Perseguido por todos os reveses,
5
É meu destino viver junto a essa asa,
Como a cinza que vive junto à brasa,
Como os Goncourts, como os irmãos siameses!
É com essa asa que eu faço este soneto
E a indústria humana faz o pano preto
10
Que as famílias de luto martiriza...
É ainda com essa asa extraordinária
Que a Morte -a costureira funerária-
Cose para o homem a última camisa!
Os mastins negros vão ladrando à lua...
5
O Cairo é de uma formosura arcaica.
No ângulo mais recôndito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.
O Egito é sempre assim quando anoitece!
Às vezes, das pirâmides o quedo
10
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!
Como um contraste àqueles misereres,
Num quiosque em festa alegre turba grita
E dentro dançam homens e mulheres
15
Numa aglomeração cosmopolita.
Tonto de vinho, um saltimbanco da Ásia,
Convulso e roto, no apogeu da fúria,
Executando evoluções de
razzia
Solta um brado epilético de injúria!
20
Em derredor duma ampla mesa preta
-Última nota do conúbio infando-
Vêem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.
Resplandece a celeste superfície.
25
Dorme soturna a natureza sábia...
Embaixo, na mais próxima planície,
Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.
Vaga no espaço um silfo solitário.
Troam
kinnors! Depois tudo é
tranqüilo...
30
Apenas como um velho estradivário,
Soluça toda a noite a água do Nilo!
Tarda-lhe a Idéia! A Inspiração lhe
tarda!
5
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...
É como o paralítico que, à
míngua
10
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
(À memória de João de Deus.)
Ah! ciechi! il tanto affaticar che giova?Tutti torniano alla gran madre anticaE il nostro nome appena si ritrova.
Petrarca
A água quieta do Tejo te abençoa.
10
Tu representas toda essa Lisboa
De glórias quase sobrenaturais,
Apenas com uma diferença triste,
Com a diferença que Lisboa existe
E tu, amigo, não existes mais!
15
Ah! jamais saberás ser superior,
5
Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,
Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia
Voando ao vento o vastíssimo vapor,
Rasgue a água hórrida a nau árdega e
singre-me!
E a verticalidade da Escada íngreme:
10
Homem, já transpuseste os meus degraus?!».
E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,
Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços
No pandemônio aterrador do Caos!
A frialdade dos círculos polares,
5
Em sucessivas atuações nefastas,
Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,
Estragara-lhe os centros medulares!
Como quem quebra o objeto mais querido
E começa a apanhar piedosamente
10
Todas as microscópicas partículas,
Ele hoje vê que, após tudo perdido,
Só lhe restam agora o último dente
E a armação funerária das
clavículas!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
5
Susceptibilidades de menina:
-«Não, não fora ela!»- E maldizia a
sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito...
10
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
Sem que te arranquem da garganta queda
5
A interjeição danada dos protestos,
Hás de engolir, igual a um porco, os restos
Duma comida horrivelmente azeda!
A sucessão de hebdômadas medonhas
Reduzirá os mundos que tu sonhas
10
Ao microcosmos do ovo primitivo...
E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,
Terás somente uma vontade cega
E uma tendência obscura de ser vivo!
Por que para este cemitério vim?!
5
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
10
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!
O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
5
Uma feição humana e outra divina
São como a eximenina e a endimenina
Que servem ambas para o mesmo feto!
Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!
Por justaposição destes contrastes,
10
Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,
Às alegrias juntam-se as tristezas,
E o carpinteiro que fabrica as mesas
Faz também os caixões do cemitério!...
Pau d`Arco, 4-V-1907.
I
Tenho estremecimentos indecisos
5
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!
Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladoras,
10
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também giram e redemoinham.
Os pães -filhos legítimos dos trigos-
Nutrem a geração do Ódio e da
Guerra....
Os cachorros anônimos da terra
15
São talvez os meus únicos amigos!
Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e
abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!
20
Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!
Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
25
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!
Quisera, antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d'Arco,
30
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
Mas a carne é que é humana! A alma é
divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
35
Beija a peçonha, e não se contamina!
Ser homem! Escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
40
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!
Barulho de mandíbulas e abdomens!
45
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
50
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo
casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
55
E o olho do estuprador se encha de bichos!
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!
