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Dentro da noite

João do Rio

Preservai-nos, Senhor,
das coisas terríficas que
andam à noite

Rei Davi



A FELIX PACHECO

Cordíalmente

JOÃO DO RIO

Dentro da noite

-Então causou sensação?

-Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita! parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juizo geral é contra o teu procedimento.

-Contra mim?

Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado...

-Eu tenho o ar desvairado?

-Absolutamente desvairado.

-Vê-se?

-É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante artista desta terra, nem trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?

O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d'água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima -o que falava mais- dizia para o outro:

-Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?

O outro sorriu desanimado.

-Não; estou nervoso, estou com a maldita crise. E como o gordo esperasse:

-Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.

-Mas que é isto, Rodolfo?

-Que é isto! E' o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não ha quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries1 de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.

-Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...

O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais -a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.

-Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a que amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher -a beleza dos braços das Oréadas2 pintadas por Botticeli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beija-los, de acaricia-los, mas principalmente de faze-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, aperta-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Porque? Não sei, nem eu mesmo sei -uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém ficou, cresceu, brotou, enraigou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espeta-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de coze-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.

-Que horror!

-Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauteríe3 da viscondessa de Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços -oh! que braços, Justino, que braços!- estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me -«Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?». Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. -«Oh! não! fiz. Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço». Sabes como é pura a Clotilde. A pobresita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: -«Se não quer que eu mostre os braços porque não me disse a mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado?». -«É, é isso, Clotilde». E rindo -como esse riso devia parecer idiota!- continuei «É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete». -«Está louco, Rodolfo?». -«Que tem?». -«Vai fazer-me doer». -«Não dói». -«E o sangue?». -«Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento». E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro «Bem, Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!». E os seus dois braços tremiam.

Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente -«Mau!».

Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo! E apertando os varões da cama, mordendo a travesseira, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer nunca mais farei essa infâmia! Todos os meus nervos latejavam: voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer! Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror...

Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.

-Caso muito interessante, Rodolfo. Não ha dúvida que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marques de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual do assassinato. És um Jack-the-ripper-civilisado4, contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.

O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.

-Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. É lúgubre.

-Então continuaste?

-Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: -«Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa».

Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom5 de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me á garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei.

Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?...

Então depois, Justino, sabes? Foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: -«Fez sangue, ontem?». E ela pálida e triste, num suspiro de rola: «Fez...». Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, á noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios... Justino, que tristeza!...

De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado, e indagou:

-Mas então como te saíste?

-Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. «Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te». E lá de dentro: «Já vou, mãe». Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, ha dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.

-E fugiste?

-Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras idéias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o sossobramento total. Para esquece-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces6. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.

A pedir, a rogar um instante de calma eu corria ás vezes ruas inteiras da Suburra7, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways8, nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa. Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.

A voz do desvairado tornara-se metálica, outra vez. De novo porém a envolveu um tremor assustado.

-Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...

De repente, num entrechocar de todos os vagões, o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loura com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.

-Adeus.

-Saltas aqui?

-Salto.

-Mas que vais fazer?

-Não posso, deixa-me! Adeus!

Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loura. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, em que estava a menina loura. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d'água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.

A Henrique de Vasconcellos.


Ontem, às 6 horas da tarde, fui buscar ao clube da rua do Passeio o velho barão Belfort, que me prometera mostrar, três dias antes, a sua cara coleção de esmaltes árabes. O barão jogava e perdia com um moço febril, que à lapela trazia um crisântemo amarelo, da cor da sua tez. Ao ver-me, disse amavelmente

-Estamos a jogar. O Osvaldo ganha como um inglês e com a alucinação de um brasileiro. Estou perdendo e apreciando este bom Osvaldo, que ainda tem emoções.

Os seus olhares seguiam, frios e argutos, o jogo do bom Osvaldo, e, a cada cartada, tamborilando os dedos na mesa, Belfort sorria um sorriso mau, entre desconfiado e satisfeito. De repente, porém, as pupilas acenderam-se-lhe. Pôs as duas mãos nervosas na mesa, e perguntou, enquanto mais pálido o moço estacava:

-E tu não jogas?

-Não.

-Fazes bem. Um escritor do tempo de Balzac dizia que o jogo era para a mocidade o veneno da perdição. O veneno! Ora vê tu, o veneno!

Sorriu com delicadeza.

-O Osvaldo permite? Vou embora sem mais um real. Até amanhã. E não deixe de tomar água de flor de laranja...

Levantou-se, mirou as unhas brunidas, mirou a gravata, e saiu, deixando o jovem só naquele salão que o pleno verão tornara deserto. Acompanhei-o, não sem olhar para traz. O moço pendia a cabeça na sombra, e assim pálido, com um pálido crisântemo, os seus olhos tinham chispas de susto e de prazer.

Embaixo, no vestiário, o barão deixou que lhe enfiassem o paletó, mandou chamar o coupé9, e partimos discretamente, sob a tarde luminosa e cor de pérola. Belfort aconchegou-se à almofada de cetim malva, acendeu uma cigarrilha do Egito com o seu monograma em ouro, e, enquanto o carro rodava, indagou:

-Que tal achaste o Osvaldo? É o meu estudo agora. Havia meia hora que me roubava escandalosamente... Não lhe disse nada. Ainda é possível salva-lo...

-Quer perde-lo? Indaguei habituado ás excentricidades desse álgido ser.

-Oh! não, quero gozá-lo. Tu sabes, o homem é um animal que gosta. O gosto é que varia. Eu gosto de ver as emoções alheias, não chego a ser o bisbilhoteiro das taras do próximo, mas sou o gozador das grandes emoções de em torno. Ver sentir, forçar as paixões, os delírios, os paroxismos sentimentais dos outros é a mais delicada das observações e a mais fina emoção.

-Oh! ser horrível e macabro!

-Seja; horrível, macabro, mas delicado. É por isso que eu não quero perder o Osvaldo, quero apenas gozá-lo. Preciso não limitar a minha ação humana aos passeios pelo Oriente, às coleções autênticas e a alguns deboches nos restaurantes de grão tom. Mas daí a perde-lo, c'est trop fort...

-Pois não imagina o mal que fez ao pobre Osvaldo. O rapaz estava horrivelmente pálido!

-Tal qual como o outro. Que exemplar, meu caro! Que caso admirável! Esse pequeno ha seis meses odiava o víspora10. Hoje tem a voracidade de ganhar, e tamanha que já rouba. Amanhã arde, queima, rebenta numa banca de jogo. Ah! o jogo! É o único instinto de perdição que ainda desencadeia tempestades nos nervos da humanidade. O Osvaldinho é tal qual o outro, o Chinês, a minha última observação.

-O Chinês?

Belfort soprou o fumo da cigarrilha, sorrindo.

-Imagina que vai para um ano fui apresentado a um rapaz chamado Praxedes, filho de uma chinesa e de um negociante português em Macau. O homem falava inglês, estava no comércio, e vinha de Xangai, com um carregamento de poterias e bronzes por contrabando, para vender. Simpatizei com ele. Era imberbe, ativo, paciente, dizia a cada instante frases amáveis, e casara com uma interessante rapariga, a Clotilde -Clô para os íntimos. Conversou da China, dos boxers11, confessou o contrabando e levou-me a vê-lo. Que vida feliz a daquele casal!

O Praxedes saía pela manhã, trabalhava, voltava para o jantar, e não se largava mais de junto da Clô. Não tinha um vício, nunca tivera um vício, era um chinês espantoso, sem dragões e sem vícios! Estudei-o, analisei-o. Nada. Legislativamente moral.

Uma noite em que o convidara para jantar, jogamos. Adivinharia alguém que cratera esperava o momento de rebentar nessa alma tranquila? A senhora, a Clotilde, cantava no meu piano, com voz triste, a ária do suicídio da detestável Gioconda. Eu estava receoso que depois surgissem variações sobre o bailado das Horas. Disse-lhe despreocupado -«Quer jogar?». -«Não sei». «É sempre agradável ensinar mesmo o vício». -«Então ensine». Pegou das cartas, olhou-as indiferente, mas as minhas palavras ouvia-as desvanecedoramente. Jogamos a primeira partida. Os seus olhos começaram a luzir. Jogamos outra. -«Mas isso assim sem dinheiro? Ponhamos dois tostões». -«Pois seja». Perdi. «Redobra-se a parada?». -«Oito tostões?». -«Sim». -«Pois seja». À meia noite jogávamos a dez mil réis, e Clotilde, muito cansada, já sem cantar, fazia inúteis esforços para o arrancar à mesa.

Deitei-me sem conclusões, e só no dia seguinte, quando o chinês enleado12 apareceu pedindo outra partida, é que compreendi o assombro. A paixão estalara, -a paixão voraz, que corrói, escorcha, rebenta... Invejei-o, e, como homem delicado, joguei e perdi. No outro dia, Praxedes voltou. Levei-o ao clube, à roleta, donde saiu a ganhar pela madrugada.

Ah! meu caro, que cena! que fina emoção! O jogo, quando empolga, domina e envolve o homem, é o mais belo vício da vida, é o enlouquecedor espetáculo de uma catástrofe sempre iminente, de um abismo em vertigem. O Chinês era patético. Com os dedos trêmulos, assoando-se de vez em quando, os olhos embaciados, quase vítreos, o Praxedes rouquejava num estertor silvante que parecia agarrar-se desesperadamente à bola: 27, 15, 2ª dúzia! 27, 15, 2ª dúzia! E a bola corria, e a alma do pobre esfacelava-se na corrida, esforçando-se, puxando-a para o numero desejado, num esforço que o tornava roxo...

Jantei no clube só para não perder algumas horas o interesse desse espetáculo. Também durante três dias e três noites Praxedes não deixou a roleta. Estava pálido, fraco. A gente do clube, vendo-o ganhar, ganhar mesmo uma fortuna, já o tratava de dom Praxedes. Ao cabo de uma semana, entretanto, a chance desandou. Praxedes começou a perder bruscamente com gestos de alucinado, espalhando as fichas como quem arranca pedaços da própria carne.

-«Calma, meu caro, dizia-lhe eu». -«Impossível! impossível!», murmurava ele.

Pediu-me dinheiro, dei-o, pediu a outros, deram-lho. Pediu mais -deixou de ser o dom Praxedes, recebeu recusas brutais. Acabou não voltando mais ao clube. Eu, porém, sentia-o em outros antros, definitivamente preso à sua cruz de horror, à cruz que cada homem tem de carregar na vida...

Certa noite, meses depois, encontrei-o numa batota13 da rua da Ajuda, com o fato enrugado e a gravata de lado. Correu para mim, «Foi Deus que o trouxe. Estou farto de peruar14. Isto de mirone15 não me serve. Empreste-me cinquenta mil réis para arrumar tudo no 00. Ah! está dando hoje escandalosamente. Faremos uma vaca16? Vai dar pela certa».

Agarrou a nota como um desesperado, precipitou-se na roda que cercava o tableau da direita: «Tenho aqui cinquentão; esperem!». E caiu por cima dos outros, com o braço esticado.

O duble-zero falhou. Ele voltou cínico: «É preciso insistir; deixe ver mais algum. Não dá? Olhe, escute aqui, hipoteco-lhe uma mobília de quarto, serve?».

Compreendi então a descabida vertigem daquela queda. Tive pena. Arrastei-o quase à força para a rua, fi-lo contar-me a vida. Estava desempregado, abandonara o emprego, vendera o mobiliário, as jóias da Clô, os vestidos, as roupas, mudara-se para uma casa menor e alugara a sala da frente. A cábula17, a má sorte, a guigne perseguiam-no, e, pendido ao meu braço o miserável soluçava: -«Havemos de melhorar, empreste-me algum. Estou sem níquel!».

Deixei-o sem níquel, mas fui ao outro dia ver a Clotilde, uma flor de beleza, com os olhos vermelhos de chorar e as roupas já estragadas. Ia sair, arranjar dinheiro... -«E seu marido?». -«Meu marido está perdido. Anda por aí a jogar. Há dois dias não o vejo; hoje não comi...». -«Abandone-o!». -«Abandona-lo eu? E a sociedade, e ele? Que seria dele?». -«Ora, ele!». -«Ele ama-me, ama-me como dantes. Mas que quer? Veio-lhe a desgraça. Às vezes brigo, mas ele diz-me: Ai! Clô, que hei de fazer? É uma força, uma força que me puxa os músculos. Parece que desenrolaram uma bola de aço dentro de mim, tenho de jogar. E cai em prantos, por aí, tão triste, tão triste que até lhe vou arranjar dinheiro, que saio a pedir...».

É espantoso, pois não? O homem tinha uma bola de aço e a fidelidade da mulher! Só esses seres especiais conseguem coisas tão difíceis!

Um instante o barão calou-se. O coupé rolava pela praia, e a noite, caindo, desdobrava por sobre o mar a talagarça18 fuliginosa das primeiras sombras.

-Respeitei a Clotilde, por sistema, já assustado com as proporções emocionais do marido. Ao outro dia, porém, Praxedes. com sorrisinhos equívocos na face escaveirada: «Esteve com a Clô, hein? Conservada apesar da desgraça, a minha mulherzinha, pois não?...». Recuei assombrado. Aquele homem bom, digno no fundo, aquele homem que amava a mulher, para arranjar dinheiro com que satisfazer as cartas e a roleta, mercadejava-a aberta, cínica, despejadamente. -«Que queres tu? Indaguei áspero, tem vergonha, vai, some-te!».

-«Eu hipoteco uma mobília. Só quinhentos, só quinhentos!».

Era a alucinação. Corri-o, e esperei ansioso como quem espera o final de uma tragédia, porque tinha a certeza do paroxismo daquele vício. Afinal há de haver seis meses, antes do meu encontro com o Osvaldo, li, na cama, às 3 da manhã, este bilhete desesperado «Venha. Praxedes matou-se. Estou sem ninguém. Acuda-me. -Clô».

Ai! menino, não sei o que senti. A minha vontade era ver, era saber, era acabar logo. Precipitei-me. Quando cheguei, às voltas com a polícia que queria levar o corpo para o Necrotério, Clotilde, desgrenhada, com os lábios em sangue, caiu nos meus braços. -«Então, como foi isso?». -«Sei lá como foi! Tinha que ser! A desgraça! Estava doido. Hipotecou a mobília, os juros eram semanais. Não arranjei dinheiro e o judeu levou-a. Dormi no chão. Ontem não apareceu. Hoje estava eu a dormir quando o senti que caminhava. Risquei o fósforo. Era ele, lívido, embrulhando a casaca do casamento. Não sei o que me deu. -'Onde vais?'. -'Vou ver se arranjo uns cobres, respondeu. Preciso jogar, sinto uma ânsia, não posso mais'. -'Estás doido!' -'Não estou, Clô, não estou', fez ele arregalando os olhos. Eu fui cruel: olha que se vendes a casaca ficas sem roupa para o enterro. Ele parou. 'Para o enterro? Para o meu enterro? É melhor mesmo, é melhor mesmo, eu não posso mais!'. E, de repente, desesperado, começou a bater com a cabeça pelas paredes. Praxedes! Praxedes! Não faças isso! Praxedes! Gritei, solucei. Qual! Cada vez arrumava o crânio com mais força de encontro às quinas das portas. O som, ah! esse som como me ensandece! Ainda o ouço! E ele todo em sangue, todo em sangue... Agarrei-o. Arrastou-me até à janela, voltou-se, deixou-se cair em cheio com a nuca na sacada, esticou o pescoço desesperadamente e rodou... Oh! o horror! salve-me! salve-me!».

Abri o grupo dos agentes, fui ver Praxedes. Estava cor de cera, com a cabeça fendida e os lábios coagulados de sangue roxo. E o olhar vítreo, a mão recurva, assim, sob a luz da madrugada, pareciam seguir ainda e acompanhar o mal a que o impelira a sua bola de aço.

Esse record de emoção desesperada prostrou-me. Nunca vi sentir tão vertiginosamente.

O carro parara. O barão saltou, subiu de vagar as escadas de mármore, enquanto no interior do palacete retiniam campainhas elétricas.

-Preciso sentir vendo os outros sentir, fez mirando-se no alto espelho do vestiário. Só assim tenho emoções. Garanto-te que o Osvaldo acaba como o chinês de Macau, mas por outro meio -com a morfina talvez. Só os chineses morrem às cabeçadas por sentir demais!

E fomos jantar tranquilamente na sua mesa florida de cravos e anêmonas brancas.

História de gente alegre

O terraço era admirável. A casa toda parecia mesmo ali pousada á beira dos horizontes sem fim como para admira-los, e a luz dos pavimentos térreos, a iluminação dos salões de cima contrastava violenta com o macio esmaecer da tarde. Estávamos no Smart-Club, estávamos ambos no terraço do Smart-Club, esse maravilhoso terraço de vila do Estoril, dominando um lindo sítio da praia do Russel -as avenidas largas, o mar, a linha ardente do cais e o céu que tinha luminosidades polidas de faiança persa. Eram sete horas. Com o ardente verão ninguém tinha vontade de jantar. Tomava-se um aperitivo qualquer, embebendo os olhos na beleza confusa das cores do ocaso e no banho viride19 de todo aquele verde em de redor. As salas lá em cima estavam vazias; a grande mesa de baccarat20, onde algumas pequenas e alguns pequenos derretiam notas do banco -a descansar. O soalho envernisado brilhava. Os divãs21modorravam em fila encostados às paredes -os divãs que nesses clubes não têm muito trabalho. Os criados, vindos todos de Buenos-Aires e de S. Paulo, criados italianos marca registrada como a melhor em Londres, no Cairo, em New-York, empertigavam-se. E a viração era tão macia, um cheiro de salsugem22 polvilhava a atmosfera tão levemente, que a vontade era de ficar ali muito tempo, sem fazer nada.

