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-Ah! Eu sou um monstro!

-Palavra?

-E um monstro, meus amigos, que pode confessar os seus apetites sem correr o risco de poder contemplar o mundo através das grades de um cárcere. Eu sou um infame.

Ditas estas palavras, Luciano de Barros estendeu-se, desalentado, no divã e soprou para o ar o fumo do charuto. Era depois de jantar e nós estávamos em casa de Lauriana de Araújo, uma das mais elegantes raparigas, de uma vaga semi-sociedade em falha, sustentada por um velho banqueiro de tavolagens e com grandes pretensões a mulher de espírito e à literatura. Os jantares eram sempre excelentes; o maitre d'hôtel irrepreensível, os serviços lindos, e bem se podia notar naquele ambiente, onde o velho banqueiro tinha o bom gosto de não aparecer, que Lauriana de Araújo sabia escolher com arte uma roda de homens citável. Havia nomes da Academia, nomes da alta elegância, o creme das duas casas do Parlamento, e sempre as altas figuras em trânsito propagador. Naquela casa de jantar cor de morango com frisos de faiança representando a glória de Pomona110 já tinham estado um embaixador severo e um quase presidente de grande republica européia. Ao acabar os jantares, Lauriana, sempre de rendas brancas, como envolta em espumas, acendia um cigarro e palestrava. Os homens recostavam-se nos divãs e posavam. De vez em quando tocava-se piano. Quase sempre, entretanto, na varanda guarnecida de jasmins, ouvia-se um septuor111 de instrumentos de cordas. Era perfeitamente agradável. Ninguém ignorava que a anfitriã amável realizara já uma grande fortuna e que sabia, como ninguém, liquidar em seu proveito o dinheiro alheio sem estrépitos escandalosos. Só como amante de um ministro, obtendo concessões entre beijos, no espaço de três meses arranjara quinhentos contos.

-Farsista! Tu, infame? Tu não passas de um ingênuo... Era o conselheiro Andrade, conhecido por quarenta anos de ceias consecutivas, desde o remoto Rocher de Cancale até os desvairamentos dos cercles atuais.

-Eu, ingênuo?

-Pois então? Um infame, nunca diz que o é.

-Conforme.

-Afinal, intervinha Lauriana, o Luciano disse que era um monstro quando eu perguntava como compreendia o amor. O Luciano é sempre bizarro. Vai dizer para aí alguma barbaridade e liquida a infâmia.

-É impossível, minha amiga. Por que sou eu o dedicado servidor, e servidor sem interesse, de todas as mulheres? Nunca ninguém mo perguntou. E, entretanto, é apenas por um permanente e cruciante remorso. Tenho trinta e dois anos, um físico menos mau, visto discretamente, sou mais inteligente do que o vulgar e tenho algum dinheiro. Para vocês, nada mais banal. Com esses elementos congregados, porém, e com uma alma incapaz de amar e de se dedicar senão à variedade, consigo numa sociedade moderna ser simplesmente o monstro. Como? Ora, como! Fazendo-me amar...

Um prolongado riso correu pelo salão de fumar. O deputado Almerindo quase engasga, o conselheiro Andrade ergueu as mãos ao teto e o célebre poeta acadêmico Clodomir rebolou positivamente no divã. Luciano continuou tranquilo:

-É preciso partir do princípio que toda a mulher ama. Apenas, porém, ama ingenuamente e deixa-se seduzir, deixa-se amar amando absolutamente uma vez na vida: a primeira. As outras paixões são o resultado do cálculo, do egoísmo, da satisfação dos desejos. É ela a sedutora e seja para o bem ou para o mal, para elevar o homem ou para perde-lo, para sofrer-lhe as pancadas ou fazer-lhe da vida um rosário de beijos, o seu papel moral é sempre o ativo.

-Estás a lançar paradoxos.

-Estou a dizer coisas velhas. Mas o ambiente, o meio, conseguem também matar o primeiro sentimento. O amor é um perfume sutil... Uma pequena de sociedade elevada, mais ou menos culta, sabendo que há de casar com alguém da sua roda, talvez não ame nunca. Uma rapariga atirada desde cedo ao torvelinho dos bailes, das festas e dos flertes é uma lutadora prestes a devorar o seu marido próximo. E mesmo as moças de família modesta, desde cedo obrigadas a uma profissão e ao exercício de encontrar um esposo, entregando-se aos maiores excessos de permissão aos namorados, quase sempre fatais, não sentem o amor...

-O amor morreu.

-O amor é eterno, mas nem todos o podem ver, através da perversão do flerte ou das luxúrias perdidas. E a minha imensa monstruosidade está exatamente em procurar o amor, gozar esse perfume e perde-lo. É, talvez, muito vago o que estou a dizer, mas é horrível. Ando por todos esses clubes e aborreço as mulheres que arrastam vestidos de contos de réis; percorro os bailes e os raouts com medo das flirteuses; frequento as caixas112 de teatro e em cada mulher que se pende para mim, sinto a falsificação. Que fazer? Percorrer os meios humildes, e descobrir, probresitas e sem nada, as crianças que ainda não amaram. Imaginem vocês um homem com todos os instintos de perversão da nossa roda como facilmente pode empolgar uma alma ingênua, seduzida apenas pelo exterior.

Dizem que nas grandes cidades não há o tipo ingênuo, a inocência... A inocência é uma propriedade, uma qualidade que passa, mas existe em toda a parte. Nas classes mais pobres, nos meios mais miseráveis é que se encontra mais a flor da inocência, exposta ao vendaval e guardando o perfume, por um prodígio. Desfolhar essa flor, violentamente, como um sátiro; não é crime -é instinto. Goza-la naturalmente sem a intenção senão de a gozar -é a natureza. Cerca-la, prende-la, ir aos poucos aspirando-a, desfolhando pétala por pétala, com refinamento, intenção dupla, consciente e ferozmente -é que é monstruoso. E vocês não sabem, não podem imaginar a fúria de caçador que eu desenvolvo para as encontrar, vocês não concebem o gozo meu ao prelibar a volúpia de um beijo de virgem, um beijo sugado na boca ainda não beijada...

Eu vou, eu passo, eu cumprimento. No dia seguinte torno a passar. Três dias depois, mando-lhe uma recordação. Tudo é tão simples com os pobres! Dentro em pouco a criaturinha sente-se envolvida numa atmosfera de cuidados e de delicadezas. A principio é apenas a vaidade. Um homem tão bem vestido, tão distinto, tão fino, que podia ser amado por lindas mulheres da sua ordem... Depois o orgulho, a sensação de que é melhor do que as outras por ter sido a preferida, -orgulho que se perfuma de gratidão, uma vaga, muito vaga sensibilidade. Em seguida, a alegria da intimidade de um ente que não a ralha, que lhe reflete em admirações como um espelho simpático todas as pequenas belezas da sua beleza. Mas, ainda assim, não é amor, é brincadeira, uma brincadeira agradável, o namoro -o namoro que está para o flerte como a pureza de uma água pura para a falsificação de um vinho mau. Eu persisto, então, continuo, prolongo a grande cena. E de repente a criança sente o ciúme, um doce e ingênuo ciúme que tem zelos até do inanimado, anseia, treme, e ri e chora sem saber porque, toda ela possuída do perpétuo mal da vida. Então, eu sinto no intuito uma alegria infernal. É o meu esporte, o meu exercício, o meu prazer de homem da cidade. As regras são infalíveis como para todos os jogos, e a vitória sorri-me. Tenho satisfeito o meu desejo?

Não! Ao contrário. É o grande momento, o momento do iniciador. As carícias na mão, puxando essa mão que resiste instintivamente e treme, as carícias nos braços, os contatos fugazes que indicam tudo, um beijo nos cabelos, outro longo, guloso, mordido, na nuca... Gozar as gradações do reconhecimento do gozo, a face que enrubece, o calor da pele, os olhos que enlanguecem e de repente se dilatam como ao reflexo de um clarão, as frases curtas de negativas... É a fascinação inebriante. Toda a minha tática, entretanto, se faz em torno do que a inocência mais custa a dar: a boca. Eu tenho a nevrose das bocas. Ha algumas muito vermelhas. Há outras de um róseo peludo. O movimento da língua passando pelos lábios dá-me crises desesperadas, e certas criaturas quando riem sugerem-me auroras em que eu desejo estancar toda a sede de uma noite em claro, que é a minha vida. Às vezes, o beijo rogado vem de súbito. De outras, a princípio é um leve roçar de lábios, depois uma pressão mais longa, enfim, a absorção, a loucura num ambiente em que mesmo de olhos abertos vejo, sinto, cheiro, ouço toda uma sinfonia rósea dos sentidos...

Na roda, os cavalheiros pareciam um pouco nervosos, e Lauriana batia o leque de sândalo. O conselheiro Andrade, o menos excitado, exclamou, de olhos em alvo:

-Caramba! É uma doença cerebral...

Luciano, de olhos cerrados, parecia em êxtase.

Então, o poeta indagou:

-E que fazes depois?

-Que faço? Aqui tens tu o meu horror. Fico com um grande dó da criança, acaricio-a ainda mais, envolvo-a na jura de um amor infinito, chorando a frieza do meu coração incapaz de amar uma só criatura mais de seis meses. E é o mês dos sofrimentos, em que a vida se me faz dilema: -ou casas com essa rapariga para abandona-la ou, se a levas contigo sem o casamento, cometes o crime ainda maior de perder-lhe a honra. Então, no silêncio do quarto, pensando nela, vendo-a a todo o instante, soluço, choro, deploro-me, escorcho a alma com a violenta idéia de achar um pretexto para não perde-la. O amor, porém, o amor verdadeiro é um breve perfume da virgindade. É senti-lo e é partir. Eu me debato, mas para que serve? Algumas desvairadas têm vindo até ao desenlace e estão por aí. Outras eu perco de vista, aos poucos, porque mais adiante outras parecem-me ainda em botão.

-Não é muito bonito, mas nada tem de ofensivo.

-Achas?

-Há quarenta anos, sem psicologias malsãs, serias apenas um bandoleiro. Agora, com essa mania de análise das próprias sensações, é que te julgas um monstro.

Luciano de Barros deitou fora o charuto que se lhe apagara entre os dedos.

-Infelizmente, nós somos levianos, nós os homens, em tomo desse grave e doloroso sentimento. Que sou eu? Um homem que borboleteia a sua perversão pelos botões entreabertos da vida. Até é bonito! E quem uma vez sentiu a delícia deliciosa de uma boca virgem que se entrega pela primeira vez, deve ter de mim inveja. Mas, se eu me sinto infame? Ainda agora venho de um caso assim. Era uma pequena de quinze anos, alegre como um pássaro. O seu riso lembrava um chilreio e a sua boca cheirava a rosa. Três meses depois, sincera, nobre, pura, ela amava, amava sem interesse, apesar de paupérrirna, sem nunca ter recebido uma dádiva que não fosse inteiramente inútil. Dera-lhe o meu nome, mas ignorava o que eu era, onde morava, qual o meu modo de vida. Amava como se ama aos quinze anos, cegamente, e eu tinha essa sensação meio triste, meio ridícula de me saber amado com um encanto de sonho. Que era ela? Um personagem de conto. Que era eu? O príncipe... A crise do amor na estufa preparada por mim floriu. Talvez eu mesmo estivesse mais apaixonado do que parecia. Propus-lhe a fuga, o rapto. Resistiu com o seu fundo honesto, tanto que lhe propus casamento. Ela sorriu entre lágrimas, erguendo os dois grandes olhos negros. -«Não sabes o que dizes! Somos de condições tão diferentes! Isso é impossível». -«Mas, então, que queres?». -«Nada, não quero nada, coisa nenhuma». Eu voltei, continuei a vê-la, mas insensivelmente, a minha lamentável alma sentia a necessidade do afastamento, querendo conservá-la. Ela continuava tal qual, iluminando o semblante quando me via. Certa vez disse-me: -«Às vezes quase não tenho coragem de voltar à casa, com medo de me matar». -«Vem comigo, então». -«Não. Já hoje chorei tanto...». Eu gozava aquele martírio por minha causa, aquela inocência perturbada pela minha figura... Ha quinze dias não a vi à janela. Passei no outro dia, e interroguei a vizinhança. Tinham-na levado os padrinhos por causa de umas crises de choro que a definhavam. E eu estou na agonia, a pensar nessa criatura pura e doce.

-D. João113, sossega! Hás de ver a pequena casada, como as outras.

-Ou perdida, sentenciou, grave, Lauriana.

Luciano ergueu-se, consertando a gravata branca.

-Ou talvez morta, porque já tem acontecido... Então, a linda Lauriana sorriu com infinita tristeza.

-Mas não te julgues, com esse exagero de análise e de pretensão, o único monstro, meu caro amigo. A cidade está cheia desses defloradores do amor. A vida é uma luta de sexos. Há criaturinhas que morrem ceifadas em botão, depois de levemente aspiradas pelos intelectuais gastos como tu. Há outras, porém, que resistem e ficam como eu.

Houve um prolongado silêncio. Ninguém rira. E, só, Luciano de Barros, muito pálido, diante de um grande espelho, parecia pasmo da própria fisionomia. Fora, o septuor tocava uma valsa lenta, entre os jasmins.

O bebê de tarlatana rosa

-Oh! uma história de máscaras! quem não a tem na sua vida? O carnaval só é interessante porque nos dá essa sensação de angustioso imprevisto... Francamente. Toda a gente tem a sua história de carnaval, deliciosa ou macabra, álgida ou cheia de luxúrias atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval. Eu mesmo este ano tive uma aventura...

E Heitor de Alencar esticava-se preguiçosamente no divã, gozando a nossa curiosidade.

Havia no gabinete o barão Belfort, Anatólio de Azambuja de que as mulheres tinham tanta implicância, Maria de Flor, a extravagante boêmia, e todos ardiam por saber a aventura de Heitor. O silêncio tombou expectante. Heitor, fumando um gianaclis114 autêntico, parecia absorto.

-É uma aventura alegre? indagou Maria.

-Conforme os temperamentos.

-Suja?

-Pavorosa ao menos

-De dia?

-Não. Pela madrugada.

-Mas, homem de Deus, conta! suplicava Anatólio. Olha que está adoecendo a Maria.

Heitor puxou um largo trago à cigarreta.

-Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível. Não há quem se contente com uma...

-Nem com um, atalhou Anatólio.

-Os sorrisos são ofertas, os olhos suplicam, as gargalhadas passam como ao arrepios de urtiga pelo ar. É possível que muita gente consiga ser indiferente. Eu sinto tudo isso. E saindo, à noite, para a pornéia da cidade, saio como na Fenícia saíam os navegadores para a procissão da primavera, ou os alexandrinos para a noite de Afrodite115.

-Muito bonito! ciciou Maria de Flor.

-Está claro que este ano organizei uma partida com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros. Não me sentia com coragem de ficar só como um trapo no vagalhão de volúpia e de prazer da cidade. O grupo era o meu salva-vidas. No primeiro dia, no sábado, andamos de automóvel a percorrer os bailes. Íamos indistintamente beber champanhe aos clubes de jogo que anunciavam bailes e aos maxixes mais ordinários. Era divertidíssimo e ao quinto clube estávamos de todo excitados. Foi quando lembrei uma visita ao baile público do Recreio. -«Nossa Senhora! disse a primeira estrela de revistas, que ia conosco. Mas é horrível! Gente ordinária, marinheiros à paisana, fúfias116dos pedaços mais esconsos da rua de S. Jorge117, um cheiro atroz, rolos constantes...». -Que tem isso? Não vamos juntos?

Com efeito. Íamos juntos e fantasiadas as mulheres. Não havia o que temer e a gente conseguia realizar o maior desejo: acanalhar-se, enlamear-se bem. Naturalmente fomos e era uma desolação com pretas beiçudas e desdentadas esparrimando belbutinas118 fedorentas pelo estrado da banda militar, todo o pessoal de azeiteiros das ruelas lôbregas e essas estranhas figuras de larvas diabólicas, de íncubos119 em frascos de álcool, que tem as perdidas de certas ruas, moças, mas com os traços como amassados e todas pálidas, pálidas feitas de pasta de mata-borrão e de papel de arroz. Não havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos dançarinos, eu senti que se roçava em mim, gordinho e apetecível, um bebê de tarlatana120rosa. Olhei-lhe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os braços, o caído das espáduas, a curva do seio. Bem agradável. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. Só postiço trazia o nariz, um nariz tão bem feito, tão acertado, que foi preciso observar para verifica-lo falso. Não tive dúvida. Passei a mão e preguei-lhe um beliscão. O bebê caiu mais e disse num suspiro -ai que dói! Estão vocês a ver que eu fiquei imediatamente disposto a fugir do grupo. Mas comigo iam cinco ou seis damas elegantes capazes de se debochar mas de não perdoar os excessos alheios, e era sem linha correr assim, abandonando-as, atrás de uma frequentadora dos bailes do Recreio. Voltamos para os automóveis e fomos cear no clube mais chique e mais secante121 da cidade.

-E o bebê?

-O bebê ficou. Mas no domingo, em plena avenida, indo eu ao lado do chauffeur, no borborinho colossal, senti um beliscão na perna e uma voz rouca dizer: «para pagar o de ontem». Olhei. Era o bebê rosa, sorrindo, com o nariz postiço, aquele nariz tão bem feito. Ainda tive tempo de indagar: onde vais hoje?

-À toda parte! respondeu, perdendo-se num grupo tumultuoso.

-Estava perseguindo-te! comentou Maria de Flor.

-Talvez fosse um homem... soprou desconfiado o amável Anatólio.

-Não interrompam o Heitor! fez o barão, estendendo a mão.

