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«Dom Casmurro»: a obra como espelho da própria obra

Ana Lúcia Gazzola





No artigo «Art as Technique», publicado em 1917, o crítico formalista russo Shklovsky afirma que a arte tem como objetivo eliminar o automatismo de nossa percepção, formado pelo hábito, e fazer-nos recobrar a sensação integral da vida. Toda técnica artística, portanto, se orienta para a criação de um processo de desfamiliarização. Através dos recursos técnicos, o autor apresenta uma visão estranha, não familiar, do objeto em questão, para aumentar a dificuldade e a extensão da percepção. A Arte afasta o objeto visado do automatismo da percepção, e esta passa a ser um fim estético em si mesmo.

Shklovsky distingue dois conceitos básicos no romance: a estória e o enredo. A estória é definida como a sequência cronológica e causal dos acontecimentos narrados, ou seja, a sequência linear que o leitor pode estabelecer em retrospecto. O enredo é a estória desfamiliarizada ou distorcionada no processo alinear da narração. É a apresentação artística que quebra a sequência natural da vida real. Recursos narrativos usados no enredo são, por exemplo, a interrupção da ação, antecipações e recuos, associação de fatos não relacionados sequencialmente, digressões, adiamento da narração de fatos previamente mencionados, transposição do prefácio, dedicatória ou capítulos, saltos cronológicos, narração de causas depois das consequências, uso de cenas interpoladas, narrações sem conclusão, expansão exagerada, etc. O uso desses recursos obriga o leitor a fixar sua atenção no processo técnico da narração e não na matéria narrada. Desta maneira, a percepção da obra literária como forma, como estrutura, é atingida, uma vez que o envolvimento do leitor a nível da estória diminui e como consequência cria-se um distanciamento estético. Através de constantes reflexões sobre o processo técnico em desenvolvimento, este é colocado em evidência, e a estructuração da matéria narrada passa ao ponto focal de visão.

Em Dom Casmurro, mais que em nenhuma outra obra de Machado de Assis, nota-se uma relação intrínseca entre a temática e a estrutura. A estruturação da matéria narrada visa alcançar a dois fins diferentes: por um lado, o distanciamento estético necessário para a percepção não automatizada do objeto apresentado; por outro lado, a estructura é um reflexo dos temas da obra, que se concretizam e se espelham nessa estrutura. Tudo -o ponto de vista, o tratamento do tempo, o processo narrativo-, as reflexões sobre este processo, tem como dupla finalidade desfamiliarizar a narração e apresentar os temas centrais do romance, a dúvida como força destruidora do ser humano, a impossibilidade de recuperar integralmente o passado e a fragmentação da experiência humana. A obra é, assim, un espelho da própria obra1, e o processo narrativo se transforma em uma concretização do processo fragmentado de reconstituição de experiências passadas através da memória, sempre sob o signo da dúvida e da ambiguidade. A inevitável subjetividade de toda e qualquer visão humana, incapaz de abarcar a realidade de maneira total ou objetiva, torna-se assim evidente no próprio processo narrativo, cujos detalhes o narrador ressalta continuamente.

