bilhete da Lídia convidando-a para jantar com ela no dia seguinte. «Espero-te sem falta. Todas as minhas amigas têm vindo me visitar, menos tu. Creio que não te dei motivo para procederes desse modo. Por andar incomodada é que ainda não fui te ver.»

Quedou-se numa imobilidade profundamente triste, com a face na mão, a olhar para a letra da amiga, escrita em papel-amizade, e ficou assim muito tempo, como num êxtase. Veio-lhe à mente o Zuza. Já não se lembrava dele, toda entregue à sua dor. Há uma semana que o não via, nem sequer tinha notícia dele, e agora o estudante aparecia-lhe vagamente na imaginação como a lembrança remota de uma coisa que se viu em sonho. As lágrimas começaram a cair-lhe dos olhos duas a duas, silenciosamente, sobre o bilhete da Lídia.

Uma... duas...

Duas horas da tarde. O amanuense ainda não tinha voltado da repartição. D. Terezinha costurava na sala de jantar, cantarolando uma modinha cearense, em desafio com o sabiá, que desferia o seu eterno e monótono dobrado, esquecido ao sol. Havia no tépido interior daquela casa a calma preguiçosa dessa hora do dia, em que se ouve o voar do moscardo impertinente e cantos de galo ao longe, nos quintais. Mariana suspirava na cozinha às voltas com as panelas, cachimbando. Sultão, esse dormia tranqüilamente o seu sono do meio-dia, aos pés de D. Terezinha, orelhas murchas, deitado de banda.

Todos os dias, invariavelmente, era a mesma quietação, a mesma sonolência, o mesmo ramerrão, até que viesse o amanuense com as suas hemorróidas ou com a sua cachaça dar à casa o ar de sua graça. Freqüentemente João chegava às quatro horas, demorando-se às vezes até às cinco, o que não era muito raro.

Nesse dia, porém, antes que o velho pêndulo da sala de jantar marcasse quatro horas, entrou de chapéu na cabeça, como de costume, para não constipar, e foi direito ao quarto da afilhada.

«-Como tinha passado o dia? Muito fastio ainda?» -E puxando uma cadeira sentou-se ao lado de Maria, que se conservava deitada.

Ao pé da rede, sobre a esteira gasta, eternizava-se uma tigela com resto de caldo, onde flutuavam moscas. João fez um gesto de aborrecimento, e apanhando a tigela:

-Mariana!

Demônio de gente! Naquela casa ele é que fazia tudo, e, se havia uma pessoa doente, era o mesmo que nada.

-Mariana!

-Inhô!

-Não está ouvindo chamar, seu diabo!

D. Terezinha continuava a cantarolar, sem se dar por achada, por pirraça.

Mariana apareceu à porta do quarto, sem casaco, os seios moles dentro do cabeção da camisa tisnada, pés descalços, cabelos assanhados.

João mediu-a com o olhar, de alto a baixo, e entregando-lhe a louça:

-Por que ainda não tirou isto?

-Estava cuidando do jantar... -Cuidando do jantar, hein? Cuidando do jantar?... Burra!...

A criada, porém, deu-lhe as costas e saiu rindo, com o seu ar idiota.

Uma pessoa somente interessava-se pela saúde de Maria do Carmo -era ele, João da Mata, cujos cuidados para com ela redobravam dia a dia. D. Terezinha, essa nem sequer chegava à porta do quarto, resmungando sempre, rogando pragas, dizendo indiretas, que Maria do Carmo ouvia com lágrimas nos olhos.

Nunca João fora tão bom para a afilhada como agora. Trazia-lhe mimos da rua, bons-bocados, confeitos, rendas, com uma solicitude paternal, animando-a, prometendo-lhe muitas felicidades, contandolhe tudo quanto ouvia dizer na rua, dando-lhe notícias dos conhecidos.

-Teve febre hoje? continuou ele tornando a sentar-se.

-Não sei...

-Deixe ver o pulso... Não, nem um bocadinho... Bom, não se amofine, hein, não se amofine. Amanhã, se Deus quiser, pode levantarse. E baixo:

-Tolice!... Morrendo sem quê nem pra quê! Se continuas, é pior... podem até saber... Isto a gente faz cara alegre e vai para diante como as outras, minha tola... Olha a tua amiga, a Lídia... Casou e casou bem... E assim a maior parte... Deixa de tolices.

Logo no dia seguinte à noite do seu defloramento Maria do Carmo queixou-se de fortes dores na cabeça e nos quadris, indisposição geral, e uma ausência quase absoluta de apetite. Não podia ver comida de espécie alguma nem sentir ao menos o cheiro de guisados. Tudo a enjoava provocando-lhe náuseas. Cada vez que se lembrava de João vinham-lhe arrepios na pele e «agasturas na boca do estômago.»

Pungia-lhe uma espécie de remorso, que a fazia passar horas inteiras num abatimento medonho, encafuada no quarto, sem coragem para continuar a vida como dantes. Lamentava-se como uma desgraçada:

-Que vida! que vida!

Não quis almoçar e passou o dia com uma xícara de café, que a Mariana lhe levara.

D. Terezinha não se abalava: era como se Maria do Carmo não existisse. Que fosse para lá com os seus faniquitos, não tinha obrigação de criar filhos de ninguém. Antes de ir para a repartição João lhe recomendara: -Olhe: Maria amanheceu doente. Está com uma pontinha de febre, não a deixe morrer à fome, hein...

Foi como se não recomendasse, porque D. Terezinha nem sequer pôs os pés no quarto da rapariga. Limitou-se a dizer à criada: -Ouviste? Não deixes morrer de fome a mimosa...

Ah! esse desprezo, essa indiferença da madrinha doía nalma de Maria como um insulto. Lembrava-se às vezes de a mandar chamar e pedir-lhe por amor de Deus que não a tratasse assim, que não a desprezasse... Mas ao mesmo tempo achava que isso era confessar a sua culpa, porque na verdade nunca houvera entre elas causa para o mais leve rompimento, a não ser as impertinências de João da Mata. Que culpa tinha ela que o padrinho dissesse desaforos à mulher?

E assim ia passando agora, abandonada, sem uma pessoa que se interessasse verdadeiramente por sua sorte, a não ser João da Mata.

-Trataram-te bem? perguntava o amanuense ao voltar do trabalho.

-Trataram... murmurava ela.

Mas a verdade é que Maria passava uma vida miserável. De manhã, enquanto João ainda estava em casa, ele mesmo ia levar-lhe café com torradinhas de pão, mas depois, ela ficava entregue à preguiça da criada e à indiferença da madrinha, em termos de morrer de fraqueza. Davam-lhe um caldo ao meio-dia, único alimento com que ela esperava o jantar às quatro horas, quando o padrinho viesse. Por fim quase que não podia suportar aquilo, e nove dias depois, num domingo, levantou-se resolvida a ir jantar com a Lídia, ao menos por desfastio, que aquela casa era um horror! Mostrou a João a carta da amiga, acrescentando que até era bom para ela passar o resto do dia fora, no Benfica, ouvir tocar piano, distrair, enfim, porque andava muito triste.

O amanuense aprovou prontamente: que sim! mas era preciso saber se já estava completamente boa, se não sentia mais nada.

-Mais nada, passei bem a noite.

João tomou-lhe o pulso com carinho.

-Pois bem, vista-se e vamos. Amanhã pode ir até à escola, não é assim?

E, noutro tom:

-Não vale a pena a gente se amofinar por qualquer coisa, filha. A vida é isto mesmo -andar para adiante sempre com cara alegre. Vamos, vá se vestir.

Ainda não tinha dado meio-dia no pêndulo. Maria foi ao quarto, abriu baús, mais consolada, escolheu o melhor dos seus vestidos de cretone, um azul de riscados brancos, em pouco saiu ao lado do padrinho, traçando o fichu, sem dar palavra a D. Terezinha.

Ninguém na rua do Trilho, deserta àquela hora como uma rua de aldeia.

Seguiram para a Praça do Ferreira a tomar o bonde de Pelotas. Pouca gente na praça ensombrada por suas enormes mungubeiras. Dois sujeitos, sentados um defronte do outro, jogavam silenciosamente o dominó no Café Java. Às portas da Maison Moderne famílias esperavam os bondes em pé, silenciosas, com ar de infinito aborrecimento. Dentro jogava-se bilhar. Muitas pessoas rodeavam uma das mesas para ver jogar o presidente, que, em colete, escanchado num ângulo da mesa, calculava o efeito das bolas. Maria teve um estremecimento ao vê-lo. Certo o Zuza também andava por ali... Instintivamente procurou-o com o olhar, mas ninguém que se parecesse com o estudante. O José Pereira tomava cerveja a um canto mais o Castrinho.

Os bondes iam chegando uns atrás dos outros, enfileirados.

Antes de subir para o de Pelotas, Maria lançou um último olhar à sala dos bilhares. O José Pereira sem o Zuza! Era realmente assombroso!

Mas daí a pouco o bonde rodava outra vez caminho do Benfica, e invadiu-lhe o coração uma melancolia sem causa, uma tristeza vaga que lhe deu vontade de estar só, de voltar à casa.

Lídia veio receber a amiga de braços abertos, muito alegre, de branco, com papelotes no cabelo e sandálias de cetim. -Ora, até que enfim! Já não a esperava mais, Sra. D. Maria. Noiva de fidalgo... pudera!

-Não diga isso, minha negra, não vim há mais tempo porque tenho andado adoentada. Tu não imaginas...

Cobriram-se de beijos.

Lídia mandou-os entrar para a sala de visitas.

-Como vai D. Terezinha, Sr. João? perguntou maliciosamente escancarando as janelas.

-Bem, respondeu o amanuense num tom seco, pondo o chapéu sobre uma cadeira. E logo: - Homem, isto está que nem um paraíso!

-Qual paraíso! Está nos debicando?...

-Não senhora, longe de mim tal pensamento. O que digo é a verdade: O Loureiro preparou isto à fidalga!

E ia examinando, através dos detestáveis óculos escuros, os quadros, o papel da sala, o piano, os bibelôs, com uma curiosidade infantil, estendendo o olhar de vez em quando até o interior da casa disfarçadamente.

Maria tinha-se sentado no sofá e por sua vez confirmava a admiração do amanuense. -Sim senhora, tudo muito bem arranjadinho, muito chique...

-Vejam só, vejam só a graça! repetia a outra, sentando-se ao lado da amiga.

«E o Sr. Loureiro, como ia?» inquiriu Maria.

-Bem, menina, muito atarefado com o emprego. É uma vidinha cansada, esta de guarda-livros. O Loureiro, coitado, não tem sossego de espírito. Vive na loja e ainda por cima trabalha em casa. Um horror! Tu é que estás magrinha; estou te achando tão abatida, tão pálida...

-Saudades tuas...

-Saudades, eu sei de quem...

Riram.

-Agora é que reparo, continuou Lídia muito amável, tira o fichu e vamos ver a casa.

E levantando-se:

-Preciso conversar muito contigo. Já não te lembravas de mim, hein?... Sr. João tenha a bondade de esperar um pouquinho -o Loureiro não tarda: está às voltas com a papelada.

-Oh! minha senhora...

João da Mata deliciava-se a observar os quadros e as estatuetas de terracota, de mãos para trás, como se estivesse numa exposição. Depois chegou à janela por onde entrava um arzinho puro impregnado de essência de resedás. Defronte enchia a vista o verde sombrio duma esplêndida floresta de cajueiros onde oscilavam pequenos pontos amarelos e vermelhos quebrando a monotonia da paisagem larga e igual, batida de sol. O palacete azul do Loureiro perdiase num fundo de verdura. À direita, lá longe, na esquina de um grande sítio, passava a linha de bonde. E que frescura! Dava vontade à gente pecar muitas vezes por dia, como Adão no Paraíso, ali, assim, naquele pedacinho do Ceará, sem seca e sem política, entretendo relações sentimentais com a natureza agreste e sincera.

-Bom para se copiar um balanço, isto aqui, costumava dizer o ingênuo guarda-livros.

João pôs-se a contemplar, com um enlevo nalma, toda essa poesia selvagem iluminada por um sol implacável.

De súbito:

-Olá, seu Mata, como vai você? Que milagre foi este?

Era o guarda-livros, em chinelos, calça branca e paletó de seda amarelo.

João voltou-se.

-Oh!... Estava admirando a grandeza do Criador... Você assim mesmo tem gosto, seu Loureiro, você é um danado, homem! Sim senhor, isto aqui é um maná! Faz vir água à boca...

-Escolhi este local por ser muito isolado da civilização. Detesto o ruído da cidade...

-Tens também a tua veia poética, hein?

-Qual veia poética! Isso de versos não é comigo. Tenho até horror à poesia. O que eu quero é o sossego, o bem-estar, o conforto...

-Fazes muito bem, filho, não há nada como se viver no seu cantinho, com a sua mulher e os seus filhos, comendo com o suor de seu rosto. Eu, se pudesse, fazia o mesmo -desertaria da capital, do centro da civilização, para viver comodamente, bem longe de toda essa porcaria que se chama sociedade. Fazes muito bem. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele.

-E você, como vai?

-Homem, assim mesmo: nem para diante nem para trás, remando contra a maré... Têm me aparecido umas dorzinhas do lado esquerdo...

-Por que não usa você o vinho de caju?

O guarda-livros fez a apologia do vinho de caju, citando casos de curas assombrosas produzidas pelo uso quotidiano desse depurativo. Ele mesmo, Loureiro, tinha-se curado radicalmente de um dartro na perna esquerda. Na sua opinião o vinho de caju era muitíssimo superior à salsa, ao iodureto e a quanta panacéia receita-se por aí sem resultado.

O amanuense, porém, afirmou que o seu mal era no pulmão, que já tinha consultado ao Dr. Melo.

-Não te fies em médicos do Ceará, que dão cabo de ti. Olhe o Calado, conferente da Alfândega: diagnosticaram-lhe lesão cardíaca, e o pobre homem, coitado, estirou a canela no Rio de Janeiro, com uma enfermidade nos rins. Uns ignorantes, seu João, uns magarefes da humanidade é o que eles são. Meta-se no vinho de caju, que é o grande remédio para as moléstias do sangue.

Enquanto os dois, sentados no sofá, de pernas trançadas, iam discutindo banalidades, Lídia e Maria do Carmo comunicavam-se como boas amigas, numa intimidade franca e expansiva, abrindo-se mutuamente em confidências de colegiais felizes. Primeiro tinham percorrido toda a casa. Lídia mostrara à outra todos os seus confortos e todas as suas jóias desde a cama de casados, ampla e fresca, até o presente de noivado, um magnífico jogo de pulseiras cravejadas de pérolas, em forma de serpente, o guarda-vestidos, os vidros de essências, os chapéus, as toalhas de labirinto, feitas no Aracati e tudo mais que o Loureiro comprara com aquela bondade ingênua que o caracterizava.