Heitor acendeu outro gianaclis, ponta de ouro, sorriu, continuou:

-Não o vi mais nessa noite, e segunda-feira não o vi também. Na terça desliguei-me do grupo e caí no mar alto da depravação, só, com uma roupa leve por cima da pele todos os maus instintos fustigados. De resto a cidade inteira estava assim. É o momento em que por trás das máscaras as meninas confessam paixões aos rapazes, é o instante em que as ligações mais secretas transparecem, em que a virgindade é dúbia e todos nós a achamos ínútil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga. Nesse momento tudo é possível, os maiores absurdos, os maiores crimes; nesse momento há um riso que galvaniza122 os sentidos e o beijo se desata naturalmente.

Eu estava trepidante, com uma ânsia de acanalhar-me, quase mórbida. Nada de raparigas do galarim perfumadas e por demais conhecidas, nada do contato familiar, mas o deboche anônimo, o deboche ritual de chegar, pegar, acabar, continuar. Era ignóbil. Felizmente muita gente sofre do mesmo mal no carnaval.

-A quem o dizes!... suspirou Maria de Flor.

-Mas eu estava sem sorte, com a guigne, com o caiporismo dos defuntos índios. Era aproximar-me, era ver fugir a presa projetada. Depois de uma dessas caçadas pelas avenidas e pelas praças, embarafustei pelo S. Pedro, meti-me nas danças, rocei-me àquela gente em geral pouco limpa, insisti aqui, ali. Nada!

-É quando se fica mais nervoso!

-Exatamente. Fiquei nervoso até o fim do baile, vi sair toda a gente, e saí mais desesperado. Eram três horas da manhã. O movimento das ruas abrandara. Os outros bailes já tinham acabado. As praças, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfurnadas dos fogos de bengala, caíam em sombras -sombras cúmplices da madrugada urbana. E só, indicando a folia, a excitação da cidade, um ou outro carro arriado levando máscaras aos beijos ou alguma fantasia tilintando guizos pelas calçadas fofas de confetti. Oh! a impressão enervante dessas figuras irreais na semi-sombra das horas mortas, roçando as calçadas, tilintando aqui, ali um som perdido de guizo! Parece qualquer coisa de impalpável, de vago, de enorme, emergindo da treva aos pedaços... E os dominós embuçados, as dançarinas amarfanhadas, a coleção indecisa dos máscaras de último instante arrastando-se extenuados! Dei para andar pelo largo do Rocio e ia caminhando para os lados da secretaria do interior, quando vi, parado, o bebê de tarlatana rosa.

Era ele! Senti palpitar-me o coração. Parei.

-«Os bons amigos sempre se encontram», disse. O bebê sorriu sem dizer palavra. Estás esperando alguém? Fez um gesto com a cabeça que não. Enlacei-o. -«Vens comigo?». -«Onde?», indagou a sua voz áspera e rouca. -«Onde quiseres!». Peguei-lhe nas mãos. Estavam úmidas mas eram bem tratadas. Procurei dar-lhe um beijo. Ela recuou. Os meus lábios tocaram apenas a ponta fria do seu nariz. Fiquei louco.

-Por pouco...

-Não era preciso mais no Carnaval, tanto mais quanto ela dizia com a sua voz arfante e lúbrica: -«Aqui não!». Passei-lhe o braço pela cintura e fomos andando sem dar palavra. Ela apoiava-se em mim, mas era quem dirigia o passeio e os seus olhos molhados pareciam fruir todo o bestial desejo que os meus diziam. Nessas fases do amor não se conversa. Não trocamos uma frase. Eu sentia a ritmia desordenada do meu coração e o sangue em desespero. Que mulher! Que vibração! Tínhamos voltado o jardim. Diante da entrada que fica fronteira à rua Leopoldina, ela parou, hesitou. Depois arrastou-me, atravessou a praça, metemo-nos pela rua, escura e sem luz. Ao fundo, o edifício das Belas Artes era desolador e lúgubre. Apertei-a mais. Ela aconchegou-se mais. Como os seus olhos brilhavam! Atravessamos a rua Luiz de Camões, ficamos bem em baixo das sombras espessas do Conservatório de Música. Era enorme o silêncio e o ambiente tinha uma cor vagamente russa com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes. O meu bebê gordinho e rosa parecia um esquecimento do vício naquela austeridade da noite. -«Então, vamos?», indaguei. -«Para onde?». -«Para a tua casa». -«Ah! não, em casa não podes... Então por aí». -«Entrar, sair, despir-me. Não sou disso!». -«Que queres tu, filha? É impossível ficar aqui na rua. Daqui a minutos passa a guarda». -«Que tem?». -«Não é possível que nos julguem aqui para bom fim, na madrugada de cinzas. Depois, às quatro tens que tirar a máscara». -«Que máscara?». -O nariz». -«Ah! sim!». E sem mais dizer puxou-me. Abracei-a. Beijei-lhe os braços, beijei-lhe o colo, beijei-lhe o pescoço. Gulosamente a sua boca se oferecia. Em torno de nós o mundo era qualquer coisa de opaco e de indeciso. Sorvi-lhe o lábio.

Mas o meu nariz sentiu o contato do nariz postiço dela, um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal. -«Tira o nariz!». -Ela segredou: «Não! não! custa tanto a colocar!». Procurei não tocar no nariz tão frio naquela carne de chama.

O pedaço de papelão, porém, avultava, parecia crescer, e eu sentia um mal estar curioso, um estado de inibição esquisito. -«Que diabo! Não vás agora para casa com isso! Depois não te disfarça nada». -«Disfarça sim!». -«Não!». Procurei-lhe nos cabelos o cordão. Não tinha. Mas abraçando-me, beijando-me, o bebê de tarlatana rosa parecia uma possessa tendo pressa. De novo os seus lábios aproximaram-se da minha boca. Entreguei-me. O nariz roçava o meu, o nariz que não era dela, o nariz de fantasia. Então, sem poder resistir, fui aproximando a mão, aproximando, enquanto com a esquerda a enlaçava mais, e de chofre agarrei o papelão, arranquei-o. Presa dos meus lábios, com dois olhos que a cólera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dois buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era alucinadamente -uma caveira com carne...

Despeguei-a, recuei num imenso vômito de mim mesmo. Todo eu tremia de horror, de nojo. O bebê de tarlatana rosa emborcara no chão com a caveira voltada para mim, num choro que lhe arregaçava o beiço mostrando singularmente abaixo do buraco do nariz os dentes alvos. -«Perdoa! Perdoa! Não me batas. A culpa não é minha! Só no Carnaval é que eu posso gozar. Então, aproveito, ouviste? aproveito. Foste tu que quiseste...».

Sacudi-a com fúria, pu-la de pé num safanão que a devia ter desarticulado. Uma vontade de cuspir, de lançar apertava-me a glote, e vinha-me o imperioso desejo de esmurrar aquele nariz, de quebrar aqueles dentes, de matar aquele atroz reverso da luxúria... Mas um apito trilou. O guarda estava na esquina e olhava-nos, reparando naquela cena da semi-treva. Que fazer? Levar a caveira ao posto policial? Dizer a todo a mundo que a beijara? Não resisti. Afastei-me, apressei o passo e ao chegar ao largo inconscientemente deitei a correr como um louco para a casa, os queixo batendo, ardendo em febre.

Quando parei á porta de casa para tirar a chave, é que reparei que a minha mão direita apertava uma pasta oleosa e sangrenta. Era o nariz do bebê de tarlatana rosa...

Heitor de Alencar parou, com o cigarro entre os dedos, apagado. Maria de Flor mostrava uma contração de horror na face e o doce Anatólio parecia mal. O próprio narrador tinha a camarinhar-lhe a fronte gotas de suor. Houve um silêncio agoniento. Afinal o barão Belfort ergueu-se, tocou a campainha para que o criado trouxesse refrigerantes, e resumiu:

-Uma aventura, meus amigos, uma bela aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.

E foi sentar-se ao piano.

A parada da ilusâo

A João de Barros.


Como tinha sido aquilo! Diante do espelho, a dar um laço frouxo no lenço de seda, Geraldo sorria o sorriso satisfeito e vagamente mau que têm todos os homens quando recordam uma aventura em que foram os mais expertos. Como tinha sido!... O acaso, apenas o acaso. Pobre, sem pretensões, alugara por uma ninharia aquele casinhoto do morro, bem na rua de Santa Luzia, defronte do mar. O mar é um fornecedor de energia. Contemplar as ondas, aspirar o ar infiltrado de salsugem fazia-lhe bem. Depois, acordava cedo, quase de madrugada, e como a vizinhança era quase toda de pescadores, de banhistas, de jovens dos centros de regatas, ia mesmo de camisa de meia, com os pés nus metidos nuns enormes tamancos, ao estabelecimento balneário. Quem o visse grosso, forte, o bigode espesso, a negra cabeleira ondeante, o braço cabeludo, não o diria jamais um estudante de medicina. Havia no seu olhar qualquer coisa dos barqueiros de Nápoles, do langor das serenatas, e na alegria do semblante, na gesticulação, o ar da raça, o ar que não falha. Basta olhar um homem para se sentir donde ele veio. Geraldo começara humilde, de origem italiana. De trabalho em trabalho fizera-se afinal acadêmico, graças à pertinácia da sua inteligência. Mas por mais querido que fosse entre os colegas, era uma delícia para a sua alma ir arrastar as pernas pela madrugada nos corredores da casa de banhos, quase nu, a conversar em napolitano com os banhistas, os tradicionais banhistas há vinte anos os mesmos.

Era tão bom, tão bizarro! A princípio, postava-se no pátio, junto da barraca do gerente, escura de roupas em trouxas com um quadro das chaves e o bico de gás aceso. Era a chegada dos frequentadores. Havia mulheres pálidas, mães de família, acompanhadas de crianças e de criadas, verdadeiros regimentos de cloróticos123; havia sujeitos de passo trôpego, reumáticos, beribéricos124, talvez tísicos; havia os habituais, senhores respeitáveis, burgueses de ar solene, que tomavam banho de mar desde crianças, aconselhando para todas as moléstias um mergulho no salso elemento; e sujeitos que vinham especialmente para a pândega, as lições de natação, os namoros com apertões debaixo da água, as meninas assanhadas, as cocotes, as cocotes de uma palidez mortal àquela hora... E havia também muita mulher chique, muita mulher de estalo, que os mirones da praia até olhavam de binóculo.

Mas Geraldo não tinha pretensões a conquistas, e aquele espreguiçamento na casa de banhos era apenas uma tonificação para o estudo, que recomeçava horas mais tarde, com o curso dos hospitais, as aulas, os livros. Depois de descansar na gerência ia a trocar palavras com os banhistas, rindo, brincando. Afinal atirava-se à água, no meio da algazarra dos conquistadores e das pequenas, e sempre tímido, só metido com a gente do serviço. Ninguém o tomaria por um estudante e o próprio pessoal da casa tratava-o familiarmente por tu.

Uma vez, estava no corredor estreito e escuro a conversar com o Nicolau, quando mesmo ao pé abriu-se a porta de um dos quartinhos e uma linda criatura loura chamou:

-O senhor banhista, venha cá.

Nicolau adiantou-se.

-Não, o outro. Sim, você mesmo.

Geraldo sorriu enleado. Tomavam-no por banhista! Ele, um estudante, um acadêmico! Mas, ao mesmo tempo que o fato o humilhava um pouco, sentia um desejo imprevisto e romântico de se deixar passar por banhista e ter assim a sua primeira façanha de estudante. Os estudantes são todos levados da breca! Apertou o braço do Nicolau, disse-lhe em calão de Nápoles que o deixasse, e aproximou-se. A dama loura estava já vestida para o banho.

-Não quero mais aquele banhista velho. Ha cinco dias que tomo banho e logo no primeiro pedi-lhe conservar-me o quarto seco. Não ha meio. Veja só. Fica você. Quer?

Geraldo curvava-se, sem uma palavra. A dama loura abriu a bolsa de prata, tirou uma nota.

-Tome. Não quer receber? Ora esta! Receba. Para esquentar. Ande lá.

-Grazzie, signorina...

-Diga: é italiano?

-Io sono venuto da Napoli fa tre anni...

-Ah! bem. E quantos tem de idade?

-Vinte e due.

A dama loura olhou-o profundamente, teve um leve suspiro, e ainda indagou

-Como se chama?

-Túlio.

-Venha dar-me banho.

Infinitamente alegre com a aventura, Geraldo seguiu para o oceano a dar banho na dama loura, e quando voltou estava a arrebentar de riso. Não é que a mulherzinha o tomava mesmo por banhista? Entretanto, o imprevisto do caso acendia-lhe o desejo de continuar. Sim, continuaria. E falou ao dono da casa de banhos. O homem, um italiano velho, não gostava de patifarias no estabelecimento. Mas, como era para ele, Geraldo, consentia. Os outros riam a perder, um pouco envaidecidos porque, afinal, um estudante era tal qual eles. E Geraldo, que não dissera a coisa na escola por um certo pudor, não faltou mais. Logo cedo lá estava no estabelecimento, de pés nus, calção de meia, camisa aberta. A dama loura chegava sempre às seis e meia.

-Então, Túlio, o meu quarto?

-Pronto, patroa, prontinho.

No fim do quinto dia, ele fazia tão bem o papel de banhista de opereta, que ela lhe disse o nome era Alda Pereira, brasileira, do sul, tinha vinte e sete anos, e um protetor sério, o senador Eleutério, que a tomara depois da separação do marido. Dizia essas coisas naturalmente, aprendendo a nadar.

-Ai! não me afogues, rapaz. Morrer aos vinte e sete anos...

Ou então:

-Palavra de rio-grandense e de Alda Pereira que aprender a nadar custa!

Ele sorria, queria leva-la para longe.

-Não, que o senador Eleutério pode saber; e eu, meu filho, depois que me separei do meu marido, tenho muito medo do ciúme...

Uma suave intimidade brotava aos poucos daquela hora de banho.

Ele procurava termos vulgares, copiava o rir dos outros, dizia coisa grossas com um ar ingênuo, o seu tom de analfabeto, e ela parecia ter cada dia mais confiança. Já se encostava ao seu ombro, já lhe agarrava o pulso potente de certo modo. Uma vez perguntou-lhe:

-Você, um rapaz inteligente, porque não muda de vida?

-Para que, signorina? Aqui vivo, aqui hei de morrer...

-Criança! E não tem aspirações?

-Não, signorina!

-Aposto que nem sabe ler?

Ele parou um instante atônito. Estaria ela a brincar, já sabedora de tudo? Seria o caso de avançar e não gozar mais o prazer de ser conquistado. Mas Alda tinha uma expressão de tão velutínea piedade, que não hesitou na farsa.

-É verdade. Nem sei ler.

-Meu Deus! Um rapaz de vinte e dois anos que não sabe ler!

Os seus olhos nesse dia tornaram-se mais úmidos, e ao rebentar de uma onda na ponte ela se deixou positivamente cair no seu largo peito. Não tinha dúvida! A mulher amava-o como certas damas amam os impetuosos adolescentes das classes baixas; a criatura era uma nevrosada romântica. Decididamente estava de sorte.

No dia seguinte, à saída, Alda Pereira indagou:

-Ó Túlio, quereria você aprender a ler?

-A signorina paga o professor?

-Ensino eu mesmo.

-Então quero. Onde?

-Vá á minha casa. Logo, à noite, às sete; é a melhor hora.

Ele arranjara um dolmã125 de brim, um capote comprido; comprara o lenço de seda e um chapéu desabado para aparecer com a cor local. E fora. A dama loura habitava, numa rua transversal à Lapa, uma casa elegante e discreta, com duas criadas apenas. Fizeram-no entrar para uma saleta de estilo moderno, em que os móveis eram incômodos e as paredes tinham mulheres de túnica soprando trombetas. Alda lá estava.

-Entre, Túlio. Nada de acanhamentos. Francine, deixa a porta aberta... Sabe que já lhe comprei o seu livro? Sente-se, menino, sente-se...

Evidentemente, ela estava comovida, com um riso nervoso, as faces coradas. Ele achava aquilo deliciosamente ridículo. Outro qualquer teria avançado; a sua natural timidez, a pretensão de levar a cabo uma fantasia romântica inibiam-no de um movimento de ataque. E parecia-lhe o cúmulo aprender o alfabeto ensinado por aquela interessante mulher, tal qual nos vaudevilles franceses, numa cena de burla. Sentou-se. Ela mostrou-lhe o livro na mesa, aproximando a cadeira do outro lado. E começou a ensinar, com a voz molhada de mistério.

-Que letra é esta?

Geraldo fazia-se inteiramente bronco, curvava-se muito para sentir os louros cabelos dela roçando-lhe ao de leve a fronte. Às vezes as mãos se encontravam. As dela estavam geladas. As dele eram de brasa. Ao fim de uma hora, ela disse num suspiro

-Bom, vai embora.

Ele quase não podia falar. Curvou-se mais, respirando forte, e ia toca-la, quando ela chamou:

-Francine, acompanha o Túlio até á porta...

Como saiu ele furioso! A sua vontade foi declarar a verdadeira posição, tomar uma atitude. Mas, para que? Não teria realizado nada! Não a gozaria! Era uma aventura falha. Nunca! Tivesse que estudar o alfabeto a vida inteira -aquela, ao menos, não lhe escaparia. E, desde a madrugada, foi espera-la na casa de banhos, apaixonado. Sim, de fato, apaixonado. Ele não estava senão apaixonado. A paixão é quase sempre o desejo de um triunfo, que se imagina de um certo e determinado modo. Há sempre um vencedor na alma de um amante. Ele queria pregar uma peça. Que peça? Enfim, queria confundir a linda mulher de estranha vontade. E Alda Pereira parecia também ama-lo, porque apareceu de olheiras, com um ar fatigado.

-Sabe que estudei? fez ele, olhando-a fixo.

-Palavra?

-Quer tomar a lição hoje?