Comecemos pelo ponto de vista, definido e explicado pelo narrador nos dois primeiros capítulos da obra. Neste romance Machado retoma o uso da primeira pessoa, sendo a história narrada por uma das personagens principais. Intencionalmente, o autor evita a omnisciência para eliminar a possibilidade de que se crie qualquer ilusão de fidelidade a uma suposta verdade objetiva. A visão não omnisciente nos é dada por Bentinho, que apresenta os acontecimentos da maneira pela qual os experimentou e interpretou. As outras personagens e os fatos narrados aparecem apenas no plano da visão de Bentinho, que apresenta as dúvidas e ciúmes que minaram sua confiança em Capitu e que ocasionaram a ruptura entre ambos. A dúvida aparece, assim, como um componente causal no plano dos fatos narrados. Estabelece-se a perspectiva da dúvida em dois outros níveis. Em consequência do ponto de vista adotado, o leitor, assim como o narrador, tem apenas uma visão limitada e unilateral dos fatos, gerando-se a dúvida sobre os acontecimentos narrados e criando-se um clima de ambiguidade. O ponto de vista cria uma distancia entre a realidade e a reconstituição efetuada por Bentinho, sendo o primeiro elemento que visa a impedir o envolvimento emocional do leitor a nível da estória. Além de estabelecer a dúvida como elemento causal no plano dos fatos e como elemento estrutural, Machado dá a esse componente um valor temático. A dúvida é um dos temas centrais de sua obra. Contrariamente à visão científica e positivista da época, Machado acredita que não há verdades absolutas, e que toda experiência e conhecimento humano se colocam inevitavelmente sob o signo da dúvida. O homem tem apenas uma visão parcial da realidade. Nunca lhe é possível fazer uma análise ao mesmo tempo suficientemente abrangente e profunda que lhe permita tirar qualquer conclusão definitiva. A melhor maneira de mostrar tal limitação é a tomada intencional de um narrador personagem totalmente envolvido nos fatos narrados. A inevitável dúvida gerada pela incapacidade de omnisciência é concretizada assim na perspectiva adotada. A isto se deve o título da obra, que recebe o nome do narrador, embora este, como bem o notou Afrânio Coutinho2, seja uma personagem secundária no plano dos fatos. Cumpre, no entanto, fazer aqui uma ressalva. Embora Capitu seja a protagonista no plano dos fatos, Bentinho é a personagem mais importante do ponto de vista temático, pois é através dele que se manifestam os temas centrais da obra. O plano dos fatos é secundario neste romance. O que realmente interessa é a percepção subjetiva destes, e a reconstituição fragmentada e ambígua efetuada pela memória de Bentinho. Para corroborar esta afirmação, basta lembrar que o título da obra não é o nome real do narrador, mas a alcunha que resultou das transformações efetuadas em seu caráter e maneira de vida como consequência da amargura e solidão decorrentes dos acontecimentos narrados. A obra gira, assim, não em torno desses fatos e de Capitu, mas em torno da perspectiva que Dom Casmurro, não Bentinho, tem deles. Perdem assim o sentido as longas discussões sobre a «traição» de Capitu. Se para alguns críticos ela é a imagem da infidelidade radical da vida, mais que nada ela se transforma numa imagem viva da dúvida fundamental com a qual o homem se confronta a cada momento de sua existência. A relação de Bentinho e Capitu é apenas um exemplo da ambiguidade da vida sob a qual toda experiência humana se situa.

Todo o processo técnico é um espelho dessa dúvida. A narração é entremeada de reflexões do narrador, mostrando sua insegurança a respeito da fidelidade de sua reconstrução dos acontecimentos. A linha narrativa reflete esta insegurança: digressões, antecipações, retrocessos, reticências, elipses e associações se sucedem ininterruptamente, acompanhadas por reflexões sobre o próprio processo de apresentação. Segundo Eugênio Gomes, as reflexões em que a obra é o espelho de si mesma «se situam sob o instável ângulo em que a revelação do processo ténico de uma história se sobrepõe à realidade, que diligencia reconstruir»3 (história aqui corresponde ao enredo na terminologia de Shklovsky).

Portanto, neste romance, a estória mesma é empurrada para o «back-ground», e o enredo é desfamiliarizado. A estrutura desfamiliarizada revela, do ponto de vista do narrador, a insegurança que resulta da constatação de que tudo muda, e de que é impossível recuperar os fatos vividos de maneira integral. Como reflexo disto há a concepção artística de que a obra deve ser um constante voltar-se sobre si mesma, em um processo contínuo de análise, interpretação e correção, num movimento tão dinâmico quanto a vida.

As reflexões sobre o processo técnico da obra se iniciam no primeiro capítulo, em que o narrador justifica a escolha do título. Além de contar o incidente que deu motivo ao nome da obra, mostra a correlação que existe entre suas características pessoais e a alcunha recebida. No segundo capítulo Dom Casmurro discute os motivos que o levaram a escrever o livro, na tentativa de reconstruir o passado e com ele a ilusão perdida, para que esta alivie a solidão e o tedio do estado presente. Ou, em suas palavras, para «restaurar na velhice a adolescência»4. Esta é a sua segunda tentativa. Antes, mandara construir uma casa que reproduzisse a casa de sua infância. Nisto, porém, não fora bem sucedido, pois embora conseguisse reproduzir o aspecto externo da casa, não conseguiu captar o interno, as sensações vividas. Para tentar recuperar a realidade interior, Bentinho procura, através da casa e do livro, projetá-la no mundo exterior. No entanto, verifica ser impossível «recompor o que foi nem o que fui» (p. 37), pois «em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo» (p. 37).