Mas a noite já estendia o seu negro brocado picado de estrelas e no plein-air do terraço começavam a chegar os smart-diners. Que curioso aspecto! Havia franceses condecorados, de gestos vulgares, ingleses de smoking e parasita à lapela, americanos de casaca e também de brim branco com sapatos de jogar o foot-ball e o lawn-tenis23, os elegantes cariocas com risos artificiais, risos postiços, gestos a contragosto do corpo, todos bonecos vítimas da diversão chantecler, os noceurs24 habituais, e os michés25 ricos ou jogadores, cuja primeira refeição deve ser o jantar, e que apareciam de olheiras, a voz pastosa, pensando no bac-chemin-de-fer26, no 9 de cara e nos pedidos do último béguin27. O prédio, mais uma «vila» da bacia do Mediterrâneo, ardia na noite serena, parecia a miragem dos astros do alto; as toalhas brancas, os cristais, os baldes de christofle28tinham reflexos. Por sobre as mesas corria como uma farândola29fantasista de pequenas velas com capuchons30 coloridos, e vinha de cima uma valsa lânguida, uma dessas valsas de lento enebriar, que adejam vôos de mariposas e têm fermatas que parecem espasmos. No meio daquela roda de homens, que se cumprimentavam rápidos, dizendo apenas as últimas sílabas das palavras: -B'jour, Plo... deus! goo, iam chegando as cocottes31, as modernas Aspásias32 da insignificância. Algumas vinham a arrastar vestidos de cinco mil francos; outras tinham atitudes simplistas dos primitivos italianos. Havia na sombra do terraço, um desfilar de figuras que lembravam Rossetti e Heleu, Mirande e Herman-Paul, Capielo e Sem, Julião e também Abel Faivre, porque havia cocottes gordas, muito gordas e pintadas, ajaezadas de jóias, suando e praguejando. Falavam todas línguas estrangeiras -o espanhol, o francês, o italiano, até o alemão com o predomínio do parigot, do argot, da langue verte33. Só se falava mesmo calão de boulevard34. Fora, à entrada, paravam as lanternas carbunculantes35 dos autos, havia fonfons roucos, arrancos bruscos de máquinas H. P. 60. Aquele ambiente de internacionalismo à parisiense cheio do rumor de risos, de gluglus de garrafas, de piadas, era uma excitação para a gente chique. O barão André de Belfort, elegantíssimo na sua casaca impecável convidara-me para um jantar a dois em que se conversasse de arte antiga -porque ele tinha estudos pessoais sobre a noção da linha na Grécia de Péricles. Evidentemente, antes de terminar o jantar teríamos a mesa guarnecida por alguma daquelas figurinhas escapas de Tanagra36 ou qualquer dos gordos monstros circulantes...

De súbito, porém, na alegria do terraço ouvi por trás de mim uma voz de mulher dizer:

-Pois então não sabes que a Elsa morreu hoje de madrugada?

Não me voltei. A mulher conversava noutra mesa. Mas senti um pasmo assustado. Elsa! Seria a Elsa d'Aragon, uma carnação maravilhosa de dezoito anos, lançada havia apenas um mês por um manager37 de music hall, cuja especialidade sexual era desvirginar meninas púberes? Seria ela com os seus olhos verdes, a pele veludosa de rosa-chá e aquela esplêndida cabeleira negra de azeviche? E morrer em plena apoteose, cheia de jóias e de apaixonados! Indaguei do meu conviva:

-Morreu a Elsa d'Aragon?

O barão Belfort encomendava enfim o cardápio. Acabou tranquilamente a grave operação, descansou o monóculo em cima da mesa.

-Exatamente. Parece que a apreciavas? Pobre rapariga! Foi com efeito ela. Morreu esta madrugada.

-De repente?

-Com certeza. Devia ter sido uma linda morte. Beleza horrível. Não se fala noutra coisa hoje nas pensões de artistas, em todos os conventilhos elegantes patronados pelas velhas cocottes ricas, nas rodas dos jogadores. A Elsa era muito nature38, com a fobia do artifício, mas soube morrer furiosamente.

-Como foi?

Neste momento chegara a bisque39e o balde com a Môet, brut imperiale40, que o velho dandy41bebe sempre desde o começo do jantar.

O barão atacou a bisque, deu não sei que ordem ao maître-d'hôtel, e murmurou:

-É uma história interessante. Você de certo ainda não quis fazer a psicologia da mulher alegre atirando-se a todos os excessos por enervamento de não ter o que fazer? Quase todas essas criaturas, altamente cotadas ou apenas da calçada, são, como direi? as excedidas das preocupações. Estão sempre enervadas, paroxismadas. O meio é atrozmente artificial, a gargalhada, o champanhe, a pintura encobrem uma lamentável pobreza de sentimentos e de sensações. Ao demais, a vida tem um regulamento geral de excessos, e elas fatalmente pela lei, têm que fazer pagar caro e arruinar os idiotas, têm de amar um rapazola miserável que lhes coma a chelpa42e as bata, têm que embriagar-se e discutir os homens, os negócios das outras, tudo mais ou menos exorbitando. Uma paixão de cocotte é sempre caricatural, é sempre para além do natural, do verdadeiro, e a sua pobre vida, tenha ela centenas de contos ou viva sem um real pelas bodegas reles, é sempre uma hipótese falsificada de vida, uma espécie de fiorde num copo d'água, à luz elétrica. Todas amam de modo excepcional, jogam excessivamente, embriagam-se em vez de beber, põem dinheiro pela janela à fora em vez de gastar, quando choram, não choram, uivam, ganem, cascateiam lagrimas. Se têm filhos, quando os vão ver fazem tais excessos que deixam de ser mães, mesmo porque não o são. Duas horas depois os pequenos estão esquecidos. Se amam, praticam tais loucuras que deixam de ser amantes, mesmo porque não o são. Elas tem varias paixões na vida. Cinco anos de profissão acabam com a alma das galantes criaturinhas. Não há mais nada de verdadeiro. Uma interessante pequena pode se resumir: nome falso, crispação de nervos igual à exploração dos gigolôs e das proprietárias, mais dinheiro apanhado e beijos dados. São fantoches da loucura movidos por quatro cordelins da miséria humana.

-A Elsa, então?

-A Elsa foi atirada subitamente numa pensão do Catete. Sabes o que é a vida em casas de tal espécie. Elas acordam para o almoço, em que aparecem vários homens ricos. O almoço é muito em conta, os vinhos são caríssimos. A obrigação é fazer vir vinhos. Desde manhã elas bebem champanhe e licores complicados. Nesses almoços discute-se a generosidade, a tolice, ou a voracidade dos machos. A tarde é dada a um ou a dois. Às cinco, toilette e o passeio obrigatório. À noite, o jantar em que é preciso fazer muito barulho, dançar entre cada serviço ou mesmo durante, dizer tolices. Depois o passeio aos music-halls, com os quais tem contrato as proprietárias, e a obrigação de ir a um certo clube aquecer o jogo. Cada uma delas têm o seu cachet por esse serviço e são multadas quando vão a outro -que, como é de prever, paga a multa. O resto é ainda o homem até dormir. Nesse fantochismo lantejoulado há vários gêneros: o doidivana, o sério, o reservado, o nature, o romântico, e para encher o vazio, os vícios bizarros surgem. Elas ou tomam ópio, ou cheiram éter, ou se picam com morfina, e ainda assim, nos paraísos artificiais são muito mais para rir, coitadas! mais malucas no manicômio obrigatório da luxúria. A Elsa era do gênero nature. Ancas largas, pele sensível, animal sem vícios. Tentou os petimetres,43 os banqueiros fatigados, os rapazes calvos e, com oito dias estava com os nervos esgarçados, estava excedida. Mesmo porque, desde a primeira hora olhava-a com o seu olhar de morta a Elisa, a interessante Elisa.

-Ah!

-Elisa é um tipo talvez normal nesse ambiente. Tem os cabelos cortados, usa eternamente um gorro de lontra. Nunca a vi com uma jóia e sem o seu tailleur cor de castanha. É feia, não deve agradar aos homens, mas presta-se a todos os pequenos serviços dessas damas. Escreve cartas, arranja entrevistas, tem conhecimentos, e dizem-na com todos os vícios, desde o abuso do éter até o unisexualismo44. Ora, era Elisa com os seus dois olhos mortos e velados que olhava Elsa, e Elsa sentia uma extraordinária repugnância, um nojo em que havia medo ao mais simples contato. Elisa sorria, a Elisa que está sempre nesses lugares, sem colete com o seu corpo de andrógino morto. E era em toda parte aquele mesmo olhar acompanhando Elsa, pregando-se a todos os seus gestos, lambendo cada atitude da criatura. Uma noite, as duas Lacroix Ducerny, as que vestem sempre iguais e fazem fortuna em comum, asseguraram-me que Elisa já não servia para nada, perdida, louca de paixão; e, com grande pasmo meu ao entrar num clube ultra infame, eu vi a Elsa com um conhecido banqueiro e, muito naturalmente, Elisa ao lado. Era a aproximação...

-Safa!

-Meu caro, nada de repugnâncias. Prove este faisão. Está magnifico. Ora, ontem, no Casino, como a pobre Elsa estava totalmente fora dos nervos e com um vestido verdadeiramente admirável, tive prazer em ir apertar-lhe a mão. -«Então, como vai com esta vida?». -«Como vê, muito bem». -«Mas está nervosa». -«Há de ser de falta de hábito. Acabo por acostumar». -«Com um tão belo físico...». -«Não seja mau, deixe os cumprimentos». E de súbito -«Diga-me, barão, não há um meio da gente se ver livre disto? Não posso, não tenho mais liberdade, já não sou eu. Hoje, por exemplo, tinha uma imensa vontade de chorar». -«Chore, é uma questão de nervos. Ficará de certo aliviada». -«Mas não é isso, não é isso, homem!» -«Se a menina continua a gritar, participo-lhe que vou embora». -«Não, meu amigo, perdoe. É que eu estou tão nervosa! tanto! tanto... Queria que me desse um conselho». -«Para que?». -«Para aliviar-me». -«É difícil. Você sofre de um mal comum, a surmenagem45 do artificio. Eu podia dizer-lhe: recolha-se a um convento. Mas pareceria brincadeira e talvez viesse a morrer mística, a conversar com os anjos, como Swedenborg46. Conheci algumas que acabaram assim. Podia também, se fosse um idiota, aconselhar a vida honesta. Mas isso seria impossível porque o pesar de ter saído desta em que o desperdício é a norma, a saudade e as lembrança deixá-la-iam amargurada. Depois não tem recursos e teria sempre que pôr em circulação o seu lindo capital». -«Barão, por quem é, fale-me sinceramente». -«Então, minha filha, aconselho uma paixão ou um excesso, um belo rapaz ou uma extravagância». -«Nesta roda não há belos rapazes». -«De acordo, há quando muito velhos recém-nascidos. Mas é recorrer à multidão, passar uma noite percorrendo os bairros pobres, experimentar. Ou então, minha cara, um grande excesso: champanhe, éter ou morfina...». Voltei-me para a sala. Num camarote fronteiro a Elisa olhava com os seus dois olhos de morta. «E se não a repugna muito uma grande mestra dos paraísos artificiais, a Elisa». -«Não fale alto, que ela percebe». -«Então já a sabia lá?». -«Corri-a ontem do meu quarto. É um demônio». -«Mas você precisa de um demônio». -«O que ela faz...». -«Já sei, toda a gente faz. Mas naturalmente ela é excepcional». -«Barão, vá embora». -«Adeus, minha querida». Quando dei a volta para falar a Elisa, já esta deixara vazio o camarote.

-E então, como morreu a linda criatura?

-Aceitando o meu conselho. A sua morte pertence ao mistério do quarto, mas devia ser horrível. Elsa partiu do music-hall diretamente para casa, pretextando ao banqueiro que lhe ia pôr um pequeno palácio, a forte dor de cabeça -a clássica migraine47 das cocottes enfaradas ou excedidas. E apareceu na ceia da pensão como uma louca, a mandar abrir champanhe por conta própria. Quando por volta de uma hora apareceu a figura de larva48 da Elisa, deu um pulo da cadeira, agarrou-lhe o pulso: «Vem; tu hoje és minha!». Houve uma grande gargalhada. Essas damas e mais esses cavalheiros tinham uma grande complacência com a Elisa, e aquela vitória excitava-os. Elisa molemente sentou-se ao lado da Elsa, que bebia mais champanhe, sentia afrontações e torcia os dedos da apaixonada por baixo da mesa. Era o desespero. Mimi Gonzaga assegurou-me que ela recebera uma carta da mãe logo pela manhã. No fim, Elsa, pálida e ardente, dizia: «Viens, mon cheri, que je te baise!», e mordia raivosamente o pescoço da Elisa. Via-se a repugnância, a raiva com que ela fazia a cena de Lesbos -pobre rapariga sem inversões e estetismos à Safo49... A ceia acabou em espetáculo, e acabaria com todos os espectadores, se algumas mulheres com ciúmes dos seus senhores -ah! como elas são idiotas!- não os tivessem levado. Elsa às duas e meia fez erguer-se a Elisa, calada e misteriosamente fria. «Vão tomar morfina? interrogou um dos assistentes, cuidado, em?». Elsa deu de ombros, sorriu, saiu arrastando a outra. E a desaparição foi teatral ainda. Os olhos verdes da Elsa bistrados50, a sua cabeleira desnastra51, agarrando com um desespero de bacante a pastosidade oleosa e alourada da miserável que a queria.

-Que horror!

-A coitadinha aturdia-se. É o processo habitual. Para mostrar a sua livre vontade caía na extravagância, agarrava o tipo que a repugnava, para mergulhar inteiramente no horror. Estive quase a acreditar que tivesse recebido alguma lembrança dos parentes, e imaginei um instante a cena sinistramente atroz do quarto em que enfim, como uma larva diabólica, o polvo louro da roda iria arrancar um pouco de vida àquela linda criatura ardente, ainda com uns restos de alma de mulher... Nunca porém pensei no fim súbito.

Pelas cinco horas da manhã, a pensão acordava a uns gemidos roucos, que vinham do quarto de Elsa. Eram bem gritos estertorados de socorro. As mulheres desceram em fralda, os criados ergueram-se com o sorriso cínico habituado àquelas madrugadas agitadas de ataques e de delírios histéricos. A porta do quarto estava fechada. Bateram, bateram muito, enquanto lá dentro o som rouco rouquejava. Foi preciso arrombar a porta. E a cena fez recuar no primeiro momento a tropa do alcouce. Como luz havia apenas a lamparina numa redoma rosa. O quarto, cheio de sombra, mostrava, em cima das poltronas, as sedas e os dessous52 de renda da Elsa. Um frasco de éter aberto, empestava o ambiente. A Elisa, o corpo da Elisa estava de joelhos à beira da cama. Os braços pendiam como dois tentáculos cortados. Inteiramente nua, o corpo divino lívido, os cabelos negros amarrados ao alto como um casco de ébano, Elsa d'Aragon, as pernas em compasso, a face contraída, ainda sentada agarrava com as duas mãos numa crispação atroz, a cabeça da Elisa. Era Elisa que rouquejava. Elsa estava bem morta, o corpo já frio. Devia ter havido luta, resistência de Elsa, triunfo da mulher loura e por fim sem fim até a morte, enquanto a outra se estorcia, apertava-a, arrancava-lhe os cabelos, machucava-lhe o rosto -aquele horror. Elsa entrara no nada debatendo-se, vítima de um suplício diabólico, mas no último espasmo as suas mãos agarram a assassina. Quando esta afinal satisfeita quis erguer-se, sentiu-se presa pelos cabelos, tentou lutar, viu que a pobre era cadáver. E passou-se então para o monstro o momento do indizível terror, o momento em que se vê para sempre o mundo perdido porque ficou imóvel rouquejando, de joelhos, a cabeça no regaço do cadáver, que mantinha nas mãos cerradas a massa dos seus cabelos de ouro. Os dedos de resto pareciam de aço. Uma das mulheres recorreu à tesoura para despegar a cabeça de Elisa das mãos do cadáver. Quando o corpo tombou no leito com o punhado da cabeleira nas mãos, o bando estremunhado viu surgir a face de Elisa, tão decomposta, tão velha, que parecia outra, como que aparvalhada.

Houve um silêncio. O criado servia frutas geladas, esplêndidas pêras de Espanha e uvas das regiões vinhateiras da Borgonha, grandes uvas negras. O barão trincou de uma pêra.

-Foi uma complicação para afastar a polícia e impedir notícias nos jornais que desmoralizariam a casa. Elisa seguiu horas depois para o hospício, babando e estertorando. A Elsa devia ter sido enterrada hoje á tarde. Estive lá a ver o cadáver. Tinha ainda nas mãos cerradas fios de cabelos louros, como se quisesse arrancar para o túmulo a prova desesperada da sua morte horrível.

E mordeu com apetite a pêra. No salão de cima uma valsa lenta, chorada pelos violinos, enlanguecia o ar. Das mesas do terraço entre a iluminação bizantina das velas de capuchons coloridos subia o zumbido alegre feito de risos e de gorgeios de todas aquelas mulheres que o jantar alegrava.

O fim de Arsênio Godard / Do diário íntimo de um revoltoso

A Goulart de Andrade.


Estava tudo combinado. Era impossível falhar. Quando a lancha partiu, sem rumor, explorando a treva do oceano encapelado, ficamos entretanto nervosos. Seriam muitos? Seria um só? Ah! Se os bandidos fossem apanhados! Os nossos nervos, excedidos já por aqueles três meses de enjaulamento na baía, sob o canhoneio das fortalezas e as necessidades mais duras, começavam a dar aos pequenos fatos uma importância capital, uma importância desproporcional. Assim, ao recebermos a denuncia amiga de que um ou mais homens conseguiam a nado levar instruções aos legalistas, a explosão da nossa cólera foi tal que, vendo-a, ninguém deixaria de julgar as instruções causa única do nosso enervante estado.

Quase todos nós, paisanos levados pelas circunstâncias e as perseguições tirânicas dos sequazes do marechal53 àquela vida do vaso de guerra, estávamos encostados à amurada com os oficiais e o comandante a ver se víamos o trabalho da lancha no negror da noite.

Oh! era demais! Havia oito dias mastigáramos a meia ração de feijão preto sem toucinho. O patriotismo, a indignação pelos descalabros do governo caíam intimamente num relaxamento lamentável. O desejo único era deixar a baía, era acabar com aquilo, era tirar dos ombros aquela mão de ferro das situações insolúveis em que só complicavam as traições dos ingleses, as intimativas americanas e a falência das nossas vitórias. E na treva da noite sem estrelas todas as cóleras se fundiam no ser que os nossos iam apanhar, como se fosse ele a causa do ror de desastres havidos.

-É verdade, indagou um médico, em terra o exemplo da bondade, que castigo havemos de dar ao canalha?

-É boa, passamo-lo pelas armas!

Era um exemplo, mas seria pouco para o infame. Só se o fizéssemos mira de um tiro ao alvo geral. Todos nós atiraríamos.

-E ele só sentiria uma vez! O comandante, qual será o castigo do patife?

O comandante era um cavalheiro elegante e fino. Voltou-se a sorrir:

-Conforme. Na carta que mo denunciou dizem-no estrangeiro. Que seja. É impossível justiça-lo. Se for brasileiro, porém, passamo-lo pelas armas.

Ah! íamos ter urna noite interessante e divertida afinal! O miserável veria com quem se metera! E no olhar de cada um de nós havia a expectativa e no riso dos outros, como talvez no nosso, um repuxamento de lábios queria sorrir e mostrava os dentes como um esgar de fera.