-Não, amanhã...

Ele se preparou, e foi. Já sabia o alfabeto. Alda Pereira sorria, enlevada.

-Mas como é inteligente! Vamos a soletrar. Olhe que você pode dar orgulho a um professor.

A aula ia continuar. Ela tinha a cabeça curvada, mostrando a nuca nua. Ele estava encostado à mesa, com aquele tom vulgar e potente, que o seu físico ajudava. A luz era tênue. Geraldo moveu apenas a cabeça e roçou o bigode no pescoço venusto126. Ela estremeceu, estendeu as mãos e suspirou como uma rola.

-Ah! Túlio...

Ele firmou os lábios polpudos e apertou-lhe as mãos. Ela se debateu, voltou a cabeça e a sua boca purpurina, ansiosa e ávida, sugou o lábio de Geraldo. Nem uma palavra. Estavam num outro mundo. Ele caiu de joelhos, ela pendeu, rolaram os dois. Era frenética e deliciosa. Deliciosamente deliciosa. A própria paixão a vibrar. E Geraldo voltou ao casinhoto, outro homem, aturdido, sem compreender o que via, a lembrar-se dos seus abraços e das palavras suas:

-Túlio! Túlio! não digas a ninguém! É a minha vida! Lembra-te do que fiz por ti. Só o amor, muito amor...

A vida de delírio começou então. Ela entregava-se e sentia-o como um imenso acorde do seu próprio ser. Cada beijo era uma revelação, cada abraço a dissolução de um mundo. E a necessidade de ocultar de olhares profanos aquele sentimento ainda mais os incendiava. No banho, ela estudava o momento de aperta-lo, de morde-lo, esperava com a porta do quarto entreaberta para um beijo; em casa, as lições de leitura eram a leitura de Paulo e Francesca, no verso de Dante. Jamais, porém, ela mostrava desconfiar da sua verdadeira situação, e Geraldo, sentindo-se indigno de si mesmo, continuava a ser o banhista Túlio, sem forças para dizer a verdade.

Afinal, o senador Eleutério soubera do caso, e, mais pai do que amante, resolvera mandar Alda à Europa, a ver se o escândalo terminava. Alda chorava, queria viver sem roupas, em Santa Luzia, com o seu Túlio, e fora um verdadeiro trabalho o convence-la de uma breve separação.

-Tu queres, Túlio?

-É para teu bem.

-Queres mesmo? É o nosso amor que matas...

Eleutério comprara as passagens, combinara tudo. Era no dia seguinte que Alda partiria. Geraldo, preparando-se para a última visita, relembrava aqueles dois meses loucos de romantismo. Como aquilo fora! Era lá possível prever? Antes, porém, da partida era preciso dizer-lhe a verdade.

Ele ia para o último ato.

Então penteou o cabelo como os banhistas, com muita brilhantina, pôs o chapéu e o capote, consertou ainda uma vez o lenço de seda, e partiu. Alda estava na mesma sala da primeira vez, muito abatida. Estendeu-lhe as mãos e a boca.

-Meu amor... A última vez!

E deixou-se cair.

-Alda, que é isso? ânimo...

-Lembras-te? Há dois meses!... Quanto amor! Quando te vi, desde que te vi, meu amor, amei-te. Que me importava que tu fosses banhista? Se era a tua carne, o teu corpo, os teus olhos que eu desejava, meu adivinhado querido... Nunca, nunca mais sentirei o que senti por ti, no mar, quando te tinha a meu lado, forte, meu, fiel... Dize!... Nenhuma outra será como eu. Pois não?

-Mas, Alda...

-Àquela casa vão tantas mulheres! E tu tens que servir a todas, tens que as segurar, tens que as salvar...

Geraldo, viu que era o momento.

-Alda, tenho que te dizer...

-Não digas! não digas nada!

-Não, há um engano, um engano que não pode continuar.

-Não há, Túlio, não há!...

-Há.

-Pois deixa-o!

-Não. Tu pensas que eu sou o banhista Túlio, nascido em Nápoles.

-E não és? És sim, és o meu Túlio.

-Criança! Eu sou estudante de medicina, chamo-me Geraldo Pietri.

Mas, como Alda recuava, com a fisionomia demudada, Geraldo teve um resto de piedade.

-Sim, Geraldo, estudante, que se fez passar por banhista para te amar...

Um silêncio tombou. Alda sentara-se. Depois, como Geraldo se aproximasse, sorriu, afastando-o.

-Não, senta-te. Ou vai-te. É melhor ires. Vai-te.

-Mas a nossa última noite?

-Vai-te.

-Zangaste-te?

-Não, pensei que tinhas mais espirito. Não tens. Eu sabia, ouviste? Eu sabia desde o primeiro dia, quem eras tu. Se não soubesse, teria perguntado por ti e dar-me-iam informações. Eu sabia. O meu amor nasceu de uma brincadeira. Tudo na vida é ilusão e só a ilusão é verdadeira. A verdade é a mentira porque é o comum e o vulgar. Amei-te, querendo fazer desse sentimento uma parada de gozo superfino em que ambos nos esforçássemos por dar a cada um a ilusão. Nunca se desengana uma mulher porque não se mata a ilusão. Eu amava um ser idealizado, que seria chocante se fosse verdadeiro, um banhista imprevisto, um selvagem, filho do mar e das canções, em ti que o fingias bem. Tu mataste Túlio. Que me importa a mim o estudante Geraldo? Já nem parto. Não é preciso. Adeus! E nunca, ingênuo rapaz, queiras ser verdadeiro nas coisas do sentimento que ama a ilusão.

Geraldo, nervoso, sem saber o que fazer do seu chapéu calabrês, sentia a lamentável, uma curiosa e lamentável sensação de que retomava o seu eu; um eu vulgar e comum. Alda fez-lhe ainda um vago gesto. Na rua, outra vez, envergonhado, furioso, triste, o pobre rapaz deitou quase a correr, com o receio de que o conhecessem ainda mal vindo da parada romântica. E só no quarto humilde é que pode chorar, chorar longamente não ter sabido guardar integralmente o princípio da vida -a ilusão...

Laurinda Belfort

Laurinda Belfort teve um sobressalto. O relógio de marfim, engastado discretamente no canto esquerdo do carro, marcava duas e cinco, e esse relógio, certo, incapaz de adiantamentos ou de atrasos, marcava sempre a hora precisa para que Laurinda Belfort pudesse regularizar com calma e tempo os múltiplos afazeres dos seus perfumados dias. Havia, pois, trinta e cinco minutos que o pobre Guilherme Guimarães a esperava, apaixonado e comum, numa casa solitária.

Laurinda recostou-se, hesitando entre a idéia de apressar o cocheiro e o desejo de lá não ir, de falhar mais uma vez. Vinha-lhe o guloso apetite de deixar sem o seu corpo a absorvente entrevista. Mas, certamente, à noite teria a acompanha-la numa queixa muda e feroz, o olhar de Guilherme, ou no teatro ou no raout127 da condessa de Souto; e, à proporção que se aproximava o carro, Laurinda sentia as mãos frias, uma vaga contrariedade, a esquisita negação de todo o corpo como a tem a gente antes de fazer um enorme sacrifício...

Ah! Francamente já enfarava128. No primeiro dia, na manhã em que correra à primeira entrevista, teria chicoteado o cocheiro para andar depressa, para voar; nesta maldita quinta-feira vestira-se devagar, conversara durante o almoço como toda a sua vida fora um resultado de imitações, fora um acompanhamento de figurinos. Em criança, imitava os gestos pretensiosos de altas linhagens de algumas das colegas de Sion; em menina e moça a sua linha fora sempre copiada de alguns tipos de romance, e quando a mamã lhe fez notar a necessidade de casar para satisfazer todos os apetites de luxo, imediatamente casou, inaugurando aquela grande vida artificial e custosa, com as salas compostas segundo desenhos de decoristas129 ingleses, os vestidos vindos de Paris e um ar de boneca social, que para sempre lhe tirara a idéia de amar alguém, além da sua prezadíssima pessoa. A grande vida um tempo fê-la mesmo esquecer quase o marido, porque era preciso passar o carnaval em Nice, estar no outono em Paris, passear os hotéis depravados do Cairo no inverno, dar opiniões sobre artistas e pintores, falar de viagens e manter o seu salão no Rio, o seu salão invejado, criticado, incomparável como Edmond Rostand, o campanilo de S. Marcos, a erosão inglesa do esporte e a graça parisiense. Fora nessa ocasião que tomara como dama de companhia uma velha inglesa esbelta, grande conhecedora de arte, que sabia versos de Morris de cor e se apaixonara pelos fados portugueses a ponto de acabar caissière130de hotel no Estoril. Laurinda tomou-a como quem consulta um pequeno Larousse, e as suas extraordinárias toilletes, os seus adereços, feitos no Vevert da rua da Paz, em que as pedras brasileiras tinham rebrilhos inéditos cravadas em brilhantes, eram desenhos da velha inglesa. Grande época aquela! Época de excessos, de conquista, de triunfo. O grave Belfort de vez enquanto pasmava.

-Pois que! Tu agora fumas?

-Com efeito, grelho uma cigarreta.

-Mas é grosseiro.

ultra fashion. Não sabes nada disso. És old style131.

E montou um salão de banho, em que a água da piscina parecia descer de um enorme vitral representando avalanches de neve em montes, tudo quanto há de mais pré-rafaelita132. Todos os objetos e utensílios obedeciam ao motivo algas do fundo do mar.

Mas em breve, a vitória mundana fatigou-a. Era preciso mais alguma coisa. Uma Alice Verride, senhora entendida em adultérios mas da melhor sociedade disse-lhe um dia:

-Minha cara Laurinda, precisas de um homem.

-É boa. E meu marido?

-O marido não conta nunca, principalmente quando nos faz todas as vontades. Precisas de um homem que te preocupe, cuja paixão seja um piment para a tua vida, um ser violento. Nunca amaste?

-Oh! Não!

-Pois é chique, menina. Admira até que tu, tão conhecedora de Paris...

No dia seguinte, Laurinda acordou convencidíssima de que precisava de um amante. Sim! Ela, uma parisiense, que tinha como nenhuma outra a arte sutil da maquilage, essa admirável estesia ateniense herdada por Paris, ela ainda não tinha um amante. Que atraso, que femme vieux jeu133! Decididamente retardava, retardava uns trinta anos pelo menos. E, quando apareceu ao almoço, com os olhos cernés134, o gesto lasso, o lábio rubro, Laurinda olhou o paciente Belfort com um vago desprezo, tal qual as damas dos romances a que uma grande paixão sacode.

Ainda não tinha nenhuma. Mas viria a ter. Seria a última etapa de mundanismo e de puro sangue da sua já gloriosa carreira na alta sociedade, teria também o seu romance. E para realizar esse romance, entre muitos adoradores profissionais, o que já insistia de há muito era precisamente Guilherme. Que fazer? Torturada pela súplica de Guilherme o marido, ansiando pelo fato que lhe fosse pretexto para não ir -porque Laurinda, sem indagar de razões, sentia-se presa a esse dever, ao dever do amor. Afinal, sempre se decidira. Mais uma vez, Deus do céu! E lá ia sem compreender porque, para a casa à beira mar ouvir o marulhar do oceano e a voz do Guilherme!

Pobre Guilherme! Estava decerto à espera, torturando as pontas farpadas do bigode, chegara talvez cedo de mais. Também não fazia outra coisa agora, passava a vida amando-a; e, ela, decididamente, enfastiava-se. Tudo quanto é demais, aborrece.

Fora levada àquilo por mundanice, por cabriolice da alma, como diria a sra. de Souza Castro, titular em decadência, hoje dama de companhia. De ver as outras damas amadas por homens discretos e bem vestidos, achara aquilo smart135 e comprometedor, com um leve tom de crime consentido. Ir assim, no seu carro, no carro do seu marido, entregar-se à paixão do outro, do cavalheiro elegante, parecia-lhe uma nota essencial da moda, lembrava-lhe logo os romances de Paris, a psicologia passional das duquesas de alta linhagem, que às vezes tem dois, sem contar o esposo.

Era-lhe grata como se a sua existência fosse a última elegância esperada para faze-la ultra superior.

De resto custara, e muito até. Acostumada ao louvor das costureiras e dos íntimos, intimamente convencida de que onde fosse a admirariam, muito risonha e muito audaz, quem a visse naquela vertigem de diversões inventando o prazer e o «flerte», não a julgaria no fundo tão profundamente temerosa das coisas positivas...

O pobre Guilherme vivera de platonismos longo tempo. Onde ela estivesse, ele lá se achava. Na rua dava-lhe cercos para lhe tirar o chapéu, curvar-se; em casa, valsando (depois de conversar com o marido, muito seu amigo), escorria-lhe no pescoço declarações de amor respeitoso. Era a sugestão, a tentação, a perdição... Ela ouvia-o, marcava-lhe o lugar da sua frisa para que ele comprasse uma poltrona fronteira, dizia-lhe com antecedência os bailes e os five-o-clock136 que teriam a sua presença. Quando Guilherme falou do grande acorde, sentiu um desejo surdo de se negar. Então era fatalmente preciso? O desejo fora, entretanto, muito forte, entontecera-a. Ela, que tinha o nome nos jornais mundanos, no livro das costureiras e no lábio de toda a gente, quis ouvi-lo pronunciado ternamente por um homem elegante. A curiosidade aguçou-se. Como seria emocionante desmaiar, tal qual o pintam nas gravuras e nos romances! Seria antes de tudo high-life. Guilherme era chique.

Guilherme! que nome horrível! Mas, coitado, amava-a, estava sempre em toda a parte, tinha uma porção de roupas, andava à inglesa, trotando, com os braços meio abertos, repartia o cabelo ao meio como nos figurinos, e possuía um encanto inédito; limava as unhas, dava-lhe um brilho metálico, incrível, um lustro, que, quando movia os dedos, parecia ter nas pontas palhetas de nácar137. Ah! as unhas desse Guilherme!

Quando o jovem afortunado lhe premia a mão, o contato envernizado daquelas unhas dava-lhe num arrepio a delícia de mais um ofertório à sua beleza tão aguda, tão clara, tão moderna e tão perturbadora. Fora talvez essa a única razão porque se entregara à sensualidade meio snob, meio cerebral, de se sentir despir por aqueles pedaços de um vermelho especial e lustroso, o contato daquelas unhas artificiais e extra-humanas. E nos passeios, nos banquetes, as luminosas unhas de Guilherme preocupavam-na como o olhar invejoso de uma amiga, o luxo de mais uma renda, a volúpia de uma jóia, que se não pôde possuir senão à custa de um enorme sacrifício...

Fez concessões a princípio, foi só a trechos pouco frequentados conversar apenas, discutir os tenores da companhia lírica e as infâmias da sua roda. Mas, como de uma feita, ele, de mãos postas e joelhos em terra, sem se incomodar com a calça, rogasse a sua ida ao infalível ninho de amor, ela cedeu afinal, incapaz de resistir por mais tempo...

Nesse dia foi meia hora antes, e agora, ali no carro, indo outra vez, ainda tinha na memória a exasperação sensual da tarde intensa. Guilherme, outro, rouco, e aquelas unhas brilhantes, coralisadas, que envermelheciam mais, que se machucavam desfazendo tecidos, que tocavam frias à sua epiderme, luziam nas batistes138como carapaças de pequenos monstros estranhos, para acabar empalidecendo, fenecendo de perpassar pela sua carne como fica sem cor um rosto sempre votado à oração... Naquele momento, toda a sua alma vibrara de um prazer como nunca tivera, o prazer sutil de gozar e desfazer o artifício máximo do outro. Mas, desde então, ficara de gelo, esfriara, diante da pertinácia alvar daquela paixão.

Pobre homem! não se contentara! Antes pelo contrário, parecia furioso depois do primeiro dia. Pedia-lhe entrevistas a todas as horas, em todos os lugares, tinha sempre nos olhos uma queixa, e obrigara-a a dias certos! Ela, uma senhora afinal, achava aquilo brutal, uma violência de quem paga e que a reduzia, que a humilhava.

Não havia duvida amava-a. Mas isso, não era razão e plausível para tamanhos excessos. Certamente era gentil esperava-a sempre com o quarto florido. Mas, em a vendo, era sempre aquele beijo, o beijo infalível e a frase:

-Sempre vieste! como te amo, Laurinda, como eu te amo!

Uf! que banalidade! Era baboso, era de entorpecer. E, positivamente, estragar um dia por semana, roubar-se à admiração do próximo para ouvir aquele senhor soluçar queixas de amor, parecia até pouco sério. Depois, Guilherme nem sabia, nem tinha préstimo para vestir uma senhora. Os seus vestidos, complicados, com ligaduras difíceis e ousadias de corte, eram amarfanhados por ele, rasgados, e mesmo, num dia de frio, caindo do céu a umidade, diante do espelho, Laurinda suava de impaciência, tanto o idiota custava para lhe atacar o colete -já com as unhas quebradas; sem brilho de se roçarem e de a apertarem.

Antes de ir para essas sessões, Laurinda vestia-se lentamente com a dor de saber que se ia despir, demorava, imaginava afazeres, olhando o relógio. De repente, porém, quando já os ponteiros passavam da hora, não se continha. Mandava tocar à toda, corria ao rendez-vous139com a louca vontade de que ele não a esperasse mais. Porque ia então? Ora! porque ia! Por condescendência, por fraqueza, por não achar o meio sério de se livrar de vez. E só então Laurinda lembrou que ia, naquele momento, para o suplício! Pegou do tubo acústico140, soprou desesperada:

-Mais devagar, José!