O tema da impossibilidade de recuperar o passado se relaciona intimamente aos temas da dúvida e da fragmentação da experiência humana. O impulso de projeção através do qual o narrador tenta recuperar concretamente sua ilusão, perdida exige o de retroação, conforme explica Aderaldo Castelo5, pois só a adolescência foi feliz. Assim, o narrador quebra o tempo histórico da realidade objetiva, levando a que predomine o tempo do enredo, alinear, fragmentado, dependente da memória, e um elemento mais de desfamiliarização da narrativa. A reconstituição do passado depende portanto da memória como medida ou não de realização. No entanto, falha a memória, pois o ponto de vista nunca pode deixar de ser o do presente, e as fases da desilusão não podem ser esquecidas. O fracasso da memória não seletiva leva a que a tentativa de recomposição da primeira fase -a feliz- seja inevitavelmente marcada pela segunda -a da desilusão. Uma vez que o ponto focal do presente nunca pode ser abandonado, há, por assim dizer, um círculo formado pelo presente/passado/presente. O círculo se fecha, e embora permaneça a lembrança da desilusão, tal sentimento se neutraliza porque já decorreu muito tempo entre os fatos narrados e o momento da narração.

Esta distância cronológica é outro elemento causativo da falha da memória, e também se relaciona aos outros temas principais da obra. A incerteza de Bentinho revela que toda visão pessoal é fragmentada, e portanto ambígua. Sua insegurança se manifesta em dois níveis: primeiro, quanto à veracidade de sua interpretação dos fatos no momento em que os viveu; e segundo, quanto à veracidade de sua reconstituição dos fatos. O tempo passou, e a memória, em seu trabalho de reconstrução, pode estar sendo influenciada pela imaginação, pelo desejo de auto-justificação, e também pela tentativa de suprir lacunas causadas pelo esquecimento devido à passagem do tempo ou pela necessária limitação da visão humana. O narrador é bastante explícito a este respeito:

«Não, não, a minha memória não é boa. Ao contrário, é comparável a alguém que tivesse vivido por hospedarias, sem guardar delas nem caras nem nomes, e somente raras circunstâncias... Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com a das que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão. E antes seja olvido que confusão; explico-me. Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos... É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes preencher as minhas».


(p. 138)                


Tudo isso tem como consequência o constante refazer-se da narrativa e a sugestão de que o leitor participe da obra e preencha as lacunas existentes. Vejamos alguns exemplos de correção, interpretação e análise do processo narrativo através do qual se efetua a reconstituição dos fatos.

O narrador constantemente se refere aos recursos estilísticos que usa, justificando-se sempre por optar as vezes por um estilo demasiado enfático ou uma expressão exagerada. No entanto, as metáforas, hipérboles, repetições e ênfases são, segundo ele, uma exigência dos próprios fatos narrados. Embora o narrador prefira um estilo conciso e claro, e seja afligido por «um escrúpulo de exatidão», precisa daqueles recursos para recriar sentimentos vividos. Além do mais, tais figuras traduzem, por um lado, a incerteza de Dom Casmurro que, ao usá-las, deforma o fato objetivo numa tentativa de auto-justificação, e, por outro lado, a influência ativa que sua imaginação exerce sobre a memória. Ele próprio reconhece, no capítulo XL, que sua imaginação se parece às éguas iberas e qualquer coisa pode fecundá-la. Conforme explica Claude-Louis Estève, as metáforas (e podemos incluir aqui as hipérboles), são subjetivas e exprimem a atitude do desejo diante dos fatos. O sentido semântico se opõe ao sentido objetivo da palavra, como nossas ilusões interiores se opõem à realidade externa. O narrador, assim, exagera a realidade quanto ao tamanho, quantidade, extensão temporal, sempre se desculpando de seus excessos e mostrando que tal exagero é humano. Novamente é enfatizado o tema de que cada homem é a única medida de sua visão e de sua experiência pessoal.

Outro aspecto constantemente lembrado pelo narrador é o fato de que as palavras são insuficientes para reproduzir as sensações, e de que a língua humana não possui formas idôneas para a expressão do pensamento. Assim, por exemplo, ele invoca inultimente a «retórica dos namorados» para que lhe dê uma «comparação exata é poética para descrever os olhos de Capitu» (p. 90).