60
II
O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um molusco,
Úmido, pegajoso e untuoso ao tato!
Reúnam-se em rebelião ardente e acesa
65
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!
O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
70
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!
Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto...Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
75
E a ampla circunferência das laranjas.
Ladra furiosa a tribo dos podengos.
Olhando para as pútridas charnecas
Grita o exército avulso das marrecas
Na úmida copa dos bambus verdoengos.
80
Um pássaro alvo artífice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De árvore em árvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semicolcheia.
Em grandes semicírculos aduncos,
85
Entrançados, pelo ar, largando pelos,
Voam à semelhança de cabelos
Os chicotes finíssimos dos juncos.
Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
90
E a alma dos vegetais rebenta inteira
De todos os corpúsculos do pólen.
A câmara nupcial de cada ovário
Se abre. No chão coleia a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
95
Num extravasamento involuntário.
Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome -Augusto-,
Possuir aí o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!
100
III
Pelo acidentalíssimo caminho
Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céu lembra uma lauda
Do mais incorruptível pergaminho.
Uma atmosfera má de incômoda hulha
105
Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Fede. O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.
Não sei que subterrânea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem côncavos vales,
110
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta à casa do finado
Tôca15!
Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outrora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
115
Que carregava canas para o engenho!
Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flores! Agora, em vez de flores,
Os musgos, como exóticos pintores,
Pintam caretas verdes nas taperas.
120
Na bruta dispersão de vítreos cacos,
À dura luz do sol resplandecente,
Trôpega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.
O cupim negro broca o âmago fino
125
Do teto. E traça trombas de elefantes
Com as circunvoluções extravagantes
Do seu complicadíssimo intestino.
O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas em grossos feixes rijos,
130
As lagartixas dos esconderijos
Estão olhando aquelas coisas mortas!
Fico a pensar no Espírito disperso
Que, unindo a pedra ao
gneiss e a árvore à
criança,
Como um anel enorme de aliança,
135
Une todas as coisas do Universo!
E assim pensando, com a cabeça em brasas
Ante a fatalidade que me oprime,
Julgo ver este Espírito sublime,
Chamando-me do sol com as suas asas!
140
Gosto do sol ignívomo e iracundo
Como o reptil gosta quando se molha
E na atra escuridão dos ares, olha
Melancolicamente para o mundo!
Essa alegria imaterializada,
145
Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro16,
É o pedaço já podre de pão
duro
Que o miserável recebeu na estrada!
Não são os cinco mil milhões de
francos
Que a Alemanha pediu a Jules Favre...
150
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!
Seja este sol meu último consolo;
E o espírito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
155
Só, com a misericórdia de um tijolo!...
Tudo enfim a mesma órbita percorre
E as bocas vão beber o mesmo leite...
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma forma que o homem morre.
160
Súbito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh'alma!
Sol brasileiro! Queima-me os destroços!
165
Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,
De pé, à luz da consciência infame,
À carbonização dos próprios
ossos!
A um poeta erótico.
Pau d`Arco, Agosto, 1907.
Quis saber que era o amor, por experiência,
5
E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,
Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,
Todas as ciências menos esta ciência!
Certo, este o amor não é que, em ânsias,
amo
Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
10
Amas, oposto a mim. Por conseguinte
Chamas amor aquilo que eu não chamo.
Oposto ideal ao meu ideal conservas.
Diverso é, pois, o ponto outro de vista
Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
15
Modo de ver, consoante o qual, o observas.
Porque o amor, tal como eu o estou amando,
É espírito, é éter, é
substância fluida,
É assim como o ar que a gente pega e cuida,
Cuida, entretanto, não o estar pegando!
20
É a transubstanciação de instintos
rudes,
Imponderabilíssima e impalpável,
Que anda acima da carne miserável
Como anda a garça acima dos açudes!
Para reproduzir tal sentimento
25
Daqui por diante, atenta a orelha cauta,
Como Marsias-o inventor da flauta-
Vou inventar também outro instrumento!
Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo
Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
30
Possam todas as línguas decliná-lo
Possam todos os homens compreendê-lo!
Para que, enfim, chegando à última calma
Meu podre coração roto não role,
Integralmente desfibrado e mole,
35
Como um saco vazio dentro d'alma!
I
A meu Pai doente.