Esperamos assim entretanto até de madrugada. A fadiga prostrara alguns, soprava um vento de chuva, violento e úmido; o comandante recolhera; a lancha não voltava. Já a inquietação sucedia à fúria quando à amurada a lancha acostou. Todos nós corremos numa ânsia má, numa ânsia de vingança, ávidos de ver em primeiro lugar o torpe, o infame, que toda noite passava por nós arriscando a vida para complicar e perder a nossa vida. O comandante deixou a cabine apressadamente, a oficialidade vinha de todos os pontos do vaso de guerra. E, naquele surdo rumor de cólera, os companheiros de lancha içaram para o tombadilho, amarrado, manietado, como que dobrado em dois, um corpo nu, membrudo e forte.

-Muitos?

-Um só, comandante. Ia com um saco cheio de cartas.

-E o saco?

-Aqui está.

-Desamarrem o homem.

Dois marinheiros curvaram-se; outro acendeu uma lanterna de furta-fogo e assim conseguimos ver a cara do tipo, uma cara comum, de bigode castanho e olhos turvos. Logo que o soltaram, a voz um tanto inquieta, mas clara, exclamou:

-Mr. le comandant, j 'suis français!

-Os legalistas são brasileiros. Ninguém aqui compreende línguas estrangeiras.

-Eu falo o português. Sou francês, senhores, peço explicar o fato.

-Você ainda quer explicar, hein? Que topete!

-Mas é um direito.

-Direitos para um sujeito pescado de madrugada!

-Eu exijo!... Você não exige nada; nós é que fazemos de você o que quisermos. Levem esse homem para a sala de armas, a aguardar as minhas ordens...

Os marinheiros foram levando o homem aos trancos. Nós ficamos na expectativa. O comandante, entretanto, fazia conduzir o saco à sua cabine.

-Boa noite, meus senhores.

-E o castigo, comandante?

-Ah! o castigo... já pensei. Apenas só lho direi amanhã. É preciso faze-lo passar a noite fazendo palpites. Vocês não imaginam como é interessante passar a noite imaginando várias desgraças irremediáveis, que todas elas são perfeitamente possíveis e hão de se dar algumas horas depois... Até logo mais, meus amigos.

Recolhemos. Que castigo imaginaria aquele homem refinado e distinto? Como estaria o outro, nu, na madrugada álgida, lá em cima? Dormiria? Pensaria? Pensaria na morte decerto, porque era impossível outro gênero de castigo...

Um marinheiro descia.

-Como vai o homem? Indagamos.

-Parece dormir; sim, senhor.

Nós é que não dormimos. Ficamos no beliche, nervosos, à espera daquela morte, daquela cena atroz, fatal dali a momentos. Que se daria, céus clementes?

No dia seguinte, às 8 da manhã, fomos convidados a ir à sala de armas. O homem nu lá estava, carrancudo, com o olhar turvo, mordendo o bigode. E quando o comandante chegou, houve um arrepio geral, um arrepio de medo. O comandante, porém, estava amável e sentara-se.

-Como se chama?

-Arsênio Godard.

-Ah! muito bem.

-Eu desejava explicar...

-Oh! inteiramente inútil. Venho dizer-lhe o que resolvi a respeito. Sr. Arsênio Godard, o senhor vai viver conosco até o fim da nossa ação. Vê-se que o senhor é um homem, corajoso, forte. Excelente companheiro! Vou mandar-lhe uma roupa. Terá um beliche seu. O navio é inteiramente seu. Apenas, como o senhor nada bem e pode não gostar da nossa companhia, será acompanhado sempre. Não desejamos que nos abandone.

O francês olhava, tentando descobrir a insídia, procurando saber que castigo horrendo aquele vencedor arquitetava entre frases de mel.

-Mas, Sr. comandante, devo dizer...

-Eu é que devo dizer que jantará à nossa mesa. Ah! nós não passamos à vela de libra, como os patriotas da cidade. Mas, enfim, come-se. Vai-ver. Não imagina o prazer que nos dá a sua companhia. Está entendido então? Bem. Até o almoço. Guardião, uma roupa ao Sr. Godard.

Era de tal modo grave a atitude do comandante que nenhum de nós se atreveu a interroga-lo. Também a explicação veio minutos depois, terminante e terrível.

O tenente João chamou-nos de parte e em voz seca deu a ordem de cima.

O Sr. comandante proíbe que se converse ou se responda ao preso. O Sr. comandante considera uma deslealdade à causa e à sua pessoa dizer uma palavra ao Sr. Godard, até segunda ordem.

Era o suplício do silêncio! Era o castigo! Alguns acharam fraco -eram os ingênuos.

Outros sorriram, imaginando as resultantes daquele sport, a perseguição do silêncio ao pobre sujeito. Como tomaria ele a vingança?

À hora do almoço, Godard apareceu, seguido de um marinheiro. Pediu licença, sentou-se. Ninguém olhava para ele. Ao primeiro prato atirou-se com uma fome indizível, verificando se lhe prestávamos atenção. Afinal, não se conteve:

-Sr. comandante, não sei como agradecer...

O comandante continuou a falar com o tenente João. Godard quis insistir, atrapalhou-se, voltou para o vizinho da direita:

-Eu devia dizer ao comandante...

O vizinho da direita dirigiu a palavra ao companheiro ao lado. Godard atirou-se para frente:

-Sim, a generosidade dos senhores...

Os convivas do outro lado nem voltaram o rosto. Godard cruzou o talher e esperou até o fim o almoço. Quando o comandante ergueu-se, foi até ele:

-Devo agradecer a sua bondade.

O comandante nem voltou o rosto. Era cômico, se não fosse atroz. Teria coragem o homem para resistir a essa humilhação sem palavras? Godard passou o dia passeando no convés. Ao jantar, a cena renovou-se. À tarde começou o clássico bombardeio de terra para os navios, dos navios para terra. Era todo o dia aquela ceifa de vidas inútil e dispendiosa. Godard parava junto de nós.

-Eu sei atirar muito bem.

Nem uma palavra. Não o ouvíamos; ninguém o percebia. À noite, reunidos para tomar o mate, Godard de novo surgiu, acompanhado do marinheiro.

-Não quero, Sr. comandante, deixar passar o dia, sem agradecer a bondade geral. Não me falam. É justo o ressentimento. Mas eu não sou adversário, sou um ganhador, que, como os condottieri, mercadeja o seu valor. Com os revoltosos, permitam a palavra, não posso mercadejar, porque pouparam a minha vida, sustentada à custa de muito risco. Estou pois às ordens...

Mas, a pouco e pouco, os oficiais tinham saído e Godard estava só diante do marinheiro mudo e sério.

No dia seguinte, o nosso preso apareceu ao almoço sombrio, cumprimentou sem ser correspondido, abancou noutro lugar, mastigou sem dizer palavra, ergueu-se, agradeceu, insistiu:

-Se o Sr. comandante me desse licença para expor um plano de ataque, conhecendo eu como conheço as posições inimigas... Perdão! É traição. Vejo que não sou ouvido... Agradeço, entretanto.

Oh! era evidente que Arsênio Godard, tipo voluntarioso, fazia um esforço sobre-humano para conter a cólera, para não desesperar diante daquela horrível situação que o fazia viver no navio como se estivesse só, inteira e definitivamente só. Os olhos ardiam de cólera, os beiços estavam brancos e as mãos tremiam, tinham um tremor de fúria. Talvez ainda se julgasse capaz de vencer o castigo, porque, à noite, bruscamente, foi ao comandante e de novo insistiu sobre os seus planos. Ao cabo de quatro dias, entretanto, durante o almoço, Godard ergueu-se.

-Digam? É para sempre o silêncio? Ninguém me fala? Mas eu sou um idiota, um animal, um leproso? Que sou eu? Não respondem? Matem-me! É infame, afinal. Os infames sois vós. Retiro-me. Não como mais. Não fujo, é verdade; mas morro de fome. Adeus, senhores.

Saiu a bater com os pés para a sua cabine. Nós continuamos a conversar das coisas que nos interessavam. Só o marinheiro acompanhou-o, como a própria sombra muda.

E foi então a luta mais curiosa e mais atroz, o sport mais doloroso e mais inquietante que jamais viramos, entre a palavra e o silêncio. Cada um de nós, com o instinto animal de vencer, não respondia só para obedecer ao comandante, não respondia porque responder seria a vitória do pobre diabo. Cada figura de bordo era um componente daquela máquina de separação, daquela máquina que o tenente João chamava o pneumático da vontade, a rarefação do homem, porque a palavra é a vida, e falar, trocar palavras é sentir-se viver. Godard sentia bem que nós o murávamos no silêncio, que nós cada dia erguíamos mais alto aquele muro de mudez que as suas palavras não podiam, não conseguiriam quebrar. Resistiu dois dias, no camarote, à fome. Depois veio à mesa feroz e sombrio como um jaguar e nessa atitude conservou-se dez dias, dizendo apenas: obrigado e bom dia. Ficava à porta do camarim, bufando e fumando. Se alguém passava por acaso, erguia-se tinha um rictus irônico:

-Obrigado!

Ao cabo desse tempo veio-lhe o relaxamento dos nervos, o acicate54 da vontade mordeu-o mais forte. Era preciso obter uma resposta, sentir que não estava morto! Inventou estratagemas. Acompanhava uma pessoa até saber-lhe o nome e de repente dizia-lhe nas costas, disfarçando a voz:

-Ó José!

Esperava em lugares solitários alguém, pedia fósforos, encartava nas palestras acaloradas uma frase dessas que exigem réplica, discussão espreitava o abandono dos marinheiros para obter uma palavra, uma apenas. Nós estávamos, porém, numa situação por demais irritante, com os tiroteios, a falta de víveres e a certeza de um fim próximo, para consentir em perder. Ao demais, se ele sofresse resignadamente, talvez algum sentimental abalado respondesse. Mas Godard era um voluntarioso, a resignação não a compreendia. Cada dia passado era para os seus nervos mais um motivo de fúria, de raiva contida. De modo que no vaso de guerra em plena revolta, havia apenas o diabólico sport de um homem contra trezentos, querendo falar, querendo viver, querendo rebentar o sudário de silêncio com que o enterravam moralmente, sem o conseguir.

Dos meios sutis, Godard caiu nos meios baixos. Ia ao comandante:

-A imoralidade do seu navio é assombrosa. Acautele-se contra o imediato que o venderá na primeira ocasião!

E inventava intrigas entre os paisanos e os oficiais, arrastava reticências, esperava a pergunta... Nós nem sorriamos. Um silêncio absoluto, um verdadeiro silêncio que ia até aos gestos, como se diante dele estivéssemos diante de um objeto indiferente e inanimado, acolhia a infantilidade desesperada.

Da intriga, Arsênio Godard caiu na humilhação. Para chegar a este excesso, era preciso sofrer estrafegadamente55, e Godard sofria. Tinha as pálpebras arroxadas, o semblante lívido, o olhar apuado56 pela preocupação constante, o gesto vago. Uma noite, de repente, depois de uma bala ter rebentado no convés, lacerando as pernas de três inferiores e espadanando sangue até na amurada, enquanto febrilmente todos nós tratávamos de remediar o mal, caiu de joelhos aos pés do comandante.

-Deixe-me prestar auxílios também! Fale-me! Fale-me! Pela sua honra, pela sua farda! Diga sim! diga não! Diga qualquer coisa!

O comandante passou-lhe por cima. Arsênio continou de rojo, pedindo, pedindo, sem ver a quem, pedindo a quem passava, indistintamente. Nenhum de nós, cheios de preocupações, pensava em ter pena. O bandido era o inimigo, e cada vez que uma bala trazia o desastre, a cólera aumentava contra a sua figura lívida de traidor desesperado.

-Pelo amor de Deus; uma palavra só, uma palavrinha! chorava ele, com a face no chão, ridículo e macabro ao mesmo tempo.

A crise acentuou-se. Arsênio resolveu conquistar os guardas com as lágrimas.

Cada marinheiro que lhe postavam como sombra tinha-o logo de joelhos, procurando beijar-lhe a mão, a fazer promessas, a pedir, a chorar. O comandante repetiu as ordens severas. Arsênio ficou sem resposta, e da humilhação passou à cólera.

-Não quero este! não quero! Já disse! bradava quando mudavam os guardas. São uns indignos! Uns covardes! Não me satisfazem? Que sou eu? Eu não estou morto, ouviram? Falo, falo, falo. Que importa que não me respondam? Falo, estou falando. Covardes!

Mas a cólera, como as lágrimas, batia de encontro ao ilimitado e asfixiante silêncio. Não o ouvíamos, não o sentíamos. Godard voltou à vida do beliche, a dizer: obrigado! ironicamente quando por acaso alguém passava pela porta. Já haviam passado dois meses, sessenta dias e sessenta noites. Tudo anunciava o fim da nossa aventura, e cada vez mais o nosso ódio se acentuava contra aquele objeto solto a bordo, o mercenário, o traidor. Os acontecimentos, os desastres desenrolaram-se com o cortejo de mortes, de humilhações, e diante de nós, com as idéias empaladas num silêncio desesperador, o animal sofria a nossa vingança por todos a quem nos era impossível estraçalhar, matar, vencer.

Uma tarde, o marinheiro que deixara a guarda foi dizer ao comandante que Arsênio Godard parecia febril e falava coisas sem nexo no beliche.

-Deixai-o!

-É verdade, comandante, se acabássemos com essa boca a mais?

-Oh! é preciso que ele pague a dedicação aos outros. Se fosse um resignado, há muito estaria morto, mas, por isso mesmo que enfurece, havemos de o trancar cada vez mais no castigo. Está desesperado.

Com efeito, Godard desesperava. No camarote, deitado de barriga para o ar, a barba crescida, o cabelo pelas orelhas, falava alto para se ensurdecer, para enganar os ouvidos, para iludir aos próprios sentidos. Era trágico, mudando de voz, imitando vozes de mulheres, vozes de bichos.

-Oh! oh! Madame engana-se! Qual, é impossível que o Sr. Arsênio aguentasse tamanha crueldade. Setenta dias, minha senhora! Eram uns castrados. Oh! perdão! Um patife! Ah! ah! Cocoricó! Bum! Vamos cantar um dueto? Valeu. Yes! Essa miss é deliciosa...

Os marinheiros incultos estavam receosos de que a razão de Godard tivesse afinal sido estrangulada pelo círculo do silêncio. Olhavam-no receosos. E Godard então pulava da cama, em ceroulas, desguedelhado57:

-Não me falam, não? Decidido! Afinal eu os desprezo, covardes, vencidos. Mas também não preciso. Estou conversando, estou ouvindo outras vozes responderem às minhas perguntas. Ah! ah! O homem inteligente escapa aos maiores tormentos dos patetas!

Ao cabo do sexagésimo nono dia, porém, Godard foi à mesa silencioso e sério, pediu um cigarro, passeou pelo tombadilho, dormiu direito e logo pela manhã seguinte, deitado, chamou o guarda.

-Dá-me um fósforo?

O guarda aproximou-se, estendendo a caixa. Então ah!, o preso, deu um salto da cama, arrancando ao marinheiro a arma num súbito ataque, bateu a porta rápido e, segurando-o pelo gasnete:

-Vais responder, agora. Anda, depressa. Responde! Faze sinal que sim! Faze sinal ou morres!

Uma luta travou-se. O marinheiro era um caboclo enorme. Prendera a mão que apontara o revólver e com a outra arrumara um soco à cara do preso. Mas Godard sentia decuplicadas as forças. Com a mão livre atirou-se ao sabre do marinheiro. O outro desviou. Caíram ambos tropeçando num jarro. Godard parecia um florete; o marinheiro era uma torre. O fragor de luta chegou até nós. Corremos à cabine. A voz de Godard bradava:

-Fala, responde, dize qualquer coisa. Cachorro! Cachorro! Responde-me! E móveis caíam, os corpos rolavam.

-É o Godard! Precisamos abrir.

-Está fechado!

-Abre-se a machado!

-Eu abro se me falarem, berrava de dentro Godard, eu abro se me falarem! Digam: Godard abre! para mostrar que eu não estou morto, que eu vivo, que eu sou Godard!

Ah! bandido! Que pensava ele, o infame? Os machados caíram na porta violentamente, fazendo saltar a fechadura, e por diante de nós saltou brandindo o sabre, nu, com a cara em sangue, os cabelos empastados, Arsênio Godard.

Nem prestamos atenção ao marinheiro. Corremos ao encalço do bandido.

Não fosse ele atirar-se ao mar! E foi uma caçada infernal a bordo. Era preciso apanha-lo vivo, vivozinho, inteiro, para sujeita-lo ao regime desesperador, de novo, eternamente. Godard, brandindo o sabre, encostara-se a um canto do salão de jantar.

-É preciso acabar! É preciso acabar! Canalhas! Vocês vão falar-me!

Só uma vez! Digam: Arsênio, entregue-se, e eu me entrego. Só uma vez, ou então eu escapo, eu escapo, estou salvo... Assassinos! Vamos a ver quem é mais forte! Quem se aproximar morre ou mata-me! A vitória é minha! Escapo!

Todos nós, mordendo os lábios para não deixar escapar uma praga, uma invectiva, paramos, com o desejo desvairado de mata-lo. E foi um instante apenas. A tropa58 precipitou-se para o sabre. Godard manejou-o, mas sentiu-se preso pelas pernas e emborcou, enquanto cem braços estendiam-se, arrancavam-lhe a arma, esmurravam-no, surda, silenciosamente.

O desgraçado teve um grito.

-Outra vez! Para toda a vida! Oh! não! não! não!

Com o pasmo de todos nós, como se aquele muro de silêncio fosse pior do que a própria morte, desvairadamente, atirou-se ao sabre de outro marinheiro, arrancou-o, reviravolteou-o no ar e, no círculo aberto por aquela inesperada sortida, bateu-o em cheio no pescoço.

Um jato de sangue golpeou no ar sombrio. A cabeça curvou de olhos arregalados. Toda a guarnição parou. O corpo pendeu. Estava morto. E, não sei por que, um ódio violento, um ódio desesperado fez-nos ainda segurar o cadáver a ver se vivia.

O torpe fugira à sentença, escapara das nossas mãos, deixara-nos impotentes para continuar, a aperta-lo infinitamente naquele sudário de silêncio que fora o nosso mais feroz, mais tremendo, mais dilacerante castigo.

Duas criaturas

A Viriato Correia.


O grande hall do hotel estava repleto. Pelas janelas semi-cerradas, na suave ondulação das cortinas brancas, entrava um vago perfume de violeta e de rosa. Lá fora, entre os tufos de verdura do jardim e o céu muito azul, devia esplender a pálida luz de um sol de inverno. As mesas, todas ocupadas e cintilantes de cristais, prolongavam-se até ao fundo numa orquestração de tons brancos, que iam do branco de prata ao branco gris59 nos lugares mais em sombra.