Aliada a essa limitação lingüística encontra-se a insuficiência e a falibilidade da memória. Já que os homens distorcem as sensações vividas quando tentam reconstituí-las, a obra de arte nunca vem a ser -nem pode ser- uma cópia fiel da realidade:

«Há alguma exageração nisto; mas o discurso humano é assim mesmo, um composto de partes excessivas e partes diminutas, que se compensam, ajustando-se. Por outro lado, se entendermos que a audiência aqui não é das orelhas, senão da memória, chegaremos à exata verdade».


(p. 144)                


O narrador várias vezes se refere ao fato de que a obra apresenta uma recriação do passado pelos olhos do presente:

«É claro que as reflexões que aí deixo não foram feitas então, a caminho do seminário, mas agora no gabinete do Engenho Novo».


(p. 91)                


Ou:

«Todo esse discurso não me saiu assim, de vez, enfiado naturalmente, como pode parecer do texto, mas aos pedaços, mastigado, em voz um pouco surda e tímida».


(p. 25)                


A obra, portanto, reorganiza as experiências vividas, e neste processo, inevitavelmente, as transforma. Assim, os fatos não são apresentados com fidelidade. Além disso, a memória é muitas vezes independente da vontade. A narrativa vai se formando não de maneira linear, como na realidade, mas à medida que a memória a reconstitui. A ambiguidade, portanto, é constante:

«Vou esgarçando isto com reticências, para dar uma idéia das minhas idéias, que eram assim difusas e confusas; com certeza não, dou nada».


(p. 136-137)                


O narrador vacila, pois o tempo passou, e atuou sobre a memória, tornando impossível recuperar as sensações. Tudo é fragmentado e relativo, tudo se perde, como o pregão das cocadas que Capitu esqueceu. Repetem-se os verbos crer, parecer, pensar, e o advérbio talvez, todos indicando esta dúvida constante do narrador: «Creio antes... sim... sim, creio isto. Creio que prima Justina achou no espetáculo das sensações alheias uma ressurreição vaga das próprias» (p. 74); «Há tanto tempo que isso sucedeu que não posso dizer com segurança se chorou deveras, ou se somente enxugou os olhos. Cuido que os enxugou somente» (p. 111). O próprio tempo é relativo: «Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve» (p. 91).

Também as elipses e reticências são recursos constantemente usados neste processo. Ambas são empregadas para tornar o estilo mais conciso, e ao mesmo tempo para obrigar o leitor a participar da obra, preenchendo lacunas deixadas propositadamente. Por outro lado, as elipses revelam que o tempo da narrativa não corresponde ao tempo real do fato narrado. Podemos citar os capítulos «Cinco Anos» e «Um Filho Único», em que um capítulo cobre um momento temporal longo, e casos em que ocorre o inverso, ou seja, o narrador indica que o tempo da narração é mais extenso que o da experência: «Tudo o que contei no fim do outro capítulo foi obra de um instante» (p. 57). As reticências, usadas especialmente com o objetivo de revelar a insegurança do narrador, deixam incompleto o pensamento e quebram, assim como as elipses, a linha narrativa, e colocam o tempo da narração em evidência.

Também associações, digressões e retrocessos são usados para interromper a linearidade da narração e torná-la fragmentada. Através destes recursos, revela-se o processo de reconstituição alinear da memória, que encadeia fatos diferentes, associa-os com outros fatos distantes cronologicamente, ou volta a fatos já narrados anteriormente, para reafirmá-los, completá-los ou explicá-los melhor. Os exemplos se multiplicam. O capítulo «É Tempo» retoma a narração do fato anunciado no capítulo II; há uma nova interrupção, com a digressão sobre a ópera, e a narração é retomada finalmente no capítulo XI; no capítulo «Em que se explica o explicado» o narrador explicitamente dirige o leitor a um ponto anterior da narrativa, chegando a indicar o número do capítulo; em «Anterior ao anterior» há outro exemplo desta técnica.

Toda a técnica narrativa neste romance é portanto usada com o objetivo de ressaltar o enredo e colocar a estória num plano secundário, criando-se, através do processo de desfamiliarização, a distância estética necessária para a percepção dos temas principais. A fragmentação da narrativa e a ambiguidade estabelecida pelo ponto de vista e por recursos estilísticos são um espelho estrutural destes temas.

Dom Casmurro: não a historia de Bentinho, Escobar e Capitu, mas a da visão humana na tentativa de apreensão da realidade e de imposição do subjetivo no objetivo, visão esta destinada a ser sempre ambígua, limitada e fragmentada.





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