Maria via tudo aquilo embasbacada, com surpresas no olhar, falando por monossílabos, examinando com inveja cada objeto que seus olhos deparavam, achando tudo muito bom, muito fino, de muito bom gosto. E a outra: olha isto, vê lá, aqui está o meu relógio de algibeira, comprado no Jaques, tu ainda não viste a minha cinta de tartaruga; é verdade, e o meu tinteiro de prata, presente do Carvalho, e o meu leque de plumas...

Foram sair na sala de jantar, e aí, uma defronte à outra, em cadeiras de balanço, Lídia entrou indiscretamente a falar no Zuza.

-Ainda o amas muito? Então fica para a volta?...

Maria não compreendeu a pergunta.

-Como fica para a volta?

-Sim, de certo, creio que vocês não se casaram...

-Não te compreendo...

-Olha a engraçada!... Quer um peitinho?!

-Por Deus como te não entendo...

-Pergunto se o casamento é quando o Zuza voltar, não te faças de tola...

-Quando o Zuza voltar?

-E então?...

-Mas voltar de onde?...

-Estás hoje muito misteriosa, minha espertalhona.

Maria teve um pressentimento: -«E o Zuza tinha ido embora?»

-Pois não embarcou anteontem?

Olhavam-se as duas sem se compreenderem, como se estivessem jogando o disparate.

-Para onde?

-Para o Recife, ora adeus! para onde havia de ser?... A estas horas anda ele bem longe do Mucuripe.

Maria do Carmo empalideceu, como se acabasse de saber uma notícia funesta.

-Estás gracejando, murmurou com voz trêmula.

-Não sabias?

-Não, não sabia...

-Pois a Província deu a notícia.

-Infame!

E Maria não pôde resistir à comoção que lhe sufocava, os olhos umedeceram-se-lhe de lágrimas, e desatou a chorar com o rosto mergulhado no lencinho de rendas.

-Que é isso, criatura? Tolice!

Lídia não contava com esse pieguismo da amiga. Ora adeus, o rapaz havia de voltar, que asneira!

Era preciso paciência para tudo, e então? Ela mesma, Lídia, não esperara pelo Loureiro quase um ano? Tolice...

-Deixa-te disso, filha, vamos tocar piano. Estás nervosa.

Inclinada sobre a pobre rapariga, que soluçava como se lhe tivesse morrido alguém, Lídia procurava carinhosamente arrancarlhe o lenço dos olhos alisando-lhe os cabelos, comovida.

-Então?... Levanta, vamos para a sala, que está mais fresco. Não sê criança, vamos...

-Sou uma desgraçada, disse Maria enxugando os olhos com força.

-Que desgraçada o quê, estás feito criança...

Isso acontece a todo o mundo, criatura. Vamos, vamos para a sala. Já viste o meu álbum?

Maria levantou-se devagar, preguiçosamente, com as faces escarlates, as pestanas úmidas, assoando-se; e arrependida:

-Não, fiquemos aqui mesmo; depois se toca. Não foi nada -um nervoso...

-Bem, mas não te ponhas a choramingar por aí, como uma tola. Tu sabes, a família do Zuza não quer o casamento, quem sabe se o rapaz foi obrigado a embarcar à última hora? Espera cartas, se ele não te escrever, então sim, podes ficar certa de que não te ama.

Tornaram a sentar-se.

A criada, alta como um pau-de-sebo, veio saber da Sra. D. Lídia «se a sopa era de macarrão ou de arroz».

-De macarrão mesmo, Tomázia, faça de macarrão, mas faça uma sopa gostosa, ouviu?

E para a amiga.

-Não imaginas quanto aborreço a cozinha. Há dias em que não ponho lá os pés. Felizmente o Loureiro arranjou uma boa criada, que até já foi cozinheira do Dr. Paula Souza, da Estrada de Ferro. É assim como viste, seca e ríspida, mas uma excelente criada. Faz tudo a meu gosto.

-Mas, então o Zuza embarcou, hein? tornou Maria voltando à conversa.

-Não falemos mais nisto. Estás hoje muito sentimental e eu não quero que passes mal o resto do dia em minha casa, sabes? Não falemos mais nisto.

-Mas diz-me... aquilo foi uma tolice... diz-me, não o viste mais?

-Não. O José Pereira é que está muito nosso amigo, sabes? Tem vindo aqui duas vezes nesta semana. E que amabilidades, menina, que delicadeza! Ofereceu-se para apresentar o Loureiro ao presidente da Província, mandou-nos outro dia um camarote para o teatro...

-E tu, como passas a nova vida?

-Perfeitamente. Desejava antes morar na cidade, mas o Loureiro é muito impertinente, diz que prefere isto -paciência. Agora quando vierem os filhos, isso então... Por enquanto estou muito satisfeita. Um bocado triste isto aqui no Benfica, mas... vai-se passando. É verdade, precisas vir passar uns dias comigo, estás muito magra; o ar aqui é melhor que na cidade. Tens ido à Escola?

-À Escola? qual! Passei oito dias em casa, como uma freira, sem ir a parte alguma. Creio que não irei mais àquilo.

-Eu no teu caso faria o mesmo. Agora então, que estou casada, olha...

Fez um gesto com as mãos.

-... bananas, não estou para suportar desaforos daquela canalha. Porque tudo aquilo é uma canalha, menina. Fazes muito bem não pondo os pés naquela feira de reputações. As raparigas ali aprendem a ser falsas e imorais. Conheço muito o tal Sr. Berredo, o tal Sr. Padre Lima e mais os outros todos. O próprio diretor... eu cá sei...

Maria estava mais consolada ante a solicitude da amiga. Achavaa mais amável e mais expansiva.

Foram para a sala de visitas de braço trançado, nas cinturas, e Lídia cantou ao piano Non m'amava, a velha romanza sentimental, que encheu de lágrimas os olhos de Maria.

E os dias passavam uns após outros, longos, intermináveis, como uma repetição monótona que faz mal aos nervos.

Vieram as festas, o Natal e o Ano-Bom.

Maria do Carmo cada vez mais magra, sentindo-se definhar dia a dia, descrente de tudo, tinha agora uma certeza cruel que a torturava barbaramente, a certeza de que estava para ser mãe, de que muito breve o seu nome estaria completamente desmoralizado. Sentia bulir dentro de si uma coisa estranha, que lhe incomodava como uma perseguição, e mais de uma vez nos seus momentos de grande desânimo, atravessara-lhe a mente a idéia sinistra do suicídio. Sim, preferia matar-se a assistir às exéquias de sua honra na praça pública, em todas as ruas da cidade, em todas as bocas. Estava irremediavelmente perdida, não tinha pai nem mãe, nem alguém que lhe fosse sincero no mundo, pois bem, acabar-se-ia de uma vez, sem ter que dar satisfação a ninguém por isso. Era um pecado, mas não era uma vergonha, porque não teria que corar nunca diante da sociedade, como uma criminosa, como uma culpada. Não, mil vezes não! Outra, que não ela, preferisse arrastar uma existência vergonhosa, a morrer fosse como fosse.

Uma ocasião esteve prestes a ingerir uma dose de láudano, mas faltou-lhe coragem. Começou a imaginar mil coisas. Via-se morta, dentro de um caixão azul, de mãos cruzadas sobre o peito, numa sala onde havia gente chorando e um crucifixo à cabeceira entre velas de cera que ardiam lugubremente. Que horror! Recuou espantada fazendo em pedaços o vidro de veneno.

Às vezes vinham-lhe resignações, um desejo místico de ser irmã de caridade, depois que desse à luz a criança, arredar-se para sempre do mundo e ir viver na Santa Casa de Misericórdia, curando os enfermos, metida nas suas vestes azuis, debaixo de um grande chapéu de asas, dedicar-se toda a Deus, como uma santa.

Dera para devota; não faltava à missa aos domingos, na Sé, vestida com muita simplicidade e rezava sempre com uma contrição admirável, ao deitar-se e ao acordar, defronte da oleografia do Coração de Jesus.

Foi em casa da Lídia que ela teve a certeza de achar-se grávida. Até então ignorava certos segredos da maternidade, certos fenômenos da fisiologia amorosa, que nunca lhe tinham dito, nem mesmo as companheiras de Escola, «aliás versadas em assuntos dessa natureza».

Tinha ido passar uma semana com a amiga, nas festas, e um dia a Lídia disse-lhe que «estava pronta» e que ela, Maria, havia de ser a madrinha do primeiro filho.

Então, aproveitando a oportunidade, Maria do Carmo quis saber como as mulheres tinham a certeza de estar grávidas.

Lídia explicou tudo minuciosamente: a suspensão das regras, os antojos, as dores na madre e, finalmente, os primeiros movimentos do feto no útero. Depois leram junto a Fisiologia do matrimônio de Debay, que o Loureiro tivera o cuidado de comprar, especialmente o capítulo -Da Calipedia ou Arte de Procriar Filhos, o mais importante, na opinião da esposa do guarda-livros.

-Todo o meu desejo, dizia a Lídia com o livro sobre a perna, todo meu desejo é que o pequeno menino ou menina se pareça com o presidente da Província. Ainda no último baile em palácio não tirei os olhos dele.

E Maria nesse dia, ao jantar, teve um grande enjôo da comida, cruzando o talher logo no primeiro prato, inapetente. Não havia dúvida, «estava pronta» também, como a Lídia, e esta idéia tornouse uma idéia fixa, de todos os dias, de todas as horas, de todos os minutos. Ela com um filho, Jesus! Decididamente estava perdida para sempre no conceito honesto da gente séria. Não passaria mais de uma simples rapariga que «já teve filho»! As revelações da Lídia tinham-lhe aberto os olhos; sentia agora perfeitamente bulir a criança, e até, na sua alucinação, parecia-lhe ouvir os vagidos do bebê. Se fosse possível evitar o seu desenvolvimento, matá-lo mesmo no ventre... Mas, não: seria uma barbaridade, uma malvadez. Afinal de contas era seu filho, filho de suas entranhas, embora fruto de um crime...

E Maria agoniava-se, fazendo essas considerações e mil outras conjecturas absurdas, sem coragem para esperar o desenlace daquele drama secreto de que ela era a protagonista. Vivia assom- brada e não raro caía num desfalecimento que lhe tirava a ação do corpo e do espírito.

Por uma espécie de instinto, previa todas as conseqüências do seu estado e pressentia o desprezo acerbo que havia de lhe cair sobre a cabeça implacavelmente, como uma grande mão de ferro, esse desprezo convencional e hipócrita de uma sociedade ávida de escândalos, cevando-se da desgraça alheia, banqueteando-se em torno da vítima, como para torturá-la ainda mais.

E enquanto a Lídia ganhava, com sorrisos de triunfo as simpatias dessa mesma sociedade que a poucos meses a maldizia, ela, Maria do Carmo, sobre cuja reputação nunca pairara a sombra de uma nódoa, via-se pouco a pouco ludibriada, tratada como uma mulher à-toa, num abandono completo, sem amigas, sem honra, pobre, sem pai nem mãe, mísera cadela que a gente enxota a pontapés de dentro de casa por safada e indecente.

O Zuza abalara de feito numa sexta-feira, dias depois do casamento da Lídia. Por toda parte se comentava, com risinhos sublinhados, o escandaloso namoro com a normalista, e o pai, o coronel Souza Nunes, escrupuloso em tudo que lhe dizia respeito, exigiu do filho que embarcasse no primeiro vapor, sob penas severas.

-Mas, meu pai...

-Tenha santa paciência, vossemecê embarca ou diz por que não embarca. Fala-se em toda a cidade nos seus namoros com a rapariga e eu não quero, não consinto em semelhante escândalo. Sei muito bem o que isso é. Não pode ser boa mãe de família uma rapariga educada em companhia de um safardana reconhecido, como o tal Sr. João da Mata. Prepare as malas e deixe-se de histórias, que é perder tempo. Nestas condições o estudante não teve jeito senão resignar-se ante a vontade imperiosa do pai e anunciar ao José Pereira o seu embarque daí a dois dias.

-De acordo, aprovou o redator da Província. Deves tratar quanto antes da tua formatura e então podes voltar ao Ceará e fazer um figurão na nossa magistratura, que já conta em seu seio bons talentos, rapazes da tua estatura, inteligentes e resolutos.

Sentia muito que o Zuza não se demorasse mais algum tempo, mas, enfim, como esperava em breve tornar a vê-lo formadinho, com o seu título de bacharel, «dando sorte» na capital cearense, que diabo! era preciso abafar a saudade e consolar-se.

O Zuza, porém, estava contrariado. Agora que as coisas corriamlhe tão bem, que a rapariga entregava-se-lhe de corpo e alma, é que o obrigavam a embarcar da noite para o dia, sem ao menos ter tempo de despedir-se dela, de dar-lhe uma beijoca, um abraço sequer, às escondidas. É verdade que o seu amor não era lá para que se dissesse um amor extraordinário, uma dessas paixões incendiárias que decidem do futuro de um cristão, mas, tinha a sua simpatia por aqueles olhinhos ternos como os de uma santa, lá isso tinha... Tão boas as palestras ao meio-dia, na Escola Normal, enquanto as outras normalistas divertiam-se lá para dentro, à espera dos professores! Uma gentinha levada da breca, essas normalistas! Com que facilidade a Maria do Carmo, aliás, uma das mais comportadas, entregava-lhe a face para beijar e escrevia-lhe cartinhas perfumadas, cheias de juras e protestos de amor! Se fosse outro, até já podia ter feito uma asneira... Arrependia-se agora de não ter aproveitado os melhores momentos... Grandíssimo calouro! podia ter desfrutado a valer.

E concluiu, preparando-se para sair:

-Ora sabem que mais? Há males que vêm para bem. A cidade está cheia do meu nome e do nome da rapariga, o verdadeiro é ir-me embora mesmo, sem dar satisfação a ninguém. Meu pai é um homem de juízo. Eu podia muito bem engraçar-me deveras com a menina para casar e depois... sabe Deus as conseqüências. Já se foi o tempo de um homem sacrificar posição e futuro por uma mulher pobre. Concluo o meu curso e sigo para a Europa, é o verdadeiro, ora adeus!

Enfiou a manga do redingote, atabalhoado, e saiu a despedir-se dos amigos.

Toda a cidade soube logo da viagem intempestiva do estudante. A notícia propalou-se com a rapidez de fogo em palha, por todos os botequins, por todos os cafés e restaurantes, avolumando-se, como se se tratasse de um grande acontecimento.

Quem, o Zuza, o filho do coronel Souza Nunes? Então não se casava com a normalista?

-Por esta já esperava eu, diziam uns convictamente.

-E eu, repetiam outros.

-Pela cara se conhece quem tem lombrigas, seu Sussuarana, afirmava um sujeito reles na botica do Travassos. Aquele tipo sempre me pareceu uma bisca. Agora a pobre rapariga é quem fica por aí com cara de besta, sem achar quem lhe roa os ossos.