Os criados passavam apressados, erguendo numa azáfama os pratos de metal. Ao alto, os ventiladores faziam um rumor de colmeias. Senhoras e cavalheiros, perfeitamente felizes, as senhoras quase todas com largos boás60de plumas brancas, chalravam e sorriam. Estávamos bem na bizarra sociedade de entalhe que é o escol dos hotéis. Alta, longa, comprida, com uma cintura de esmaltes translúcidos e o ar empoado de uma íntima do general Lafayette, a escritora americana, cuja admiração por Gonçalves Dias chegara a faze-la estudar e propagar o Brasil, mastigava gravemente. Logo ao lado, um grupo de engenheiros, também americanos, bebia, com gargalhadas brutais e decerto inconvenientes, champanhe Munn. Mais adiante a encantadora viúva do milionário Guedes, com o seu perfil de Luigni, de que tanto mal se dizia, sorria num vago sonho para a senhora Alda, a formosa divorciada do dia, Alda Pais anteontem, Alda Pereira hoje, como há cinco anos, antes de casar... De vez em quando parava à porta um novo hóspede, hesitava, percorria com o olhar a extensa fila de mesas onde o debinage61 se acalorava. A um canto, Mlles. Peres, filhas de um rico argentino, yatch-recorderman62nas horas vagas e vendedor de gado nas outras, perlavam63 risadinhas de flerte para o solitário e divino Alberto Guerra, seguro dos seus bíceps, dos seus brilhantes e quiçá dos seus versos.

Bem ao centro, o nosso vasto ministro em Honduras desdobrava a sua simpática adiposidade numa roda de mocitos elegantes, ferozes pretendentes ao secretariado diplomático, e, de vez em quando, cortando o zumbido elegante do grande hall, retinia imperiosamente o som de uma campainha elétrica.

Estávamos a almoçar cinco ou seis, convidados pelo barão Belfort, esse velho dandy sempre impecável, que dizia as coisas mais horrendas com uma perfeita distinção. E fora decerto uma extravagância aquele demorado almoço, a fazer horas para um match de foot-ball, a que seria impossível deixar de assistir. O barão, de veia, com a sua voz de navalha, recortava na pele dos presentes as caricaturas perversas. Nós já tínhamos rido muito e entrávamos com apetite num vulgaríssimo salmis64 de coelho, quando de repente um dos nossos companheiros exclamou:

-Olha, a Chilena aqui!

À porta surgiu uma triunfal figura de Ceres, com o cabelo cor de ouro e o verde olhar coado por umas negras pestanas de azeviche. O seu lindo corpo era como que modelado pelo vestido de Irlanda e rendas verdadeiras. Nos dedos afilados e tênues como as pétalas esguias dos crisântemos, três ou quatro pérolas rosas; nos lóbulos das orelhas, duas negras pérolas e por sobre a gola leve de rendas brancas um virginal colar de pérolas. Acompanhavam-na um cachorrinho branco de neve, de focinho impertinente, e um cavalheiro, baixo, gordo, cheio de jóias, enfiado numa redingote65 azul.

-A Chilena! A Chilena aqui! Mas que sociedade é esta? bradou o mais jovem dos convivas.

O barão teve um sorriso cético.

-Meu caro, o Rio tem, como Paris ou Londres ou mesmo Montevideo, a sua season66. A season começa regularmente com a chegada do primeiro mambembe67 estrangeiro, mambembe naturalmente insuportável, e fecha com os calores da primavera, na abertura do salão de pintura. É a época do luxo, da exibiçâo, do sacrifício para aparecer, da tagarelice, em que toda a gente fala mal do próximo e entende de arte, é a época escolhida pelos que pretendem tomar lugar na sociedade. Nós somos uma sociedade em formação -a mais atraente, a que mais tenta por consequência, não só pelas suas taras, que há vinte anos não eram julgadas mal, como pelo nosso fundo meio ingênuo de aceitar tudo o que brilha, seja diamantino ou seja montana. Anualmente, de envolta com os políticos, os fazendeiros, os estrangeiros exploradores, aparecem essas figuras com um passado estranho, decididas a dominar, a entrar nos lugares honestos, a serem respeitadas.

São figuras de inverno. Querem dominar. E olhe que aqui, quase todos têm a sua história: as demoiselles Peres, talvez enteadas de um rei morto, o wildeano68 conde Rossi, lá longe, com o seu excepcional secretário cubano; Alberto Guerra, o sedutor irmão de D. Juan69 e também de Shylock70, porque vive de emprestar a juros; a viscondessa Guilhermina, que chegou de Vicchy e só está aqui de passagem; a Alda, a baronesa...

-Barão, cale-se, por favor! Cale-se! Figuras de inverno, não duvido. Mas a Chilena é menos que isso.

-Ora, a Chilena já não usa esse pseudônimo tão picante e ao mesmo tempo tão significativo para os guerreiros do Rio Grande. Todos vocês sabem a história de vício dessas três irmãs que cerca de dez anos amaram e arruinaram varias criaturas. Mas tinham de ter um nome honesto. As duas primeiras casaram. Esta é hoje a esposa do cônsul do Haiti no Pará.

-Então o homenzinho?

-Um explorador riquíssimo que se presta a ser cônsul, auferindo todos os lucros do cargo. Deve ter uma fortuna superior a cinco mil contos. Tivemos relações em Belém e em Paris. É um caso de embrutecimento passional.

-Mas são realmente casados?

-Não há dúvida. Vocês conhecem a história das chilenas, três lindas criaturas da fronteira que se diziam chilenas por picante e a que os rio-grandenses chamavam chilenas como lembrança de certos estribos em que os pés ficam à vontade e toda a gente pode usar. Elas tinham topete, beleza, audácia. Para ser o vício arrasador não precisava muito outrora no Rio. Chegaram e logo a fama irradiou. De um dia para outro, os fazendeiros ricos sentiram a necessidade de dar-lhes palácios, os banqueiros ofereceram-lhes as carteiras, os amorosos sem vintém prometeram vigor e paixão. As gaúchas ardentes, ardentes mesmo demais, faziam grandes loucuras sensuais, mas prestavam atenção ao futuro. Há mulheres que podem se entregar com frenesi a vida inteira sem conseguirem ser prostitutas Elas tinham o frenesi, não, tinham o sinal de profissão, e depois, haviam nascido sob as estrelas complacentes. A Luisa partiu com um fazendeiro, e se o engana é com os cometas, raramente. Natália recolheu com um negociante riquíssimo Ficou apenas Maria, que diriam um caso anormal de luxúria, malbaratando dinheiro, embriagando-se, tripudiando no torvelinho da vida. Ora, Azevedo apaixonou-se pela Maria, há sete anos, vendo-a guiar uma parelha de cavalos zebrados que foram acabar no Jardim Zoológico como raridade. Maria atravessava uma das suas crises, devendo a casa, as mobílias, os cavalos, os criados, e até mesmo o adolescente robusto que fazia de Augias71 no fundo do palacete e de Automedonte72à tarde, no passeio. Azevedo foi seringueiro ou coisa que o valha. Precisamente voltara do Amazonas, esfomeado de mulher e cheio de dinheiro. Teve o deslumbramento diante da beleza que Maria tornava provocante. Tentou o assalto, deixou-se prender, pôr o freio, montar, esvaziar. A opinião geral -e aliás alegre, era que Maria arruinaria o marchante selvagem. A sorte porém de Azevedo era intensa. Quanto mais dava, quanto mais pagava, mais ganhava. Isso devia ter concorrido poderosamente para a paixão do animal, fetiche como todos os simples, e irritar Maria, inimiga dos pagadores como todas as boêmias. Azevedo empolgou-a inteiramente. Ela, até então a Vênus vingadora, que arruina, arrasa, domina, de gênio voluntarioso, só encontrava uma satisfação engana-lo, traí-lo, roubar-lhe o corpo para o banquete dos esfomeados. Era uma performance entre a paixão cega e a raiva de fugir dessa paixão. Ao cabo de quatro meses, Maria proibiu-lhe a entrada, despediu-o. Estava coberta de jóias, com o cofre cheio e enfarada, aborrecida, excedida pela convivência do pobre homem apaixonado e pagador. Meteu-se na grande orgia, para se convencer de que estava livre, livre por completo. Mas Azevedo, aguilhoado por aquela despedida, sentira de repente que perdia a sua carne e a sua sorte e recorria a todos os meios imagináveis para de novo apanha-la, peitando consciências, interessando na sua desgraça à custa de bilhetes de banco; as amigas da Maria, convencendo os camaradas de que era preciso fazer mudar de opinião Maria, aquela louquinha incapaz de pensar no futuro. Logo a Chilena sentiu em torno, cada vez mais presente, o fantasma do Azevedo. Falavam nas pândegas as amigas, por acaso: ah! se aqui estivesse o Azevedo! Falava a cartomante que de oito em oito dias lhe deitava as cartas: vejo aqui um homem sério que muito a ama e agora afastado voltará a faze-la feliz! Falavam os criados: Coitado do patrão; passou hoje por aqui, olhando muito... Falavam até os camaradas de cama e mesa: Afinal o Azevedo é um bom homem. E Maria viu que tendo despedido o Azevedo agora é que o tinha a todo o instante na lembrança, sem poder fazer-lhe mal, sem poder vingar-se, quase a convencer-se de que o idiota era bom. Certa vez disseram lhe: o Azevedo parece resignado: vai montar casa para a Benevente. Maria teve um grande ódio e no outro dia Azevedo estava de dentro outra vez, louco de amor e ainda mais perdulário.

-Maria resignara-se?

-Para a obra da vingança, tornando-o epicamente ridículo. Não importava a pessoa, a questão era do ato. Ah! Eu imagino sempre, quando o meu egoísmo quer eternizar o amor, o desespero de um pobre ente sem poder livrar-se de outro que se molda e curva e dá tudo, e é passivo e é humilde. Há torturas, imperceptíveis à maioria dos mortais, que são dantescas. E nenhuma como essa em que o ambiente, a fatalidade, o destino forçam a vitória do mais fraco dando-lhe o que deseja, fazendo-o realizar o seu fim, impondo-o a outro corpo, a goza-lo, a senti-lo, a palpa-lo. A grande desgraça do amor, a maior desgraça é essa porque laça ao mesmo horror duas almas. Maria devia ter crises de desespero e de lágrimas, enquanto Azevedo devia sofrer na sua muda humildade de cão sedento de carícias! E quando levou-a para o Pará, a Chilena tinha a nevrose de engana-lo. Ora, imaginem vocês, em Belém, terra pequena, onde Azevedo tinha uma posição evidente! As denuncias anônimas choveram exigindo vergonha, mais pudor, mais brio. O grosso Azevedo lia e calava, porque, se revelasse uma palavra das cartas, Maria fechava-lhe a porta semanas e semanas. Uma vez, entretanto, como recebesse uma denuncia violenta, Azevedo teve tensões de ciúmes e foi encontra-la como a princesa Falconière da Dalila, cantando num barco com certo tenor de zarzuela73. Não havia dúvida! O cônsul do Haiti berrou de cólera, o tenor deu às gâmbias74, a polícia apareceu. O escândalo, porém, permitiu à Maria um desses cinismos épicos. Agarrou o Azevedo pelo casaco, meteu-o dentro do carro sem dizer palavra, ofegante, e ao chegar à casa mediu-o de alto a baixo e teve esta frase, célebre há cinco anos: -o senhor é um indigno! Desconfia de mim!

É preciso pensar o alcance, a extensão moral de uma dessas frases num cérebro, obsedado pela idéia de não perder uma carne cada vez mais desejada. Maria dissera por cinismo profissional. Ele sentiu-se comovido a princípio. Afinal se enganava, procurava não o afrontar. Já era uma consideração. E depois engana-lo-ia ela? Há tantos inocentes condenados, mesmo com provas visíveis comprometedoras! E o tenor, sem querer, foi a pedra angular do casamento.

-Oh! não...

Quinze dias depois da cena Azevedo sentiu que nem de negócio e de borracha poderia entender mais. Maria, muda, grave, solene, vivia com o quarto fechado sem responder primeiro aos seus insultos, depois às suas ironias, depois aos desesperos e já agora aos rogos, porque Azevedo vivia como à espera da notícia de ter um mal irremediável, sem dormir, sem descansar, só pensando que de novo ela o deixaria. E dessa vez para sempre. Então caiu de joelhos, suplicou, pedindo perdão, jurando que não vira nada, que jamais acreditaria na calúnia... Há entre os sexos um ódio latente. Quando um se humilha a outro, esse outro toma crueldades de tirano, refocila em perversidades e em excessos. A Chilena percebeu a excelência do momento, teve um assomo de dignidade, borrifada de lágrimas: Cale-se, Azevedo! O senhor é um ingrato! Nunca mais serei sua! Desconfiar de mim. Só se me der uma grande prova de confiança, o seu nome, a sua mão...

Na roda correu um desabalado riso, que fez voltar-se o grupo aspirante ao secretariado diplomático. O barão limpou o seu monóculo de cristal e continuou tranquilamente:

-Ela nesse tempo era mais magra e tinha os cabelos castanhos, mas de um castanho que às vezes era quase negro e de outras vezes se tornava quase louro. Esse cabelo era a sua alma. Azevedo, coitado! refletiu vinte dias, torturou-se vinte dias. E nesses vinte dias, a Maria lutou, em arte e manha, mais que um diplomata, graduando sabiamente as concessões que dessem ao velho apaixonado uma vaga idéia do que poderia ser o lar com uma doce criatura meiga, boa, fiel, sem azedumes, sem neurastenias. Os amigos, sabedores do desastre, reuniram-se para salvar Azevedo. Todos os meios falhavam; ou antes redundavam a favor da Maria. Um rapaz, Teofano de Abreu, se bem me recorda, latagão inteligente e bem colocado da colônia portuguesa, com certo desejo na Maria, prestou-se a um sacrifício colossal: fazer-lhe a corte, conseguir possui-la e vir contar depois para o Azevedo o fato. A Maria não resistiu, e Teofano, apesar de ter gostado, sacrificou-se. -«Azevedo, disse em presença de várias testemunhas, não podes casar com a Maria». -«Porque?». -«Porque te engana». -«Não admito que insultem uma mulher que vive comigo.» -«Mas foi comigo, venho agora de lá. Ela será incapaz de negar na minha cara. E se faço este ato indigno é para te salvar de uma horrível e irremediável indignidade». Azevedo fez-se pálido, correu casa, e no outro dia não cumprimentou mais nenhum dos seus amigos. Era fatal. E afinal, para de novo possuir Maria, casou...

Fui encontra-los em Paris, elegantemente instalados numa das avenidas da Étoile, num palácio discreto. Maria tinha carruagens, coupé elétrico, arrastava à noite pelos pequenos teatros maravilhosas capas de peles de muitos bilhetes de mil, e frequentava vários lugares maus porque vendo-a um dia a pé a rodar um bistrô75, lembrei-me que bem podia estar de paixão por algum jovem apache76, que os apaches são os homens belos de Paris. É mesmo provável que tivessem deixado Paris, quando já Maria dava uns chás a alguns vagos titulares internacionais, por algum chantage de escândalo, que o Azevedo teve de saber e pagar.

Mas isso não era nada! As exigências e o descaro de Maria cresceram na proporção do embrutecimento do marido. Quando voltaram de Paris, ela exigiu no seu palacete toda a ala direita mobiliada à indiana, com autênticos bambus de Calcutá, potiches de cobre de Benares, deuses bramânicos de porcelana e de metal. O seu quarto tinha guarnições de seda verde pregadas a grampos de coral; os cortinados eram de gaze de Decã, a mais leve gaze do mundo. Aos pés da cama, um Vixnu77 de marfim, o deus dos ricos, olhava-a a dormir. Frequentava-os por essa ocasião uma turba-multa de homens sem preconceitos e rapazes bem dispostos, que forneciam as traições ao Azevedo. Maria era uma pilha de nervos. Não se resignara ao pobre cônsul; e a sua neurastenia explodia em desejos de humilhações e um desenfreado apetite de sedução. À mesa, fazia o cônsul levantar-se, ir buscar o seu leque ao segundo andar, para beijar o conviva, principalmente quando o jantar era a três. De outras vezes, marcava-lhe a hora da entrada: -preciso estar só. Apareça depois da meia noite. E nesses dias sempre alguém conhecia a pele de tigre real com forro de brocado rubro, que havia na terceira sala da ala esquerda, onde se amontoava a coleção de armas usadas por todos os soldados dos rajás imagináveis.

Vocês riem! Eu afinal tenho pena. Esse homem ganhava rios de dinheiro, gozava de boas relações... Julguei-o um indigno. Não era. Era e é um ser que ama. Qual de nós não tem o seu segredo inconfessável e um desejo irreprimível? O amor é o desejo, mas o desejo da completa satisfação, dessa ilusão dos sentidos. Quando se quer assim, somos arrastados como por uma corrente. Há casos piores a que apertamos a mão...

-Mas, agora, que fazem eles?

-Não os vejo há dois anos. Naturalmente ela quer ser família. É uma aspiração natural. Vi-a com ele, na abertura da Câmara, numa pose de duquesa pintada pelo La Gandara. Decerto já se resignou ao Azevedo e estão ambos aqui, a gozar o inverno, a dar a impressão de que são felizes. E entretanto a Maria é a alma envenenada, agrilhoada a um corpo que detesta, desejando, no desequilíbrio de carne a tropa dos homens, desejando, no desequilíbrio de moral, a posição e o respeito; o Azevedo é o pobre bruto sacrificando tudo, a honra, o dinheiro, a vergonha, rastejando o ignóbil só para que lho consintam um pouco de amor pela criatura que lhe agradou aos sentidos. E ambos desgraçados, desvairados, seguem a vida, com o sorriso no lábio e a vaga inquietação no olhar febril.

Nesse momento, a bela Chilena, Maria de Azevedo, ergueu-se. O impertinente fraldiqueiro78 saltou da cadeira. O homenzinho baixo também, de outra. Ela viu o barão, que se levantou, curvou-se. Azevedo abriu os braços.

-Oh! você! Há dois anos!

-Donde vem?

E os dois homens abraçaram-se. Ele parecia velho, meio desconfiado. Ela, sob a luz opalisada das cortinas brancas, sorria, um sorriso misto de inexprimível ironia e de vaga satisfação, enquanto os seus olhos pousavam, como uma perturbadora carícia, na mesa em que Alberto Guerra continuava a almoçar, seguro dos seus bíceps, dos seus brilhantes e talvez dos seus versos, no brouhaha entontecedor do vasto hall.

A Irineu Marinho.