Se aquele pobre Guilherme tivesse mais alguma novidade além das unhas! Mas -coitada dela!- era certo vê-lo ajoelhar, vê-lo dizer: -sempre vieste! mostrando as unhas polidas e brilhantes prestes ao sacrifício! Era infalível que teria um fato novo, que a beijaria como a beijava sempre nos olhos para lhe tirar a veloutine141do rosto, era fatal que arrebentaria o cordão do seu espartilho diante do psyché142 -que é como a alma do nosso físico... Ao menos, se o jovem feliz não a obrigasse a despir, conversasse apenas, tivesse, enfim, um aspecto novo -vá! Mas não. Havia de ser tal qual, inexoravelmente tal qual. Oh! era estúpido!

Um espasmo de raiva fê-la esticar os dedos coriscantes143de anéis. Seria eterno aquilo? Não acabaria mais nunca? O monstro abusaria até o fim da sua posição de mulher honesta e fraca?

De repente o carro parou.

Deus! ia começar a tortura, o desespero! As janelas estariam abertas, era certo. O imbecil ainda acabava morando lá! Lentamente, como se levantasse o mundo, suspendeu o store144de seda branca, e mais lentamente ainda ergueu os olhos tristes.

A casa estava totalmente fechada.

Hein? Seria possível? Ele, então -e de súbito o desespero sufocou-a- não a esperava mais? Acabara a paixão? Então, ele também estava farto, estava cansado? Oh! ela já enjoava, já aborrecia aquele cidadão que a perseguira dois anos! Mas então essas coisas acabavam assim com a porta fechada, na cara, na sua face! O grosseirão insultava-a a ela, a ela, Laurinda Belfort, esposa de Soares Belfort!

Abriu a portinhola. Saltou. No seu cérebro baralhavam as idéias como se a afronta a ensandecesse. Em derredor, a rua deserta modorrava. No céu muito azul, de um azul muito claro, o sol vibrava, e do mar, que abria pelo espaço um outro céu, vinha a úmida aragem de um dia primaveril. Deu dois ou três passos, certificou-se rangendo os dentes de desespero.

Oh! era ela -para seu castigo, por ter querido ser boa, por ter pena do infeliz, era ela quem não se fazia receber! Oh! a vida! Quantas surpresas amargas!

Meteu-se outra vez no carro, bateu a portinhola.

Ah! não! nunca mais! estava acabado! O Sr. Guilherme queria o insulso, o idiota? Tanto melhor! Só assim não perderia mais o tempo, ela que tinha tanto que fazer, que ainda não fora ao costureiro e tinha teatro à noite, jantar, um five-o-clock das Teixeira impreterivelmente às quatro e meia! Que bom! E o cretino a pensar que a humilhava, que a incomodava! A rua do Ouvidor devia estar esplêndida. Se ao menos ela, Laurinda Belfort, não estivesse muito mal! Sempre que vinha àquela horrível casa vinha tão sem gosto... O seu vestido era de rendas brancas, sobre um fundo de liberty verde gaio. Abriu o estojo do coufé, tirou um espelho, um pompon de pó de arroz, viu-se, achou-se bela com o seu chapéu que era uma rosa debruada de uma enorme pluma verde pálido. E, de fronte do espelho, a idéia de fugir à humilhação apuou-lhe145 de novo o cérebro. Não havia dúvida. Nada de cenas que demonstrem amor. Apenas, ao encontrar o mariola -uma frase triste:

-Ah! meu amigo, foi-me impossível ir hoje!

Gozar a cara dele, negar a sua ida lá, e mesmo que ele dissesse não ter ido também mostrar um ar indiferente... Ah! Tortura-lo com uma indiferença calma, ignorante, com alguns bocejos, até tê-lo uma última vez e deixa-lo, abandona-lo, não ir mais -ela, ela, ela a vencedora! desprezar as suas unhas, o prazer mórbido de toca-las, as unhas... ah! canalha!

Então, sob essa impressão, Laurinda Belfort inclinou-se vivamente:

-José, para a cidade, depressa!

O carro tornou a rodar, enquanto, reclinada na almofada de seda, Laurinda torcendo os dedos, sentia, por mais que não quisesse sentir, a falta daquela hora infame, daquelas frases tolas, a falta daquelas unhas que lhe davam a renovação de uma sensação toda cerebral, para ao menos quebra-las mais uma vez morde-las, despreza-las. Instintivamente, na imensa confusão dos seus desejos, olhava os transeuntes com ânsia, a ver se o via, a ver se o encontrava, para parar o carro, ou tocar à toda, ou cumprimenta-lo, ou fingir que não o via... Sabia lá! Mas para vê-lo um momento ao menos, o pobre diabo, com os seus bigodes e aquelas unhas da cor do nácar rosa... E nos seus olhos brotavam, de desespero e de desejo, lágrimas a fio -por não ter tido, apenas naquele dia, o brinquedo de um pobre ente para torturar e espezinhar, o brinquedo aborrecido uma hora antes.

A João Antonio Brandão.


E de súbito, um indizível pavor prega-me ao banco. É um dia brumosamente invernal. O azul do céu parece tecido de filamentos de brumas. O sol como que desabrocha dentre as brumas. O ar, um pouco úmido e um pouco cortante, congela as mãos, tonifica a vegetação, e o mar, que se vê à distância num recanto de lodo, tem reflexos espelhentos de grandes escaras de chagas, de óleo escorrido de feridas à superfície quase imóvel. O cheiro de desinfecção e ácido fênico, o movimento sinistro das carrocinhas e dos automóveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela sujeira requeimada e manchada das calçadas, o ar sem pinga de sangue ou supremamente indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de choro que os meus olhos vão vendo, põe-me no peito um apressado bater de coração e na garganta como um laço de medo. A bexiga146! a bexiga! É verdade que há uma epidemia... E eu vou para lá, eu vou para o isolamento, eu!

Um mês antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para todo sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar? E Francisco, o meu querido Francisco a que eu amava como a melhor coisa do mundo, pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informações. A média de casos fatais é de trinta por dia. Ela vem aí, a vermelha147, dizia. E já organizara um regimen, tomara quinino, tinha o quarto cheio de antisépticos, os bolsos com pedras das farmácias para afastar o vírus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe dizia

-Mas criatura, não tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos teatros. Qual varíola! Vê como toda gente ri e goza. Deixa de preocupações.

De manhã, porém, nós líamos juntos, ao almoço, os jornais. Para que mentir? Havia, havia sim! A sinistra rebentava em purulências toda a cidade. Um dia em que passava por uma igreja, Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a curiosidade de saber por quem tão tristes badalavam e perguntou a um velho.

-É promessa, meu senhor, é para que Santo Antônio não mate a todos nós de bexiga.

Francisco ficou como desvairado. Ao jantar encontrou-se comigo.

-Ah! filho, falta-me o apetite. Estamos perdidos. É impossível lutar. Ela está aí.

-Acabas doido.

-Antes! fez no orgulho da sua beleza.

Há uma semana, indo por uma rua de subúrbio encontrou com gritos e imprecações um bando de gente que arrastava ao sol um caixão. Era uma pobre família levando à igreja o cadáver de uma criança em holocausto, para que Deus tivesse piedade e misericórdia. A impressão prostrou-o. Chegou à casa ainda mais assustado.

-Sabes! Estamos perdidos. A polícia já deixa arrastarem os variolosos pela rua. Dentro em pouco só lepra, a lepra de dentro encherá as ruas. Cada dia aumenta mais, cada dia aumenta. Quando chegará a nossa vez?

-Mas vai embora, homem, sobe à montanha, afasta-te...

E comecei eu também a indagar, a querer saber. Então, continuava? Como era? Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias espécies. A pior é a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente, apodrecendo em horas! Palavra, não era para brincadeiras. O Francisco abalara para o Corcovado, uma noite, sem me falar, sem me dar um abraço, e de repente naquela manhã, hoje, sabia por uma nota que ele estava no S. Sebastião, com bexiga também, talvez morto! Deu-me um grande ímpeto! Covarde! Fôra o medo. E agora? Era preciso vê-lo, não era possível deixa-lo morrer sem um amigo ao lado. Nunca tive medo de moléstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade estava tão alegre, tão movimentada, tão descuidosa. Tomei o tramway148 quase tranquilo. Mas ali, tudo indica a morte, a angústia, o horror, ali é impossível, e eu sentia um frio, um frio...

-Estamos no ponto terminal; não salta? diz-me o condutor, virando os bancos. Faço um esforço, salto. E vou. Vou devagar, vou não querendo ir. A impressão de fim, de extinção violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage149 inglês aviltado por usinas de porcelana, é bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Desço a rua atordoado, com um zumbido nos ouvidos. O mar é um vasto coalho de putrefações, de lodo que se bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morta. O chão está todo sujo, e passam carroças da Assistência, carroças que vêm de lá, que para lá vão. Quase não ha rumor. É como se os transeuntes trouxessem rama de algodão nos pés. Só as carroças fazem barulho. E quando param -como elas param!- é o pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pús, seguindo para a cova... Espero que não haja nenhuma carroça à porta, precipito-me pela alameda que sobe ao hospital. Vou quase a correr, paro à porta de uma sala que parece escritório.

-O diretor?

-É alguma coisa de urgente? indaga um jovem.

-É. É e não é.

-Vou preveni-lo. Sente-se. O senhor está pálido.

Caio numa cadeira. Sinto as mãos frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh! muito medo... E aquele trecho de secretaria não é para acalmar o destrambelhamento dos meus nervos. Tudo é branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes, nos móveis sem uma poeira. Os empregados porém movem-se com a precipitação triste a que a morte obriga os que ficam. Retintins de telefone repicam seguidamente nos quatro cantos. Os diálogos cruzam-se, diálogos em que as vozes falam para dores invisíveis.

-Mais um doente?

-Ah! sim, ciente.

-Qual? Não há mais lugar. O de nome José Bernardino? Vou ver.

E mais adiante:

-Olhe, 425? Morreu ontem à noite. Se já seguiu? Já.

Enquanto essas notícias são dadas à boca dos fones, há mulheres pálidas e desgrenhadas que esperam novas dos seus doentes, há velhos, há homens de face desfeita, uma série de caras em que o mistério da morte, lá fora, entre as árvores, incute um apavorado respeito e uma sinistra revolta. Quantas mães sem filhos! Quantos pais à espera da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para tratar do enterro dos que lhe deram o ser. Ela não respeita idade, passa a foice purulenta em tudo, está lá reinando, fora, no jardim, entre as árvores, morro acima. Os funcionários têm uma delicadeza fria.

-Que deseja, minha senhora?

-Saber do meu filho. É 390.

-Há quantos dias?

-Há quatro. Ainda elas não tinham saído. Foi o médico que disse. Ai! o meu pequeno!

-Está decerto no pavilhão de observação. Vou mandar ver.

-Meu senhor, a minha mulherinha, diga-me por Deus, diga-me.

-Espere, homem. Nada de barulho.

Os retintins telefônicos continuam. Algumas faces não dizem nada. Estão lá sentadas, esperando, esperando, esperando. E há marcados, marcados do terrível mal, que vão sair, não morreram, estarão dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida, roída, desfeita para todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficará assim? Assim, horrível, horrível... É preciso vê-lo! É preciso!

O rapaz volta, faz-me um gesto, sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro, com a sua face inteligente vincada de tristeza.

-Então por cá? Não teve medo? Está com a mão fria. Ah! meu amigo, a apostar que não acreditava na devastação do mal? Pois é horrível, é inaudito. Tenho presentemente no hospital setecentos e vinte doentes desde a varíola hemorrágica, que mata em horas, até a bexiga branca que nem sempre mata. Já não há lugares. Nunca S. Sebastião esteve assim. Mandei construir à pressa mais dois pavilhões. Estou arrasado de trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado, sempre se tem coração para sentir a dolorosa atmosfera de desgraça... Mas que deseja? diga.

-Eu desejava tomar uma informação. Está aqui no hospital um rapaz do norte, Francisco Nogueira, estudante...

-Francisco? Há tanta gente que entra e tão pouca que sai... Em que dia entrou?

-Creio que anteontem. Vou mandar ver.

Tocou um tímpano. Apareceu um funcionário. Falaram ambos. O funcionário saiu, e desde que saiu, um tremor apoderou-se do meu corpo. Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de ouro e de rosas já se teria transformado numa chaga purulenta? E se estivesse morto? Uma criança tão cheia de esperanças, tão entusiástica, tão pura, sem os pais aqui, sem ninguém a não ser eu que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de encobrir tamanha emoção forçava-me a fingir um sorriso, a dizer mundanamente coisas frívolas ao homem bom cujos olhos tinham tanta piedade.

-É o diabo. A epidemia tem impedido vários prazeres da season. As grandes estrelas mundiais, os teatros.

-Pouca gente.

-Menos do que se devia esperar. Não frequenta?

-Não tenho tempo.

-Ninguém dirá entretanto que a varíola...

-Nas grandes cidades as pestes dão uma impressão muito menos dolorosa do que outrora.

-Na Idade Média, não, doutor.

Mas um nó subitâneo estrangula-me a frase. O funcionário voltara, dava informações baixo ao diretor. O médico pôs-se de pé e diante de mim:

-Está cá. Entrou anteontem. Está vivo. O médico da enfermaria diz que há esperanças.

-Quero vê-lo, doutor.

Houve uma pausa grave.

-É vacinado?

-Sou.

-Já viu um varioloso?

-Não.

-Gosta desse rapaz?

-É meu amigo.

O diretor pensou. Depois:

-É melhor não vê-lo. Aceite o meu conselho. A ele nada falta. O senhor parece tão comovido. Tenha esperança, vá descansar. As emoções fazem mal neste período...

-Quero vê-lo, doutor, quero. É um grande obséquio que lhe fico a dever.

O diretor ainda hesitou um instante, mas diante da minha resolução que se fazia súplica, fez um gesto e eu acompanhei o funcionário, passei a secretaria, entrei no jardim, comecei a subir para o morro, onde entre as árvores erguiam-se os grandes pavilhões, com as redes das janelas pintadas de vermelho. Era ali, naqueles enormes galpões, com janelas forradas de tela rubra que a varíola punha putrefações e gangrenas em corpos dias antes bons. O homem ia depressa, e eu arquejava atrás, sem forças, com as têmporas batendo. Meu Deus! Que iria ver? Que se daria? De repente, parou, subiu uma escada. Subi também. Abriu uma porta de tela, entrou. Entrei com ele. Abriu outra, passou. Passei com ele. Encaminhou-se para um compartimento. Segui-o. Onde estava eu? Sei lá! Não sabia! Não sabia! Vi-me diante de um leito, onde um cobertor tapava, por completo, um pequeno volume. Para diante havia outros leitos cobertos de vermelhos, outros muitos, cobrindo a negregada. Certo cavalheiro indagava:

-Quer ver então?

-Sim, senhor.

-Não é grave. Esta escapa. Mas tenha coragem!

Depois, com infinito cuidado, pegou das pontas do cobertor e foi levantando aos poucos. Fechei os olhos, abri-os, tornei a fecha-los.

-Não há engano?

-A papeleta não erra. É ele mesmo.

Eu tinha diante de mim um monstro. As faces inchadas, vermelhas e em pus, os lábios lívidos, como para rebentar em sânie150. Os olhos desapareciam meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes. Era como se aquela face fosse queimada por dentro e estalasse em empolas151 e em apostemas152 a epiderme. Quis recuar, quis aproxima-me. Só consegui dizer para o horror:

-Francisco, Francisco, então como vais?

Os lábios moveram-se, e uma voz, outra voz, uma voz que era outra, passou vagarosa:

-Ah! és tu?

Enquanto o corpo não fazia um gesto. Era ele, ele, sim, porque sobre a travesseira, só uma coisa não desaparecera dele e da podridão parecia tomar um redobro de brilho: a sua enorme cabeleira negra, com reflexos de ouro azul-tinta...

Então veio-me um louco desejo de chorar, um desejo desvairado. Fiz um vago gesto. O funcionário abriu-me a porta e eu saí tropeçando, desci o morro a correr quase, entre os empregados num vaivém constante e as macas que subiam com as podridões. Um delírio tomava-me. As plantas, as flores dos canteiros, o barro da encosta, as grades de ferro do portão, os homens, as roupas, a rua suja, o recanto do mar escamoso, as árvores, pareciam atacados daquele horror de sangue maculado e de gangrena. Parei. Encarei o sol, e o próprio sol, na apoteose de luz, pareceu-me gangrenado e pútrido. Deus do céu! Eu tinha febre. Corri mais, corri daquela casa, daquele laboratório de horror em que o africano deus selvagem da bexiga, Obaluaiê153, escancarava a face deglutindo pus. E atirei-me ao bonde, tremendo, tremendo, tremendo...

Há epidemia, oh! sim, há epidemia! E eu tenho medo, meu amigo, um grande, um desastrado pavor...

E Luciano Torres, após a narrativa, caiu-me nos braços a soluçar. Era de noite e foi há dois dias. Ontem vieram dizer-me que Luciano Torres, meu amigo e colega, fora conduzido em automóvel da Assistência do seu elegante apartamento das Laranjeiras para o posto de observação. Está com varíola.

Última noite

-Perdeste?

-Não, ganhei por treze. Veja você a cábula154!

E Armando recebia do parceiro mil réis pela partida de bilhar. Para fazer semelhante aposta fora preciso a boa vontade do Jeremias, o principal caixeiro, que emprestara os dez tostões e durante toda a partida levara a peruar, grasnando. «Anda com isso, homem. Pois ainda não ganhaste? Olha que se perdes...». Armando suspirou, bateu com o taco no soalho.

-Vamos outra, parceiro? silvou o contendor, um sujeito lívido, de olhar desconfiado.

-Não posso. Tenho onde estar às sete.

-Quem? Você? Qual! O que você tem é medo. Um pixote155 com uma sorte maluca.

-Ah! filho, quem dá a sorte é Deus.