-Pode dizer, seu compadre. Esses fidalgos o que querem é isso mesmo -desfrutar e pôr-se ao fresco. Todo o nosso mal é recebermos em nossas casas qualquer sunga-neném que chegue a esta terra. Nós, os pais de família, é que somos os culpados.

-E o compadre João da Mata o que pretende fazer?

-Eu sei lá, homem de Deus, aquele é outro...

A viagem imprevista do Zuza assumia proporções de escândalo. Nas fileiras políticas especialmente, entre os partidos contrários à administração presidencial, alardeava-se o fato: que o rapaz era um produto da política do governo, que todos os amigos do presidente mediam-se pela mesma bitola, que era tudo uma súcia de bandidos de casaca, usurpadores da honra cearense, o diabo!

Os jornais da oposição rosnaram contra a moralidade dos governistas, responsabilizando o presidente pelo «desmembramento de caracteres» que ia pela sociedade cearense, alcunhando-o de negro Romão. Tal dizia que «S. Exa. era homem de costumes dissolutos, acostumado a beber cerveja nos cafés cantantes de Paris, e a passear de braço com as cocottes no Bois de Boulogne.» Tal outro afirmava que «S. Exa. sabia manobrar perfeitamente um phaeteon, montava muito bem a cavalo, mas não tinha capacidade para dirigir os destinos de um país.»

Insinuava aquele que «a viagem inesperada de certo bacharel por formar-se era um atentado contra os nossos brios e contra a moral pública»; aquele outro confirmava que «a polícia devia dar caça a um tal Sr. bacharel de nome açucarado contra quem pesavam as mais sérias acusações no tocante ao seu procedimento para com a família cearense.»

E toda a gente sabia que se tratava do Zuza e da Maria do Carmo.

O estudante, azucrinado por todos os lados, numa roda viva de indiretas, perdia a cabeça, indagava na agência se o vapor já tinha chegado, esbaforido, às carreiras, doido já por se ver barra afora, debruçado, tranqüilamente na amurada, a ver sumirem-se no horizonte, como visões de uma noite mal dormida, as areias do Mucuripe.

Uf!... Estava cansado de suportar tanta sujidade! Decididamente não voltaria mais ao Ceará por preço algum. Diabo de província onde ninguém está livre da calúnia e da descompostura pela imprensa desde que não se submete às imposições duma política de interesses pessoais.

Revoltava-se de novo contra o Ceará, contra os costumes cearenses, contra a política, «essa política sem ideal e sem patriotismo, que só servia para nos rebaixar, obrigando o indivíduo a vender-se por amor de sua mulher e de seus filhos.» Que diabo tinha ele com a política para que se viesse meter com a sua vida? Só porque era amigo do presidente da Província e filho de político? Sebo! Então não se podia ter amigos no Ceará, decididamente. E por que tanto barulho em torno do seu nome, por que, não lhe diriam? Por causa de um simples namoro com uma pobre normalista sem eira nem beira? Era o cúmulo!

Com que deliciosa alegria ele ergueu-se da rede no dia do embarque, de manhã muito cedo, as malas no meio do quarto prontas, a passagem comprada no bolso, sem dívidas, sem compromissos, completamente pronto a deixar o Ceará! Quando vieram lhe chamar para o banho, às seis horas, já há muito estava de pé, em chambre, muito bem-disposto, fumando o seu cigarro, passando uma vista de olhos na maleta do camarote onde refulgia, numa frescura capitosa, a roupa branca -ceroulas, camisas, meias e toalhas de rosto- tudo arrumado cautelosamente, com um cuidado feminino, umas cheirando ainda a sabão, passadinhas a ferro outras.

Ah! ia deixando fora a Casa de Pensão. Tomou do livro que se achava sobre a mesa e colocou-o na maleta, ao lado, para ler em viagem.

Agora sim, não faltava mais nada. Só pedia a Deus que não chovesse, porque um embarque debaixo de aguaceiro era um desastre horroroso.

De feito ameaçava chover. Era em janeiro. Há dias caía sobre a cidade uma chuvinha sintomática de inverno, persistente e miúda, acompanhada de trovões longínquos, lavando a atmosfera, encharcando as ruas, alentando a população, enverdecendo as árvores. Os longos meses de seca iam ser compensados por uma abundância de chuvas consoladoras e refrigerantes. As manhãs iam se tornando frescas e já se viam passar, em tabuleiro, feixes de feijão verde e hortaliças para a feira.

Zuza tinha aberto a vidraça para consultar o tempo. Os telhados, defronte, estavam úmidos e o céu de uma cor esmaecida de safira, arqueava-se, sem uma nuvem na penumbra da antemanhã. Passava um fiscal da Câmara com o seu boné, jaqueta com botões dourados, chapéu de chuva debaixo do braço, assoando-se com estrondo.

-Tudo fechado ainda, com efeito! pensou o Zuza. Entretanto já tinham dado seis horas.

Entrou e pôs-se a reler as cartas de Maria do Carmo, trincando a ponta do bigode.

«Meu querido Zuza...»

Nesta a normalista jurava como não tinha ido ao Clube Iracema; que era uma calúnia o que tinham dito ao estudante...

«Tua querida Maria.»

Zuza meneou a cabeça com um ar de riso e abriu outra.

«Zuza do meu coração...»

Nesta outra Maria lamentava que o rapaz não tivesse aparecido na Escola Normal na véspera.

«Tu já não me amas, Zuza; não queiras matar-me de saudades. Todo os dias peço a Deus por ti e tu nem sequer te lembras da tua futura esposa!»

E assim, uma a uma, o futuro bacharel releu toda a série de cartas da normalista, enfeixando-as depois, dobradinhas, com um cadarço.

Que horror, meu Deus, quanta banalidade! E ela a tomar a coisa a sério! A gente sempre faz asneiras de criança nessa idade!...

E guardando o maço de cartas no fundo da maleta: «-Magnífico rol de asneiras para fazer rir a rapaziada de Pernambuco.»

As horas passavam vertiginosas. A larga claridade do sol penetrava no quarto pela janela aberta, como uma visita sem-cerimônia, anunciando um dia seco e esplêndido.

Já lá fora, na rua, recomeçava a labuta quotidiana. Um barbeiro, que morava defronte, amolava as navalhas assobiando um trecho de Fandango, com as pernas cruzadas, de frente para a rua. Passavam burricos com cargas de água, procurando as coxias. Meninos apregoavam o Cearense.

José Pereira ficara de vir almoçar com o Zuza, mais cedo que de costume, para seguirem juntos ao ponto de embarque.

D. Sofia andava numa faina, da sala para a cozinha, com os olhos empanados de lágrimas, esquecendo as suas dores de útero para pensar no Zuza, no seu filho que se ia embora.

O coronel, esse não se alterava, calmo, consultando o relógio de vez em quando, bem-humorado nesse dia, passeando o seu grande ar de homem independente.

Cerca de 10 horas entrou o redator da Província anunciando a chegada do vapor.

-A que horas sai? perguntou o estudante.

-Está marcado para as duas. Em todo caso é prudente ir mais cedo...

-Sem dúvida. Ao meio-dia, o mais tardar, devo estar a bordo. Qual é o vapor?

-O Espírito Santo.

-Diabo, uma carroça!

José Pereira entrara para o quarto do Zuza, e, sentado na larga rede de varandas encarnadas, perna traçada com desembaraço, passeava o olhar morosamente naquele tabernáculo de rapaz solteiro, agora em desordem, como um ninho abandonado, enquanto o estudante acabava de fazer a toalete no aposento contíguo.

Na frente das duas malas, uma grande e outra menor, lia-se em letreiros impressos e nítidos -José de Souza Nunes- Recife. Perto estava um caixote com livros e o mesmo dístico no alto.

-Dez e meia! Fez o redator levando o relógio ao ouvido.

Imediatamente surgiu o Zuza lépido, esfregando as mãos, como se saísse de um banho de perfumes.

-Prontinho, disse ele.

E misteriosamente:

-Então, com que a canalha tem-se divertido à minha custa, hein?

-Como assim?

-Oh! homem, inventaram por aí que eu deflorei a Maria do Carmo. Não leste o Pedro II e o Cearense?

-E tens culpa no cartório?

-Não, com os diabos, mas isso é um horror! Ninguém pode mais gracejar, ninguém tem mais o direito de chegar-se a uma rapariga honesta sem intenções malévolas. Cada vez me convenço mais de que isso é uma terra de selvagens, seu José Pereira! Isto é um país de bárbaros. Vocês da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar esta gente a pensar e a ter juízo, do contrário...

-Mas, fala a verdade, interrompeu o outro com um ar de riso malicioso; tu nunca...

-Palavra como não! É verdade que lhe dei alguns beijos, mas o nosso namoro nunca foi além disso, mesmo porque, tu compreendes a minha responsabilidade... Depois, só fui à casa do padrinho umas três vezes, no máximo. Calúnia, simples calúnia...

-É. Este povo é muito indiscreto...

-Indiscreto não -alcoviteiro, mentiroso, ignorante e besta, é o que ele é.

E depois de uma pausa:

-Bem, vamos almoçar que deve ser hora.

Uma vez instalado a bordo, no seu camarote do lado do mar, o futuro bacharel, de binóculo a tiracolo e boné, respirou a todo o pulmão e foi assistir da tolda à manobra do vapor que suspendia o ferro.

Eram duas horas em ponto. O tempo estava magnífico. Ventava forte e o mar em ressaca atirava sobre o quebra-mar uma toalha de espuma que se desmanchava em poeira tenuíssima irisada pelo sol. A cada golpe de mar havia uma algazarra na praia coalhada de gente. Escaleres navegavam para terra puxados a remo, destacando a bandeira do escaler da Capitania do Porto.

Zuza assestou o binóculo, e, sacando do lenço, correspondeu aos acenos que lhe faziam de um escaler que se afastava. Sentia agora uma ponta de saudade espicaçar-lhe o coração. Através da confusão que reinava no seu espírito, como um ponto luminoso por entre um nevoeiro denso, via mentalmente e nitidamente a cabeça branca de D. Sofia, de sua boa mãe, e só então sentiu que uma coisa prendialhe ao Ceará, atraía-lhe a essa terra que ele tanto detestava -sim, queria mal ao Ceará não sabia mesmo por que, por índole, por sistema, por pedantismo, mas não podia esquecer nunca o Ceará, porque nele ficava a sua velha que ainda há pouco, abraçando-o entre lágrimas, metera-lhe no bolso uma nota de cem mil-réis lisa e cheirando a fundo de baú.

Boa a santa velhinha! pensava ele, e já não enxergava coisa alguma, porque os vidros do binóculo estavam úmidos e enevoados...

Depois, enquanto o vapor singrava em direção ao Mucuripe, começou a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral da Fortaleza, desde o farol de Mucuripe até a ponta dos Arpoadores...

Primeiro o farol, lá muito ao longe, esbranquiçado, cor de areia, ereto, batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até à cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da Alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar parece recuar com medo à sua catadura.

Noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendose da areia movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio; o seminário, por trás no alto da Prainha, com as suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público, com os seus três planos em escadarias; a S. C. de Misericórdia, branca, no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e, por ali afora, o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros...

-«Sim, senhor, pensou o Zuza, bonito aspecto para se ver de longe, barra afora...»

Dentro em pouco o vapor começou a tombar desesperadamente. Fortaleza já não era mais do que uma pintura microscópica, diluindose muito ao longe na tinta alvacenta do horizonte...

...E só agora, três dias depois da partida do Zuza, é que Maria do Carmo sentia a dor do seu abandono, ao mesmo tempo que adquiria a certeza esmagadora de que estava para ser mãe; sim, para ser mãe de um filho espúrio, concebido num momento de desvario, mal acordada de um pesadelo horrível. Era demais, era! Se dissesse que ela tinha deixado o seu quarto para ir ter à rede do padrinho, oferecendo-selhe como uma fêmea desavergonhada, vá; era justo que caísse sobre si toda a cólera dos homens, mas, ao contrário, ele, o infame do padrinho é que fora alta noite ao seu quarto, provocar-lhe, imporlhe, para bem dizer, uma coisa daquelas, e ela, coitada, tão inexperiente, tão tola que nem ao menos tivera coragem para dar um escândalo, expulsando-o, como se expulsa um ladrão, dando-lhe com a mão no focinho, embora com sacrifício de sua vida.

Chegavam a seus ouvidos, indistintamente, como um surdo rumor de cochichos, os ecos de maledicência. Na Escola Normal as outras raparigas atiravam-lhe indiretas fortes, que ela já não tinha ânimo de repelir como dantes.

Viam-na triste, para um canto, muito desconfiada, com grandes olheiras. Todas notavam as alterações de sua fisionomia, e certo desleixo no trajar, que faziam dela uma outra Maria do Carmo, albardeira e insociável, inimiga da convivência das companheiras, egoísta, intratável.

-Aquilo é coisa... comentavam maliciosamente as normalistas. A Maria viu alma do outro mundo, não é possível.

-Que o quê, menina, são desgostos de família. Dizem que o padrinho a maltrata.

-Quem, o João da Mata? Um grandíssimo miserável. Daí talvez seja isso mesmo.

-Não se iludam, meninas, insinuou a zarolha, a Maria ficou assim depois que o Sr. Zuza foi-se embora. Ela dantes era até uma rapariga muito alegre, vocês não se lembram?

-Coisas deste mundo, mulher, coisas deste mundo. Ninguém deve fazer mau juízo das pessoas.

O diretor um dia maltratou-a. Ao chegar viu desenhada na pedra da aula, a giz, uma obscenidade. Ficou furioso, disse muitas grosserias às raparigas e quis saber quem era a autora de semelhante indecência.

Silêncio profundo. Ninguém se atrevia a responder.

-Tenham a bondade de dizer quem fez isto! repetiu o diretor, e, de relance, viu, na última fila, um dedo que apontava para Maria do Carmo.

-Ah! foi a senhora, D. Maria do Carmo?

Maria empalideceu.

-Eu, não senhor!

-Tenha a bondade, faça o favor de vir apagar isto.

-Mas não fui eu, Sr. diretor, tornou ela erguendo-se.

-Embora, venha sempre: a senhora paga pelas outras.

-Não senhor, não posso responder por uma falta que não cometi.

-Não vem?

-Não senhor.

Toda a aula estava voltada para Maria do Carmo, medindo-a de alto a baixo, como se vissem nela uma transfiguração extraordinária.

-Então a senhora não vem? repetiu o homem fazendo uma carranca medonha.

-Não senhor...

-Retire-se da aula! fez ele apontando a porta. A senhora é uma insubordinada, desobedeceu à primeira autoridade deste estabelecimento. Vamos, retire-se!