Quando chegou a casa para almoçar, João Duarte soube pela criada que a menina ardia em febre. Nem descansou o chapéu. Precipitou-se no quarto onde a pequena Maria, numa grande cama, estendia o seu corpinho ardente.

-Que tens, minha filha?

Maria não respondeu. Apenas agitou a cabeça como se a incomodasse qualquer coisa no pescoço, e tinha a pele de brasa, a pele que parecia fogo.

-Como foi? Como foi? perguntava o pai, curvado sobre o leito. Comeste decerto alguma coisa que te fez mal. Uma fruta decerto? Com este calor, louquinha, com este calor! Mas vamos mandar a Jesuina ao médico. Ele vem já, dá-te umas drogas, e ficas outra vez boa, pois não?

Saiu para a sala de jantar, escreveu á pressa um bilhete.

-Leva já isso ao doutor Guimarães. Depressa.

-E o senhor não almoça? Está pálido.

-Não, perdi a fome. Esta Maria! Decerto fez alguma imprudência. Anda, vai. Diz-lhe que venha imediatamente. Que te parece a doença da Maria?

-Oh! meu senhor, uma das doenças da menina. Oito dias, e sara.

João Duarte forçou um sorriso de esperança e de novo foi-se ao quarto. A pequena continuava numa ânsia, a mover a cabeça, os olhos fixos, uma vermelhidão na face, os braços também vermelhos. João aconchegou-lhe as cobertas, apalpou-a, teve vontade de tirar o cobertor ao mesmo tempo que lembrava ir buscar mais outro, abriu as cortinas das janelas, olhou fora sem ver o movimento da rua, tornou à filha, beijou-a, passeou nervoso, sentou-se à beira da cama, ergueu-se, apanhou uma cadeira, suspirou, quedou-se com uma dor indizível a olhar a pequena. Era sempre assim, era sempre aquele excesso. A sua filha, a sua querida filha! João Duarte era um pobre professor de matemáticas, com uma larga fronte e um gênio arrebatado. Diziam-no de grande talento os discípulos, posto que bastante original. Filho de uma família rica e de raízes nobres, viu-se aos treze anos, ao cursar o primeiro ano da Escola Central, na miséria, porque o pai morrera de congestão em véspera de certa combinação da Bolsa e os sócios, irmanados na infâmia, haviam absorvido com descaro toda a fortuna. João entregou a parte que lhe cabia dos restos da herança às irmãs e continuou só a estudar, ensinando para viver. Os amigos acharam excessivo o gesto do rapaz. Ele nem sorriu -porque sentia na sua alma um desejo infinito de amar e dedicar-se.

-São minhas irmãs! dizia.

Naquele tipo de matemático, havia um ser excepcional, o estofo de um santo? Quem sabe?

Ele resumia a vida no amor que se entrega suave e sem mácula, e enquanto através do seu curso brilhante, lentes e condiscípulos vaticinavam-lhe o mais brilhante futuro, pensava em criar uma família, em ter um lar para ter alguém seu e inteiramente dedicar-se, velando, cuidando, sendo a causa dos prazeres, o principio das alegrias de alguém. Casou com uma pequena de família humílima antes de terminar o curso. Era um colégio gratuito em que meia dúzia de rapazes ensinavam meninas pobres. Ela aparecera aos treze anos, pálida, com as mãos bem tratadas, um sorriso de resignação nos lábios. Ele indagou da família, e certa vez em aula:

-Menina, queres casar comigo?

Toda a aula riu, achando graça na pilhéria do senhor professor. A pequena ficou mais pálida e duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces brancas. Ele foi dali à casa da mãe, uma senhora viúva de gênio irascível, que vivia com três filhas honestas a fornecer comida para fora.

-Mas, senhor doutor, está louco! Minha filha tem treze anos apenas. É uma criança.

-Não importa. Espero até aos quinze, mas fica noiva.

A mulher desconfiou a princípio e negou-lhe entrada. Ele começou a presentear a criança, e dar-lhe dinheiro entre as folhas dos livros mandados à velha, de quem sabia as necessidades, a enche-la de cuidados, num exagero que a assustava. Era um amor mais de pai que de noivo, um amor sem desejo de carne, espiritual e enorme. Ela foi a pouco e pouco acostumando-se, vendo nele o protetor, menos que o apaixonado. Certa vez, ao entrar na aula, recebeu a primeira carta de amor: «Venha já. Mamãe com um ataque. Nós três sós e aflitíssimas». Partiu. A moléstia da velha era grave e ele ficou para fazer-lhe fricções, dar-lhe banhos, enquanto naturalmente as despesas da casa corriam por sua conta. Quanto era preciso trabalhar! Lecionava em três colégios, tinha aulas particulares, ensinava à noite turmas de calouros. Morria de trabalho e estava satisfeitíssimo, sentia-se feliz quando a Aurélia dizia:

-O pai quando era vivo também fazia assim!

Para não chocar a suscetibilidade da velha, imaginou tomar pensão na sua casa, pagando o triplo do que devia pagar, acabou pedindo-lhe um quarto, em cima, no sotão do velho prédio, o quarto em que estavam os cacaréos79. Quantos sabiam do fato comentavam-no com acrimônia80. Estava o João Duarte de dentro, com três virgens! Que sátiro! Sempre que a opinião da rua filtrava através das portas, a velha em cólera, bramia, gesticulava, bradava. E João, sem forças, dizia súplice:

-Mas se não é verdade? Se a senhora sabe que não tenho tensões más?

-Era melhor que as tivesse! Ao menos sabia-se logo! engrolava a velha no auge do furor.

-Que se há de fazer? Cada um como nasceu...

Ao cabo de dois anos, porém, casou. Foi modesto o casamento. Ele apareceu com o mesmo fato preto com que diariamente labutava. Não lhe sobrara dinheiro, tanto era o luxo para a noiva e tantos os objetos comprados para a nova casa, aos poucos, com mil sacrifícios e uma porção de trabalho, muito trabalho. Mas Aurélia não o amava. Nunca amou a ninguém. O desequilíbrio nervoso da mãe redundara nela numa vaga histeria. Precisaria de certo de um homem brutal. Encontrara perdida no mundo uma rara alma. A influencia da mãe, as suas ordens, os seus conselhos era que a regiam. João marido passou a ser a criatura que tem obrigação de dar. Ele dava como um escravo. Nunca um enlevo, um simples gesto terno lhe acolheu sacrifícios de dinheiro, sacrifícios de trabalho. A família, por ver Aurélia feliz, começou a quere-la menos. As duas irmãs solteiras açulavam os maus instintos da velha, e eram elas que faziam a chuva e o bom tempo na casa de João. Às vezes, Aurélia entrava em casa a chorar:

-São umas miseráveis! Trataram-me como um cão, depois de lhes ter dado uma porção de coisas!

A cólera estalava na alma de João.

-Já não te tenho dito tanta vez? Não lhes fales! Elas invejam a tua felicidade.

-Se elas soubessem!...

-Então, não és feliz?

-Eu feliz?... Ah! que idéia!

Um grande desejo de insultar aquela criatura vulgar empurpurecia a face de João. Mas para que? A pobre mulher não o compreendia, ele é que escolhera mal amando-a, amando-a com aquele estranho amor de altruísmo e incapaz de viver senão para por ela sofrer e a ela dar todo o produto do seu sangue, dos seus nervos, da sua inteligência. De resto, Aurélia rebentava em choro ou caía em profundos silêncios agonientos. Era preciso diverti-la, dar-lhe mimos, leva-la ao teatro. Então João multiplicava-se. Quando não havia criada, era ele de madrugada que ia acender o lume, preparar o primeiro almoço, levá-lo à cama. Saía, corria às obrigações, com a redingote verde e os sapatos em mau estado, voltava para o almoço carregado de frutas, de gulosinas81 de que ela dizia gostar.

-Trouxe-te figos e bombons. Come.

-Não quero, fazia ela instintivamente cruel, empurrando os embrulhos.

Ele tinha um vinco de tristeza e de raiva logo sopitada82. Mas comia à pressa qualquer coisa, ia logo trabalhar. Ao jantar trazia-lhe sempre uma recordação, ria verificando que já não existiam frutas e bombons, mandava-a vestir para o teatro, e ainda dava explicações a uma turma, entre o jantar e o teatro. Ela saia sempre contrariada porque o marido tinha pressa e voltava em cólera porque havia no teatro mulheres mais bem postas ou porque a peça não lhe agradara. João, humilde, preparava-lhe o chá, preparava-lhe o leito, ia para a sala escrever e estudar até de madrugada, e muita vez Aurélia acordou sobressaltada, com ele ao lado a olha-la enternecido.

-Ah! que susto! até pareces um lobisomem!

Mas, de súbito, Aurélia aparecia mais alegre, consentindo mesmo numa carícia. Era a reviravolta. Fizera as pazes com os parentes, ou antes, sem recursos, a velha mãe e as irmãs solteiras tinham vindo alegremente fazer-lhe uma visita. As frutas, os bombons iam embrulhados tal qual para a casa delas, os cortes de vestido, os frascos de perfumes sumiam-se do guarda vestido.

-Como estou aborrecida! Se me deixasses ir ver a mamã? Ela afinal é mãe. Não há duas mães...

João sorria.

-Vai, filha. Não te prendo, mas vê se consegues demorar as pazes.

-Se elas brigaram foi culpa tua. Não insultes a minha família. Minha mãe é minha mãe.

-Bom, bom, nada de zangas. Vai, anda...

Por que tentar o impossível? Ela não o compreenderia nunca. Era um espírito de criança numa alma de mulher sem amor. Como sentir aquela afeição tão fina, tão superior em que a honra, a dedicação, o sonho de um homem cheio de coração irradiavam? Um rapazola qualquer com três socos talvez abrisse na rocha a fonte do amor. Um tipo cheio de dinheiro espalhando notas do banco talvez a fizesse esquecer os seus deveres de esposa. E João Duarte recalcava bem no íntimo um vago e atroz ciúme do que não existia, culpava-se, culpava-se e vinha a ama-la mais, a rodea-la de maiores carinhos para não perde-la, para não se ver perdido, porque precisava amar alguém, dar a sua dedicação a alguém. Assim viveu dez anos. Parecia ter vivido vinte. Estava magro, abatido. As roupas de baixo tinha-as rasgadas. Os fatos duravam-lhe dois anos. Não bebia senão água: comia sempre pensando noutra coisa, e dormia pouco, cada vez menos, com o cérebro cheio de preocupações, as aulas, as vontades de Aurélia a satisfazer, os negócios a liquidar com os prestamistas. Foi por essa ocasião que a mulher se fez mais criança ainda, começou a ter vômitos, a sentir os pés inchados, a vociferar com ciúmes, despedindo as criadas aos gritos. João não acreditava. Seria possível? Mas o médico não lhe deixou dúvidas. Após dois lustros83 de união, Aurélia estava grávida. Todo o desejo do pobre em fim realizado! O seu amor foi tão grande, o sentimento da paternidade fê-lo tão loucamente feliz, tão cheio de carinho para com a mulher, que ela, uma vez na vida, cedeu, deixou-se embalar. E eram passeios e eram consultas de médico e eram beijos. Nos últimos dias era ele quem a vestia.

-Vamos ter um filho! Um filho! Sorri, tolinha! Sorri! Vai ser tão bom... Se for mulher, havemos de chama-la Maria, hein? Querias que fosse homem? Ah! egoísta! Os filhos gostam sempre mais das mães que dos pais. Mas há exceções. Tu por exemplo és mulher e gostas muito da tua mãe.

-Não fales! Não fales!

O parto foi laborioso. Aurélia gritou duas noites, julgando-se desgraçada e intimamente culpando daquele horror o marido, que não dormia, de um para outro lado, aflito, pálido. Quando a pequena nasceu, uma noite de temporal no mês de junho, João ao toma-la ao colo sentiu uma tontura de alegria. O mundo se transfigurava. Os móveis tocavam-se de uma luz estranha. O teto abria uma chuva de delícias. Afinal o destino realizava a sua única vontade: uma filha! O seu sangue, parte do seu ser, com alguma coisa da sua alma, o desdobramento belo do seu eu. A essa sim, ele podia amar totalmente, com o seu grande amor sempre contido e represo, a essa devia amar e sentia amar, a essa entregaria a sede de pureza e ideal do seu coração dedicado, porque ela havia de compreende-lo, havia de senti-lo, havia de saber que a sua vida inteira de esforço, de coragem e de sofrimento tinha por fim, por meta do sonho, por último círculo do paraíso -ela.

-Minha filha..., murmurou num êxtase, minha filha...

Mas decerto o destino dando-lhe uma filha queria simplesmente aumentar as angústias desse humilde coração sensível, feito de excessos de ternura e de dedicação. Maria nascera doente. Aurélia, vendo que os carinhos do escravo diminuíam e por uma feição dos seus nervos em desequilíbrio, desinteressou-se dos carinhos maternos ao mesmo tempo que sentia um violento ciúme do marido, apontando-o como o inimigo pronto a roubar-lhe o amor da filha. Era o próprio egoísmo, o feroz egoísmo das histéricas. João entrava da rua ansioso.

-E a pequena?

-Não sei, pergunta à ama. Pois se não a largas!

Ele queria sorrir, hesitava, não compreendia bem aquele azedume eterno e lá se ia para o berço a olhar, a olhar, muito, muito... Sem nunca ter aprendido, viu-se à perfeição a enfaixar a petiza, a embala-la, a cantar cantigas, com uma voz muito triste. Ele, que nunca na sua vida cantara por não ter tempo nem alegria, sentia naquela obrigação de carinho paterno que cantar era para a sua alma como desabafar soluços guardados no seu peito de homem muitos anos antes, toda a sua vida.

Quando se anunciou a dentição, Maria foi presa de uma febre violenta. João desvairado mandou chamar um médico amigo, seguia-lhe as prescrições à risca, com altas doses de quinino, e a pequenita deu de piorar. Era um erro de diagnóstico, o tratamento contrário, a morte. Em casa havia uma balbúrdia. Aurélia, incapaz de resistir, dormia nas cadeiras. As irmãs e a mãe, inteiramente inúteis, julgavam a criança perdida e apostavam o dia da sua morte. Ele nem mais dormia, nem mais comia, aflito, louco, com a pequenita nos braços, sem consentir que a tocassem.

-Deixem! Tenho esperanças! Uma grande esperança...

E a velha muito sincera:

-Qual! aqui só o milagre!

Começaram as conferências. Os remédios enchiam os consolos da sala. Um dia, fora de si, ele chamou o médico.

-Está perdida?

-Meu pobre amigo...

-Está?

-Infelizmente.

-Pois bem. Peço-lhe um grande obséquio de camarada. Venha apenas passar o atestado. Não lhe demos mais medicamentos. Custa-lhe tanto! Ela faz uma cara tão feinha. Eu fico a acalenta-la até a morte. Talvez o meu amor...

-Sim, talvez, fez o médico a sorrir com descrença.

E ele ficou, no escândalo condenador de toda a casa, a passear a filha, a dar-lhe gotas de leite, a anima-la, a incutir-lhe com toda a força da sua vontade o desejo de vê-la viver, de vê-la renascida. Assim passaram quarenta dias. Quando ao cabo desse século de dor e de tensão nervosa, viu a pequena sorrir-lhe sem febre, sã, de aparência sã, mirou-se num espelho por acaso, ao passar, e notou então que tinha ainda envelhecido. O médico chamado confirmou:

-Sim, com efeito, a reação... Mas como sofreste, meu amigo! Estás mais branco.

-Que queres? É a vida, fez ele a rir para os outros que sorriam. E querer bem custa tanto!

A doença da filha viera desorganisar-lhe a vida do lar, se é que tinha isso. Aurélia cada vez mais nervosa, de pior humor, estava realmente doente e não se sentia senão irritada contra a filha. João não podendo conceber esse coração, dividia-se entre as duas, atenuava, mas à proporção que o amor da filha mais se enraigava, a mágoa da esposa aumentava. Maria, a petiza, tinha uma saúde de vidro. O pai fazia-lhe uma atmosfera de suavidades. Foi ele quem lhe ensinou os primeiros passos, foi ele quem a fez repetir as duas primeiras sílabas formando sentido e quem toda noite até Maria ter cinco anos a adormecia numa vasta cadeira de balanço a cantar baixinho velhas canções de embalar crianças. Aurélia, indignada, à hora de ir ao teatro, surgia.

-Mas é espantoso! Adormecer ao colo uma pequena de cinco anos! Bem diz a mamã que as tuas maluquices estragam a menina!

João deitava a filha recomendando à criada mil precauções. No teatro ou onde estivesse a conduzir a esposa, apanhava sempre alguns minutos, tomava um tilburi84, ia até a casa ver se Maria dormia bem.

Esses cuidados, o amor incomparável faziam a petiza grata, com a gratidão das crianças que é de tão grande egoísmo. Como a avó levava a fazer-lhe censuras com o pretexto de a educar assim como as tias, Maria odiava os parentes. Como a mãe nos seus acessos neurastênicos dava razão à família e batia-lhe, tinha pela mãe um sentimento muito vizinho do medo. O pai era bem tudo, resumia todos os amores na sua permanente carícia, e fazia-lhe todas as vontades, comprava-lhe brinquedos, brincava com ela, e nada mais agradável para os seus curtos instantes de descanso do que ir fazer com a filha o «chicote queimado», fingir que não descobria um lenço escondido e vê-la rir, rir como riem as crianças, pondo um pouco do céu sobre a terra. Enfim ele realizara a felicidade. Havia um ente por quem se sacrificava mas que só no mundo a ele via com amor! E a cada achaque de moléstia, a cada febre violenta da menina, ficava aí perto do leito, sem pregar olho, olhando-a, exigindo que ela vivesse, com medo dos médicos, da família, de todos. Dos sete anos porém para diante, Maria só adoecera duas vezes e ele estava já pensando num fenômeno de saúde, já descansado, já com o sonho de um futuro risonho ao ver a filha linda, corada, sadia, quando ao entrar em casa encontrava-a assim, a arder em febre. Seria grave? Seria coisa de nada? Maria continuava a agitar a cabecita, os dois olhos injetados.

Então João suspirou de novo. Teria coragem de ir até ao fim, teria energia para vencer nessa nova luta? E foi ao encontro do Guimarães, que entrava acompanhado da Jesuina.

-A Maria, sabes, aquelas coisas... Parece-me sério.

-Vamos a ver. Não te aflijas.

Entrou, começou a examinar a doentinha, demorou o exame num profundo silêncio, em que João parecia de mármore para não deixar transparecer a sua angústia. Depois, pensou.

-É difícil um diagnóstico. Por enquanto vamos dar-lhe um laxativo e um pouco de quinino para combater a febre.

-Quinino! Ela tem horror ao quinino.