Mas o Jeremias vinha arrastando as chinelas, em mangas de camisa. E, apanhando as bolas no pano sujo de giz, a apagar um dos bicos de gás, resmungou tirânico:

-Deixa-o lá. Não lhe dês conversas. O dianho156 perde e ainda se põe com luxos!

Mesmo ali, entregou-lhe a nota do empréstimo, piscou o olho para outro caixeiro, um camaradão esse, foi até à cigarreria receber fiado um maço dos de carteirinha e uma caixa de fósforos. Acendeu um, vagou um pouco pela atmosfera deletéria do botequim, repleto de cambistas, de vendedores de senhas, de gente que não tinha o que fazer ao lado de uns tipos de torrinha, que trabalhavam o dia para fazer da claque157 à noite, olhou-se um instante no espelho. Estava pálido, com olheiras, a barba por fazer e o seu colarinho, emprestado, havia oito dias que lhe apertava o pescoço. Sentiu uma tonteira. Fome, de certo. Não comera desde a véspera, e o dia anterior passara-o com uma media e meio pão com manteiga, repartido afetuosamente com o Clodomiro. Iria comer um bife no frege158.

Saiu devagar, desceu a rua do Senado, entrou numa casa de pasto da rua do Espirito Santo, e foi bem para o fundo, com medo dos camaradas necessitados, que talvez quisessem repartir. O caixeiro, um gordo, com o ventre muito grande e o nariz rubicundo, assentou as duas mãos na toalha suja, e desfiou diante dele a lista cantada das iguarias.

-Um bife e um caldo verde.

-O bife depois?

-Está visto.

-Salta um caldo verde! ladrou para dentro o homem.

Armando pediu tambem vinho. Logo que o caldo lhe caiu no estômago, um calorsinho agradável percorreu-lhe o corpo, e o estômago pareceu-lhe que acordava -o seu bom estômago, amigo às direitas, sem exigências, sem queixumes, um estômago que perdera a noção do jantar e do almoço e parecia dormir-lhe nas suas entranhas. Devorou o caldo com grossos pedaços de pão, devorou o bife, sorveu a meia garrafa de vinho, mastigou duas bananas. Oh! Tinha fome para muito mais! O proprietário porém não fiava, e já era muito aquele jantar. Apanhou os níqueis do troco, saiu, com as mãos no bolso, e verificou no meio da rua que não tinha nada a fazer. Era um homem, completara vinte anos, conservara rijos os músculos e cheia de ambições a alma. Entretanto estava ali, na calçada, como um trapo, ao deus-dará da vaga humana, sem trabalho, sem morada. Para onde iria ele, coitado? Era onde calhasse que havia de dormir. Talvez ceiasse. E talvez no dia seguinte encontrasse um emprego. Oh! o emprego! Quantas desilusões e a quanta coisa descera para arranja-lo! Lembrou-se de que uma grande influencia política, um senador, olhando-o muito intimamente, dissera-lhe:

-Veremos, ainda se pode arranjar...

Ainda se pode! Armando sorriu. Ora se ainda! Os seus orgulhos, e sua altivez, a noção de honra, de hombridade, de vergonha tinham naqueles quatro meses de miséria se adelgaçado assaz. Tudo é tão relativo neste mundo! Quando está a roupa no fio e o estômago vazio está, tira-se partido mesmo do que nos repugna ao menos para jantar. E ele, perdendo a cor da face, impondo ainda o seu tipo sensual de adolescente, entrava em intimidades perigosas, arranjava pequenas ladroeiras mais perigosas que grandes roubos, metia-se em histórias inconfessáveis, e lentamente, cada dia descia mais.

Aquilo acontecera a tantos! Ele viera da terra remetido a um tio padre que vivia em mancebia com uma cabrocha gorda para os lados da Penha. Era forte, airoso e com essa sensualidade à flor da pele que só têm os homens de Portugal. Por causa da cabrocha o tio despachara-o para uma taberna na cidade. Ele ia indo bem e assim passou dois anos. Mas um dia uns camaradas lembraram ir ao teatro, a uma grande revista de certa companhia portuguesa. Foi, de terno novo, com um ramo de violetas à lapela. Nunca vira um teatro. Apaixonou-se por todas as mulheres, começou logo a considerar os cômicos grandes homens. Nessa noite esperou a saída dos artistas. No dia seguinte, apesar de tomar conta da taberna, às onze horas saiu pé ante pé para não acordar os outros, bateu a porta e voltou ao teatro. E como não tivessem percebido a sua fugida, todas as noites deu para fazer o mesmo. Estava de dia a cair de sono, mas já conhecia os coristas, já dizia a sua piada às coristas, já o porteiro da caixa159 lhe pedira dinheiro para o deixar passar, e uma artista, a Etelvina Soares, uma de pernas grossas, já lhe passara duas cadeiras de beneficio. O teatro, a caixa, os artistas exerciam a sua fatal tentação e para a folia da noite Armando cortava na gaveta do patrão uma féria permanente. Mas, ao voltar uma noite à taberna, encontrou de pé, à porta, o patrão a bufar de cólera, que o espancou furiosamente, insultando-o a berrar:

-Pensavas, patife, que eu não viria a saber!

Ele foi digno. Que importavam empregos? Exigiu as suas contas, recebeu economias de dois anos que o patrão com a ameaça da polícia dera imediatamente, e caiu no oceano daquela vida sedutora, despreocupado e feliz. Passava os dias nos ensaios, nas bodegas de artistas meio esfomeados, passava bilhetes de benefício. As mulheres não o amavam, mas ele conhecia todas; os grandes cômicos não lhe sabiam o nome, mas ele, Armando, conhecia-lhes todos os papéis, tinha opiniões, criticava, sabia de cor uma porção de coplas160. O ar pezado da aldeia, desfizera-o a vida na cidade; o tom grosso de caixeiro, aquele roçar com cômicos transformara. Acabou por desprezar os seus antigos colegas, e na noite de despedida da companhia, no embarque da mesma, fez loucuras de entusiasmo. Ah! Aquilo é que era! Mas já não lhe restava mais nada das economias e era preciso empregar-se. Empregos! Todas as portas se lhe fechavam nas casas de comércio, sabendo do tempo em que estivera desempregado. Alguns sabiam mesmo a história, e o próprio Armando sentia não poder mais voltar àquele trabalho, enquanto os dias iam se passando pelos teatros, pelos botequins, à cata de dinheiro, amoldando-se ainda mais à infâmia, aos desejos misteriosos, às pândegas das noites. Por último era aquilo sujo, com fome, sem ter onde dormir, e entretanto julgando-se mais do que fora antes, julgando-se mais, reagindo contra uma resolução que o fizesse mandar buscar pelos pais ou de novo o pusesse a trabalhar. Que vida!

Armando parou à porta de um botequim numa roda de atores principiantes, de contra-regras, de figurantes. Há sujeitinhos lavados, bem como os coristas, há tipos em mangas de camisa, há também estômagos vazios. São conhecimentos das noites passadas em claro nos cafés-bilhares, nas baiucas fétidas de jogo. Armando olha um sujeito de grosso bengalão: é o chefe da claque. Cumprimenta-o, fala-lhe.

-Não tem disso, não! Fomente-se!

Mas é bom, dá-lhe uma senha. De posse da entrada, o rapaz põe-se logo a andar, embarafusta pelo teatro, atravessa o jardim sem ver ninguém, entra na caixa, sobe uma estreita escada de quatro ou cinco degraus, atravessa um monte de cenários velhos, que de vez em quando saem da poeira letárgica para um espetáculo de arromba.

Vira à esquerda, passa pelo pano do fundo para a carreira de camarins das notabilidades, sobe outra escada, dá em meia dúzia de bricoetes161. Armando abre um. É o do ator Espínola. Quem é o Espínola?

Ninguém sabe. O Espínola foi comerciante, apaixonou-se pelo teatro, passou misérias atrozes, e vive agora de fazer pontas com cento e cinquenta mil réis por mês. É tímido, é assustadiço, e tem piedade pelos outros.

-Então que há.

-Parece que a companhia dissolve.

-É o diabo. Vamos para o interior? Com quem?

-Um pequeno grupo...

Espínola pinta-se mal e dá informações. Com os olhos queimados, a face oleosa pela falta de repouso, Armando ouve-o. Lá em baixo tocam um grande sino. Vai começar. Espínola sai. Armando diminui a luz do gás, tira o casaco e deita-se na mala. Dormir, não pensar, dormir apenas... E dorme, dorme um sono mau, fatigante, interrompido pelas entradas do Espínola, cortado de toques de sino, de inferneiras de mulheres, de gritos, de músicas. Faz no camarim uma temperatura de caldeira. Afinal, à meia noite, Espínola acorda-o. Terminou o espetáculo. Armando lava a cara, penteia o cabelo, prepara-se, saem os dois devagar. Espínola não tem amantes, e por uma evidente infelicidade Armando não arranjou nenhuma. Tomam café no largo do Rocio. O bom Espínola, que habita um cômodo com mais cinco pessoas, despede-se. Armando, só, sem coragem, volta de novo ao botequim onde ganhou dez tostões. Há como ele outros rapazes, há coristas, há tipos reles. Às vezes fazem-se pândegas. Mas naquela noite ir amanhecer no Leme ou no Mercado? Não, não é possível.

Os botequins vão fechando, rareia o trânsito, Passa de vez em quando um bonde. Aparecem os varredores da Limpeza Pública, numa nuvem sufocante de poeira. Armando está ainda à esquina, mastigando a ponta do cigarro. E vê então que há luar. A lua cheia, muito lânguida e muito pálida, estende pela casaria a poesia misteriosa da sua luz. Oh! a velha lua! Como consola os tristes e os desgraçados! Armando vai indo a pé, olhando o céu, olhando a lua. Desce as ruelas escuras, dá no gradil do campo de Santana, rescendente de aromas silvestres. Tudo é calmo, tudo é docemente quieto. A brisa leve embala os ramos das árvores num suave perpassar, e do alto, amplo, como uma ânfora de consolo e bem-aventurança, o astro derrama a delícia tranquila do seu esplendor. Não poder saltar aquele gradil, estender-se na relva, ofertar-se à lua numa longa hora de choro e de lágrimas... Dói-lhe tanto o estômago! Vai até a Central, já com os focos apagados. Há uma negra vendendo mingau para uma roda de notâmbulos: marinheiros e soldados ébrios, fúfias de galhinho de arruda e chinelas sujeitos ambíguos de calça balão. Palavrões choviam. A negra lavava a louça, e ao seu lado um canzarrão cinzento com vestígios de lepra, roncava. Um momento hesitou. Tomaria o mingau? Mas a viagem? Não! Era melhor dormir, dormir tranquilo. Entrou, caminhou até ao saguão, foi até ao embarcadouro. No saguão havia o vigia a dormir. Na gare, um cavalheiro passeava devagar com uma formosa senhora. Ele parecia radiante, e ela tinha esse olhar amortecido que as mulheres têm quando querem saber mais alguma coisa na vida. Um perfume delicado errava à sua passagem, e quando ela ria, o seu riso animava a tristeza sombria da estação.

Armando não olhou sequer. Preocupava-o a bilheteira. Quando a viu aberta, comprou um bilhete de ida e volta para o subúrbio, correu a um vagão de segunda classe, estendeu-se refasteladamente Estava só. Ia dormir!

Pouco depois soaram campainhas. O chefe do trem acenou para o maquinista com um lanternim de vidros vermelhos e verdes, um silvo partiu, houve um ranger de ferros. O trem moveu-se, a principio devagar, depois vertiginosamente, deixando na corrida louca o renque do casario, as duas fitas dos combustores.

-Praia Formosa! grita o condutor, saltando para a plataforma.

Entram alguns indivíduos, talvez cocheiros. Falam de burros, de atrasos, de parelhas.

-Faz obséquio do seu bilhete.

Armando abre os olhos. No vagão, o diminuto número de passageiros tem um ar de sono e de fadiga. Havia gente vinda dos bailes, das tipografias, do trabalho, e muitos, também como Armando, lá se achavam apenas para passar algumas horas fora do relento. Uns vinham estirados sobre os bancos; outros apenas cochilando. Armando reconhecia-os, sem pena, indiferente. Tinha que ser. Talvez alguns tivessem ainda a pensão do jantar. Ele sim, ele é que longe da família, longe da sua terra, sem auxílios, descia a rampa da vida certo de encontrar o abismo, mas incapaz de soltar um grito -por falta de coragem, por falta de energia, porque tinha de ser... Um soluço sacudiu-lhe o peito. Para ocultar as lágrimas, puxou as abas do chapéu, virou o rosto. O trem continuava a galopar, sacolejando os corpos. Os campos inundados de luar passavam numa visão branca. E, de repente, Armando sentiu um bem-estar. Ia caminho da casa, tinha menos quatro anos. Era tarde, o pai ralharia, mas a mãezinha lá estava à espera, com o fogareiro de espírito, para aquentar o café.

-Boa noite, mãe.

-Meu filho, baixo. Olha teu pai. Por que veio assim tão tarde? E suado, com este frio da noite!... Não vás apanhar uma constipação.

Oh! a sua mãezinha. Então sentava-se, contava-lhe tudo, o sonho que tivera, o seu abandono, as dormidas ao relento, as infâmias, os engates no jogo, tudo por má cabeça...

-Má cabeça tua, meu filho. Mas tu tens tua mãe. Vai dormir, anda, vai descansar. Descansa que eu te arranjo tudo. Não há pedido de mãe que Deus não ouça.

Então ele sentia-se ainda mais pequeno, cheio de vontades. Queria uma roupa nova, um par de botas, chocolate. Gostava tanto de chocolate! Ele pedia, ela prometia chorando. E assim os dois, a velha é que o deitava, que o cobria com a colcha limpa.

-Dorme, meu filho, dorme.

E ele dormia, dormia tão bem na sua cama, ao lado de sua mãe, na sua casa! Dormia bem mesmo, muito, sentindo o prazer indizível de estar dormindo.

De repente, porém, sentiu um estalo no ouvido. Acordou. O vagão estava cheio. Era de madrugada. O trem voltava cheio de operários. A manhã nascia lavada e cor de pérola. Os artífices bulhentos tinham resolvido acorda-lo, e um da roda, todo a gingar, com ar de desafio e de troça, batia-lhe palmas junto ao ouvido.

Armando ergueu-se, encarou-o.

-Estou incomodando, cidadão? chalaceou o outro.

O pobre rapaz recalcou a cólera, sorriu.

-Não, até me fez bem... Tirou-me um sonho!

E foi para a plataforma do vagão olhar os últimos vestígios de uma das suas noites. Que havia de fazer agora? O mesmo que fizera antes, a mesma miséria, a mesma infâmia, o mesmo horror. Nossa Senhora! Mas não haveria meio de ganhar a vida, de comer, de dormir, de viver? Não haveria quem tivesse piedade da sua atroz agonia?...

Sentou-se na escadinha, acabado. O trem continuava a galopar pelos campos dourados do sol nascente. A natureza abria em flor, ao beijo da madrugada. Uma corrente pendia entre o vagão em que estava e o outro vagão. Inconscientemente estendeu a mão. Seria tão interessante pega-la. Mas custava. Tudo no mundo custa. Estendeu mais o corpo, quase deitado, estendeu mais. O corpo falseou, pendeu. Quis salvar-se, numa súbita e desesperada angústia. Com os pés enlaçados na grade, ainda conseguiu prender as mãos nos para-choques. Mas um solavanco desprendeu-o. O corpo caiu. As rodas do outro vagão esmigalharam qualquer coisa. O trem continuou na luminosidade da manhã. E ninguém do trem reparou naquele fim de vida tão desconsolada, sob o calor do sol que começava...

Uma mulher excepcional

A Forjaz de Sampaio.


-Está a brincar!

-Sério. É irrevogável. Preciso um pouco de ar, um pouco de descanso, de repouso, de sossego. A vida desta cidade ataca-me muito os nervos...

Era no salão de Irene de Souza, o salão em que a esplendida atriz fundira o confortável inglês com o luxo do antigo, espalhando entre os divãs fartos da casa Mapple, bergeres162 mais ou menos autênticas do século XVIII, contadores163 do tempo de Carlos V, e por cima das mesas, por cima dos móveis, nos porta-bugigangas de luxo, marfins orientais, esmaltes árabes, estatuetas raras, fotografias com dedicatórias notáveis. Irene de pé, diante da secretária, sorria, estendendo-me as duas mãos finas, nervosas, enquanto os seus dois grandes olhos ardiam mais loucos e mais passionais.

Irene de Souza! Que legenda e que beleza! Os seus inimigos asseguravam-na apanhada como criada de servir perto de um quartel para os lados de S. Cristovão; outros diziam-na filha de uma família muito distinta do Sul. Ao certo porém ninguém sabia senão aquela aparição brusca no teatro, bela como a Vênus de Médicis, a arrastar nos decadentes tablados cariocas vestidos de muitos bilhetes de mil, criados pelo Paquin e pelo Ruff. Não era uma pequena qualquer. Era a bela Irene de Souza que queria ser a boa, a humilde, a simpática, a talentosa Irene. A critica fora jantar a sua «vila» de Copacabana, onde Irene, ao nascer do sol, num regimen essencialmente esportivo, fazia duas horas de bicicleta e sessenta minutos de natação. E a crítica suportara o seu companheiro Agostinho Azambuja, empreiteiro, rico, casado; a crítica elogiara Irene, e de chofre todas as atrizes, todos os cabotinos sentiram-se diminuídos lendo no cartaz, em grossas letras, o nome de Irene en vedette, de Irene repentinamente footlight... Ela continuava tão boa porém, tão amiga, tão simples, tão séria... Tão séria? Deram-lhe todos os amantes imagináveis em vão, e por vingança afirmaram que os seus dentes, como os seus sapatos, eram feitos em Paris; emprestaram-lhe instintos perversos, e foi célebre a frase de um jornalistinha desprezado: -«De pé é a Vênus de Médicis, deitada é a Vênus Andrógina». Mas Irene mostrava o claro fio da dentadura com uma despreocupação tal, tratava tão camarariamente os homens que a calúnia tombou.