Houve um silêncio grave, e Maria, tomando os livros, séria e resignada, sem olhar para as colegas, retirou-se taciturna, ouvindo atrás de si o atrito da esponja na pedra.

E tudo mais era assim, sucediam-se as contrariedades como um castigo. Crescia-lhe na alma o desgosto, como uma nuvem que sobe no horizonte vagarosamente alastrando pouco a pouco toda a vasta cúpula do céu para se desfazer em chuva caudalosa. Tinha pena de não ser, como as «outras mulheres», indiferente a tudo, até nos momentos mais difíceis da vida. Vinham-lhe às vezes alegrias intermitentes, uma resignação infinita animava todo seu ser, e dispunha-se a enfrentar todas as conseqüências do seu desatino com uma calma heróica, sem dar mostra da mais leve tristeza.

Nesses momentos abria-se em efusões de ingênua bondade para com D. Terezinha, procurando-a, puxando conversa, oferecendo-se-lhe para pentear o cabelo, gabando-lhe os vestidos, com uma humildade de escrava. Mas a madrinha, seca e indomável, aborrecia-se com aquilo, enfadava-se, sempre de cara fechada, respondendo por monossílabos às perguntas da afilhada. Quando amanhecia mal-humorada, com as suas desconfianças, enquizilava-se demais. -«Deixe-me, criatura, deixe-me, por amor de Deus, oh!» Maria não dizia palavra, recolhia-se ao silêncio do seu quarto a costurar ou a ler o Almanaque das senhoras por desfastio, para se distrair.

Entretanto João da Mata progredia no vício de beber aguardente. Andava agora muito chegado ao Perneta e ao Guedes, de quem se dizia amigo do coração.

A bodega do Zé Gato continuava a ser o ponto de suas reuniões, onde se demoravam às vezes até alta noite a jogar a bisca num esquecimento absoluto de família e de deveres, saturados de álcool, lívidos à luz de um miserável candeeiro de querosene. O triste ordenado que lhes pingava no bolso em cada fim de mês escorria-lhes por entre os dedos como azougue, transformando-se em fichas na banca do jogo e desaparecendo como por encanto, sem que eles próprios soubessem como.

Quantas vezes sucedia entrar em casa sem um real no bolso para mandar à feira no dia seguinte!

Era preciso então tomar dinheiro a juros aos agiotas, correr toda a cidade atrás de alguém que lhe emprestasse alguns mil-réis até o fim do mês, contar as suas necessidades, as pequeninas misérias domésticas, inventar situações incríveis. Porque os seus «amigos do coração», o Perneta e o Guedes, da Matraca, também eram pobretões e perdulários, sentiam muito as necessidades do Janjão, mas não lhe podiam ser úteis por forma alguma, senão dando-lhe a ganhar no jogo quando a sorte não os protegia.

-É. Eu bem sei que vocês também têm família como eu e precisam também. É o diabo, é o diabo!

Daí as dissensões, os conflitos, em casa, com a mulher por causa de dinheiro. Ele já não conseguia impor à D. Terezinha a sua autoridade de chefe de casa, como dantes; ao contrário, agora suportava-lhe as impertinências, as saraivadas de impropérios, com uma passividade de animal submisso.

-Tenha vergonha, homem de Deus, tenha vergonha, que você já não é criança, dizia-lhe ela nas bochechas, quase lhe abanando o queixo. Olhe para as barbas que tem na cara, porte-se como gente! E ele ouvia tudo aquilo sem dizer água vai, caladinho como um prego, murcho, impotente!

Como os tempos mudam! Há poucos dias era ele forte, o mandachuva naquela casa; bastava um olhar seu, por cima dos óculos escuros, para que todos, D. Terezinha, Maria do Carmo e a Mariana, estremecessem com medo, porque sabiam de quanto ele era capaz nos momentos de cólera; agora não, tinham-se trocado os papéis: bastava um olhar de D. Terezinha para que ele lhe desse as costas disfarçadamente para evitar barulho.

-Basta, basta, basta! costumava dizer quando a mulher dirigiase para ele com os olhos chamejantes, de mãos fechadas.

E escafedia-se até o fundo do quintal para não lhe ouvir os disparates.

Estava magro, muito magro, e queixava-se de dores nos intestinos.

Diabo da repartição não lhe deixava tempo para nada. Era um trabalhar sem descanso, sentado a uma banca, das nove às três, copiando ofícios, riscando papel estupidamente. Se ao menos tivesse quem lhe arranjasse com o ministro uma aposentadoria ainda que fosse com a metade do ordenado... Mas, qual! tudo uns políticos sem importância, uns lagalhés que iam para a câmara proferir barbaridades, a repetir que o país estava à beira de um abismo e nada mais! Até estimava que lhe demitissem do emprego, porque iria fazer pela vida noutra parte, e escusava perder tempo e emporcalhar papel, para no fim do mês -tome lá o seu ordenado, uns míseros vinténs que mal chegavam para o boi. Uma desgraça!

De resto a Maria não lhe dava muito cuidado. A princípio ainda lhe fizera uns carinhos, dera-lhe uns cortes de chita e um rico vestido de cassa da Índia «para agradar», porque também seria uma ingratidão vê-la para um canto a se acabar, magra e amarela que nem uma lesma. Achava até que tinha feito muito. Outros havia piores do que ele, ora!

-Meu bem, tristezas não pagam dívidas. É andar, é andar sem olhar para trás.

Mas quando, um belo dia, Maria declarou-lhe positivamente que estava prenhe, que sentia «uma coisa» bulir-lhe na barriga, João estremunhou. -Que se há de fazer, filha? Agora é ter paciência. Foi uma fatalidade, foi uma fatalidade. Há de se arranjar a coisa do melhor modo possível. Vais aí para qualquer sítio, fora da cidade, e ninguém saberá de coisa alguma. Dá-se tanto disto...

-E depois? murmurou Maria mordendo a ponta do lenço, cabisbaixa.

-E depois? E depois... ora adeus! e depois dá-se a alguém para criar o trambolho e tu voltas à tua santa vidinha.

Maria soluçava baixo, fungando numa crise nervosa.

-Já te pões a chorar como uma criança! Tolice! Estou a dizerte que o caso é muito simples.

Uma tarde em que os Mendes, o juiz municipal e a mulher, tinham ido passear ao Trilho, João da Mata entrou alvoroçado, sem fôlego, com uma notícia a escapulir-lhe da boca. -Sabem quem está muito doente?

Todos voltaram-se surpreendidos, com o olhar cheio de curiosidade. -Não, ninguém sabia. Algum conhecido?

-O presidente, o Dr. Castro, teve um ataque há pouquinho. A rua está cheia. Diz que está bem mal.

-De quê, menino? interrogou o juiz muito admirado e já nervoso.

Houve logo um interesse comovido nos circunstantes.

E João, sentando-se, sem apertar a mão aos Mendes, pálido, limpando a testa, foi dizendo o que sabia: -Muita gente defronte do palácio. Tinham sido chamados todos os médicos, e todos, menos o Dr. Melo, eram de parecer que se tratava de um caso de febre amarela. O presidente tinha acabado de jantar e lia à cabeceira da mesa a correspondência do sul chegada naquele momento, quando começou a sentir-se mal -embrulho no estômago, tonteira, calafrios. Imediatamente, ergueu-se lívido, e, ao dar o primeiro passo, caiu fulminado!

-Ai! fez D. Terezinha cruzando as mãos sobre o regaço. E depois?

-Depois conduziram-no à cama, sem sentidos, vomitando uma coisa preta...

João fez esgares de nojo. Todos cuspiram.

-... E quando os médicos chegaram já o encontraram sem pingo de sangue no rosto, vomitando ainda golfadas de bílis sobre a esposa que o amparava, coitada, nem sei mesmo como...

-Coitado! lamentaram num tom arrastado as duas senhoras.

Maria do Carmo ouvia silenciosa e compungida a narração do padrinho, ao lado do piano, com os olhos úmidos e o ar assustado.

-Mas, João, isto é sério? perguntou o juiz municipal erguendose com os braços cruzados, estupefato.

-Oh! senhor, pois eu havia de inventar uma coisa desta? Admiro até como vocês ainda não sabiam, porque a rua está cheia. Eu soube ali, na bodega do Zé Gato.

Fez-se um silêncio repassado de suspiros.

-Um homem tão forte, vendendo saúde! fez o juiz.

-Mas bebia muito, coitado, tornou João da Mata respirando com força. Era homem que não bebia água!

-Por isso não, atalhou D. Terezinha. Que asneira! Tanta gente se embriaga todos os dias e não lhe sucede nada...

-Daí pode ser que escape, murmurou D. Amélia; não queriam sepultar o homem em vida.

-Pode ser...

-Pode ser, repetiu o juiz. A ciência faz milagres.

-Que dúvida!

Então o Mendes tomando o chapéu, muito impressionado, as mãos trêmulas:

-Bem, vamo-nos Amélia. Esta vida, esta vida!

Era cedo, insistiu D. Terezinha triste. Mas os Mendes pretextaram afazeres, lembraram as crianças que tinham ficado com a criada e despediram-se.

Maria do Carmo passou a noite nervosa, com insônias, sentida com a doença do Dr. Castro, muito apreensiva.

Não podia se conformar com a idéia da morte do presidente, o homem da moda, o «querido das moças», o grande amigo do Ceará, que tantos benefícios fizera a essa província, mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o Passeio Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração, prodigalizando esmolas, e, finalmente, introduzindo em Fortaleza certos costumes parisienses, como por exemplo, o sistema de passear a cavalo a chouto, de aparar a cauda aos animais de sela. Lembrava as qualidades pessoais do fidalgo paulista, o seu modo de falar num sotaque aportuguesado, muito moderado na conversação íntima, as suas maneiras delicadas, os belos dentes branquejando sob um bigode sedoso e bem tratado. Uma vez, no baile oferecido à oficialidade do cruzador «1.º de Março» dançara com ele uma quadrilha, por sinal bebera muita champanha nessa noite a ponto de ficar um pouco tonta da cabeça. Coitado! uma alma boa. É verdade que tinha demitido o Pinheirão mais os filhos, deixando-os na miséria, mas no dia seguinte mandaralhes um envelope com cinqüenta mil-réis. Tudo por causa da política; a política é que o fazia mau. Tinha rasgos de generosidade fidalga, lá isso era inegável, tanto assim que um dia dera ao negro Romão, um negro sujo como aquele, cinco mil-reisinhos. Era uma pena se morresse, coitado, havia de fazer uma falta tão grande! -Compadeciase como se fosse seu parente. Balbuciou uma promessa às almas do purgatório e só muito tarde, pela uma hora da manhã, conseguiu adormecer.

Ao outro dia procurou saber logo como ia o presidente. As notícias eram cada vez mais desagradáveis. As janelas do palácio continuavam fechadas e os transeuntes olhavam contristados o casarão ao redor do qual pairava uma melancolia lúgubre. Os boatos multiplicavam-se penetrando todas as casas como um vento de desgraça. A Província suspendeu a publicação por condolência, e os jornais da oposição fizeram uma pausa nos seus ataques à administração provincial.

As filhinhas do presidente estavam em casa do José Pereira, na rua Major Facundo, duas crianças louras e inteligentes, que falavam francês, uma nascida em Paris, e outra no Rio de Janeiro. Às duas horas já se dizia que o «homem» não escapava. Um cabo de ordem arrastando o chanfalho, passava a toda pressa em direção do telégrafo. O espírito público começava a inquietar-se com a sorte do presidente, e os próprios adversários políticos enchiam-se de penas concentradas.

Pela noite desabou um formidável aguaceiro e toda a população, por assim dizer toda, aguardava ansiosa, dentro da casa, ao sussurro da chuva que caía fora, sacudida pelo vento sul, notícias sobre o estado do Dr. Castro.

Maria, como toda a gente, sentia um peso no coração ao lembrarse daquele homem sadio e robusto, a seus olhos a síntese da mais requintada elegância, que tanto amara o Ceará, e cujo nome andava gravado a canivete até no tronco dos cajueiros, nos sertões por onde tinha andado, tão moço ainda e já às portas da morte acabandose como qualquer mortal! -A providência às vezes era injusta, como os homens: poupava um ente abominável como o padrinho e um pelintra desleal como o Zuza, para aniquilar, enquanto se esfrega um olho, um homem da força do Dr. Castro, «útil ao país e benfeitor da humanidade!»

Indignava-se com essa preferência injusta das cortes celestes, e, de si para si, concluía que não valia a pena uma pessoa ser honesta, trabalhar noite e dia, dedicar-se a uma causa nobre, engrandecer-se aos olhos da humanidade para um belo dia -toma! vá para a cova que é o seu lugar! Uma coisa estúpida a vida, afinal de contas.

Entretanto outros viviam aí a cometer mil desatinos, a roubar, a assassinar, a iludir os incautos e tinham vida para um século inteiro, livres de congestões, de febre amarela, e de quanta doença há.

Acordou cedo e foi-se pôr à janela à espera de alguém que lhe desse notícias do presidente. O céu estava carregado de nuvens compactas, e neblinava. A casa da viúva Campelo, defronte, estava fechada; a viúva tinha ido passar uns dias com a filha no Benfica.

Passou um empregado da Estrada de Ferro, condutor de trem, com as calças arregaçadas, comendo pão. Maria chamou-o: -O Sr. sabe me dizer como vai o presidente?

-Faleceu às duas horas da madrugada, respondeu o sujeito mastigando, indiferente.

-Obrigado, disse Maria empalidecendo, e entrou imediatamente, batendo o postigo. -Coitado! foi dizendo pela casa com grande mágoa na voz. Coitado! Que pena!

-Que foi? perguntou o amanuense que subia o corredor em ceroula.

-O presidente, que morreu!...

João parou assombrado como se lhe tivesse caído um raio defronte.

-Morreu, hein?!

-Disse-me agora mesmo um empregado da Estrada de Ferro.

-Realmente! E vá a gente se fiar na justiça divina! Morre um homem daqueles, da noite para o dia, como qualquer bêbado!

E lá se foi resmungando contra Deus e contra os padres.

Os sinos da Sé começaram a dobrar a finados. Aumentava a chuva, que já se ouvia chiar nas calçadas, como uma panela fervendo.

Maria entrou para o seu quarto, aflita. Essa manhã foi para ela de tristeza e desânimo. Acudiam-lhe à imaginação lembranças extravagantes, idéias lúgubres, como aves negras que pousavam de chofre num arvoredo, alvoroçadas, cantando sinistramente. Caía em abstrações prolongadas em que se punha a contar os dedos maquinalmente, como se fosse ensandecer. Apoderou-se dela um medo pueril, um inexplicável pavor das coisas sombrias, um supersticioso receio de almas do outro mundo, um mal-estar, um quer que era que lhe trancava a respiração, que lhe oprimia o peito.