-Ora, João, deixa de tolices. Como queres tu combater a febre? Ela tem trinta e nove e oito décimos.

Foi-se a receitar, e como amigo da casa, ordenou a Jesuina levar a receita.

-Volto à tarde. Até logo. Não te aflijas, homem.

João ficou no quarto, tal qual tinha entrado, com o chapéu na cabeça, a sobrecasaca aberta. Era como se tivesse recebido a notícia de que o mundo ia a desaparecer. Então a sua filha doente? E grave, grave! Sim. Estava grave! A pequena no leito crescia da agitação, erguendo os braços, sacudindo a cabeça nas travesseiras. De repente, ergueu-se atirando longe as cobertas, sentou-se.

-Minha filha, que é isso?

-Já é tarde, vou vestir-me.

-Não podes; estás doente.

-Ah! quanto fogo! É um fogo de artifício. Espera. Onde estão as botinas?

-Maria! Maria! olha teu pai.

-Ah! as baratas, as aranhas. Que porção de baratas! Vamos mata-las, vamos. As botinas...

Era o delírio. Sem forças para rete-la, temendo magoa-la, João acompanhou-a. A pequena corria a casa, ele precipitava-se para fechar uma ou outra janela, para amparar-lhe os passos titubeantes. Era o delírio. Era a morte. Oh! sim, era a morte! Maria entretanto não caminhou muito. Súbito esmoreceram-lhe as pernas, e ele levou-a ao colo para o leito, aconchegou-a bem, ajoelhou na borda da cama.

-Maria, descansa; não morras, minha filha, não morras porque eu não resisto!

E sentiu que chorava, que pela primeira vez na vida chorava na presciência da fatalidade inexorável. Mas era preciso lutar, arrancar o seu entesinho ao irremediável. Enxugou as lágrimas, as idéias um tanto confusas. Aquela calma de amor com que reagia sempre outrora se transformara numa agitação febril em que a sua vontade se perdia. Quando os medicamentos chegaram, foi ele mesmo a administra-los. A febre continuava.

Para o jantar Aurélia entrou, e ainda toda enfeitada no quarto:

-Então que é isso?

A Aurélia mal, desde que saíste, parece.

-Não há de ser nada.

-É grave. Já delirou, está delirando. Maria, minha filha...

-Se mandássemos prevenir a mamã?

-Faze o que quiseres, deixa-me, deixa-me!

Ao escurecer, o doutor Guimarães reapareceu. A febre não cedera, antes aumentara. O médico balançou a cabeça. Era impossível fazer ainda um diagnóstico, mas o estado da menina inspirava cuidados. Se não tinham confiança nele, poderiam chamar outro para uma conferência, e mesmo não o preferir... De resto a casa já tinha esse aspecto que precede as tragédias, como se o inanimado, os móveis, os muros, os quadros, os objetos sentissem antes dos homens o arrepio da morte, a passagem da ceifadora. A família de Aurélia aparecera. A velha dogmática arrasava Guimarães e queria outro médico. As irmãs já asseguravam o caso perdido, como de costume. A vontade de João sossobrava. Ele queria estar apenas perto de Maria, não se tirar dali, ser o único a cuida-la. Então foi pela casa, dirigida pelas mulheres, como um vento de ensandecimento. A primeira conferência relegara Guimarães. Um outro médico moderno e célebre aparecera, imaginando banhos quentes e injeções hipodérmicas de quinino, enchendo os aparadores de frascos e de caixetas. Batiam à porta sinistramente os fornecedores. Uma grande banheira foi instalada no quarto. Para enche-la, cada um trazia o seu jarro d'água a ferver. João calafetava as portas, despia com uma delicadeza infinita a pobre Maria, tomava-a ao colo, depositava-a na banheira com um arrepio, como se estivesse a matar a filha, enquanto o médico contava os minutos. Tomava a pegar da criança, enxugava-a, envolvia-a nos cobertores, quedava-se, com os olhos muito abertos, um vinco de angústia entenebrecendo-lhe a boca. E o médico tomava da agulha, enterrava-a no ventre da filha, indiferente, conversando. Como apesar dos laxativos, o ventre continuava átono85, recorreram aos clisteres86. Ele os dava só, sabia de todos os remédios e passava a noite, aos pés da cama, olhando a filha. Quando ela dormia, chorava, e murmurava tão baixo que só a sua dor o ouvia.

-Não me deixes, Maria, não me deixes... Ah! não que eu morro, que eu morro! Por que vieste, hein? Por que? Para me fazer sofrer? E de uma vez em que estava assim, com a face molhada de lágrimas, ouviu a voz da filha:

-Ah! paisinho! Quanto trabalho está tendo comigo!

-Maria!

-E não vale a pena...

-Meu amor, não fales, ouviste? dorme. Estás muito melhor.

Tocou-lhe nas mãos, e, com efeito, sentiu-as menos quentes. A febre declinara. Uma chama de esperança brotou-lhe no coração. Esperou ansioso a manhã, e quando o médico chegou, disse-lhe quase a sorrir

-Está melhor. A febre diminuiu.

-Acontece. É do curso da moléstia. Tem trinta e oito graus de febre.

-Então?

-O perigo ainda não desapareceu, meu caro. Sua filha tem uma grave moléstia com períodos fatais. Há quanto tempo caiu? Há oito dias. Desde esse momento os dias tem se conservado firmes, de sol. Esperemos que assim continue o tempo mais uma semana e eu garanto a vida da pobre criança. Mas, se por acaso tivermos uma brusca mudança meteorológica, uma tempestade, o abaixamento da temperatura -é difícil dizer qualquer coisa.

-Então, se o tempo conservar-se firme?...

-E se houver a tempestade...

Certo João Duarte nunca na sua vida se sentira tão a braços com o destino triste. Ouvira falar de moléstias em que a variação atmosférica influi perniciosamente, sabia mesmo o nome de algumas, mas a hiperestesia87da sua angústia, a tensão nêurica88 em que o mantinha a iminência do desastre, aquele ror de noites passadas em claro, o esforço físico de andar com a petiza ao colo já tão crescida, e esse martírio de sofrer na alma todos os cruciantes sofrimentos físicos da filhinha faziam-no perder a noção nítida das coisas, esbatiam89 a vida em torno do grande problema: salvar Maria. A idéia da tempestade entrou-lhe no cérebro de matemático, de homem de ciência sem abusões, sem crendices, como o anúncio da catástrofe que era preciso evitar a todo transe. Um tremor convulsivo tomou-o, e a sua atenção bipartiu-se entre o céu e a filha com o pavor de um primitivo diante dos elementos. Se chovesse, se no céu lindo rolasse o fragor do trovão e nuvens negras toldassem o azul do firmamento, toda a razão de ser da sua existência naufragaria porque a filha não poderia escapar. Não se tirou mais do quarto. Passava a velar Maria e a ir de vez em quando levantar a cortina para olhar o céu, com um medo supersticioso. Era em novembro, no começo do verão, nessa época de bruscas tempestades em que amainavam os grandes calores. A temperatura subia, o sol era um disco de fogo no azul de cobalto, do céu sem nuvens; e as noites se diluíam num escandaloso luar cor de ouro e cor de opala. Estavam a findar os dias do plenilúnio90, iam entrar na minguante. Talvez mudasse o tempo. A febre não cessara, queimando a fogo lento os membros emagrecidos de Maria. A nevrose da casa tivera um hiato de cansaço, à espera do acontecimento. A família dormia pelas salas, sem pouso. Aurélia tivera dois ataques com gritos despedaçadores que faziam no seu leito a doentinha contrair o semblante numa inédita angústia de cadáver horrorizado subitamente voltado à agonia. Ele quedava-se, ouvindo o crepitar da lamparina e o tic-tac do relógio na sala de jantar a coser o tempo no pesponto certo dos segundos. Qualquer outro rumor, o arrastar de uma cadeira na casa vizinha, as vassouradas dos varredores pela madrugada, faziam-no pensar em trovões ao longe, em quedas d'água. Corria então à janela, levantava a cortina, perscrutava o céu calmo. Ah! se não chovesse! Se o milagre se desse! Se Deus quisesse! Até mesmo em Deus ele acreditava, pondo a reger aqueles fenômenos que a sua ciência conhecia, um ser sobrenatural e todo poderoso. E assim os dias passaram. Um, dois, três, quatro dias que eram para ele a corrida do seu coração, o galope dos sentidos por um túnel de treva à procura da luz anúncio da vida, dias de que contava as horas e os minutos e os segundos como se os sorvesse sedentamente num contador de fel, dias que lhe chupavam das artérias anos de existência.

-Façam uma promessa, segredava às mulheres, vocês que acreditam. Façam uma grande promessa. Eu cumprirei...

As criaturas, incapazes de sentir assim, estavam afinal tocadas de respeito, lamentando tanto a criança como aquela energia humilde que a seu lado se finava por ama-la demais. Os santos surgiam. Havia oratórios na sala de visitas, no quarto de Aurélia, com velas a crepitar. E a febre continuava a ressecar a pele branca de Maria, sempre, sempre, sem descontinuar. No quarto dia -era de madrugada e já João fora varias vezes olhar o céu- estava sentado a olhar o sono tenebroso da filha, quando pelos seus olhos passou um relâmpago. Não, era de certo alucinação da fraqueza. Correu à cortina e quedou-se com um arrepio de horror. Grossas nuvens vinham vindo do ocidente. A luz da lua era de uma intensidade cegadora, envolvendo de tal sorte o casario que parecia libra-lo91 numa atmosfera de sol azul, coroando-o de icebergues de flocos. Na linha do horizonte, porém sucediam-se clarões como os que fazem os canhões ao longe a detonar. Era mesmo um canhoneio de chamas, de que ainda não se ouvia o barulho mas que barravam a barra do céu de putrefações luminosas.

João Duarte correu à filha, apalpou-lhe o braço descarnado, que ardia. Nesse momento ouviu-se um grande fragor pelo céu todo. Era o trovão. João passou várias vezes a mão pelo rosto. Era impossível! Era impossível! Talvez ele estivesse tentando os elementos, com a idéia permanente da chuva. Procurou alhear-se, pensar noutra coisa, arquitetou frases vagas, com os ouvidos à escuta, os olhos dilatados.

Esteve assim um instante que lhe pareceu um século. Não resistiu, voltou á janela. Já o céu de um azul de vidro se achamalotava92 e se rendava de nuvens cor de cinamono93. Qual! Era verdade! A chuva vinha, era fatal! Nunca na sua vida o destino sorrira senão para lhe lançar mais veneno na alma. Assistiria de pé à hecatombe. E depois estalaria, estalaria como estalara o trovão.

Que fazer? O céu em pouco foi todo um licor que baixava, empedrado de nuvens, empurradas pelo vento. A rua, minutos antes banhada de luz, escurecia em treva. Grossos pingos d'água começaram de bater na vidraça onde João tinha a face colada. Em pouco os pingos redobraram saraivando nos vidros, e os trovões tonitroavam, trovoavam, fragoravam no arquejo despedaçante do vento alanhando o negror do espaço de coriscos súbitos que rachavam a treva. E, àquela violência, João, como um náufrago, ainda tinha esperança, ainda pensava, que após o temporal voltasse o tempo firme definitivamente, e ainda houvesse um meio. Qual! Aquilo ia acabar, tinha de acabar. Era chuva de durar pouco! Mas a chuva caía, jorrava do espaço violenta e brutal, inundando a rua.

João olhou então a filha. A pobrinha mostrava apenas a face de cera entre os caracóis dos cabelos. As olheiras eram roxas e o nariz afilava na sombra do para-luz. Pobresita! Estava a descansar. Ele ficaria ali, contra o elemento, proibindo-o de entrar, impedindo-o de passar. As idéias fugiam do seu pobre cérebro sempre resignado. Abriu os braços nos portais, ficou assim longo tempo, pensando, pensando na tempestade, na filha, na tempestade que ia acabar, na filha que não podia morrer. Quanto tempo levou assim? Era impossível saber. Um zumbido tomara-lhe os ouvidos na recordação dos trovões, as fontes latejavam-lhe, e tinha as mãos frias como se as tivesse passado em gelo. Só deu acordo quando viu uma luz baça vir surgindo no espaço e viu que a chuva continuava lentamente, sem fim. Era das que não acabam! Deixou cair a cortina, veio na ponta dos pés até o leito, apalpou o corpo da filha. Estava sem febre, sim! sem febre alguma. Dera-se o prodígio? Seria possível? Então a chuva, a tempestade?... Apalpou bem a testa, o peito, os braços, os pés. Os pés estavam até frios. Ora esta! Um sorriso de satisfação abriu-lhe a boca, onde só a dor deixara vincos. Foi buscar um outro cobertor para os pés da queridinha, envolveu-os bem, e de novo apalpou as mãos. Estavam também a esfriar. Hein? Que era isso? Talvez o corpo, desacostumado da temperatura normal... Qual! Era idiota o que dizia! Chamou a filha, baixinho:

-Maria, ó Maria, melhorzinha?

A pobre não respondeu. Também tão fraca! Nem de certo escutara... Chamou mais alto:

-Maria, então? queres deixar o pai do seu coração sem uma resposta? Não vês? Estou só, eu só aqui, eu que sofro contigo. Maria.

Estava atormentando-a com certeza. Ah! que bruto era, que mau! As mãos, porém, esfriavam. Oh! Uma nova complicação na noite, mais dores, mais males, mais horrores. Que seria? Foi até a cômoda, acendeu uma vela, veio ver de perto a sua adoração.

Maria tinha os olhos abertos, bem abertos, grandes, largos, abertos. Qualquer coisa de vidro cristalizava-lhe o brilho. E os lábios descerrados mostravam entre os dentes uns filamentos brancos, secos, uns filamentos que nunca vira. À luz da vela as pálpebras não bateram. Uma grossa lágrima rolava-lhe pela face. Já se lhe não sentia o respiração.

João Duarte deixou a vela ao lado, na cadeira, virou-se para um lado, virou-se para outro, passou as duas mãos pela cara, esmagando os dedos de encontro aos olhos, quis falar, quis chamar. Parou, pousou de novo o olhar no olhar que se embaciava, olhou, olhou a filha. Um tremor tomou-o, sacudiu-o, abriu-lhe a boca, como que lhe esgarçou os músculos. As mãos crisparam-se-lhe. E, de chofre, caiu para frente, sem apoio, no chão, com a face de encontro ao pé da cama, estalado de muito amar desgraçadamente.

A noiva do som

Estávamos na sala malva, a sala das recepções íntimas, das conversas leves em torno da mesa do chá. Mme de Sousa, linda no seu teagown94 cor de pêssego, posava entre a trêfega mme Werneck e a sisuda viscondessa de Santa Maria, e nós, eu e o barão Belfort, já tínhamos esgotado o ataque à música italiana, quando mme Werneck deu conta da sua última descoberta:

-O barão está triste.

-Pois se venho de acompanhar um enterro.

-Triste por isso? O barão, o homem sem emoções, triste porque acaba de fazer a coisa mais banal desta vida, entre pessoas de sociedade!

-Não é propriamente por isso. Estou triste porque vi enterrar a última mocinha romântica deste agudo começo de século. Se lhes contasse a história da pobre Carlota Paes, ficavam para aí todos a chorar, e antes de tudo, nesta hora agradável, nunca me perdoariam ter envermelhecido os lindos olhos de mme Werneck.

-Mas, pelo que vejo, a sua história tem a propriedade do dilúvio! fez asperamente a viscondessa.

-Conte-nos isso, barão, disse mme Werneck; com a sua história contemporânea do dilúvio faremos decididamente coleção de antiguidades sisudas.

Houve um aproximar de cadeiras. O barão bebeu um gole de chá.

-Não conheceram a Carlota Paes? Pois a pobre Carlota Paes, coitada! já com um começo de tísica e um perfil romântico, dava mesmo pena, à noite, no parapeito da janela, muito branca, como desmaiada. Ninguém lhe sabia da vida, e vendo-a assim, à janela daquela velha casa, todos a deploravam. Quando a Carlota atravessava a brutalidade do bairro pobre, com a apagada dor dos humildes aristocratas, trazia no rosto um tal desgosto que era por quantos a conheciam um só lastimar. Também saía apenas para acompanhar a mãe, uma senhora escalavrada e roída como um vaso antigo, para acompanhar com o seu passo de visão a pobre velha carregada de pesadas costuras. Fôra assim desde nascida! Olhava os pobres e os parentes como se guardasse na alma a recordação de um mundo melhor, alheava-se deles, e quando a viam recolher ao sobrado em ruína, já todos tinham a certeza de vê-la aparecer à janela, muito loura, e muito branca.

Que fazia ela, assim, por longas horas, alheia à rua, olhando o céu, como um personagem de romance? Coitada! Era o único meio de esquecer a miséria da casa, a miséria que embota a alma e engrossa as delicadezas. Carlota ficava ali, numas atitudes serenas de pássaro triste, com o olhar cravado no infinito, e toda a suavidade sensitiva, quebrada pela incompreensão dos outros, mucilaginava95 uma dolorosa expectativa.

Parecia um tipo de lenda à espera da fada que o fosse salvar do bairro escuro e daquela pobre senhora sempre a trabalhar e sempre de preto.

Como estão a ver, era uma menina romântica, e que romantismo, minhas senhoras! Até eu cheguei a admira-la. Tossia mais, estava diáfana, parecia uma ninfa virada em anjo da saudade -porque, decerto, quem lhe visse o olhar e os irresolutos gestos, julga-la-ia perdida de um paraíso artificial. Não lhe pude saber a origem desse esquisito feitio, e certa vez que lhe levava «bombons» e lhe falei em paixão, ela teve um gesto tal, que me esfriou a alma. Também, como sumida da realidade, nunca ninguém a tinha visto à janela baixar o seu severo perfil às vulgaridades do namoro.

Esperava, nada via, e com a sua ansiedade, assim ficava até tarde, muito branca e muito loura, olhando o céu.

Uma vez, no mês de junho, a Carlota estava a chorar, nem sabia bem porque, diante da álgida luz do luar, quando na casa junto, o harpejo brusco e sonoro de um piano sobressaltou-a. Do outro lado lentas espirais melódicas espraiavam-se, envolviam-na. Era, num turbilhão contínuo de notas, de expressões subitâneas e diversas, a expressão persistente, torturante do desejo que não se termina e se preludia, do amor cuja volúpia jamais alcança o paroxismo. Ela ficou presa, estarrecida. Quem seria? Nunca ouvira aquilo, nunca sentira os nervos tocados daquele brusco quebranto, daquele epidérmico encanto do som, exprimindo o inexprimível. Os sons, como carícias de rosas, iam a pouco e pouco desfibrando-a, envolvendo-lhe a alma, machucando-a, toda ela palpitava agora com uma tremura de folha ao vento. Teria chegado a felicidade, o impalpável prazer até então vedado? Aconchegou-se mais ao xale, com um arrepio de gozo que lhe subia pelos braços e lentamente se irradiava pela nuca.