Que coisa triste! O campo tão sem flores,
5
E eu tão sem crença e as árvores
tão nuas
E tu, gemendo, e o horror de nossas duas
Mágoas crescendo e se fazendo horrores!
Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,
Indiferente aos mil tormentos teus
10
De assim magoar-te sem pesar havia?!
-Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim
É bom, é justo, e sendo justo, Deus,
Deus não havia de magoar-te assim!
II
A meu Pai morto.
Madrugada de Treze de Janeiro.
15
Rezo, sonhando, o ofício da agonia.
Meu Pai nessa hora junto a mim morria
Sem um gemido, assim como um cordeiro!
E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!
Quando acordei, cuidei que ele dormia,
20
E disse à minha Mãe que me dizia:
«Acorda-o!». Deixa-o, Mãe, dormir
primeiro!
E saí para ver a Natureza!
Em tudo o mesmo abismo de beleza,
Nem uma névoa no estrelado véu...
25
Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,
Como Elias, num carro azul de glórias,
Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!
III
Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
30
Microrganismos fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra.
Duras leis as que os homens e a hórrida hidra
A uma só lei biológica vinculam,
E a marcha das moléculas regulam,
35
Com a invariabilidade da clepsidra!...
Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos
Roída toda de bichos, como os queijos
Sobre a mesa de orgíacos festins!...
Amo meu Pai na atômica desordem
40
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
5
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.
Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
10
Livre deste cadeado de peçonha,
Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza,
Ficar latindo minha dor medonha!
-Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
5
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minh'alma...
-Disse -e ajoelhou-se, numa rogativa:
Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
10
E quando a árvore, olhando a pátria serra,
Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!
Paraíba, 1909.
Acometido de uma febre estranha
5
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!
Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da
farda
10
A vontade do vômito plebeu...
E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.
Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
5
Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,
Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo
A gargalhada da última derrota!
A gaiola aboliu tua vontade.
Tu nunca mais verás a liberdade!...
10
Ah! Tu somente ainda és igual a mim.
Continua a comer teu milho alpiste.
Foi este mundo que me fez tão triste,
Foi a gaiola que te pôs assim!
-«Que esta alucinação tátil
não cresça!»
5
-Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.
É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
10
Minh'alma -este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!
Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
15
Na compreensão monística de tudo.
Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.
20
Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.
E eu saí a tremer com a língua grossa
25
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!
Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
30
Como uma cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.
A essa hora, nas telúrias reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
35
E a cimalha minúscula das ervas.
E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!
40
Bolia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.
As vegetalidades subalternas
45
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.
E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
50
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!
E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
55
Para a filogenética vingança!
A cidade exalava um podre báfio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elégias17 de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.
60
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.
A química feroz do cemitério
65
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um
geyser deletério.
Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
70
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.
Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu -coetâneo do horrendo cataclismo-
Era puxado para aquele abismo
75
No redemoinho universal das cousas!
Eu, ególatra céptico, cismava
5
Em meu destino!... O vento estava forte
E aquela matemática da Morte
Com os seus números negros, me assombrava!
Mas a alga usufrutuária dos oceanos
E os malacopterígios subraquianos
10
Que um castigo de espécie emudeceu,
No eterno horror das convulsões marítimas,
Pareciam também corpos de vítimas
Condenadas à Morte, assim como eu!
Pau d´Arco, 1904.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
5
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.
Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
10
E nesses templos claros e risonhos...
E erguendo os gládios e brandido as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Pau d´Arco, 1901.
Acostuma-te à lama que te espera!
5
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
10
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
Pau d´Arco, 1902.
Não podes?! Chama então presto o primeiro
5
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pôde domar o prisioneiro.
Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois um domador de hienas
10
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,
Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem..
E não pôde domá-lo, enfim,
ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!
Pau d´Arco, 1904.
A agonia do sol vai ter começo!
Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço
Preces a Deus de amor e de respeito
E o Ocaso que nas águas se retrata
10
Nitidamente reproduz, exata,
A saudade interior que há no meu peito...
Tenho alucinações de toda a sorte...
Impressionado sem cessar com a Morte
E sentindo o que um lázaro não sente,
15
Em negras nuanças lúgubres e aziagas
Vejo terribilíssimas adagas,
Atravessando os ares bruscamente.
Os olhos volvo para o céu divino
E observo-me pigmeu e pequenino
20
Através de minúsculos espelhos.