Procurava disfarçar as apreensões, arrumando os trastes do quarto, mexendo nos baús, numa inquietação crescente, num vira-e-mexe cada vez mais açodado, abrindo e fechando gavetas, atarantada, com o coração aos pulos.

-O enterro! o enterro! bradou da porta a Mariana que ia às compras.

Todos correram à janela. D. Terezinha na precipitação deixou cair um copo, que se esfarinhou, e João da Mata esquecera os óculos, enfiando as mangas da camisa.

Maria arrancou como uma louca, dando um encontrão na mesa do centro da sala de visitas.

Continuava a chover, agora devagar, com uma insistência importuna, o sol a espiar por trás duma nuvem, frio indeciso, mandando, com um supremo desdém pelas coisas cá de baixo, uma réstea de luz tímida e complacente sobre a manhã úmida.

O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemitério.

Maria do Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó na garganta ao desfilar do préstito, o caixão levado por seis homens de preto, coberto de galões dourados debaixo da chuva miúda, o acompanhamento -uma comparsaria dispersa de gente de todas as classes de chapéu-de-chuva aberto, marchando resignadamente ao som da música do batalhão que tocava a funeral.

Os padres já tinham passado, na frente, com os seus acólitos, muito graves, olhando para o chão, evitando as poças de água. Um carro seguia atrás todo fechado, devagar.

E a chuva a cair e a música a tocar o funeral deixando por onde passava uma tristeza vaga que lembrava um dia de finados entre sepulturas...

D. Terezinha enxugava os olhos com a aba do casaco e João da Mata pigarreava disfarçando a comoção.

Maria ficou à janela vendo passar o resto do acompanhamento, sujeitos sem paletó, de chapéu de palha de carnaúba, outros sem chapéu...

-Que triste, meu Deus!

E entrou muito inquieta, com um frio na medula, as pupilas dilatadas, pálida, toda trêmula. Mas no meio da sala perdeu o equilíbrio -escureceu-lhe a vista, tropeçou numa cadeira e estendeuse no chão pesadamente, como morta.

-Chega! A Maria teve uma coisa! gritou D. Terezinha, correndo para a afilhada. Chega Janjão, chega depressa!

-A água-flórida, a água-flórida, em cima da cômoda.

O amanuense precipitou-se pelo corredor a grandes passadas, atônito, aterrado, sem saber o que fizesse, seguido pelo Sultão que lhe tomou a frente ganindo.

-Jesus, o que foi?

-Sei lá, uma coisa que lhe deu de repente... Segura aí nos braços...

E ambos, João da Mata e a mulher, pálidos, muito vexados, conduziram a rapariga para a alcova, arrastando os pés com o peso.

-Chega depressa a água-flórida, mandou João abanando o rosto à doente.

D. Terezinha trouxe a garrafa e começou logo o afanoso trabalho de umedecer as têmporas de Maria, dando-lhe a cheirar o líquido, friccionando-lhe a testa com força, numa aflição.

-Um copo com água, um copo com água, Janjão.

Maria deu um grande suspiro, entreabrindo os olhos, estendida ao comprido na larga cama de jacarandá.

-Cheira mais, cheira mais, recomendava D. Terezinha, agora mais aliviada.

Maria murmurou que estava melhor.

-Já pode se sentar? perguntou o amanuense, chegando o copo. Vá, faça um esforçozinho... Upa!

-Não seria bom chamar o médico? lembrou D. Terezinha.

Maria fez com a mão «que não», e com a voz fatigada, apoiada ao espelho da cama: -«Não era preciso, já estava boa...»

-Sentes alguma coisa? quis saber o amanuense. Se sentes, dize.

-Apenas uma dorzinha aqui... -E indicou o flanco esquerdo.

-Bom, bom, bom, quietinha...

E desde esse dia aumentaram as suspeitas de D. Terezinha, que observava agora os menores movimentos da afilhada, insistentemente, examinando-lhe a roupa usada, medindo-lhe o volume da barriga, perseguindo-a com os olhos.

-Isto, isto ainda acaba mal! pensava ela.

Em poucos meses o estado interessante de Maria do Carmo foi carecendo de cuidados mais sérios, e João da Mata assim o julgou, tratando logo de arranjar uma casa, um sítio nos subúrbios onde ela pudesse, tranqüilamente e sem escândalo, alijar a carga, desembuchar a criança. Mas onde e como poderia ele dispor as coisas do melhor modo, sem despertar a curiosidade pública? Esta era a grande questão que afligia o amanuense, cada vez que o seu olhar vesgo descia sobre o ventre da afilhada, vendo-o crescer dia a dia, tomar uma forma esférica iniludível, arredondar-se, arquear-se para fora numa convexidade característica e esmagadora. -«E agora?» interrogava-se ele, passando a mão na calva. O caso ia se tornando grave, urgia fazer qualquer arranjo logo e logo, antes que a Teté rebentasse por aí com quatro pedras a acusá-lo violentamente, atirando-lhe em rosto a sua infidelidade, o seu crime, a sua poucavergonha. A rapariga engordava a olhos vistos; só um cego não veria dentro daquela redondeza uma criatura humana em formação.

Toda ela -o ventre, os seios, os braços, o rosto- inchava, adquiria um cunho extraordinário de maturidade precoce. Notava-lhe agora asperezas na pele, uma cor seca de folha sazonada e certo ar amolentado que se traduzia numa sonolência infinita e na prematura tendência para o abandono de si mesma.

Com efeito, Maria, apenas com quatro meses de grávida, tinha perdido muito da antiga expressão insinuante e viva de sua fisionomia. Na idade em que a mulher, como a flor, em plena exuberância dos tecidos, desabotoa numa singular alacridade de cores, toda frescura e beleza, ela que não transpusera ainda os dezoito anos, olhava a vida com uma indiferença única, estiolando ali assim entre as paredes daquela casa sem ar e sem luz, esperando resignadamente o seu fim. Queria ver até quando duraria aquele estado de coisas, até onde a queriam levar!

Já não chegava à janela com vergonha de ser vista pela vizinhança e pelos conhecidos -refugiara-se, como uma culpada, no ádito misterioso do seu quarto, egoisticamente, sem ao menos lembrar-se da Lídia que não a esquecia e que lhe mandava de onde em onde presentinhos, recados e abraços.

E João inquietava-se, procurando meios de evadir-se da alhada em que se metera com risco de um escândalo medonho!

Havia um mês que Maria do Carmo caíra com o ataque no meio da sala. D. Terezinha ruminava sutilidades para descobrir uma sombra sequer, um vestígio que confirmasse de uma vez as suas suspeitas. Batera todos os aposentos, todos os cantos da casa, indagara da lavadeira se não vira alguma nódoa, alguma mancha na roupa da afilhada; acordava vezes sem conta, alta noite, prestando ouvidos a qualquer ruído, por mais leve, e nada! absolutamente nada! Faziam-lhe espécie os modos reservados de Maria, esse impenetrável desgosto que a punha triste, com um ar esquisito de «galinha choca». Alguma coisa havia, por força, era capaz de jurar.

D. Terezinha nunca mais dormira com João da Mata e era só quem passava bem naquela casa; até estava criando banha no pescoço. Pudera! uma vida relativamente calma, senhora absoluta de seu nariz, ganhando um dinheirão com o negócio de rendas que mandava para o norte pelo despenseiro do vapor, tudo corria-lhe às mil maravilhas. Queria ter um pezinho para rusga, isso queria. E se ainda «fazia vida» com o Janjão, era por condescendência, para não dar escândalo; achava feio uma mulher deitar-se com um homem e depois -passe muito bem- abalar por esse mundo afora, como uma doida, atrás de aventuras. Não era mulher para essas coisas; o que queria era o seu descanso -comer bem, dormir bem, passar bem; não admitia que a fizessem de tola.

Tinha uma amiga sincera -a Amélia, senhora do Dr. Mendes. Essa, sim, sabia-lhe apreciar as virtudes, dar-lhe importância, tratá-la com consideração, mesmo porque ela, Terezinha, trabalhava para ganhar a vida honradamente.

-Você é tola, Teté, a gente não deve se matar, dizia-lhe a mulher do Dr. Mendes.

-Lá isso é verdade, mas você o que quer? É fado, é mania...

As conhecidas admiravam-lhe a boa disposição para o trabalho. Sentava-se à máquina às dez horas do dia, cabelos úmidos sobre a toalha de banho estendida nos ombros, e labutava três, quatro horas consecutivas a cantarolar modinhas, costurando para o fornecedor da polícia.

E sempre gorda, sadia e forte!

-Mulher mouro! dizia João da Mata aos amigos.

Uma tarde, ao voltar da rua, o amanuense entrou alegre, como se tivesse tirado a sorte grande na loteria, saboreando um charuto mau que lhe dera o Guedes. Vinha um pouco toldado.

-Olha esse jantar! bradou para dentro, atirando fora a ponta do charuto. E começou a cantar desafinadamente os Sinos de Corneville, então muito repisados:

Vai marinhei... ro,

voa ligei... ro,

velas à brisa

no espelho do mar!



E logo:

Nunca percas a esperan... ça,

quando houver temporal,

que há de vir a bonan... ça,

e depois o... final!



-À cena a Naghel, à cena a Naghel! bradava o amanuense batendo as palmas com fúria.

-Ainda mais esta! resmungou D. Terezinha na sala de jantar.

-Olha essa lambugem! tornou João enfiando pelo corredor.

Estava num de seus dias felizes. Foi até à cozinha acompanhado pelo Sultão que lhe pulava às pernas, ganindo alegre. Mariana mexia o pirão escaldado de farinha num velho alguidar de barro, com a saia arrepanhada na cintura, o casaco desabotoado, exibindo, como de costume, o seu detestável colo nu.

-Como vai isto, ó estafermo! rosnou o amanuense, espalmando a mão em cheio nas ancas da rapariga.

-Sô Janjão!... fez esta pudicamente.

E João, trauteou, fazendo festa ao cão:

Mariana diz que tem

sete saias de veludo...



-Tenha modos, homem de Deus, repreendeu D. Terezinha. Tenha juízo, dê-se a respeito!

-É boa! Então já não se pode ser alegre?! Ora muito obrigado!

Durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte, domingo, iria passar uma semana ao Cocó, em casa da tia Joaquina, conhecida pela velha dos cajus.

-Faz ela muito bem, aprovou D. Terezinha com enfado, cortando o cozido.

E João, muito meigo, olhando por cima dos óculos:

-Você compreende, ela anda adoentada, teve outro dia aquele ameaço... não tem apetite, e o médico, o Dr. Azevedo, disse-me a mim que aquela gordura não vale nada, é toda postiça, é uma gordura falsa... Sim, a rapariga, coitada, precisa tomar o seu leitinho, descansar um pouco...

Maria, que se sentara defronte da madrinha, não pôde ocultar seu embaraço. Fez-se escarlate, e muito submissa:

-É, se a madrinha consentir...

-Ainda mais esta! Podes ir até para a China quanto mais para Cocó!...

-E tu, não queres ir também? perguntou João com certa frieza.

Mas D. Terezinha torceu o beiço com desdém: -«Só se estivesse doida, credo!»

-Vá você com a sua afilhada...

Ah! se eu pudesse passar uma temporadinha fora... suspirou João. Mas qual, minha filha, não posso faltar um só dia à repartição, que o chefe não venha logo com os seus arrebatamentos: que o governo não sustenta vadios, que o empregado público deve ser infalível como o papa, e tanta asneira!... Coitado, já está velho e suspira, como eu, por uma aposentadoria.

Houve um ligeiro silêncio.

-Pois é isto, tornou o amanuense limpando o bigode com a toalha. Está ouvindo, Maria? Prepara o seu bauzinho, a sua roupinha. Amanhã, depois da missa da madrugada. É para lá do Outeiro, na Aldeota, um sitiozinho, um lugar muito bom, muito saudável. A casa é que é pobre, mas ora! pobres somos nós também...

Os talheres batiam nos pratos com força, João falava mastigando, com a boca cheia, cortando o invariável e sediço lombo assado, com uma voracidade espantosa.

Galinhas debicavam debaixo da mesa, cacarejando. Sultão, muito rechonchudo, sentado nas patas traseiras, orelhas em pé, alongava o olhar súplice para cima, à espera que lhe caísse um osso ou uma pelanca. Ouvia-se o miar desesperado de um gato na cozinha. De onde em onde a voz de Mariana punha em debandada os parasitas de crista:

-«Xô, galinha! Xô...»

Havia um rumor de asas pesadas, e um velho galo de cauda furtacor estendia o pescoço num cocorocó estridente e prolongado que fazia João fechar os ouvidos, berrando para a Mariana que enxotasse «aquele demônio».

A sala de jantar era uma espécie de alpendre assentado sobre grossos pilares de tijolo, abrindo toda para o quintal, onde, àquela hora, via-se roupa lavada a enxugar, de uma brancura de hóstia, ao redor da cacimba. Fazia ângulo à esquerda com a cozinha, e, à direita, um velho muro escalavrado separava o quintal de outros quintais, com uma medonha dentadura de cacos de garrafas.

Desde as três horas começava a fazer sombra no alpendre e às quatro já se podia respirar ali a frescura das ateiras.

Sobre a mesa nada mais que uma toalha com manchas de gordura, pratos e copos em desordem, uma moringa muito estragada, bananas e laranjas.

D. Terezinha fazia bocados de pirão com os dedos em pinha e atirava ao Sultão.

-Boa alma aquela tia Joaquina, continuou o amanuense acendendo o cigarro. O mestre Cosme, esse é um homem pobre, coitado, mas honesto como poucos. Vive de vender lenha na feira... Bom velho!

-Leva estes pratos, Mariana, disse D. Terezinha erguendo-se. Tinha jantado num momento.

A tia Joaquina, conhecida no mercado pela velha dos cajus, e mais o mestre Cosme, eram um pobre casal que morava na Aldeota, cerca de um quilômetro da cidade, numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro, cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio de água cristalina.

Era aí que viviam, há anos, desde a seca de 77-, entre brenhas de camapus e matapasto, à sombra dos cajueiros, felizes, sem filhos. Corria-lhes a vida como um abundante manancial de águas límpidas em leito de areia.

Pela manhã, muito cedo, mestre Cosme saltava da rede armada no alpendre, enfiava a grossa camisa de algodão e lá ia com uma xícara de café no estômago, atrás da jumenta, da sua inseparável jumenta, que lhe dava o pão de cada dia e que carinhosamente chamava-a Coruja. O dócil animal costumava pastar à beira da cerca, tão feliz quanto o dono cuja presença punha-lhe uma expressão reconhecida no olhar manso. Mestre Cosme metia-lhe o focinho no freio, armava-lhe a cangalha, e abalava para o morro do Cocó a explorar a mata, a fazer lenha para vender no mercado a dez tostões a carga. Um dinheirão!