Do outro lado a música, velada, num resumo de mil emoções, esboçava paisagens sutis e esfumadas, desfiava risos perlados, cavava-se em soturnas mágoas, e como se a vida extra-humana fosse um só gemido de amor, toda ela espiralava tormentosos queixumes, endechas dolorosas, perdidos soluços de paixão. Para os grandes sensuais só ha um gozo integral que exprimia a ânsia de acabar e a fraqueza humana -o som, a vibração de uma corda na lamentável evocação de vidas que se não realizam.

Para que o sentir da pobre criança fosse mais intenso, no espaço, as estrelas palpitavam e a luz do luar lustrando as casas com o seu misericordioso brilho, entrava pela janela num retângulo de ouro que parecia milagre. Oh! nunca a doce Carlota se sentira tão emocionada, ela que sempre vivera na expectativa do bem!

Essa noite passou-a à janela até muito depois do piano calar, ouvindo-lhe o último som perdido na cinza avelhada do luar, e desde então andava o dia à escuta e toda a noite passava, em que o oculto pianista tocava, presa ao parapeito, entre a luz dos astros e os sons misteriosos. Nós já ríamos da paixão.

-Então a Carlota?

-Ai! meu senhor, continua a viver dos sons, está de todo virada!

E quando eu lhe levava alguma coisa:

-Então a sra. d. Carlota sempre com os sons?

Ela pendia na cadeira sussurrando

-É tão bom!

Aqueles sons, como um rosário sem fim, que se desfiasse, iniciavam-na numa religião de amor desencarnado, e quando qualquer dificuldade emperrava do outro lado a mão do tocador, a Carlota sentia uma agonia como se hesitasse em compreender todo o alcance pecaminoso da frase. Vinha-lhe às vezes a curiosidade de saber quem era esse tocador. Passava os dias à espreita; a casa ao lado, uma pensão, não lhe deixava adivinhar, entre as muitas pessoas que entravam, o artista estranho da noite. Perguntou à mãe se a informavam e a velha senhora respondeu que não sabia, que não era possível saber.

Bruscamente, então, perdeu esse desejo. Conhece-lo para que? Bastava a delícia de ouvi-lo, bastava a inconsútil paixão que a rojava a seus pés! E perdia totalmente as noites, essas noites de agosto, traidoramente frias, em que a luz brilha mais, há mais perfume no ar e as brumas, ao longe, parecem sudários consoladores. Era um inebriamento até ao romper da alva. No fim, quase se arrastando, ia para o peitoril, como para uma tortura e do outro lado, a música inquisidora amortalhava-a desabridamente no delirante tropel do amor!

Ah! o gozo do som! Os seus nervos sensíveis chegavam ao pranto, ao soluço, ao sorriso, como hipnotizados. Cada nota já lhe exprimia um sentimento; os trechos repetidos pelo artista ela os seguia, adivinhando acordes, adivinhando sons, como se fizesse o exame da sua alma de amorosa, e de cada vez, mais maravilhada ficava, bebendo a pleno trago o delírio, a morte, o êxtase da música encantada. Decerto, ninguém, ninguém no mundo amava, sentia-se ainda com esse sagrado e impalpável amor. Encostava-se ao parapeito, esperava e era sempre com um susto que, de repente, ouvia abrir-se uma escala, como acordando o piano, e as duas vibrações de bordão, dois acordes de contrabaixo, pesados e sonoros. Depois, um som subia, outro respondia, o aviário se encadeava num trinado. Muita vez, o pianista que fundia a alma com as notas, tocava várias árias simples, com um ar velho, como se os séculos todos chorassem a vida; de outras, eram trechos modernos, trançando no ar uma flora bizarra de nervosos acordes e era então uma revoada de dores, ais sem fim, queixas em harpejos arquejados, rugidos rubros de ciúme, em que o piano parecia abalado e a musica estrebuchava...

Nos últimos dias, a coitada ardia em febre, plenamente fora do mundo, gozando com um gozo feroz de agonisante, o amor incorpóreo, enquanto ao lado, noites em fora, as mãos invisíveis soluçavam a mágoa e a tristeza.

Ora, ontem, quando eu subia a escada íngreme da sua velha casa, d. Ana apareceu-me desgrenhada.

-Venha, acuda, a Carlota morre...

-Como foi isso?

-Sei lá! Passou toda a noite à janela; o músico não tocou, a chuva, hemoptises, sangue...

Na sala de visitas, a pobre Carlota, coitada! estava caída numa cadeira de braços, entre as bacias, as botijas, os panos, a lúgubre confusão que precede o eterno descanso. Fez um esforço, estendeu a mão.

-Estou à espera da música...

Deixei-a, despreguei-me pelas escadas. Era preciso que a música lhe levasse o supremo consolo. Entrei pela casa ao lado.

-O pianista? perguntei ao encarregado.

-O maluco? No primeiro andar, à direita, quarto n°. 5.

Subi, bati com força no quarto, empurrei a porta, desesperado. Encontrei um velho homem, magro e adunco.

-É o senhor o pianista?

-Sou.

-Há aqui ao lado uma criança que agoniza. Vinha pedir...

-Para não tocar hoje. Vá com Deus.

-Não. Venho pedir que toque. Não é possível explicações. Essa menina vive há um mês de ouvi-lo. Está morrendo. Pede-lhe que toque.

O homem passou a mão pelos cabelos.

-Escute, é uma loura, muito loura? Meu Deus! Pobre pequenina! Então ela me ouvia? Vá, eu toco, vou tocar, vá.

Depois, agarrou-me o braço.

-Mas escute, não lhe diga como eu sou. Eu sou feio, perdia o encanto!

Quando outra vez entrei na sala, a Carlota morria. Como a querer beija-la, o luar entrava pelas janelas, num golfão de ouro, e ela, com as mãos de magnólia cruzadas sobre a peito, tinha na face a tortura da agonia.

Mas, subitamente, teve um estremeção. Ao lado, como uma ronda de astros que se despregassem do infinito, o piano explodia uma indizível revolta. Um tropel de sons reboou, entrechocou-se, deslizou, rasgando o ar, da terra as estrelas, com uma dor infinita. Depois, pareceu parar, tremulou brevemente, abrindo um paraíso, onde os arcanjos cantassem e, enquanto Carlota sorria, os acordes, como um coro de rosas, envolveram-na, beijaram-na. E ela morreu, docemente, sem uma contração, ouvindo a música do amor...

Houve um longo silencio na sala malva, onde há conversas tão alegres, à hora suave do chá. O barão limpou o monóculo:

-Ora, aqui está porque eu estou triste!

-Coisas da sua fantasia macabra, fez a severa viscondessa de Santa Maria.

-Para entristecer a gente, acrescentou mme de Souza, linda e sentimental.

E, de novo, enquanto mme Werneck fazia um grande esforço para não chorar, todos nós, com afinco e erudição, atacamos a música italiana.

A sensação do passado

Estávamos a conversar no gabinete de Jorge Praxedes. Era um fim de tarde prolongado por um lindo e maravilhoso ocaso. Jorge oferecia chá em xícaras de porcelana da Pérsia; havia largos divãs sonhadores entre as mesas atulhadas de bugigangas de arte, e naturalmente, a atmosfera, o tabaco turco, o chá, tudo isso nos dava a lombeira96 das recordações e o desejo de fazer frases. Já tínhamos falado do amor, da vertigem do tempo, do galope da existência e de outras coisas novas.

-É curioso, disse um da roda, nós os homens modernos não temos a sensação do passado, do não sentido, do total alheamento que o passado devia dar. As dores, as alegrias, as modas ficam na memória como coisas presentes que se afastaram. Para um homem que vive a vida intensa não há propriamente passado, há um acumulador que não dá a impressão especial do antigo, do acabado, do que não volta mais e há muito tempo terminou.

-Paradoxo!

-É fato. Como homem as minhas amantes mesmo mortas vivem todas na minha memória como se estivessem ali, por trás do paravento97; como artista nunca me foi possível ter a impressão do extinto diante de uma estátua grega, a ouvir um trecho de musica clássica, a ver uma linda tela antiga.

Houve um prudente silêncio, e todos olhavam prudentemente as janelas, quando o barão Belfort, que tocava um pouco distante um vago Schumann num piano meio desafinado por falta de uso, exclamou:

-Como tem você razão! Os grandes sentimentos e as grandes emoções são sempre os mesmos. Por isso, os homens guardam na história o mesmo fenômeno de memória da sua vida interna, lembram-se mais de fatos do tempo de infância do que do tempo de ontem. Como artistas, neste torvelinho moderno em que a beleza desapareceu, só o que é medíocre, muito medíocre, dá a sensação do passado, mesmo que seja de ontem. Diante da Vitória de Samotrácia no Louvre é impossível deixar de ter o enebriamento do triunfo diante daquele bloco de pedra ardente que parece arrastar as embaterias98 da conquista, e anima os nossos nervos de hoje como animaria os dos helenos. A vista da delicadeza pré-angelical de uma cabeça de Murilo, o nosso amor pela beleza vibra como vibrava o dos contemporâneos do grande artista. Que digo! Diante dos simples pedaços de pedra apanhados nas escavações do Egito nós sentimos a vida porque eles sabiam reproduzir a feição eterna da Vida. Um homem moderno não se admira do progresso porque o presente não sente o passado porque o guarda no próprio plasma.

-Grande fantasista.

-Repito, só a mediocridade, a camelote99 pode dar a sensação do bem velho, do velho quase incompreensível para nós, do velho antipático, do velho repugnante, do passado integral. E para isso bastam dois anos. Eu apalpo as opiniões, o afinamento nervoso dos homens, nas pequenas coisas, nas emoções dos sentidos. Qual dos senhores que amam perfumes sente a velhice da essência de rosas? É dos mais velhos perfumes do mundo e é divino e sempre da nossa alma. Qual dos senhores será capaz de usar, sem se sentir fora da moda, fora do tempo, um perfume lançado por qualquer fabricante francês com grande espalhafato e grande êxito há vinte anos, o «Jockey Clube» por exemplo? Ao ouvir uma sinfonia de Mozart, sentindo a cada passagem uma sugestão aos sentimentos eternos, ninguém achará essa música velha. Ao ouvir uma valsa de 1870, cada um de vocês tratará de fugir...

A roda riu desabaladamente. O barão, levantou-se do piano, um pouco animado.

-Mas é um fato. Só as coisas absolutamente insignificantes dão a sensação do passado. Eu já tive essa sensação, não solitariamente, como me aconteceria cheirando um frasco de perfume da ex-moda, mas num salão de baile, num dia de baile. E até jamais esquecerei a sensação porque vi, olhei, encarei e sofri o miserável passado com toda a sua imensa insignificância.

Como André de Belfort contava sempre coisas interessantes, os cavalheiros presentes aguçaram a atenção.

-Nunca pensei, meus amigos, que fosse tão simples e tão doloroso. Eu que saía dos museus de indumentária da Idade Média com ensinamento de arte e a alma renascida, eu que vibrara diante dos frescos de Botticeli como diante da revelação para o futuro, fiquei aniquilado.

Há cerca de três anos, fui convidado para um baile nas Laranjeiras. Não era um sarau super-elegante, absolutamente fashion... Aqueles senhores dançavam ao som de um piano. Havia, entretanto, casacas, algumas notabilidades literárias e científicas arrumadas na saleta de fumar, um farto serviço de buffet, a elegância das mulheres, das moças vestidas de tecidos leves, a adejar a gracilidade suave dos gestos. O dono da casa recebeu-me com as reverências com que receberia um bonzo. As moças olharam-me curiosamente, os valsistas ergueram os olhos, as matronas indagaram o meu nome e eu fui conduzido ao fumoir, onde murchavam cinco ou seis glórias urbanas. Nesta sala estava o piano, o piano torturador. Um mulato de pastinhas100, com os colarinhos altíssimos e o jeito pernóstico de levantar o dedo mínimo onde fuzilava um solitário, dirigia a caravana das notas, radiante como um deus e suado como uma caldeira. De vez em quando, chegavam rapazes com vozes súplices:

-Firmino, agora, aquela tua polca.

-Qual delas? interrogava o pianista com a fronte de orango camarinhada de suor.

-Aquela muito bonita, aquela mole...

E, ali mesmo, baixinho, trauteavam compassos.

-Tocas?

-Pois não.

Por esta apreensibilidade de motivos musicais, percebi estar diante de um desses pianistas da moda, peculiares à nossa sociedade, homenzinhos que vivem de escrever, com alguns erros e muitas aclamações, polcas, valsas e outros sons dançantes. Os jornais anunciavam mensalmente, havia dois anos, novas composições suas, e, como um decreto, o seu nome triunfava nos salões modestos.

A vaidade enlouquecera-o quase. O Firmino tinha a certeza de estar no galarim101 e, tocando, acompanhava com os ombros e a cabeça o balanço langoroso dos compassos, de olho aberto, beiço revirado, tal qual um gênio inebriado com a própria revelação.

Talvez o fosse. Há gênios para tudo.

Eu ficara depositado numa rocking102, ouvindo o Firmino e um velho químico, professor de Faculdade, o dr. Hortêncio Guedes. O dr. Hortêncio falava mal do próximo, de modo que o Firmino não me escapava, dada a minha natural reserva de responder com monossílabos quando se ataca a vida alheia.

O pianista era, de resto, curiosíssimo. À roda do piano havia três ou quatro indivíduos hipnotizados pela sua virtuosidade. De vez em quando, um rancho de moças, escoltadas por cavalheiros, invadia a saleta para lhe fazer o pedido de uma composição comovente, e o Firmino logo esticava mais os dedos, erguia a cabeça ao teto, fingindo-se em pleno sonho, para ter um sobressalto, curvar-se, dizer:

-Minhas senhoras...

Então, todas falavam a um tempo

-Firmino, toca a Estrela d'alva.

-Não! Antes a Irresistível...

-Silêncio! Firmino, mlle. Abigail deseja aquela tua valsa... aquela muito dançante. Como se chama, mlle.?

-Lolita.

-É isso, a Lolita.

O pianista lambia os beiços.

-Ah! v. exa. gosta da Lolita? Um poucochinho velha, tem seis meses.

-Mas é tão bonita!

-Muito obrigado.

E, mais suado, com o lenço entre o pescoço e o colarinho a desabar, o pianista sacudia no piano os saracoteios da valsa. Não sei, meus senhores, qual a vossa impressão ouvindo esse gênero musical. Eu, francamente, sentia-me moço, com vontade de dar à perna, tamborilando nos braços da cadeira, gostando. Aqueles sons eram do meu tempo.

De repente, porém, quando o relógio batia uma hora, o Firmino parou bruscamente, pôs a mão no queixo.

-Não posso mais!

Logo acudiram rapazes, o dono da casa, senhoras. Era a desgraça. A nevralgia, a terrível nevralgia do Firmino rebentara. A notabilidade passava o lenço da fronte ao queixo numa ânsia raivosa. Havia dor de dentes e, principalmente, a dor de não poder continuar a ser o ídolo do grupo. As meninas, cheias de carinho, já tinham ido buscar cocaína, um palito, algodão; um dançarino trouxera o espelhinho do toucador:

-Põe isso, Firmino, a ver se passa.

-Qual! não passa... chorava o artista. E, subitamente, desapareceu da sala, arrastando os dançarinos.

Durante dez minutos o dr. Hortêncio tomou sorvete e absorveu as atenções. Eu já estava enfastiado, quando o anfitrião surgiu:

-Ora esta! E que tal, hein? Uma festa que ia correndo tão bem! Logo hoje o sr. Firmino dá para ter dores de dentes. Estraga-me a noite!

Atrás do anfitrião vinham a pouco e pouco surgindo os convidados e o interesse de gozar a noite aumentava o ódio contra o pianista, como se ele tivesse a nevralgia só para os desgostar. Aquilo não passa! É um mulato de maus dentes! E agora? Sim, e agora? Que se há de fazer? D. Julieta toca? D. Julieta era tímida e ainda estava estudando. Ninguém tocava, ninguém sabia o que fazer? E tudo por causa desse Firmino...

Um dos rapazes, que usava lunetas e parecia muito brincalhão, propôs o suicídio geral, um holocausto a Terpsychore103 e, para dar o exemplo, atirou-se à janela. Mas voltou de lá, em pontas de pé, a face feliz, pedindo silêncio

-Meus senhores, está tudo resolvido. Descobri um pianista! Agarrei o impossível!

Todos, num ímpeto, indagaram onde o guardava

-Ali, em baixo, na rua, vendo o baile. É o Prates. O Prates, há vinte e cinco anos, era o Firmino de hoje. Morreu-lhe a mulher, foi para uma fazenda, não sei. O fato é que, quando voltou, já outros lhe tinham tomado o lugar. O Prates anda por aí furioso contra os rivais, e passa as noites assistindo aos bailes como convidado do sereno. Não perdeu o hábito, coitado! Era a sua atmosfera... De manhã lê os cumprimentos dos jornais e à noite espia os saraus. Original. Lá está ele. É aquele gorducho, de cavaignac branco, com um ar de agente de polícia aposentado.

-Que romântico! fez o Dr. Hortêncio, e todos nós fomos à janela, sutilmente, espiar a rua negra, onde, com um cavaignac branco estava o caso esquisito.

O mocinho indagou do anfitrião:

-V. ex. permite que o vá chamar?

-Sei lá! se os senhores quiserem.

-É velho, clamou alguém.

-Que tem isso? indagou facundamente104 o Dr. Hortêncio. Então, se ali embaixo estivessem Beethoven, Schumann, Mozart ou outros luminares da música, nós não os deixaríamos entrar!

Aquele argumento pareceu decisivo, apesar de estarmos convencidos de que se Beethoven e os outros luminares aparecessem, teriam que ficar na calçada e sem abrigo.

O jovem partira, entretanto, e minutos depois entrava na sala conduzindo um homem ventrudo que tinha um cavaignac de bode branco e rolava o chapéu nas mãos.

-Meus senhores, o pianista Prates, que teve a bondade de aceitar o nosso convite.

-Eu passava na ocasião, murmurava o homem, achei linda a festa...

Um bando de dançarinos já o envolvia, oferecendo-lhe licores, tirando-lhe o chapéu, sentando-o ao piano.

-Vai tocar alguma coisa?

-Quem estava aqui?

-Nós todos.

-Pareceu-me ouvir as composições do Sr. Firmino... Abancou, correu uma escala do piano. Hein? Que era aquilo? Era uma outra escala, uma escala estranha.

-Bem, vou tocar uma valsa.