De resto Agostinho Azambuja tinha uma confiança muito elegante. A lenda era que esse homem vulgar, possuído de uma paixão devoradora, agarra uma pobre rapariga no mais reles alcouce e fizera-a uma obra sua para dominar a cidade, uma mulher perfeita, falando quatro ou cinco línguas, conhecendo música, vibrante de arte e de elegância que é a arte de ser sempre a tentação. Mas a paixão, o ciúme, esses paroxismos fatais de quem quer muito bem, Azambuja encobria-os numa serenidade de bom-tom, talvez mesmo para Irene, deixando-a sair só, não lhe perguntando nunca donde viera, recebendo na própria casa os apaixonados que a ela poderiam ser úteis para o reclamo, colocando-a numa posição verdadeiramente superior, sem esquecer o lado prático, porque lhe assegurava o futuro, comprava-lhe casas, jóias. No dia em que correu ter o Azambuja presenteado Irene com uma baixela de ouro lavrado, herdada do avô, um vago judeu argentário, as mulheres tiveram a certeza da superioridade da rival, e foi notada a resposta do Azambuja a Etelvina, primeira ingênua164 casada e adúltera da companhia:

-Minha filha, já não estou na idade de satisfazer os caprichos de uma mulher. A Irene quem a fez tal qual é fui eu. Vivo do orgulho que ela me dá. É o meu chique.

-E se o trair?

-Tem bastante espírito para o não fazer, e lucrarias mais se fosses sua amiga.

Mas isso é que ninguém concebia: a Irene sem enganar o Azambuja. Afinal era uma rapariga de vinte e cinco anos, um verão ardentíssimo, uma beleza que chamava paixões! Muita vez no seu camarim, forrado de seda côr de rosa, faziam-se comentários.

-Mas não ama o velho Agostinho?

-Está claro que não o posso amar como Julieta a Romeu. Há uma grande diferença de idades. Mas respeito-o e sou-lhe grata. É quanto basta. Eis a razão por que resisti a princípio e hoje sou invulnerável.

-Francamente?

-Deve compreender que seria muito parva se fosse perturbar a minha vida e a beleza que vocês proclamam com uma paixão. Ora só a paixão poderia influir. Essa não vem, não vem, e não virá nunca. Conheço os homens.

De fato, tinha razão. Como o seu sorriso tornava-se cortante, as narinas palpitavam e com o seu ar de Diana à caça, ela permitia-se abraços e beijos com as companheiras, mais falsas que a onda, logo se formou irrevogável a legenda.

-Irene? Amantes não... A Irene procura alguém de quem o Azambuja não tenha ciúmes. Lembrar-te da frase do Gomide?

A legenda foi mesmo tão espalhada que súbitas ternuras apareceram, e alguns camarotes eram insistentemente ocupados pelas mesmas damas nas noites das suas representações, e vários convites surgiram para tê-la na companhia de senhoras bem cotadas.

-És uma criatura imperfeita, disse-lhe eu um dia.

-Por que?

-Porque não amas o amor. Lembra-te dos versos do Poeta:

Que os vossos corações aprendam a viver,

Amando o amor, amando a perfeição,

A perfeição da alma que nos traz o prazer

Supremo e a suprema ilusão!



Ela suspirou, tristemente.

-Se é assim? Que hei de eu fazer? Mas que romântico, Deus!

E todos nós, jantando nas suas pratas, escrevendo a respeito do seu talento, tínhamos aceitado o caso como definitivo. Até Irene mesmo, mostrando predileções excessivas, parecia sossegar com a esquisita calúnia e mostrava uma alegria, uma imensa satisfação na vida. De modo que aquela partida brusca, após o seu último sucesso agradável numa comedia inglesa, era de desnortear. Ao saber a resolução pelo velho Azambuja na rua, eu tomara um tilburi165, interessado como diante da saída de um ministro, e estava ali, interrogando-a, no meio da desordem do salão, onde havia malas, chapéus, plumas, e um intenso cheiro de heliotrópio166.

-Mas por que partir, Irene?

-Porque é preciso.

-Uma briga com o Azambuja? Não? Aquele ataque da Suzana Serny? Também não? Então? Querem ver que afinal tem uma paixão?

Irene sorriu, no seu quimono rosa, guarnecido de uma leve renda antiga.

-Paixão? Sabe o que estava a fazer, quando entrou? Estava a limpar a secretária, a rasgar declarações amorosas e a atira-las para este cesto. Tudo quanto está vendo nesta secretária, tudo quanto vê neste cesto -é paixão!

Recuei assombrado. Nunca tinha visto tanta paixão reunida e um sorriso tão destruidor nos lábios de Irene.

-Oh! não se assuste! Essa paixão é uma das faces do meu amor ao teatro. O Azambuja sabe e, às vezes, lê as cartas comigo. Guardo os artigos de jornal num álbum e a chama amorosa na secretária. Algumas ainda não li, mas foi por falta de tempo...

-Cruel!

-Oh! É lá possível ler tudo quanto a tolice humana escreve? Recebo as cartas de bom humor porque é impossível zangar, e acabo considerando-as a homenagem anônima, uma espécie de palmas num teatro cheio. Quer lê-las?

Uma ansiedade invadiu-me.

-Irene, nunca amou? Francamente? Posso ler todas, todas?

-Todas, fez ela. Sem receio. Divirta-se! Eu vou mandar fazer um pouco de chá, feito da flor, enviado diretamente da China para um inglês rico que me adorou em vão.

Ergueu-se. Houve um deslocamento de perfumes. A meus pés o cesto abria a face abarrotada; diante das minhas mãos a secretária escancarava-se. Hesitei, olhei-a, não resisti.

Ah! o estranho capítulo de psicologia, a descrasiante página de análise! Daquela papelada subia como uma fúria de paixão, de doença, de loucura. Havia mais de quinhentas cartas, havia mais de mil postais e nesses quadriláteros de papel ardia um arco-íris passional desde a chama roxa da melancolia à chama rosa do amor precoce. A primeira carta que abri tinha ao canto um passarinho voando, e começava assim: «Dona Irene, queira desculpar, ao receber estas mal traçadas linhas que lhe envio do internato. Tenho quinze anos e vi-a ontem. Como é bonita!».

-Conheceu?

-Nunca o vi. Pobre pequeno! Do seu primeiro amor não guardará ao menos más recordações.

-Cá tenho outro: «Senhora. As horas fogem e a esperança fica. Quem a chamou de feia e a senhora não sabe quem é».

-Quantos nestas condições! Vá vendo...

Eu ia com efeito vendo. Peguei de outro: «Adeus, flor da minha vida! E que nas outras cidades deixe os mesmos corações despedaçados. -Maníaco».

-Este confessa-se maluco!

-O que não fazem os outros...

Mas as tolices, os gritos de paixão, que são sempre ridículos, não acabavam mais. Eu lia versos, lia pensamentos patetas, via toda a palpitação ingênua do coração dos homens; ameaças de suicídio, ofertas de dinheiro, descrições de vida futura, pedidos de uma humildade de rafeiro167, agonias com erros de português, máximas idiotas e generosas: «A amizade da mulher tem um encanto mais suave do que a do homem: é ativa, vigilante, terna e durável!», graças nevrálgicas de palhaço amoroso. Deus! O amor, que dolorosa moléstia... eu não sei porque um nervosismo incompreensível fazia-me trêmulos os dedos, eu procurava com ânsia, humilhado, espezinhado, como se fosse responsável por todas as sandices do meu fraco sexo.

-A carta anônima é as vezes melhor que a carta de amor!

-Sabe que teve um pensamento?

-Como os que acabou de ler?

-Não, um pensamento diamantino.

-Pois venha tomar chá.

A criada servia, com efeito, o chá num lindo tête-à-tête168de porcelana com guarnições en vermeille169. A encantadora Irene parara; os seus olhos pareciam levemente inquietos. Eu continuava a remexer a secretária. Uma das missivas era enorme. Abri-a. «Peço a v. ex. que me perdoe a ousadia, e, genuflexo, reclamo o seu carinho para os queixumes de um coração sofredor. Não sei fazer poesia, sou imensamente avesso às flores de retórica e suponho que não me igualarei ao gorgeio dos rouxinóis ou às asas das borboletas inquietas...».

-Basta! Basta! fez Irene, tapando os ouvidos.

-É a paixão.

-Venha antes tomar çhá. Olhe a frase de Ibsen, na Comédia do Amor: o amor é como o chá. Bebamo-lo!

-Ah! minha querida! como os homens são idiotas! Essa mania de escrever cartas de amor é bem o sintoma de inferioridade. Se eles soubessem o fim das suas letras e o pouco caso que delas fazem as mulheres. Ainda não tive amante que com ela não rasgasse as cartas dos que me tinham precedido.

-Era uma afirmação de que pelo menos no momento não o enganavam.

-Quem sabe?

Ela sorria com a chávena na mão. Era realmente bela. Toda de rosa, naquele quimono de seda, lembrava uma flor maravilhosa, uma flor de lenda, inacessível aos mortais. Eu compreendia a futilidade, a tolice, a miséria lamentável dos homens, diante da sedução de Vênus Vingadora, da Vênus que não se entregara nunca, e era honesta sem amantes, sem crimes, sem calúnias...

Mas porque ia ela para a Europa? Porque me humilhava com aquela intimidade de correspondência aberta? Por que? Os meus dedos encontraram uma gaveta. Abri-a. Nunca a linda Irene de Souza amara um homem! Era honesta, era o polo do desejo! Ah! não... várias cartas. Apanho uma ao acaso. Um selo italiano. Tirei-a do invólucro: «Cruel. Hei de matar-te se alguma vez te encontrar a jeito. Não me quiseste e eu peno, peno há cinco anos. Conto que ainda hei de ver o teu sorriso indiferente, ó 8, ó 8, oitavo do século, no mesmo lugar. Preciso muito...».

Não continuei.

-E olhe que tem também um doido.

-Palavra?

-Um sujeito que está na Itália, ao que parece. Fala do numero 8, chama-a cruel.

-E eu que ainda não tinha lido! Com efeito. É curioso. E assina-se César! Não faz coleção de selos? A filatelia está em moda.

-Como todas as parvoices inofensivas. Ainda lá não cheguei.

Depois, parei. Ela estava preocupada, séria, um tanto fria talvez. Decididamente aborrecia a bela Irene de Souza. E era de compreender. Irene preparava a sua partida, desejava estar só. Curvei-me.

-Adeus, então. Seja mais humana lá fora.

-Eu? Com os espias e as agências de informação pagas pelo Azambuja? Da última vez que estive em Paris, Azambuja mostrou-me um dossier tão copioso que eu pensei no Affaire Dreyffus170. Qual, meu amigo, sou invulnerável. E rindo alegremente: já se vê que pour cause...

Saí varado, porque afinal não há nada mais impertinente do que encontrar realmente honesta uma mulher que não tem o direito de o ser, e indo pela Avenida Beira Mar a matutar naquela criatura excepcional encontrei o velho Justino Pereira, a passear também.

-Poesia?

-Não, idéias. Venho da casa da Irene.

-Boa pega!

-Oh! não, um espírito prático, incapaz de amar. Mostrou-me verdadeiras cascatas de cartas de amor.

-As mulheres nunca mostram todas as cartas. É o seu grande trunfo.

-Velho cético!

-Mesmo porque há cartas que os maridos e amantes podem ler, cartas desvairadas, sem sentido... Que cara a tua! Pareces criança. Pois meu tolo basta uma combinação prévia, basta uma chave do sentido oculto. Por exemplo: Hei de matar-te. Tradução: não deixes de vir. Peno há cinco anos. Tradução: preciso de dinheiro.

-Ora o fantasista! Não me vá dizer que a Irene tem amantes.

-E se disser que tem mesmo uma espécie de gigolô, a quem sustenta?

Indignado, como se fosse uma questão de honra pessoal, estaquei.

-Sr. Justino Pereira, nada de calúnias. Irene está acima de maledicência. O senhor calunia e é pelo menos incapaz de nomear o tal gigolô.

-Oh! filho, fez Justino a sorrir. Soube-o por um acaso, não tenho que guardar. É até um lindo rapaz, corpo de esgrimista, olhos devoradores. Nasceu em S. Paulo, chama-se Vitorino Maesa e partiu há dois meses para a Itália.

Como me visse pálido, aturdido, sem saber o motivo daquela emoção, sem saber que como um imbecil eu tivera a carta na mão:

-Estás apaixonado? Contrariei-te? Todas as mulheres são excepcionais quando se lhes quer prestar atenção. Mas no mundo não há uma que não tenha um segredo simples, que lhe mostra um reverso inteiramente diverso da aparência...

E desatou a rir enquanto eu esforçava-me por fazer o mesmo.

A mais estranha moléstia

A Afrânio Peixoto.


Era o momento verde, o momento do aperitivo outrora absinto171, hoje uma série de envenenamentos de cores variadas e de nomes ingleses, a que a leve estética sem inventiva dos cafés e das confeitarias continuava de chamar sempre o momento da água glauca. Por hábito, sentara-me a uma das mesas do terraço de confeitaria, os olhos perdidos na contemplação da Avenida, àquela hora vaga tão cheia de movimento e de ruído. No asfalto da rua era a corrida dos carros, apitos, trilos, largo bater de patas de cavalos, chicotadas estalando no pelo das magras pilecas172 dos tilburis, carroções em disparada, cornetas de automóvel buzinando arredas173, gente a correr, ou parada nos refúgios, à espera de um claro para poder passar, o estrépito natural do instante, à hora da noite nas cidades. Nas calçadas uma dupla fila de transeuntes sempre a renovar-se, o cinema colossal de homens das classes mais diversas, operários e dândis, funcionários públicos e comerciantes, ociosos e bolsistas, devagar ou apressados ao lado de uma multicor galeria de mulheres, a teoria infinita do feminino para todos os gêneros: pequenas operárias, cocottes notáveis, senhoras de distinção, meninas casadeiras, simples apanhadoras de amor. As sombras, a princípio de um azul furfureáceo174, depois de um cinza espesso, iam preguiçosamente espalhando o veludo da noite na silhueta em perspectiva das grandes fachadas. À beira das calçadas, a pouco e pouco os pingos de gás dos combustores175 formavam uma tríplice candelária de pequenos focos, longos rosários de contas ardentes, e era aqui o estralejamento surdo das lâmpadas elétricas de um estabelecimento; mais adiante, o incêndio das montras176 faiscantes, de espaço a espaço as rosetas como talhadas em vestes de arlequins dos cinematógrafos, brasonando177 de pedrarias irradiantes as fachadas. Ah! os contos de fadas que são as cidades! Os meus olhos se fixavam na confusão mirionima das cores, vendo em cada roseta um caleidoscópio, sentindo em cada tabuleta o sonho postiço de um tesouro de Golconda, a escorrer para a semi-opacidade da noite cascatas de rubis, lágrimas de esmeraldas, reflexos cegadores de safiras, espelhamentos jaldes178 de topázios, e eu recordava outras cidades, outras casas, o eterno boulevard, suprema orquestração do bom gosto urbano. Que fazer? Os meus olhos descansaram na multidão.

Algum tempo depois reconheci, como tendo perdido alguma coisa, os olhos à procura, o nariz ao vento, o delicado Oscar Flores, um ente muito fino, muito sensível, do qual diziam horrores e que de resto parecia ter na alma um fatigante segredo. Os segredos fizeram-se para ser contados. Tudo vai de ocasião. Que estaria Oscar Flores, com a sua palidez e as suas lindas mãos, a procurar assim? Esperei alguns minutos olhando a ver se via a causa daquela aflição e por fim, quando o jovem se resolvia a continuar, chamei-o ruidosamente. Ele voltou-se, como se fosse apanhado em flagrante. Estava visivelmente contrariado.

-Vem daí tomar um aperitivo.

-Não, obrigado. Tenho que fazer.

-Pois se já perdeste a pessoa a quem acompanhavas?...

-Viste? fez ainda mais pálido.

-Vi, isto é -sossega- vi que procuravas alguém.

Ele teve um suspiro, deixou-se cair na cadeira. Já agora tomava um cock-tail. O seu caso porém era outro. E fechou-se num silêncio nervoso, cortado de sobressaltos, alheado de mim -o seu habitual silêncio em todas as rodas, como sempre à espera de um sinal misterioso para partir e desaparecer. Olhei-o então com vagar. Era encantadoramente lindo com o seu ar de adolescente de Veroneso, a pele morena, o negro cabelo anelado. Como devia ser feliz assim rico e belo, com a sua bengala de castão de turquesa, a gravata presa de um raro esmalte, a atitude inquieta de um príncipe assassino e radiante, o Oscar Flores! E falavam tanto mal dele! Disse-lhe, íntimo e confidencial:

-Então, Oscar, onde estás? É por isso que te caluniam...

-Ah! tornou sorrindo, ainda falam de mim?

-Cada vez mais. És o leit-motiv da falta de assunto. De resto ha sempre na voz do povo um pouco de razão. Estou a acreditar que realmente tens um segredo. Ora os segredos deixam-se para as mulheres e para os homens sem interesse, os homens vulgares...

-Mas não tenho segredos, protestou cansado. Tenho apenas a mais estranha moléstia nervosa -que ninguém sabe. Curioso, hein? Diante de mim toda a gente sente a anormalidade, outra esfera, outra vibração. Que será? Os mais espessos -e dessa espessura intelectual se faz a opinião da massa- pensam logo nas degenerações normais, no centro das loucuras que é a cidade. E não é nada disso, é outra coisa -é a minha moléstia. A existência concentro-a nela, no desejo de doma-la e na irresistível vontade de satisfaze-la. Tenho estudado, tenho lido, tenho feito observações a ver se encontro outro tipo igual. Absolutamente impossível..