Mestre Cosme não queria vida melhor. Ao pôr-do-sol voltava com os seus ricos dobrões na ponta do lenço, escanchado na Coruja, sem cuidados, debaixo de seu grande chapéu de palha de carnaúba.

Tia Joaquina ficava trocando os bilros na almofada. Mas, em chegando o fim do ano, ia também à cidade fazer o seu negócio, com uma grande cuia na cabeça: -«Olha o cajuzinho bom do Cocó! Olha o cajuzinho bom!» E voltava com a cuia vazia e com a isquinha de fígado para a ceia ou com o cangulinho fresco de alto-mar.

Chamavam-na a velhinha dos cajus, porque os cajus que tia Joaquina vendia tinham um sabor especial, eram doces como açúcar.

Queriam-se os dois como um casal novo em lua-de-mel. «Meu velho» e «minha velha» -é como se tratavam.

João da Mata conhecia-o de longa data, desde a seca, por sinal naquele tempo tinham uma filha moça -também Maria (Maria das Dores) que morrera das febres em 77. João era comissário de socorros e fazia-lhes muitos benefícios. Mestre Cosme morava, então, no Pajeú, numa palhoça miserável.

-Tempo de calamidades! murmurava o velho ao lembrar-se da seca.

O amanuense viu o mestre Cosme no mercado e teve a idéia de lhe falar na ida de Maria do Carmo para a Aldeota. -«Tinha um grande favor a pedir ao mestre Cosme» começou, pousando a mão no ombro do velho.

-Pois diga lá... Seu Joãozinho sabe que a gente vive no mundo para servir uns aos outros...

-É isto, mestre Cosme. A Maria, minha afilhada, tem andado doente, coitada, está fraquinha, precisa tomar um pouco de leite fora da cidade... Eu queria que ela fosse passar uns tempos no Cocó, a rapariga tem um fastio que até mete pena...

O bom velho ficou admirado: «-Só isso?... Ora, seu Joãozinho, isso não é favor! Eu até estimo. A menina pode ir quando quiser. É casa de pobre, vossemecê bem sabe, mas a gente sempre veve...»

-Pois está bem, mestre Cosme, a pequena vai domingo cedo. Diga à tia Joaquina. Deixe estar que não lhe esquecerei. Lembra-se da seca?...

-Se me alembro? Ora, ora, ora, como se fosse hoje. Comi muita farinha do seu Joãozinho, pois não hei de me alembrar? Aquilo é que foi morrer gente!...

-Bem. Você ainda mora na mesma casa, não é assim?

-Sim senhor, pra lá do Osil; na Aldeota, à direita de quem sobe...

-Muito bem, adeus. Domingo, sem falta. Tome, é para você comprar de fumo.

E João deu um níquel ao velho.

Estava tudo arranjado.

O amanuense começou a ver claro na espessa caligem de seu espírito. Decididamente era um homem de recurso!

No domingo, com efeito, depois da missa da madrugada na Sé, Maria do Carmo e o padrinho seguiram para a Aldeota, a pé.

Ainda tremeluziam estrelas no alto. Para as bandas do Coração de Jesus, por entre coqueiros que se avistavam da praça do Colégio, nuvens esfarripavam-se numa soberba apoteose de púrpura e violeta.

Tinham-se apagado as luzes da cidade e pouco a pouco, imperceptivelmente, como numa mágica, sucediam-se as nuances, cada vez mais claras, esbatendo o contorno das coisas há pouco difundidas numa meia-tinta escura. Ia-se fazendo gradativamente a majestosa mise-en-scène do dia, clarões rasgavam-se de um e de outro lado do horizonte, incendiando a fachada dos edifícios e o cabeço dos montes longínquos, iluminando tudo...

Ao passarem pela Imaculada Conceição, a normalista olhou por entre as grades do colégio. Lá estavam, como antes, sombrios e silenciosos, os quatro pés de tamarindo, numa imobilidade tímida e respeitosa. Ouvia-se lá dentro o coro abafado das educandas -ora pro nobis... ora pro nobis. Maria teve um estremecimento, um vago desejo de viver como as irmãs de caridade; mas passou logo...

Ia vestida de preto, com o pescoço e a cabeça envolvidos num fichu cor de creme, segurando o Manual da Missa.

João ao lado fumava distraidamente, muito preocupado.

Chegaram à praça do Asilo. O grande edifício, à esquerda, abria as janelas sonolentas para o descampado. Havia luz dentro. À direita, no meio da praça, a «cacimba do povo», cor de tijolo, em forma de quiosque, desolada àquela hora, tinha um aspecto misterioso quase lúgubre. E adiante, lá longe, por trás da floresta baixa e espessa, branquejavam os morros do alto Cocó.

Já era dia. Mulheres em tamancos passavam para a cidade falando alto, de cachimbo no queixo, cuia de hortaliças na cabeça, ar desenvolto, xale trançado.

João da Mata perguntou a uma delas «se ainda estava longe o mestre Cosme?»

-Um, um, respondeu a mulher, meneando a cabeça, sem tirar o cachimbo da boca.

E voltando-se:

-Está vendo aquele cercado lá adiante, aquela casinha branca na encruzilhada? Pois é ali.

-Obrigado.

Corria um ar fresco e matinal. Revoadas de periquitos, num vôo de flecha, cortavam a limpidez da atmosfera e desciam de um e de outro lado da estrada sobre o matagal espesso e verde. As primeiras chuvas do ano tinham fecundado a terra cuja exuberância ostentavase agora prodigiosamente na esplêndida paisagem que os olhos de Maria do Carmo viam com admiração. Sentia-se um fartum de terra úmida que fazia gosto. As matas da Aldeota, de um verde-gaio pitoresco, estendiam-se por ali afora, a perder de vista, eriçadas pelo terral, sob a larga irradiação do sol nascente.

Aquela estrada branca de areia, larga e interminável, desenrolavase aos olhos da normalista como uma via-láctea de ilusões, como um caminho de ouro que a conduzisse a uma outra vida, completamente outra daquela que até ali vivera, a uma vida sossegada, sem hipocrisias e sem traições, sem dores e sem lágrimas...

Fazia-lhe bem, como um tônico, o ar fresco da manhã que lhe bafejava o rosto. Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a selvagem frescura do campo, todo o delicioso, o inefável perfume que se levantava dos crótons e das salsas-bravas.

-Que dizes a isto, hein? perguntou João bruscamente, apontando o campo. Vais engordar minha filha, vais passar bem. Para longe a tristeza, para longe as mágoas, e deixa correr o marfim.

E descrevendo um círculo com a mão espalmada:

-Como está isto bonito!

Não há notícia de inverno igual. Mete inveja a quem mora naquele inferno da cidade. Uma delícia, Maria, isto é que é vida! O que vais engordar!

Aproximaram-se da casinha de mestre Cosme. Vacas babujavam silenciosamente e voltavam a cabeça com uma vagarosa melancolia no olhar.

Os velhos já estavam de pé na porteira do cercado.

-Ora muito bom-dia! saudou o amanuense.

-Louvado seja N. S. Jesus Cristo, correspondeu tia Joaquina recuando. -Então é esta a sua afilhada?

-Esta mesma, tia Joaquina. Moça feita e... bonitona, como está vendo.

-Entrem, entrem, convidou mestre Cosme solícito.

-Sim senhor! fez a velha admirada. Bonita mesmo, pode dizer! Coitadinha, parece que vem tão cansada...

Maria teve um sorriso consolado. Estava, com efeito, cansada e pálida.

Houve logo um princípio de intimidade entre ela e os velhos que não cessavam de contemplar o seu belo perfil de noviça envolto numa penumbra de melancolia.

Provisoriamente instalada no seu bucólico e nemoroso retiro da Aldeota, longe de tudo que lhe arreliava o juízo, a um bom quilômetro das rabugices de D. Terezinha e do mau hálito de João da Mata, outra foi com efeito a vida de Maria do Carmo. O viver simples e sossegado de mestre Cosme e da tia Joaquina, o aspecto úmido da mata resplandecendo num fundo verde-claro e onde variados matizes da flora agreste punham efeitos surpreendentes, o bom leite puro e fresco bebido pela madrugada à porta do curral, e, à tardinha, quase ao anoitecer, o violão de mestre Cosme gemendo saudades de um país remoto e abençoado, a liberdade que se bebia ali na larga convivência da natureza, tudo isso robustecia-lhe o corpo e a alma, inoculando-lhe no sangue um conforto viril, ressuscitandolhe o quase extinto amor à vida, à alegria, à mocidade, e às apagadas reminiscências do bom tempo em que ela, ainda inocente, em Campo Alegre, ia esperar o papai que voltava da vazante!

Que mudança na sua vida, que transformações desde 77! Antes nunca tivesse saído da Imaculada Conceição para se meter numa escola sem disciplina e sem moralidade, sem programa e sem mestres, e onde uma rapariga, filha de família, é expulsa da aula porque outra de maus costumes escreveu obscenidades na pedra!

Mil vezes a Imaculada Conceição com os seus claustros, com as suas capelas, com o seu silêncio respeitoso, com a sua disciplina austera; ao menos não teria voltado à casa dos padrinhos, àquela maldita casa de hipócritas, e não teria dado espetáculos com o Sr. Zuza.

Ah! o Zuza... Vinha-lhe um forte desejo de vingar-se do estudante, de caluniá-lo, de culpá-lo pela sua desgraça. Àquela hora o que não estariam dizendo dela na cidade?...

Pensava essas coisas no seu pobre quartinho de taipa abrindo para a natureza, enquanto a tia Joaquina fazia rendas.

Dentro de um mês era notável a influência do campo na sua saúde. Criara novas cores, novo sangue, muito solícita agora nas preocupações domésticas.

-A menina Maria está criando banha! admirava a tia Joaquina. Sim senhora!

-O leite, tia Joaquina, o leitinho é que tem me feito bem.

João da Mata aos domingos, invariavelmente, ia ver a afilhada, afetando grande interesse por seu estado. Dizia-lhe as novidades, os escândalos, dava-lhe lembranças da Lídia Campelo, e, ao retirarse prevenia: -«Se houver necessidade mandem-me dizer.»

-Vá descansado, seu Joãozinho, vá descansado, que há de chegar o dia...

Mas o estado de Maria do Carmo não inspirava cuidados. O útero revigorava, funcionando com a regularidade precisa duma excelente máquina moderna, por sinal Maria, desde que se mudara para a Aldeota, nunca mais sentira pontadas.

O amanuense exultava, alegre e feliz. A princípio receara um aborto, mas agora tinha a certeza de que triunfavam as qualidades procriadoras da rapariga.

-É, pensava ele, roendo o canto das unhas. Um bom útero é tudo na mulher: equivale a um bom cérebro!

E esquecia-se a filosofar na vida intra-uterina, admirando-se muito de que uma simples gota de esperma pudesse gerar um homem!

A ausência de Maria do Carmo não passou despercebida às rodas de calçada e aos freqüentadores do Café Java, cujo tema quotidiano -a política- não lhe satisfazia o prurido de entrar pela vida alheia a esmiuçar escândalos como quem procura agulha em palheiro.

Nas portas de botica, nos cafés, nas repartições públicas, no mercado, em toda parte comentava-se o desaparecimento da normalista, em tom misterioso e com risadinhas sublinhadas a princípio, depois abertamente, sem rebuços, com uma ponta de perfídia traindo a sisudez convencional da burguesia aristocrata.

Que tinha ido tomar ares a Maracanaú, afirmavam uns acentuando a ironia; outros -que andava adoentada de uma pneumonia «proveniente de arranjos na madre»; outros -que estava proibida de sair à rua e de chegar à janela por desconfianças do amanuense. Alguns, porém, como o José Pereira, comunicavam secretamente, pedindo toda a cautela, que a rapariga tinha sido raptada por um paraense e que se achava depositada no Cocó, em casa de uma tal Joaquina Xenxem, por sinal o Manoel Pombinha, tipógrafo, «os vira passar uma noite embuçados numa capa preta», caminho do Outeiro.

Na Escola Normal rebentavam suspeitas à flor das discussões que preenchiam o intervalo das aulas.

Quem, a Maria do Carmo? Aquela mesma não era mais moça, não, meu bem... Ela sempre fora muito metida a aristocrata, por isto mesmo caíra nas mãos de um Zuza. Era bem feito! Uma grandíssima orgulhosa com carinha de santa. Aí estava a santidade...

Vinham à baila casos análogos de filhas-famílias que tinham ido para fora da cidade tomar ares e, no fim de contas, iam mas era «desembuchar» onde ninguém pudesse ver...

-Então, já apareceu a rapariga? perguntava-se com interesse.

O Guedes ardia em desejos de saber a verdade nua e crua. Diabo de tantas histórias e ninguém descobria a incógnita do problema.

Aproveitou uma ocasião em que João da Mata jogava a bisca no Zé Gato. O amanuense estava já um pouco atordoado pela cachaça.

-É agora! pensou o redator da Matraca, e formalizou-se, carregando o chapéu para a nuca.

-Então é verdade o que se diz por aí, ó João?

-Sobre os amores secretos do falecido presidente?

-Não, homem, não é essa a ordem do dia. Isso passou. A questão é outra.

-Desembucha!

-Pergunto se é verdade o que corre sobre...

-... Sobre a Maria do Carmo? Uma calúnia, seu Guedes, uma calúnia! Você bem conhece este povo.

-Eu já tinha dito isso mesmo a alguns amigos: que a D. Mariquinha era incapaz de semelhante procedimento.

-Idem, idem, atalhou o Perneta embaralhando as cartas. Essa é a minha opinião.

-E que fosse verdade, continuou João da Mata partindo o baralho, e que fosse verdade, não era da conta de ninguém!

-Que dúvida! confirmou o Guedes.

-Mando copas, rosnou a amanuense.

E o jogo continuou sem que o Guedes soubesse a verdade.

Mas, ao retirarem-se cerca de meia-noite, interpelou novamente o amanuense na esquina, à luz de um lampião. João da Mata cambaleava, equilibrando-se, a praguejar contra o calçamento das ruas e contra a Câmara Municipal. A rua do Trilho perdia-se na escuridão, silenciosa como um subterrâneo.

O Guedes tinha tomado pouco nessa noite e fumava o seu cigarro com um grande ar de superioridade, pisando forte, o gesto largo e o paletó aberto num abandono frouxo de boêmio.

-Cuidado, não vá cair, avisava com as mãos nos ombros do outro.

-Qual cair nada, homem! Pensas tu que estou bêbado, hein? Estás muito enganado! O diabo dos óculos escuros é que não me deixam ver bem...

-Por aqui, por aqui, guiava o Guedes, cauteloso. Espera, vais fumar um cigarrinho fino...

Pararam. Um polícia passou do outro lado da rua, sonolento e lúgubre.