-Bem moderna, Sr. Prates; uma valsa dançante.

-Sim, sim...

Os pares voltaram todos ao salão. Prates pareceu recordar; atacou um acorde, depois outro, e os primeiros compassos ecoaram. Um vago mal estar pareceu, de repente, estreitar a sala. Que coisas cômicas, que coisas grotescas, que coisas estúpidas, essas notas de piano sugestionavam à gente!... A sensação do passado enraivece sempre. Os convidados estavam irritados como se fossem recebendo uma longa humilhação. Eu tinha vontade de rir e ao mesmo tempo de destruir, de quebrar o piano. Na sala, as meninas largaram os pares desanimadas; moças nervosas sentavam-se aos cantos e era uma crescente exclamação de desprazer.

-Qual! Não é possível! Ninguém compreende isso! Pára! Afinal, um, mais ousado, aproximou-se do piano:

-Ó Prates, toca qualquer coisa de mais novo.

Uma voz rouca respondeu:

-Hein? não estão gostando?

-Muito, não. Vê se nos dá a Valse Bleu.

-A Bleu? Ah! Essa não conheço. Parou, fitou um instante a parede fronteira, correu a mão pelo teclado:

-Vou tocar um dos meus sucessos.

Eu olhava-o como se olha um monstro, um trambolho que é preciso destruir e ele estatelava nas sete oitavas uma espécie de belchior melódico, tendo tudo, desde o Seu soldado não me prenda até os compassos do tempo em que o Furtado Coelho intitulava as valsas de homenagens e as meninas dançavam a Flor de neve, a Flor de baile, a Feíticeirinha e a Varsoviana.

Eu nunca vira coisa tão assustadoramente horrenda. Era como se, de súbito, saltasse ao salão uma velha horrível, remexendo molemente as pernas bambas. A mixórdia espoucava como um rebate devastador. Os tais sons dançantes eram impossíveis de dançar. Por mais desejos, por mais esforços que fizessem os dançarinos hábeis no «boston» e nas «americanas», eram incapazes de fazer duas voltas sem errar, sem se encontrarem, sem desanimar. Dançar com aquela música tornava-se um tormento superior para os mais alegres. E ele, feliz, com o cavaignac pendente, num gozo infinito, corria os dedos, evocando recordações, o Prates de outrora, que dirigia os salões, o Prates querido, o Prates animado no turbilhão das valsas, enquanto cada um de nós sentia o acostar de um espectro, o esmagamento com o dia de ontem, uma impressão de bolor, de umidade, de ridículo...

No salão o gás silvava só, e as janelas abriam num largo bocejo para a escuridão da noite. O pianista chegava ao fim em dificuldades, de mãos cruzadas no teclado, empinando o cavaignac, glorioso, ébrio de satisfação. De repente, parou, olhou para todos os lados, sem ver, limpou o suor das fontes, abriu a boca num sorriso alvar.

Não havia ninguém.

Já muita vez, com certeza, lhe acontecera aquilo, na sua peregrinação melancólica.

Prates ergueu-se pálido, tão pálido que eu pensei vê-lo cair com uma vertigem; pegou do chapéu, apertou o lenço na boca barbuda, como afogando um soluço e saiu vagarosamente. Dentro batiam os cristas da ceia...

Foi esta a única vez que eu tive a sensação do passado.

Aventura de hotel

Naquele hotel da rua do Catete havia uma sociedade heteróclita mas toda bem colocada. O proprietário orgulhava-se de ter o senador Gomes com as suas sobrecasacas imundas, o ex-vice-presidente da ex-missão do México, a primeira ex-grande atriz de revista, com o seu cachorro, mme de Santarém, divorciada pela quarta vez em diversas religiões, o barão de Somerino do Instituto Histórico, um negociante tuberculoso chegado das altitudes suíças com o fardo enorme da esposa, o engenheiro Pereira mais a mulher, mais sete filhos, mais a criada, a notável trágica Zulmira Simões em conclusão da sua última peregrinação provincial em companhia do elegante Raimundo de Souza, duas senhoras entre viúvas, solteiras ou estritamente casadas, enfim, todo um mundo variado, mas que pagava bem. De resto, o proprietário, como assegurava a ex-estrela de revista, correspondia, isto é, servia com cuidado. Havia eletricidade em todos os quartos, um aparelho de duchas no terraço de cima e um cozinheiro chinês.

Ao almoço era curioso ver toda aquela gente na sala de baixo, ornada de palmeiras e de flores comuns, entre os metais polidos das guarnições das mesas. A sala era baixa, com uma luz baça de recanto submarino. Parecia um aquário. A mim pelo menos. As atrizes tomavam ares graves de peixes evoluindo cerimoniosamente no fundo d'água para cumprimentar as damas sem palco; os homens eram reservadíssimos. Tudo aquilo mastigava calado, cada um na sua mesa, batendo o talher. Só quando havia hóspede novo é que surgiam frases breves.

-Quem é?

-O deputado Gomensoro.

-Ah!

Sempre grandes nomes, gente importante, um complexo armorial de celebridades funcionárias e de titulares empastilhados. E à noite, no saguão de entrada, saguão de mármore que o gerente forrara de velha tapeçaria e guarnecera de um indizível mobiliário hesitante entre o estilo otomano, os belchiores105e o confortável inglês, podia-se ver os representantes de todas as classes sociais desde a diplomacia até o trololó106.

Precisamente tínhamos mais dois hóspedes, o velho ministro do Supremo, Melchior, e seu sobrinho Raul Pontes, rapaz elegante, vivaz, espirituoso, com vinte anos irresistíveis. Todos no hotel respeitavam Melchior e gostavam do Raul, e ainda ninguém esquecera a sua verve quando o deputado Gomensoro, depois de apertar-lhe a mão, dera por falta do relógio. Onde se fora o relógio? No bonde? Roubado? Saíra Gomensoro com ele? O Dr. Raul Pontes ria a bom rir. O relógio evaporara-se decerto. Era o calor. E ficou muito bem aquele estouvamento, tanto mais quanto o velho Melchior, representante da justiça, mostrava-se incomodado.

No dia seguinte, ao vestir-me para o almoço, lembrei que na minha gravata creme ficava bem um alfinete de turmalina azul com brilhantes do Cabo, linda jóia e lindo presente. Abri a gaveta onde o deixara à noite. Não estava lá. Abri outras gavetas, procurei, remexi malas e bolsas. O alfinete desaparecera. Quis descer, prevenir o gerente. Mas contive-me. Podia tê-lo atirado para qualquer canto. Quando se quer achar um objeto, a gente está vendo-o e é como se não o visse. Depois uma queixa sem provas contra o criado acirra a má vontade. Menos talvez que as queixas com provas, mas sempre o bastante para sermos mal servidos. Eu sou prudente. Três ou quatro dias depois, no saguão, o senador Gomes, que só tinha livros e roupas velhas no seu aposento, perguntou-me de repente:

-Você tem um alfinete de turmalina azul, não?

Além de prudente, sou inteligente. Porque diabo naquele distinto hotel, o senador indagava de um alfinete desaparecido? Tê-lo-ia apanhado por farsa? Era pouco próprio para o alto cargo legislativo, mas para mim uma confiança simpática, fez-me o efeito de um piparote no ventre. Respondi:

-Tenho sim. Porque pergunta? Ainda hoje saí com ele...

Gomes travara com a genial Zulmira Simões, oráculo teatral de aquém e de além mar, uma discussão superior sobre Calderón de la Barca, a quem, aliás, ambos imputavam várias peças de Lope de Vega. Em tão elevada esfera da dramaturgia espanhola, Gomes não respondeu à minha pergunta, e eu que nessa noite não saí de casa, ao subir antes do chá, encontrei no corredor apenas o velho Melchior meio abatido, fechei a porta por dentro, dormi e no dia seguinte dei por falta do meu porte-monnaie107 de prata. Coisa estúpida afinal!

O gatuno -porque era o gatuno, não havia dúvida-, o gatuno ou farsista sem graça deixara a minha carteira e deixara até os níqueis, certo para mostrar que aquilo era seu, que aquilo estava ali porque ele voltaria. Que fazer? Prevenir o proprietário? Mas eu estava num hotel tão distinto! Era pouco correto e estabeleceria o desequilíbrio na confiança geral. Não! seria melhor esperar.

No dia seguinte, como voltasse de ouvir o d. Cesar de Bazan com Zulmira Simões e o brumeliano108 de Sousa, enquanto de Sousa subia à frente, a atriz murmurou:

-Ah! meu amigo, este hotel tem casos curiosos... Sabe que fui roubada?

-Sério?

-Sim. O objeto tinha um valor todo estimativo, era um berloque que me dera o Raimundo logo no começo da nossa ligação. Não lhe diga nada que o incomodaria. De resto, não sou eu a única. O dr. Pontes foi também roubado no seu porte-monnaie.

-Como eu!

-O Sr. também? Mas estamos na caverna de Ali-Babá.

Horas depois felizmente rebentava o escândalo. Pela manhã, mme de Santarém dera queixa por lhe terem roubado um face à main de madrepérola com incrustações de ouro sob desenhos, dizia ela, de um pintor húngaro. E o gerente pôs fora o criado Antônio, porque a ele faltavam também passadores de guardanapos -dois, três por dia. Antônio saiu protestando, furioso. Falou até de processo por perdas e danos. Era um ladrão cínico. E durante o almoço a conversa generalizou-se. Ninguém escapara. O que acontecera comigo acontecera com de Sousa, com o barão de Somerino, com o negociante tuberculoso, com o ex-vice-presidente da ex-missão do México, com a estrela revisteira, com o dr. Melchior. Todos tinham sido roubados e confessavam por desabafar. Havia até mesmo recordações. O dr. Pontes, o nosso caro Raul, indagava da genial Simões:

-V. ex. andava à cata do ladrão naquele dia em que a encontrei no corredor?

-Não; ainda não sabia. Tive apenas um pressentimento. Acho que deviam prender o homem.

-Mas não há provas! exclamava mme de Santarém. Não encontraram nada! Era esperto. No dia em que desapareceu o meu face à main, não saí do quarto.

-Roubos excepcionais...

-Estamos no domínio dos ladrões geniais. Precisamos de um grande agente dedutivo para resolver o crime...

-E prender o Antônio copeiro? Ora para ladrões desse gênero basta a nossa polícia!

Aliás o tal Antônio gatuno parecia mais um doente. O homem afinal não tirara nunca dinheiro, e as argolas de guardanapos do hotel eram lastimáveis como valores. Mas, fosse gatuno genial ou doente, Antônio partira e a confiança renascia. Passamos assim uma semana e, com grande pasmo nosso, mme de Santarém e a atriz Zulmira Simões, no mesmo dia, à mesma hora, encontraram em cima do lavatório, uma o seu face à main, outra o seu berloque.

-É uma aventura! É um caso de diabolismo! sentenciava o negociante tuberculoso.

O hotel convulsionava-se. Só o senador Gomes resmungou.

-Que besta!

E aquela frase dita tristemente preocupou-me. No fundo, porém, o sujo e ilustre homem tinha razão. O gatuno, ou o sportsman da ladroeira não era Antônio, era outro, existia, anunciava a sua presença, estava ali, ao nosso lado. Audácia? Loucura? Estupidez? No dia seguinte deu-se por falta do colar de ouro com pedras finas da atriz Simões, os brincos da mulher do tuberculoso sumiram-se. Foi o terror. Os hóspedes trancavam o quarto e saíam levando os valores no bolso, mesmo para almoçar. A limpeza era feita na presença dos respectivos locatários. Já ninguém se falava direito, já ninguém conversava. Havia entre nós um ladrão. Um ladrão! O medo prendia as senhoras aos quartos. Ninguém saía sem necessidade urgente, com receio de ser apontado pelo menos um segundo, como o fora o Antônio. Éramos os forçados daqueles crimes; tínhamos que chegar à tragédia. O gerente, lívido, armava uma polícia interna ferocíssima; os criados serviam, coitados! com uma humildade dolorosa, temendo a suspeita, o ex-vice-presidente da ex-missão do México teimava em escrever ao chefe de polícia, em varejar os quartos.

-Pelo amor de Deus! gemia o proprietário.

-É outra tolice, acrescentava Gomes. Nós temos aqui gente respeitável.

-Pois está claro! dizia logo mme de Santarém, divorciada pela quarta vez.

E apesar da vigilância, continuarem a desaparecer objetos. Não era possível! Ou sair, ou dar queixa à polícia.

Uma vez encontrei na cidade Melchior e Pontes, acompanhando mme de Santarém a uma confeitaria. Eram duas horas da tarde. Voltei à pensão. Por uma coincidência, morava no mesmo corredor que essas três pessoas, mesmo pegado ao senador Gomes. Estava a despir-me, quando senti passos abafados. Abri a porta devagar. Era o alegre e sempre espirituoso Pontes. Vinha para o seu quarto. Mas não. Parou no quarto de mme de Santarém, experimentou uma chave, torceu, entrou. Oh! a imoralidade dos hotéis honestos! O felizardo ia gozar as delicias de um aprés-midi amoroso com a honestíssima senhora! Pouco depois, porém, ouvi um leve rumor, espiei de novo. Era Pontes, com o ar mais natural, que fechava o quarto e andava ligeiro. Quis fazer-lhe uma pilhéria, gritar; -ah maganão! ou outra parvoice qualquer -porque eu sou de natural pândego. Mas deixei para o jantar, recolhi. E no jantar mme de Santarém, que chegara momentos antes, apareceu transmudada: tinham-lhe roubado o broche de rubis.

Estávamos todos no salão e sustiveram-se todos num pasmo raivoso, quando a gentil senhora bradou:

-Acabam de roubar o meu broche de rubis! Mais um!

Os meus olhos cravaram-se no dr. Pontes. Tinha o mesmo pasmo dos outros, o mesmo ar, o mesmo olhar.

Uma idéia atravessou-me o espirito. Era ele o gatuno! Não havia dúvida. Era agarra-lo ali, logo... Mas se fosse apenas o amante? Afinal era um homem que devia respeitar a família e o tio! As provas eram contra ele, absolutamente contra. No hotel ninguém poderia lembrar-se de sair depois daqueles roubos. A situação precisava ficar clara. Eu cometeria um escândalo, diria ali que o vira entrar no quarto de mme de Santarém e as explicações viriam depois.

Ia falar, ia contar tudo, quando senti que pesavam em mim os dois olhos do senador Gomes, enquanto este, balançando a cabeça, balançando a faca entre os dedos, parecia por todos os modos pedir-me para não dizer nada. Gomes sabia! Desde o dia em que falara do meu alfinete! Contive-me. Mesmo porque entravam a Pepita, mais o seu cachorro, ambos desesperados com o desaparecimento de um anel marquise, admirável, segundo a opinião da estrela.

O engenheiro Pereira ergueu-se.

-Gerente! Não fico mais um dia no seu hotel. A situação é delicada para o primeiro que sair do ergástulo109, mas eu arrosto-a. Tenho família, tenho uma esposa nervosa e tenho valores. Sou o engenheiro Salústio Pereira. As minhas malas passam pelo seu balcão, para o exame. Tire-me a conta...

O diplomata, que, entretanto, devia cinco semanas, teve um esforço:

-Eu também saio.

Os outros ficaram quietos, incapazes, mas com grande admiração minha, o dr. Pontes falou:

-Vivemos nesta aflição há já algum tempo. Há um gatuno aqui, ou um gatuno de fora que possui a chave.

-É isso, a chave..., atalhei eu.

-Mas apesar do mútuo respeito que nos devemos, a desconfiança existe. Ora, eu já pensei mal de meu tio. Proponho, pois, que ao sair daqui, façamos uma passeata pelo hotel, entrando e varejando todos os quartos. Serve?

Eu tinha acabado de sorver o café e admirei Pontes: ou um gatuno esplêndido ou um inocente. Em compensação, o senador Gomes olhava a porta absolutamente pálido. Que se iria passar?

-Serve? tornou a dizer Pontes.

-Mas está claro, fez o Gomes. Partimos todos para a passeata lá da entrada. É o meio alegre de acabar com uma pressão séria.

-Apoiado! Este Pontes sempre o mesmo!

Mas Gomes erguia-se no rumor das exclamações. Ergui-me, alcancei-o no corredor. Estávamos sós. Sussurrei-lhe:

-O gatuno é ele. Vi-o entrar no quarto da Santarém...

-Não é.

-Então quem é?

-Não sei.

-É impossível negar mais tempo. Ou o senhor diz-me ou eu explico tudo em público. Só o muito respeito...

Gomes teve um gesto alucinado, junto à escada que dava para os aposentos superiores.

-Nada de palavras inúteis. Jura segredo?

-É um crime.

-Jura?

-Juro.

-Pois salvemos uma pobre mulher, salvemos uma desvairada, meu amigo, salve-mo-la! Não pergunte porque. Amo-a como pai, como amante, como quiser.

É ela que rouba, é ela. Não há meio de impedir. Vou manda-la embora e ao mesmo tempo tremo de vê-la no cárcere. É louca. Neste momento mesmo estamos à mercê da sorte e do disparate do Pontes, a quem eu devia odiar. Mas vamos salva-la. É preciso salva-la. Tudo será restituído. Já tenho feito isso. Psiu! Esconda-se, esconda-se. Aí, debaixo da escada. Não a veja, não a veja...

Alguém descia a escada sutilmente. Escondi-me com o coração batendo, enquanto Gomes amparava-se ao corrimão. O silêncio parecia aumentar a vastidão da escada. A voz do Gomes indagou:

-Tudo?

-Sim, meu medroso, sim, eu tinha tudo junto. Toma. E agora, até...

O vulto passou para o saguão de entrada. Da sala de jantar vinham vindo os hóspedes, excitados com aquela investigação policial aos quartos. Trêmulo, lívido, Gomes meteu-me na mão um embrulho, enquanto empurrava nas vastas algibeiras da sobrecasaca e da calça outros pequenos rolos, a dizer:

-Amanhã, restituiremos pelo correio, amanhã saem muitos. Sê bom, salva-a!

Era atroz, era trágico, era ridículo ver aquele homem ilustre e honesto a guardar os roubos de uma cleptômana satânica e era estúpido o que eu fazia! Mas irresistível.

Fosse quem fosse essa gatuna inteligente, era de uma ousadia, de um plano, de uma afliteza, de um egoísmo diabolicamente esplendidos. Estiquei o pescoço na ânsia da curiosidade, a saber quem era, a ver quem podia ser no hotel tão cheio de hóspedes, aquela de que me fazia cúmplice, aquela que misteriosamente, impalpavelmente, durante um mês, trouxera ao hotel atmosfera de dúvida, de crime, de infâmia. E, contendo um grito de pasmo, vi mme de Santarém entrar no saguão sorridente e calma.

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