Tomou um gole de cock-tail com evidente prazer, sorriu mais acalmado.

-Todos pensam que é um segredo porque ninguém imagina. E eu sofro desde criança. A princípio, na mais tenra idade, apareceu como escandalosa precocidade; até a adolescência tive-o como um crime horrível, castigo e prazer do pecado. Com a razão -porque eu sou um sujeito muito razoável e muito refletido- vim a descobrir que era um desequilíbrio dos sentidos, a exaltação lírica, o desenvolvimento assustador de um dos sentidos, capaz de dominar os outros, submete-los e virar aos poucos em fonte de todos os prazeres, em único foco das sensações agradáveis, em tirano da impalpável luxúria.

Já decerto conversaste com os artistas jovens, os que falam na realização da arte, no ideal que jamais se corporifica e é na nossa alma como o perpétuo sonho irrealisável. A minha moléstia, o meu desequilíbrio, o império de um único sentido no meu organismo e nesta sensibilidade caldeado numa ascendência de requintados, deu-me da vida íntima uma prévia noção incorpórea, deslocou-me para um mundo de fantasia exasperante, fez-me o lascivo da atmosfera, o gozador das essências esparsas, o detalhador do imponderável, o empolgado da miragem da vida.

Emborquei tranquilamente o veneno que me tirava o apetite, e murmurei:

-Meu caro Oscar, tenho uma profunda simpatia por ti, em primeiro lugar porque és belo, em segundo porque tens espírito, em terceiro porque nem a beleza nem o espírito conseguiram reduzir-te à atroz banalidade de ser totalmente feliz. Daí o poder ouvir sem comentário todas as narrativas lindas com que me queres honrar. Esse teu desequilíbrio é de fato de uma psicologia muito sutil, muito trabalhada.

Oscar teve um gesto de impaciência.

-Quando digo! É tão inverossímil que ninguém acreditaria. Entretanto tens diante de ti o homem que analisa o seu tormento e não lhe resiste. Sabes que é o sentido soberano? O olfato, apenas o olfato. Sou como o escravo, o ergastulado179 do cheiro. Tudo é cheiro. É o cheiro que guia, repele, atrai, repugna, o cheiro é o condutor das almas. As nossas impressões são filhas do cheiro que atua como a luz e muito mais porque há cegos e não há ser vivo que não respire e não sinta o cheiro. O cheiro plasma, porque está no ambiente. Os caracteres dos homens são feitos de essências, as profissões dão aos entes certos e determinados cheiros. Vive oito dias numa casa de perfumes ou no boudoir180 de uma mulher galante, e as tuas idéias tomam o aspecto de idéias com pó de arroz, de idéias efeminadas, made expressely181 para uma certa roda pueril. Sente o cheiro dos marinheiros, com o cheiro do mar e três ou quatro escalas de cheiros de óleos refrescados pela viração larga. Um homem sensível não pode viver muito tempo nesses lugares porque o cheiro permanente dá-lhe como uma continuidade da visão oceânica e um estado trepidante que lembra a vagabundagem de grandes navios por mares ignotos. A alma dos entes revela-se pelo cheiro. A das coisas também, só pelo cheiro. Conheço os interiores das casas, o gênero, a classe das pessoas que as habitam pelo cheiro, como de olhos fechados dir-te-ei a casa vazia apenas aspirando-a. Posso mesmo dizer-te que cada cidade tem um cheiro próprio, e que eu os sinto ao aproximar-me, ao saltar no desembarcadouro, cheiros que conseguem dar a impressão geral dos habitantes, cheiros honestos, cheiros voluptuosos, cheiros de seio...

-Mas, realmente, é delicioso.

-É atroz.

-A hiper-acuidade de um sentido dirigida com estética. És o homem dos perfumes.

-Não me fales de perfumes, do perfume com a significação normal de extrato fabricado para o mercado. É outra coisa. Sou a vítima do cheiro. Para mim não há cheiros repugnantes, há cheiros desagradáveis. Tenho a sensualidade dos cheiros os mais diversos, do cheiro da terra, do cheiro da erva, do cheiro dos estábulos e do cheiro das rosas. Como comecei a sofrer desse desenvolvimento paroxismado do sentido olfativo? Sei lá! Não foi o perfume, foi a extensão vasta dos cheiros que não são perfumes. Em criança, antes de levar qualquer gulodice à boca, instintivamente cheirava-a de olhos cerrados, para sentir bem e prelibar deliciosamente o prazer de degusta-la. Depois, quando me tomavam ao colo, ao beijar-me, achava sempre meio de cheirar, de aspirar as pessoas agradáveis. Cada Pessoa tem um cheiro diverso. Na minha infância a perversão -se-lo-á de fato?- surgiu ensinando-me todo o pecado. Gostei da carne porque cada nuca é um pouco do olor da natureza, e há bocas que são como orquestrações de odores. Ah! esse tempo ainda ingênuo, esse tempo instintivo... Eu me envolvia nas roupas brancas que as raparigas já tinham usado, pendia para as cabeleiras com tal ânsia aspiradora, tinha uns modos tão pouco normais que a família se assustava e as raparigas achavam uma infinita graça. Ah! que pequeno vicioso! Elas diziam convencidas de que eu gostava apenas do cheiro das suas roupas. Não era, porém. A minha nevrose olfativa se acentuava cada vez mais, cada dia mais com caráter desabridamente sensual, e já rapazola, não distinguia o que me poderia conceder o prazer: a erva molhada, o cheiro dos estábulos, um cheiro de nuca, um cheiro de corpo, e já começava a sentir as cruciantes necessidades de certos cheiros, que eram tão violentas quanto a fome ou o amor. Então era preciso alhear-me, deixar a roda dos conhecidos, sair por aí a ver se descobria o cheiro que eu precisava, o cheiro que não sabia qual era, mas devia tranquilisar-me.

-Tinhas a obsessão de um cheiro nunca sentido?

-Exatamente. Ainda era romântico e até aos dezoito anos tentei com um pouco de literatura e alguns conhecimentos químicos, o prazer dos perfumes, dos cheiros artificiais. Arranjei catálogos, estudei longamente, tive baterias de perfumes em frascos de cristal, fiz como todo sujeito lido em livros franceses, a sinfonia dos perfumes, a alegoria dos perfumes, a pintura sugestiva dos perfumes, combinando essências, renovando as camadas de ar do aposento com pulverizadores cheios de misturas sábias ao lado de incensários a queimar olências exóticas. Era perturbador e era irritante. O meu olfato desejava, tal as marafonas que a sorte eleva ao grande luxo, excessos de natureza, virilidades de ambiente. Esses perfumes que as mulheres usam, esses perfumes com que vocês se civilizam e se friccionam são ignóbeis. Na composição química da enorme quantidade por mim aspirada senti apenas que poderia fazer um catálogo, dividindo em classes de almas a diversa temperatura: perfumes quentes, semi-oleosos, perfumes tépidos, perfumes frios. Os perfumes de Haubigant dão sempre a impressão de calidez, de calor opressivo. Os ingleses e os americanos fazem-nos frios, desses que a gente ao aspirar pensa em águas geladas e madrugadas hibernais. Meia dúzia de refinados franceses conseguem a meia temperatura, evolando-se lentamente. E há também os medíocres, os reles, os que lembram montras de boulevards em blefes de luxo e de conforto, elegâncias por todo o preço de armazéns duvidosos.

Quer uns quer outros, entretanto, acabaram por me fazer mal, dores de cabeça, apertões nas têmporas, uma impressão angustiosa de acachapamento. Mas era muito artista. Um amigo, de volta do Oriente, trouxe-me então uma coleção de perfumes. Eram maravilhosos. Andei doente e morno, com uma alma de serralho182e de mel por aspirar um frasco de essência de rosas. Esses perfumes entravam-me no crânio como estofos bordados de pedraria, como broqueis encrustrados de gemas coruscantes. Deixavam-me sonambúlico, com frases de antifonário183e sonhos de rosas de Shiraz, de Kernar, de Kashmir. Vi então que a minha doença não amava as concentrações mais ou menos industriais.

-Príncipe encantador, havia as flores...

-Sim, as flores, amei as flores, tateando na sombra do mal. As flores são as caçoulas184dos perfumes naturais. A natureza condensa nelas o olor das suas paixões, a alma dos seus desejos, as recordações das tonturas, de frenesis ou de grandes repousos celestes. Não sorrias. O que eu sinto não o dizem palavras. É preciso descobrir frases prismáticas como certos cristais e vê-las à luz do sentimento, que percebe para além das coisas visíveis. Os deuses gostavam de perfumes; o perfume exorta e exalta. Porque lisonjear os deuses com perfumes, se não tivéssemos a idéia do sacrifício, do grande pecado da natureza, que ele representa? Há flores cujo perfume é cínico, outras cujo cheiro é banal, outras cujo olor se celestisa, outras ainda que nos dão desesperos de carne. É possível ter à lapela uma gardênia sem sentir cefalalgias185 horas depois? É possível cheirar certas rosas sem odia-las?

-Mas, meu querido, procuras apenas pretexto para dizer coisas infantilmente interessantes. Olha que antes de ti outros estetas falaram... Odiar as rosas!

-Sim! Odia-las. Há flores carnudas, as rosas rosas, as rubro negro como sangue coagulado, que a gente aspira, absorve o odor, cheira, cheira, e depois estraçalha com ódio porque prometem mais do que dão, porque deixam em meio o gozo, não nos completam o prazer anunciado pelo cheiro. Ah! essa aflição que dá aos sentidos o cheiro de algumas flores, as violetas, cujas emanações são como sons de violino em noites de luar, as tuberosas, crispantes de cio, as rosas chá que cheiram como carnes morenas, o resedá, a flor do resedá que o Fezensac cantou idiotamente num trocadilho e que entretanto guardam um frio e exasperante odor de gérmen fecundante, cheiro de marfim raspado... E, para notares a correspondência de cheiros idênticos nas coisas mais diversas, a flor que cheira a marfim, é também, cheiro resumo do cheiro inicial da vida, irmão odor do odor da semente criadora, estranhamente perdido entre as ervas...

Oscar caíra num abatimento. Eu começava a temer o delírio.

-Então, se não amas os perfumes que te fazem mal, se odeias as flores que te exasperam, em que consiste o desproporcional domínio do olfato sobre os teus sentidos? É decerto um estado de anemia, uma grande fraqueza que te adoece e te faz sensível aos odores. Não amas os cheiros, temes todos os cheiros desde que eles se especializam, se individualizam.

-Ao contrário, fez, de novo animado, ao contrário. Tenho entre mim e a vida comum um como véu de talagarça186espessa. E tudo quanto na vida se faz, eu sinto pelo cheiro, pelos cheiros, como um setter187 humano, amarrado à corrente da conveniência. É a existência de miragem olfativa, uma existência em que os cheiros visionam ambientes, descrevem as almas dos tipos que me rodeiam, dão-me sensações de cor, porque há odores de todas as cores; de sons, de músicas, porque cada cheiro é como um som diverso e o cheiro da baunilha é bem uma nota abemolada diversa do cheiro do cravo vermelho, esse sustenido de clarim; de gosto, porque os cheiros têm gosto; de excitação, porque todos os sentidos calcados por tamanha acuidade vibram a arcada furiosa de um desejo incompreensível, perpétuo, demoníaco, no meu pobre corpo. Oh! não estejas a olhar para mim assim irônico. Há uma íntima correlação entre as sensações do homem normal, que o faz amar a harmonia das coisas e o faz pensar na beleza esplendente. Quando ele ama e sente assim, na floração da arte, que é o arrimo da vida, minhando o seu pensamento sutil e vaga essa misteriosa afinidade entrelaça os sentidos, para que o homem sinta numa curva de anca a música das linhas, na carne de uma espádua o perfume da rosa, no entreabrir de um lábio o sabor dos frutos, na criatura que se desnuda o bruto. Desejo cego, caos das sensações... Quando é como eu, porém vítima de um só sentido, morbidamente absorve os outros e leva louco, no delírio perpétuo, a tentar reaver a harmonia.

-Daí...

-Daí, fez Oscar afastando nervosamente o cock-tail em meio, daí para a minha sensibilidade compreender que a natureza é inconsciente, que todos esses perfumes elas os espalhou brutalmente, desvairadamente, e que só um instante a razão lhe voltou, quando fazia a carne, quando criava a criatura, onde todos os cheiros da terra se encontram em suaves nuanças. O que eu amo é o olor da carne, sempre uma orquestração, uma sinfonia de recordações de outros cheiros, o cheiro das bocas, o cheiro dos cabelos, o cheiro das nucas, o estonteante cheiro das axilas... Há cabelos, sabes? que relembram o aconchego arminoso dos ninhos dos pássaros, cabelos em que a gente se perde como num imenso oceano de olências reparadoras, cabelos musicais que fazem pensar em manacás e em magnólias, cabelos que são o tecido de todos os cheiros reconfortantes. Há carnes douradas, carnes feitas de leite e de sangue de cerejas que ao aspira-las pensa um pobre no descanso dos bosques, em ragaes, em fraudas rústicas, em grandes abraços pagãos sobre as liras. E as bocas? Já reparaste nas bocas? Ha bocas quentes e frias, bocas sem cheiro algum, e bocas que quando falam junto a ti têm um cheiro intimo de rosa murcha, quando te beijam parecem feitas de pétalas de rosas, e quando as sugas transfundem a alma como uma essência especial que parece o mel feito de todos os perfumes dos campos. As criaturas são as ânforas da harmonia dos cheiros. Cada carne tem o seu corpo odico que é o cheiro, cada ser faz-me sentir a alma pela veste incorpórea do cheiro, desse cheiro que cada um tem próprio e jamais igual ao do outro, do cheiro que se procura para aquietar e amar...

-Realmente, com um pouco de toilette, cada qual faz o seu cheiro.

-Não! não é isso. Talvez pela toilette e a perfumaria sejam-me indiferentes as formosas mulheres que deixam rastileos188 de perfumes industriais e parecem feitas para os retratos de Heleu ou do Amoedo. Não as amo, porque, maceradas de essências, com os vestidos pulverisados de perfumes, a boca lavada por águas e pós brilhantes, os lábios carminados, a face empoada, são como os manequins da moda. O cheiro é a alma dos seres. Elas afogam a alma no artificial para encantar os simples, os brutais. Os meus instintos gelam-se, morrem em frente dessas baiadeiras189 mascaradas com a mascara transparente de outros cheiros. Houve um silêncio pesado.

-Ah! disse eu vendo a expirar a confissão, é grave...

Oscar olhou para mim, cândido como Adonis190, e cansado como se sustentasse nos ombros o mundo.

-Por isso, murmurou, procuro -é horrível!- procuro as criaturas simples, as que não se perfumam, as que ignoram o postiço ignóbil da civilização, e guardam o próprio cheiro: as crianças, as adolescências rústicas, as criaturas que saem do banho brilhando mais e cheirando mais, os que não sabem se cheiram bem porque pensam que o cheiro é a falsificação dos perfumistas. Um lindo corpo, um corpo branco, cor de leite, que tem todos os suspiros campinos das boninas, dos mal-me-queres, das margaridas, o sonho casto das violetas brancas e o anseio tranquilo, o cheiro animal de qualquer coisa que se não sabe! Um corpo moreno, feito de um raio de Sol, guardando a carnação das rosas e o cheiro da lascívia!... Beijar corpos assim, aspira-los, aspira-los... É quando há a simpatia do cheiro, que é o irmanamento das almas. Tudo quanto toca a pessoa fica com o seu cheiro, o lenço esquecido, um pedaço de móvel. Parta ela, desapareça, cheira aquele pedaço. O poeta sensual já escreveu:

Ela andou por aqui, andou. Primeiro

Porque há vestígios das suas mãos; segundo

Porque ninguém como ela tem no mundo

Este esquisito, este suave cheiro.



E é. De chofre, à calentura do cheiro dela, uma onda de gozo nos transmuda, faz-nos reviver delícias e nevroses da gama que se acordava com o teu desejo. É a música mortal. Que digo eu? A roupa? Os trastes? Não! Basta o lábio cansado de roçar, basta o contato das mãos pelo seu corpo. Nós não conhecemos a própria alma porque não sentimos o nosso cheiro, enigmas para nós mesmos indecifráveis. O cheiro dos outros fica, impera. De volta de um cheiro amado, é cheirar as mãos e sentir o olor do amor como um velador nos próprios dedos. Ah! não! E dizer-te que eu uma vez, há quatro anos senti esse cheiro, o cheiro do meu amor, numa criatura miserável, dizer que não me lembro das suas feições pelo muito que me lembro da completa satisfação do meu desejo, dizer que nunca mais a vi, que a procuro, que a procuro e jamais a encontro... Como queres tu que eu ouça as conversas idiotas, como queres tu que pense noutra coisa? Vou em busca do meu perfume, do perfume que amo, da urna desse sonho, do corpo dessa alma. E degringolo a razão, a moral, o respeito da sociedade, rolo o abismo dos lugares pouco distintos, dou-me a relações pouco brilhantes, aspiro todos os corpos a espera de um dia encontrar o perfume incomparável, a essência doce dessa carne de ouro.

-Curioso.

-A mais rara moléstia que ninguém sabe.

De repente, porém, os seus olhos chisparam. Ergueu-se. Sorriu.

-Espera um instante.