Então o redator da Matraca abraçando o amigo pelo pescoço, depois de lhe ter dado o lume:

-Tu não me quiseste ser franco ainda agora na presença do Perneta, mas nós somos amigos... tu sabes... Aonde diabo meteste tu a rapariga?

João cuspinhou para o lado.

-Hein?

-A Maria do Carmo, onde anda ela?

-Ah! seu marreco, você quer saber onde está a rapariga, hein? Pois não lhe digo, não...

-Fala sério, homem. Dizem que está no Cocó, que teve um filho?... Juro-te como esta boca não se abrirá... Sentemo-nos aqui um pouquinho, que ainda não deu meia-noite.

Sentaram-se à beira da calçada, debaixo do gás, e o amanuense, encostando-se à coluna do lampião, o chapéu, o inseparável chile enterrado na cabeça, foi dizendo à meia voz.

-A coisa não é como se diz, seu Guedes, a verdade é esta, que eu lhe confio, porque sei que você é meu amigo: a menina está no Cocó, mas ainda não teve a criança...

-Ah!

-Sim, quero dizer, você bem sabe o que eu quero dizer...

O Guedes era todo ouvidos.

Luziam-lhe os bugalhos no fundo das órbitas, parados, imóveis, caindo sobre o amanuense com a fixidez de clarabóias de vidro. Sentia um prazer especial, uma comoçãozinha esquisita, um extraordinário bem-estar ao ouvir a história, a verdadeira história do escândalo, narrada por João da Mata, pela própria boca do padrinho da rapariga, gente de casa, testemunha ocular.

Encolhia-se todo de gozo, ante aquelas maravilhosas palavras do amanuense.

-E o pai?

-Que pai? O pai morreu no Pará...

-Não, homem, o pai da criança...

-Sim... o pai da criança, o Zuza? Pois não se foi embora para o Recife? Aquilo é um infame, um biltre.... Eu cá previa tudo quando proibi formalmente que a pequena lhe mostrasse o nariz, logo a princípio, mas que querem? encontravam-se na Escola Normal, no Passeio Público, e, afinal, foi o que resultou...

Soaram doze badaladas graves e dormentes na Sé. João contou uma a uma.

-Meia-noite, seu compadre, vou-me embora, adeus. Perdi hoje tanto como dez pintos.

E separaram-se friamente, como dois desconhecidos.

Perto de casa o amanuense esbarrou com um vulto que se movia no escuro -era um burro, o pobre animal babujava a rama da coxia, solitário e mudo.

Uma vez senhor do segredo, o Guedes não se conteve, disse-o ao ouvido do Perneta e com pouco ninguém ignorava na cidade «que a normalista do Trilho fora desembuchar, ao Cocó, um filho do Zuza.»

-Do Zuza!? exclamou o José Pereira ao saber a novidade na redação da Província, pela manhã.

-Sim, do Zuza, confirmou o Castrinho pousando a pena atrás da orelha. É o que diz o público, Vox populi...

-E esta!

José Pereira arrepanhou as abas da sobrecasaca, e, passeando o olhar sobre a banca de trabalho, onde destacavam dois grandes dicionários de Aulete, sentou-se vagarosamente, voltando para o poeta.

-Admira-se você, tornou este. Oh! homem, pois um fato que toda a gente previa!...

O outro recomendou que falasse mais baixo por causa dos tipógrafos...

E o Castrinho, à meia voz, estrangulado por uns colarinhos extraordinariamente altos:

-Qual! O fato está no domínio público, não há por aí quem não o saiba. Dizem que o velho Souza Nunes só falta perder a cabeça.

Em todo caso sempre era prudente guardar certo sigilo, negar mesmo, se possível fosse, uma vez que se tratava da reputação do Zuza...

Meninos de bolsa a tiracolo questionavam com o agente da folha, do outro lado do tabique que dividia a sala da redação e onde se viam empilhamentos de jornais sobre uma velha mesa gasta.

Daí a pouco entrou o Elesbão, outro redator, um sujeito lúgubre, muito pálido, faces encovadas, olhar triste, tossindo devagar. Foi perguntando, numa voz sumida e lenta, de que se tratava.

O Castrinho disse, impertigando-se na cadeira, que se tratava «dos brios da sociedade cearense». O outro arregalou os olhos com ar de espanto. -Como assim? E explicou: Tinha estado fora, na Guaíuba, a leites, não sabia as novidades.

-Um fato muito natural, disse José Pereira, nada mais que a reprodução de fatos velhos... Não valia a pena tocar na ferida...

Mas o Elesbão estranhou que «os colegas» tivessem segredos para ele. E depois de saber «o mistério»:

-Magnífico assunto para folhetim realista, hein?

Escrevia folhetins realistas para o rodapé da Província e trabalhava num livro de fôlego, os Mistérios de Arronches, com que, dizia, pretendia fundar uma escola «mais consentânea com o estado atual da ciência».

A sua opinião sobre o novo escândalo que preocupava agora a população cearense era que «nós ainda não tínhamos compreendido o importante papel da mulher na civilização.»

-A educação feminina, acrescentou com cansaços na voz, a educação feminina é um mito ainda não compreendido pelos corifeus da moderna pedagogia. Queríamos introduzir no Ceará os dissolventes costumes parisienses, a forciori, mas não eram essas as tendências do nosso povo essencialmente católico e essencialmente crédulo. Não admitia a teocracia tal como aceitavam os padres -«essa corja de especuladores»- mas era preciso respeitar as crenças populares, o verdadeiro sentimento religioso, sem hipocrisia, sem preconceitos.

De quando em quando a tosse o interrompia, uma tossezinha seca e pigarreada; levava a mão ao peito e expectorava. -«Diabo de catarro não o deixava em paz!»

E, continuando:

-O que é a Escola Normal, não me dirão? Uma escola sem mestres, um estabelecimento anacrônico, onde as moças vão tagarelar, vão passar o tempo a ler romances e a maldizer o próximo, como vocês sabem melhor que eu...

José Pereira contestou, lembrando o Berredo, «uma ilustração invejável», o padre Lima, «um excelente educador em cujas aulas as raparigas aprendiam ao mesmo tempo a ciência e a religião.»

-Mas não têm método, não fazem caso daquilo, vão ali por honra da firma, por amor aos cobres, rebateu o Elesbão, forcejando por falar alto.

Aquilo é uma sinecura, não temos educadores, é o que é.

-Você deste modo ofende o atual diretor da Escola Normal, tido e havido como um pedagogista de primo cartello! advertiu o Castrinho, que se conservara calado.

-Não ofendo a ninguém, ao contrário, folgo em reconhecer nele um homem estudioso e bem-intencionado, mas isto não basta, meu caro...

Novo acesso de tosse desta vez mais prolongado.

-... É preciso orientação e muito bom senso, isto é, justamente o que falta aos nossos corpos docentes...

-Tudo isso é inútil, Elesbão, tudo isso é completamente inútil quando uma mulher tende fatalmente para um homem. Foi o que se deu com a Maria do Carmo...

-É verdade, gabou o Castrinho roendo as unhas desesperadamente. Dizem que é inteligente e bem-educada.

-E além disto, acrescentou José Pereira, uma rapariga até morigerada...

-Não creio, duvidou o Elesbão batendo com o pé, curvado, já com uma poça de cuspo ao lado da cadeira, no chão. O amor tem suas exigências incontestavelmente, mas, quando a mulher é bem-educada e tem noções exatas da vida, dificilmente se entregará a qualquer mariola que se lhe chegue.

E sentenciosamente:

-Todo fenômeno é conseqüência de uma causa. Não há efeito sem causa. No caso vertente a causa é a falta de educação, a falta absoluta de quem saiba dirigir a mocidade feminina. A nossa educação doméstica é detestável, os nossos costumes são de um povo analfabeto.

Um tipógrafo aproximou-se e pediu licença ao Sr. José Pereira para perguntar uma palavra.

-O que é?

O rapaz mostrou o original. -«Está aqui», disse apontando com o dedo sujo de tinta.

-Crápula, disse o José Pereira.

O tipógrafo foi repetindo -crápula, crápula...

-Que é isso? inquiriu Elesbão curioso.

Era um artigo contra o Pedro II, uma formidável descompostura a um dos redatores da folha oposicionista.

Entraram a falar do novo presidente da província.

A notícia do escândalo chegou até ao Benfica, à casa do Loureiro. A Lídia ficou estupefata.

-A Maria, hein?! Tão calada, tão sonsa...

E repetia:

-Este mundo, este mundo!...

Ao mesmo tempo apoderava-se dela um pesar sincero pela amiga. Tão moça ainda, coitada, tão boazinha...

-São coisas, são coisas, rosnava o Loureiro. Eu nunca me enganei com aquela gente. Uma súcia de doidos, a começar pelo tal Sr. João da Mata, um tipo que anda caindo nas ruas bêbado como uma cabra.

-Que é isso, Loureiro! ralhava a Campelinho empinada, carregando os seus oito meses de prenhez.

Pensou em escrever à Maria lamentando o deplorável acontecimento, mas não sabia ao certo onde ela parava. Ouvia falar no Outeiro, na Aldeota, no Cocó... Se fosse possível, até iria, ela mesma, dar um abraço na sua amiga de escola, consolá-la. Imaginava-a muito triste, cortada de desgostos, num abandono pungente, em casa de alguma mulher à-toa, sem ter quem lhe aparasse as lágrimas...

Pobre Maria! É assim -uns tão felizes e tão maus, outros ao contrário, bons e infelizes...

E Lídia soltava uns suspiros vagos, transpassados de pena ao lembrar-se da sua velha companheira agora atirada ao desprezo como um ente nulo e prejudicial à sociedade!

-Este mundo, este mundo!...

Entretanto, corria-lhe a vida deliciosamente, não lhe faltava coisíssima alguma, o Loureiro a estimava cada vez mais, comia e vestia do melhor, tinha relações com as principais famílias da capital, ia ao teatro e freqüentava o Clube Iracema; gozava!

Se pudesse repartir a sua felicidade com a Maria, coitadinha...

Ultimamente andava muito preocupada com o enxoval do seu primeiro filho. Até já havia escolhido um nome para ele, para o pequeno -chamar-se-ia Julieta ou Romeu. O Loureiro tinha-lhe dito que Romeu era nome de gato, mas ela teimava em batizar o filho com esse nome, se fosse «menino». Os padrinhos também já estavam designados -o comendador Carreira e a esposa.

Por sua vez a mulher do juiz municipal correu logo à casa de João da Mata numa ânsia de saber como as coisas tinham se passado. Era da escola de S. Tomé -ver para crer. Vestiu-se às pressas, atabalhoadamente, e voou para o Trilho de Ferro, como uma seta, atirando-se nos braços de D. Terezinha, esfalfada, sem fôlego, o rosto quente do mormaço.

A mulher do amanuense saudou-a com o seu invariável -salvou-se uma alma! proferido entre beijos.

Sem esperar oportunidade, D. Amélia foi direito ao móvel da sua inesperada visita. -«Então era mesmo certo o que se dizia na rua?»

-De quê?

-Da Maria...

-Se era? Tão certo como dois com dois são quatro. Jurava sobre os Santos Evangelhos.

O demônio metera-se-lhe em casa com a rapariga, e por tal modo que, de certo tempo àquela parte, nem fazia gosto a gente viver.

A Amélia não fazia idéia -uma vergonha! criatura, uma vergonha! Ela, Terezinha, estava cansada de sofrer desapontamentos, nem sequer saía à rua para não ser olhada com maus olhos. Haviam de pensar que ela era outra...

-E onde está a Maria?

-Sei lá, menina, sei lá... No Cocó, na Aldeota, no inferno. Tomara que aquela peste não me entre mais em casa.

-E tu não viste logo se ela estava grávida?

-Vi lá o quê! Andava aqui toda espremida com um arzinho de mosca morta, metida no quarto que nem uma freira. Uma sonsa, Amélia, uma sonsa é o que ela é.

-O tal do Sr. Zuza, hein?!

-Qual Zuza, mulher, elas é que são as culpadas, porque não se dão ao respeito, não têm vergonha.

-E o que diz a isso o Sr. Joãozinho? Furioso, hein?

-É o que tu pensas, indiferente como se não fosse com gente dele...

E o diálogo continuou animado, sem que D. Terezinha revelasse à amiga as suas suspeitas acerca de João da Mata e Maria do Carmo.

Amélia falou sobre o José Pereira, queixando-se de que ele há muitos dias não aparecia em sua casa, «todo embebido com a outra, com a Lídia.» O redator da Província não tirava os pés do Benfica, e, às vezes, voltava depois das nove, no último bonde.

A Teté não achava feio isso, um homem ir diariamente, às mesmas horas, à casa duma senhora casada! Era feíssimo! Já andavam até dizendo coisas... E então o José Pereira que não era tolo e tinha fama...

-Queira Deus que a tal Sra. D. Lídia não vá se arrepender... É verdade, a mãe, a viúva Campelo, como vai?

-Naquilo mesmo, respondeu D. Terezinha com um sorriso de malícia, piscando um olho.

Riram baixinho e a conversa recaiu sobre D. Amanda àquela hora entregue ao seu delicioso farniente de mulher solteira que dispõe do tempo a seu bel-prazer e da algibeira de um capitalista generoso.

Toda a cidade vivia agora do escândalo, dando-lhe vulto, criando novelas de romance, esmiuçando pequeninos acidentes domésticos, com um olho na política e outro na normalista, à espera de chuvas e de novos acontecimentos sensacionais.

João da Mata não se inquietava muito, de resto, e continuava a sua vida inalterável de empregado subalterno, sem prestar ouvidos à maledicência, encantonado no seu absoluto desprezo à sociedade e à opinião pública, cada vez mais submisso à mulher que o cobria de injúrias e labéus.

-Sedutor de filhas alheias! dizia-lhe ela na cara, ameaçadoramente. Peste! Coisa-ruim! Sem-vergonha!

E ele punha-se a cantarolar, com os ouvidos arrolhados, o olhar no teto, estendido na rede, mudo, impotente como um eunuco.

Uma noite, pela madrugada, despertou com o desejo veemente de ir ter com D. Terezinha, na alcova. Há meses não se chegava a mulher alguma, cheio de aborrecimento pelo outro sexo, frio, mole, inacessível quase às carícias da fêmea. Agora, porém, renascia-lhe a virilidade, sentia uma forte vontade indomável e impetuosa, de amar fisicamente, de crucificar-se nos braços de uma mulher que não fosse de todo mundo e confundir o seu sangue com o dela num demorado e indescritível espasmo. Tremiam-lhe as carnes como ao contato de um condutor elétrico, uma formidável ereção a distenderlhe os nervos, escabujando na rede em espreguiçamentos lúbricos, vergando, como um vencido, ao poder irresistível da animalidade humana. O sangue pulava-lhe nas artérias numa hipernésia que lhe atordoava os sentidos, que lhe tirava a respiração, impelindo-o para a mulher.

Pensou na Mariana, que dormia ali perto, mas a Mariana era uma criada que não se lavava, um estafermo sem sexo, incapaz de satisfazer os apetites de um homem. Não havia jeito senão tentar a Teté. E lá se foi, sutilmente, pé ante pé, corredor afora, direito à alcova da infeliz senhora.

A alcova tinha uma porta para o corredor. João olhou pelo buraco da fechadura, mas não pôde ver senão o espelho do velho toucador, defronte, inclinado para a frente, refletindo um vaso noturno, e roupas espalhadas no chão.

Bateu de leve, e, receoso da criada, deu volta pela sala da frente, tateando no escuro, sem ruído. A outra porta da alcova conservava-se entreaberta: empurrou de leve enfiando a cabeça para dentro.

-Teté! chamou numa voz quase imperceptível.

Silêncio profundo. Os cortinados da cama estavam cerrados. João foi entrando devagar, equilibrando-se no bico dos pés.

-Teté! repetiu à meia voz.

Ninguém respondeu. Adiantou-se e escancarou as cortinas, mas -oh!- o leito matrimonial, largo e fresco, branquejava desolado, sem sombra de mulher.

João ficou boquiaberto, muito admirado. «-Que significava aquilo?» Os lençóis revoltos acusavam o desespero de uma pessoa que não teve tempo a perder. Ante a clarividência assombrosa da realidade, o amanuense rodou sobre os calcanhares, e, resignado como um boi, sem proferir palavra, murcho, sentiu desaparecer-lhe subitamente o forte desejo que ainda há pouco o espicaçava como uma urtiga. Retirou-se macambúzio a pensar nos caprichos da sorte.

- XV -

Quando mestre Cosme, uma manhã, foi avisar a João da Mata, que «a menina estava com as dores», o amanuense dormia ainda sob os lençóis e nem sequer sonhava na afilhada.

Ergueu-se da rede, com um pulo, enfiou as calças, lavou-se num instante, e abalou mais o velho para a Aldeota, sem dizer palavra a D. Terezinha.

-«Já tinham arranjado parteira?» inquiriu acelerando o passo.

-Já, inhôr sim, a comadre Joana Pataca, uma do Outeiro.

-Boa?

Mestre Cosme não afirmava porque não a conhecia bem, mas era limpa e não tinha má cara. Diz que era a melhor parteira do Outeiro. Agora, se seu Joãozinho não quisesse... A mulher já estava cuidando da menina...

-Quando apareceram as dores? -Se Maria gemia muito...

O velho informou tudo minuciosamente sem ocultar um só detalhe, juntando às palavras os seus gestos rudes de homem do campo.

A rapariga há dois dias queixava-se de umas dores nas «ancas e no pé da barriga», acompanhadas de fraqueza nas pernas e grande falta de ar... Se gemia? Muito, coitada, metia até pena. Pudera! novinha ainda... A parteira dissera logo que a criança estava no nascedouro. Àquela noite as dores tinham piorado, ninguém dormira, velando a pobre moça. Eram chás e fricções, e -corre daqui e chega depressa- todos com cuidado, rezando à N. S. do Bom Parto.

Logo da porteira do sítio João escutou os gemidos de Maria do Carmo, trêmulos, sentidos, longos... e aquilo apertou-lhe o coração.

No pequeno quarto de taipa, com uma janelinha para o descampado, achava-se tia Joaquina, à cabeceira da normalista, alisando-lhe os cabelos, com carinho, e uma outra mulher gorda, pançuda, sem casaco, muito trigueira, com marcas de bexiga no rosto, meio idosa.

-Dão licença? murmurou João da Mata descobrindo-se com respeito.

A mulher gorda tomou o casaco, às pressas, e Maria volveu os olhos úmidos e profundamente melancólicos para o padrinho, gemendo.

Mestre Cosme trouxe um tamborete.

Sentia-se um cheiro ativo de alfazema queimada: encostado à parede fumegava o braseiro:

-Então, como vai? perguntou João tomando a mão da afilhada. Muitas dores, hein?

-Assim... respondeu a rapariga mordendo o beiço com um gesto doloroso, revirando-se na rede, e continuou a gemer alto.

-A senhora é que é a parteira? tornou João para a mulher gorda que se conservara imóvel com o queixo na mão.

-Sua criada Joana Pataca.

-Já verificou se a criança está perfeita, se não há novidade?

-Ora, ora, ora... há que tempo! Daqui a pouquinho o menino está fora, se Deus quiser.

O amanuense encarou por cima dos óculos, com ar de desconfiança, o todo obeso da mulher. E, sentando-se:

-A senhora tem licença para assistir?

Não era preciso licença, não senhor. No Ceará qualquer mulher podia ser parteira contanto que merecesse confiança. Ela, Joana Pataca, era muito conhecida no Outeiro, por sinal tinha partejado uma vez a mulher do comandante do batalhão...

-Vossemecê duvida?

-Não, não... é que eu queria saber... Então não é preciso licença?

-Inhôr não. É qualquer uma.

-Está bom, está bom... Mas não se descuide... Olhe, não vá esquecer...

A parteira pousou no chão o cachimbo, que estivera fumando, e foi aquecer uns panos.

Deu meio-dia e a rapariga não teve a criança. As dores tinham melhorado um pouco. Tia Joaquina batia os beiços rezando «-Tenha paciência, minha filha, tenha fé no Senhor do Bonfim», dizia ela muito solícita.

João da Mata passou todo esse dia na Aldeota, aguardando o sucesso, bebendo aguardante e acendendo cigarros, esquecido da repartição.

Mestre Cosme armara-lhe uma rede no alpendre e fora-se a desbastar a mata, escanchado na Coruja.

Fazia um belo dia de sol, calmo e luminoso. O arvoredo imóvel dormitava na esplêndida pulverização da luz que o narcotizava para beber-lhe a seiva. O passaredo aninhava-se na verde espessura dos cajueiros em flor, contubernal e gárrulo; rolas bravas debicavam nas clareiras os minúsculos diamantes que o sol punha na areia. E no silêncio e na beatitude daquela espécie de eremitério João pôde dormir um sono bom de duas horas, embalado pelos gemidos da afilhada como por um vago e monótono estribilho trespassado de melancolia.

Às sete horas da noite, ao acender-se a primeira vela, Maria teve um sobressalto e ergueu-se bruscamente com uma fortíssima dor no baixo-ventre, muito branca, o olhar desvairado e os cabelos em desordem.

-Que é isso, comadre! repreendeu a parteira agarrando-a.

-Minha filha! fez tia Joaquina.

E em pé, entre as duas mulheres, com a cabeça arqueada para trás, contorcendo-se numa aflição suprema, a rapariga soltava gemidos estrangulados, cortada de dores, agarrando-se como uma louca ao pescoço das velhas, no bico dos pés, em camisa.

Houve uma confusão extrema.

-Sente-se, comadre, sente-se, por amor de Deus! suplicava a parteira, agarrando-a com jeito.

-Sente-se, minha filha, repetia a outra.

João da Mata acudiu gelado.

-Calma! calma! bradou estacando à porta do quarto.

Mas era tarde. Ouviu-se uma pancada surda no chão, como a queda de um bolão de barro úmido e, imediatamente, rios de sangue jorraram aos pés da parteira, e no linho branco da camisa de Maria do Carmo desenhou-se larga faixa rubra, de alto a baixo, como uma bandeira de guerra desdobrada.

-Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! rosnou Joana Pataca estremecendo.

E Maria tombou como um fardo, sem sentidos, na rede fria.

Passou-se a noite às voltas. O amanuense resolveu não chamar médico -que era uma asneira, o perigo tinha passado. A parturiente adormecera, profundamente, depois de lhe terem ministrado um hidromel de aguardente.

Sobre uma grande caixa de pinho, a um canto do quarto, envolvido em panos, o recém-nascido -uma criança nutrida e robusta- dormia o sono eterno, roxo, de olhos fechados, as gordas mãozinhas cruzadas sobre o peito, com um fio de sangue a escorrer-lhe do nariz.

João não pregara olhos, pensativo, com a calva entre as mãos, ao lado da afilhada. -Era o diabo, era o diabo! Até lhe doía a cabeça! Grandíssima besta, a parteira, que nem ao menos soubera apanhar a criança! Estúpida! deixar morrer uma criança tão bemfeita e nutrida! Isso só acontecia a ele, João da Mata.

De meia em meia hora acendia um cigarro automaticamente e punhase para ali a ruminar silenciosamente, à luz duma triste vela de carnaúba, que pingava a sua cera denegrida, no gargalo duma velha botija de genebra, esbatendo ao fundo do quarto o perfil do recémnascido.

Diabo! pensava o amanuense quebrando a cinza do cigarro. Um caiporismo! Tantos cuidados, tanta aflição, e, afinal de contas, lá ia tudo águas abaixo. Por um lado era uma felicidade o pequeno ter morrido, porque isso de filho natural sempre dava que falar às más línguas e até podia-se descobrir a verdade.

Consolava-se com esta idéia.

Perto, numa palhoça vizinha, havia um samba que durava desde o anoitecer. No silêncio da noite ecoava um alarido medonho, vozes aguardentadas, sapateados que estremeciam o chão, cantos, desafios ao som duma viola cansada.

Maria ressonava docemente, com o rosto voltado para a parede, o tronco repousando sobre chumaços de pano onde brilhavam manchas de sangue. Cerca de onze horas moveu-se devagar, abrindo os olhos e soerguendo-se, como quem acorda de um pesadelo; mas faltaram-lhe as forças e repousou novamente.

-«Queria alguma coisa?» perguntou João.

-Onde está meu filho?

-Não te lembres disso agora, vê se descansas...

-Mas onde puseram ele? Está vivo?

-Qual vivo, filha! Pois querias tu que escapasse?

E em tom lamentoso:

-Coitado, ao menos está no céu, livre das misérias deste mundo...

Maria não se conteve: repuxou o lençol, e, com os olhos cheios de água, murmurou numa voz entrecortada pelos soluços:

-Pobrezinho!... Por que não me disseram logo?...

-Já te pões a chorar!

Maria do Carmo soluçava com desespero, sentindo crescer dentro de si, no íntimo do seu coração, avassalando-a, abalando todo o seu ser, toda a sua delicada alma de mulher, como um sopro violento e devastador, esse inestimável desgosto que as mães sentem ao ver o filho morto. Ela, que desejava tanto criá-lo, amamentá-lo com o seu leite, que era o seu próprio sangue, a sua própria vida, amálo, adorá-lo, com toda a força do seu coração!... Era um filho natural, mas era seu filho, nascido em suas entranhas, carne de sua carne, sangue de seu sangue, havia de amá-lo muito...

-Quero vê-lo, deixe-me vê-lo! pediu aflita.

-Que tolice! fez João agasalhando-a melhor. Não pense nisto agora, criatura, os médicos recomendam toda a calma. A criança está morta, que se há de fazer?...

Continuavam os soluços, um choro estugado, interrompido por uma tossezinha convulsa.

-Mau! mau! tornou João.

E, imediatamente, foi buscar o cadáver do filho, depondo-o carinhosamente sobre os joelhos.

Tia Joaquina apareceu, envolvida numa larga coberta de chita feita de retalhos. «-O que era?...»

-Nada, tia Joaquina. Ela que desejou ver o filho, explicou João. Uma imprudência. Até pode lhe fazer mal...

-Vejam a vela, por favor, pediu Maria. Quero ver meu filho...

E ao mirar o rosto lívido da criança, os bracinhos rechonchudos, o filete de sangue escorrendo do nariz como um veio de rubi, a rapariga sentiu um calafrio e um grande vácuo no peito, como se lhe tivessem arrancado um pedaço do corpo. E entrou a soluçar outra vez de um modo tão penoso e comovente que João da Mata não pôde recalcar duas lágrimas, as primeiras de sua vida, que rolaram vagarosas nas suas faces magras, como duas linfas cristalinas na aspereza tosca duma rocha.

No dia seguinte, antes do sol nascer, mestre Cosme foi ao fundo do sítio cavar uma sepultura para o pequenino cadáver. João acompanhou-o taciturno. Pararam ao pé de um grande cajueiro, que ficava defronte da casa, e, com pouco, o amanuense viu sumir-se debaixo da terra úmida o corpo do seu primeiro filho.

Mestre Cosme socou bem a areia, nivelou o terreno com os pés, e suspirou com força, como depois de um trabalho penoso.

João assistiu em pé, sem dar palavra, mãos para trás, olhos cravados na terra.

-Pronto! fez o velho pousando a enxada no ombro.

-Bem, murmurou João. E seguiram por entre as ateiras calados e graves.

Seriam seis horas da manhã. No alto de um coqueiro que farfalhava à beira do cercado, cantava uma graúna, e as notas límpidas do seu canto vibravam demoradamente na transparência do ar, sobre a verde monotonia do campo, como um toque de alvorada!

Tinha-se calado o samba havia pouco.

Meses depois, quando Maria do Carmo apresentou-se na Escola Normal para concluir o curso interrompido, estava nédia e desenvolta, muito corada, com uma estranha chama de felicidade no olhar. A sua presença foi como uma ressurreição. -A Maria do Carmo, hein?! Nem parecia a mesma! -Houve um alarido entre as normalistas: abraços, beijos, cochichos... Até o edifício tinha-se pintado de novo como para recebê-la!

O programa era outro, mais extenso, mais amplo, dividido metodicamente em Educação Física, Educação Intelectual, Educação Nacional ou Cívica, Educação Religiosa... pelos moldes de H. Spencer e Pestalozzi; o horário das aulas tinha sido alterado, havia uma escola anexa de aplicação, estava tudo mudado!

A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. Liam-se na seção telegráfica da Província as primeiras notícias sobre a proclamação da república brasileira. Dizia-se que o barão de Ladário tinha sido morto a pistola por um oficial de linha, na praça da Aclamação, e que o imperador não dera uma palavra ao saber dos acontecimentos, em Petrópolis.

O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola Militar. Tratava-se de depor o presidente da província, um coronel do exército. Os canhões La Hitte, da fortaleza de N. Sra. d'Assunção, dormiam enfileirados na praça dos Mártires, defronte do Passeio Público guardados por alunos de patrona e gola azul.

Ninguém se lembrava de escândalos domésticos nem de pequeninos fatos particulares.

Um homem revoltava-se, indignado com o novo estado de coisas -era João da Mata.

-É boa! bradava ele na bodega do Zé Gato, esmurrando a mesa. Isto é um país sem dignidade, uma nação de selvagens! Expulsar do trono um monarca da força de Pedro II, mandá-lo para o estrangeiro doente e quase louco, é o cúmulo da ignorância e da selvageria!

E Maria do Carmo, agora noiva do alferes Coutinho da polícia, via diante de si um futuro largo, imensamente luminoso, como um grande mar tranqüilo e dormente.