Sumiu-se apressado. Eu também sorri então. Não voltada. Alguém passara que se parecera com o seu cheiro. Pobre rapaz! Talvez fosse na desvairada luxúria o grande sensual do ideal. E talvez não, talvez fosse um louco. Somos todos loucos mais ou menos. Foi então que vi serem oito horas. Como o personagem do poema, Oscar procurava novos perfumes no seu cheiro ideal e os prazeres não sentidos, sempre mais amargos e menos consoladores. Ergui-me. Já com toda a Avenida, centenas de lâmpadas elétricas acendiam a sua grande extensão no clarão da luz, -«a mensageira da verdade visível»...

O carro da semana santa

A Elísio de Carvalho.


Para nós, vindos de peregrinar pelas igrejas, a luz Auer que iluminava o café era talvez desagradável. Ficáramos todos lívidos, com uma face de orgia. Sob o teto baixo, entre as mesas de mármore lustroso, os criados arrastavam os passos já meio exaustos, e como a sala fosse forrada de espelhos, velhos espelhos que reproduziam apagadamente os perfis, estávamos como num aquário, esquisitos, espectadores de uma cena em que tomávamos parte, em que nos víamos a representar noutro mundo -um mundo sem data, sem tempo, sem fim. Algumas vezes dávamos com um gesto nosso a desaparecer de súbito esburado pela falta de aço num pedaço de espelho, e era desinteressante, desoladoramente desinteressante. De resto, a noite fora curiosa. Éramos um pequeno grupo: dois homens que riam de tudo e pagavam a despesa, um menino com ares de Antino191 viçoso, cujos princípios todos ignoravam, um poeta obrigado a ser espirituoso, dois jornalistas, eu. Havia também um homem chamado Honório. Tomavamos uma mistura repugnante de álcoois variados e tínhamos vindo cansados de dar encontrões na última igreja. A quinta-feira santa dissolvera na cidade a impalpável essência da luxúria e dos maus instintos. Quanta coisa de profano, de sacrílego, de horrível havíamos visto no redemoinhar da turba pela nave dos templos? Fúfias dos bairros sórdidos esmolando com a opa das irmandades para o Senhor morto, bandos de rapazes estabelecendo o arroxo junto do altar-mor para beliscar as nádegas das raparigas, adolescentes do comércio com os olhos injetados roçando-se silenciosamente entre as mulheres, e mulheres, muitas mulheres, raparigas vestidas de branco de azul, de cores vivas, matronas de luto fechado, pretas quase apagadas em panos negros, mestiças cheirando a éter floral, com gargalhadinhas agudas, o olhar ardente, todas como que picadas pela tarântula do desejo. A dolorosa cerimônia tinha qualquer coisa da orgíaco, como em geral as cerimônias religiosas deste fim de raça, em que os instintos inconfessáveis se escancaram ao atrito dos corpos, nos grandes agrupamentos. Na Candelária, junto a uma das colunas, o rapaz que lembrava Antino tivera a lembrança de se colocar entre uma cabrocha e um alentado sujeito «para verificar o escândalo» dizia ele. Em S. Francisco, o cidadão Honório batera no ombro de uma espanhola de mantilha, apontando-lhe a porta, para dizer-nos quando já ela se sumia: «Uma nevrosada gatuna de carteiras pela semana santa». E nós estávamos afinal, naquele café do Carceler, perto de duas igrejas a comentar a extravagância sensual da multidão.

-Fazer horrores junto ao corpo do Senhor morto! Mas deve ser uma delícia! paradoxou o jovem ambíguo.

-Pois está visto! gaguejou um dos desconhecidos que pagara.

Nós sorriamos, fartos de igrejas e de sacrilégios, e íamos sair, quando o cidadão Honório, que até aquele momento não falara, murmurou:

-Tudo na vida é luxúria. Sentir é gozar, gozar é sentir até ao espasmo. Nós todos vivemos na alucinação de gozar, de fundir desejos, na raiva de possuir. É uma doença? Talvez. Mas é também verdade. Basta que vejamos o povo para ver o cio que ruge, um cio vago, impalpável, exasperante. Um deus morto é a convulsão, é como um sinal de pornéia192. As turbas estrebucham. Todas as vesânias193 anônimas, todas as hiperestesias ignoradas, as obsessões ocultas, as degenerações escondidas, as loucuras mascaradas, inversões e vícios, taras e podridões desafivelam-se, escancaram, rebolam, sobem na maré desse oceano. Há histéricas batendo nos peitos ao lado de carnações ardentes ao beliscão dos machos; há nevropatas místicas junto a invertidos em que os círios, os altares, os panos negros dos templos acendem o braseiro, o incêndio, o vulcão das paixões perversas. A semana santa! Tenho medo desta quinta-feira. Para quem conhece bem uma grande cidade, esse dia especial sem rumores, sem campainhas, é um tremendo dia em que os súcubos194 e os íncubos195voltam a viver. Até as ruas cheias de sombra parecem incitar ao crime, até o céu cheio de estrelas e de luar põe no corpo dos homens a ânsia vaga e sensual de um prazer que se espera.

Às palavras do cidadão Honório fizera-se em torno um espectante silêncio. O homem era pálido, de uma palidez bistrada. Estava vestido de preto e a sua mão exangue tinha no dedo mínimo como a quebra-lo um negro morcego de aço prendendo entre as garras o turvo brilho de uma opala. Só então reparamos que não ria e talvez assustasse almas menos céticas. Ele, de resto, após uma pausa, continuou sem que lho pedissem.

-Oh! sim! Tenho medo desta quinta-feira porque vocês vêm o vício aparente, o vício às claras, o vício que os jornais não noticiam apenas em atenção ao arcebispado. Eu vi o vício que se não vê e dá o calafrio do supremo horror, o vício misterioso e devorador rodando em torno das igrejas. Ha três anos acompanho-o. Ainda agora, ao sairmos da Candelária, lá estava ele na praça, fatal, definitivo, cruel, esperando...

Aquela confissão era a de um doente. O pequeno Antino abriu a polpa carnuda do lábio num sorriso de flor que desabrocha.

-Honório, que vício é esse? Fale. Morremos de curiosidade.

-O vício que ninguém vê? Conta lá.

-É o carro da semana santa.

-O carro? regougou196 um dos cavalheiros, é boa, é muito boa!

-Quem sabe? fez Honório pensativo. Depois, num repente: Há três anos, quinta-feira de endoenças197, resolvi sair à noite. Não deveria ter saído. Neste dia a cidade visita igrejas. Além das igrejas só a impressionam as confeitarias com os seus balcões de bombons e os botequins. Saí, entretanto, assim de preto, com um fraque idêntico. Estive numa confeitaria, hesitei alguns minutos, e afinal, como estivesse no largo da Carioca, comecei a subir para a igreja da Ordem 3ª.

Ia inconscientemente quase. Ao deixar a confeitaria, tinha o vago desejo de ver se encontrava qualquer coisa de interessante, e estava ali, de repente, com vontade de uma perversão qualquer, com o instinto de qualquer coisa de bem baixo, de bem vil, de bem indigno, em que refocilar o meu temperamento à solta. Talvez as luzes trêmulas, aquela gente que subia devagar e descia depressa, o cheiro de suor, de perfume barato, de cosméticos e de cera, o roçar da canalha, o contato do meu corpo com outros corpos, peles de mãos ásperas umas, algumas macias, sugestionassem os nervos do meu pobre ser; talvez apenas fosse o fundo de lama com que fomos todos feitos... O fato é que ao voltar a rua da Carioca, eu era um homem que deseja, cuja percepção da luxúria é mais aguda, cujos nervos vibram mais. Uma saia repuxada, o relevo forte de uma anca, Os encontrões brutais dos marçanos198 em traje de ver a Deus, dois olhos mais acesos, faziam-me parar, retroceder, pensar em frases, morder o bigode, andar devagar em torno dos vendedores de doces e de refrescos, excitado pela frescura das peles, pelos trechos de carne ocultos, com as têmporas a suar frio e um calor nas faces, uma palpitação... A vontade do acanalhamento devorava-me, e eu ao mesmo tempo que queria satisfaze-la, queria oculta-la.

Ninguém, todavia, dera ainda por aquela nevrose, quando senti perfeitamente dois olhos pregados nos meus movimentos. Onde esses dois olhos? Eu os sentia, eu os sentia bem. Onde? Voltei-me, observei, desconfiado. A turba rumorejava na semi-penumbra. Não havia ali cara que me olhasse. Só, perto do chafariz, dando àquele canto uma nota anormal, uma velha berlinda199com os stores200 arriados, parecia esperar alguém. Que berlinda, filhos! Lembrava um velho carro da Assistência. Era suja, era grande, era vasta, quase um leito. Na boléia o cocheiro parecia de pedra, e os stores de pano vermelho estavam imóveis. Estaria vazia? Esperava mesmo alguém? Dei uma volta indagadora em torno, e tive, oh! sim! tive a certeza de que ali dentro havia uma criatura, que ali vibrava estranhamente alguém, porque assim como sentira o calor, o fluido ardente de dois olhos fixos sobre mim, a descobrir-me a alma, sentia agora que a minha observação perturbava esses olhos. Quem estaria naquele carro? Quem? Um homem? Uma mulher? Quis falar ao cocheiro, mas, de repente, a berlinda pôs-se em movimento, desaparecendo pesadamente na rua do Uruguaiana.

Fiquei um instante trepidante, nervoso. Mas é um fato que quando as crises de pornéia da multidão agem sobre os nervos dos fracos, esses começam por desejar seguir alguém, seja quem for, com desejo flutuante, o seio indeciso e como que tocado também de uma curiosidade malsã pelo vício dos outros. O carro desaparecendo caiu-me uma vaga tristeza. Como seria agradável o que se fazia dentro, nas suas velhas almofadas! Larguei-me para a Candelária, que me pareceu um teatro tanta era a gente e tanta a luz elétrica, e estava lá roçando-me à turba, quando vi um conhecido. Saí então, à pressa, sem lhe dar tempo aos cumprimentos e às fatais perguntas; saí, mergulhei de novo nas ruas mal iluminadas, em que o luar punha uma suave pulverização de sonho. Iria a S. Bento, que tem um morro, árvores, mais sombras, mais recantos sugestivos, o Arsenal pegado e a vista do mar -o pai de todos os grandes vícios incomensuráveis...

Quando, porém, ia chegando ao Arsenal, lá dei com o carro outra vez, vasto como um quarto, com o cocheiro impassível e os stores vermelhos. A sombra cobria a calçada; no céu andava a lua num estendal201 de ouro pálido. Que esquisito peregrinar! que estranha peregrinação! Abriguei-me no desvão de uma porta. Passaram-se dez minutos assim, e era impossível apagar a ansiedade dos meus nervos para descobrir o enigma. A berlinda parecia tremer a capota empoeirada sob o sudário do luar. Depois, rodou devagar, como se tivesse uma alma e estivesse a disfarçar uma ação feia. Ao chegar ao escuro beco de Bragança parou, a portinhola abriu-se, uma sombra golfou, a então aí a berlinda precipitou a marcha. Deus! que seria aquilo? Um crime? Uma extravagância? A passeata de algum crente agonizando, que tivesse feito a promessa de arrastar a sua agonia aos pés de todos os corpos de Jesus expostos? Mas a sombra? Eu amo o horror das coisas inacreditáveis. Meti-me quase a correr pelo beco. No meu cérebro havia um escachoar de idéias...

Não encontrei a sombra, o vulto que eu vira sair do carro. E a procura-la, de rua em rua, com a face a queimar, fui até a igreja do Rosário. Como? Não sei. O sangue latejava-me nas têmporas, um suor viscoso molhava-me a palma das mãos. Quando dei por mim, tinha diante de mim a velha igreja, e ao canto esquerdo do templo, exatamente igual, tal qual, a velha berlinda. Concidência... Há desses encontros de gente que nunca se falará, em reuniões dominadas pelo vício. Não filosofei, porém. Fui ao cocheiro, querendo saber. -«Olá, camarada, desocupado?». -«Não», respondeu ele seco. -«Pago bem». -«Não posso, já disse». -«Tem alguém aí então?». O cocheiro cuspiu para o lado. «Ó seu, vá se pondo fora, se não quer que lhe aconteça alguma». Fiquei sem palavra e ele tocou.

Mas o desejo de conhecer a razão daquelas paradas à beira das igrejas era muito. Segui por onde vira perder-se a berlinda. «Ainda a vejo hoje!» pensava. E de fato, fui encontra-la quase ao fim da noite, em frente à catedral, do lado do largo do Paço. Não me aproximei. Era melhor esperar de longe. O trecho da rua ardia em luzes, tal qual como hoje. Vendedores ambulantes serviam com estrépito refrescos e doces. Gente de preto ia, vinha, passava, desdobrando pelas calçadas negras serpentes intérminas. Fuzileiros navais ébrios, malandros de calça bombacha, marinheiros, formavam grupos perigosos, fora da calçada. Criaturas ambíguas chispavam olhares desvairados de esguelha, no borborinho da populaça. De repente, o carro começou a mover-se, foi até a Rua Sete, depois embicou para a esquerda, para o lado dos jardins. Precipitei-me. A berlinda misteriosa acompanhava um marinheiro, forte homenzarrão hercúleo e jovem. Não havia dúvida. Era. Oh! se era! Ia devagar, devagar... O marinheiro, a princípio hesitava. Em seguida pareceu compreender a ínutilidade de fugir, relanceou os olhos a ver se o espreitavam, e seguiu bamboleando o passo -um passo que espera o chamado. Em frente ao Telégrafo parou, cortou pelo jardim, como se fosse para o ex-mercado. A berlinda rodou mais depressa pela primeira quebra dos jardins, e foi encontra-lo, já atravessando a rua para a rampa. Aí o rapagão estacou. O carro também. De dentro falaram, deviam ter falado, porque o marinheiro aproximou-se da portinhola que se abriu, tragando-o. Fiquei estarrecido, com tais palpitações que sentia no pescoço a artéria bater. Já a berlinda descia lentamente, como quem dá uma volta à espera de freguês. Perto de mim, meia dúzia de catraeiros olhavam com esse ar de mordente complacência que a canalha tem para receber as fraquezas da gente da alta. Compus a fisionomia, indaguei.

-É boa aquela do carro, hein?

-É danada! respondeu um dos tipos.

-O que admira é a resistência dela! exclamou outro.

-Como resistência?

-Pois v. s. não sabe? É a mulher do carro da semana santa. Já está muito conhecida. Vem sempre naquele carro e chama os que lhe agradam...

-E vocês vão?

-Rapaziada não respeita... ela paga bem.

-E são muitos?

-Ela só aparece na semana santa. Mas é até pela manhãzinha.

Recuei. Ali, naquele velho carro, rodando à beira das igrejas, uma Górgona de vício abria a fauce tragando as flores da ralé, gente que lhe servia de pasto a troco de dinheiro; naquele carro silencioso estorcia-se uma nevrose desesperada; naquela berlinda, misteriosamente a fúria de um súcubo, a ânsia de uma diabólica fundia nos braços um bando de homens com o desespero sensual despedaçador! Oh! o vício que se não vê! Essa criatura, essa criatura! E, há três anos, todas as quintas-feiras santas, acompanho a berlinda procurando vê-la, procurando encarar o polvo de luxúria, que lá dentro distende os tentáculos. Quem será? Uma senhora de sociedade? Uma perdida? Sei lá! Uma louca, uma desvairada, uma desgraçada, de que ninguém sabe o nome, de que ninguém talvez possa reconhecer o semblante, na rua, quando passa...».

-Delicioso caso! fez o efebo literato erguendo o corpo airoso, que recordava os pagens dos Valois.

Honório pôs-se de pé. Todos nós fizemos o mesmo em silêncio. A história impressionara, e principalmente a ele, ao Honório, ao próprio narrador. Talvez quisesse ainda rever a berlinda. O fato é que chegou à porta, consultou o relógio, e ia despedir-se, quando de súbito esticou a mão exangue, onde a opala lembrava o perturbado brilho de sua alma.

-Olhem, lá está ela, lá está... Era fatal... Ninguém sabe o que encerra. É o segredo das vítimas. Não. É o segredo dela apenas... Espera de certo alguém. Estão vendo? Naquele pedaço de sombra, junto à igreja... Ao lado há um beco. A vítima sairá do beco... Espantoso. Já ouvi dizer que é uma mulher com bexigas, outrora bela. Um dos convidados conseguiu, disse-me, ver-lhe a cara através do véu. Conta que é queimada. Mas não. Outros asseguram que tem pústulas. É a lenda. A opinião geral é mesmo a de ser uma formosa senhora de alta posição. Não! não é nada disso. É apenas o horrível vício que se não vê. A luxúria exasperada...

Nós olhávamos a sombra, nervosos, como à espera. Honório falava entrecortado, estava quase de cera, e parou subitamente de falar. Uma camisa branca surgira à portinhola da berlinda, parara. Era um adolescente. Vimos um gesto de negativa, vimos, apesar do gesto, a portinhola abrir-se, vimos o rapaz pôr o pé no estribo, ser como que puxado, e logo o ruído seco da portinhola.

-Mas é um crime! ganiu um dos senhores que pagavam as despesas.

-Quem sabe? fez frio o cidadão Honório.

Nesse momento as luminárias da igreja apagaram. Acabara a visitação ao Senhor morto. Havia a confusão natural nos fins de tais solenidades: gente apressada, senhoras nervosas por apanhar conduções, homens parados a ver se lhe agradavam as mulheres, gritos mais fortes de vendedores ambulantes, estalar de chicotes, carros, chamados, pragas. E, como a rua tivesse caído na sombra, já se sentia o luar da noite esplêndida iluminar os jardins intérminos, lá, mais longe.

O cidadão Honório despediu-se. O carro rodava devagar no meio da turba compacta. Era o mesmo carro de que ouvíramos a história, velho, sujo, vasto, lembrando a Assistência, o mesmo a levar o horror desesperado, a fúria da volúpia voraz. O pavoroso mistério do vício delirante...