Assim, quem diante duma cordilheira,
Pára, entre assombros, pela vez primeira,
Sente vontade de cair de joelhos!
Soa o rumor fatídico dos ventos,
25
Anunciando desmoronamentos
De mil lajedos sobre mil lajedos...
E ao longe soam trágicos fracassos
De heróis, partindo e fraturando os braços
Nas pontas escarpadas dos rochedos!
30
Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore da perpétua maravilha,
35
À cuja sombra descansou Colombo!
Foi nessa ilha encantada de Cipango,
Verde, afetando a forma de um losango,
Rica, ostentando amplo floral risonho,
Que Toscanelli viu seu sonho extinto
40
E como sucedeu a Afonso Quinto
Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!
Lembro-me bem. Nesse maldito dia
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
45
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
E em cada rocha um cristalino veio.
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos,
50
E finalmente me cobri de flores...
Mas veio o vento que a Desgraça espalha
E cobriu-me com o pano da mortalha,
Que estou cosendo para os meus amores!
Desde então para cá fiquei sombrio!
55
Um penetrante e corrosivo frio
Anestesiou-me a sensibilidade
E a grandes golpes arrancou as raízes
Que prendiam meus dias infelizes
A um sonho antigo de felicidade!
60
Invoco os Deuses salvadores do erro.
A tarde morre. Passa o seu enterro!...
A luz descreve ziguezagues tortos
Enviando à terra os derradeiros beijos.
Pela estrada feral dois realejos
65
Estão chorando meus amores mortos!
E a treva ocupa toda a estrada longa...
O Firmamento é uma caverna oblonga
Em cujo fundo a Via-Láctea existe.
E como agora a lua cheia brilha!
70
Ilha maldita vinte vezes a ilha
Que para todo o sempre me fez triste!
Pau d´Arco, 1905.
E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
5
No lábio róseo a grande teta farta
-Fecunda fonte desse mesmo leite
Que amamentou os éfebos de Esparta.
Com que avidez ele essa fonte suga!
Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
10
Do que essa pequenina sanguessuga,
Bebendo a vida no teu seio gordo!
Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,
Essas humanas coisas pequeninas
A um
biscuit de quilate muito raro
15
Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.
Mas o ramo fragílimo e venusto
Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,
Há de crescer, há de tornar-se arbusto
E álamo altivo de ramagem grossa.
20
Clara, a atmosfera se encherá de aromas,
O Sol virá das épocas sadias...
E o antigo leão, que te esgotou as pomas,
Há de beijar-te as mãos todos os dias!
Quando chegar depois tua velhice
25
Batida pelos bárbaros invernos,
Relembrarás chorando o que eu te disse,
À sombra dos sicômoros eternos!
A Santos Neto.
Paraíba, 1906.
A passagem dos séculos me assombra.
Para onde irá correndo minha sombra
Nesse cavalo de eletricidade?!
Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
10
-Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?
E parece-me um sonho a realidade.
Em vão com o grito do meu peito impreco!
Dos brados meus ouvindo apenas o eco,
Eu torço os braços numa angústia douda
15
E muita vez, à meia-noite, rio
Sinistramente, vendo o verme frio
Que há de comer a minha carne toda!
É a Morte -esta carnívora assanhada-
Serpente má de língua envenenada
20
Que tudo que acha no caminho, come...
-Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,
Sai para assassinar o mundo inteiro,
E o mundo inteiro não lhe mata a fome!
Nesta sombria análise das cousas,
25
Corro. Arranco os cadáveres das lousas
E as suas partes podres examino...
Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,
Na podridão daquele embrulho hediondo
Reconheço assombrado o meu Destino!
30
Surpreendo-me, sozinho, numa cova.
Então meu desvario se renova...
Como que, abrindo todos os jazigos,
A Morte, em trajes pretos e amarelos
Levanta contra mim grandes cutelos
35
E as baionetas dos dragões antigos!
E quando vi que aquilo vinha vindo
Eu fui caindo como um sol caindo
De declínio em declínio; e de declínio
Em declínio, com a gula de uma fera,
40
Quis ver o que era, e quando vi o que era,
Vi que era pó, vi que era esterquilínio!
Chegou a tua vez, oh! Natureza!
Eu desafio agora essa grandeza,
Perante a qual meus olhos se extasiam...
45
Eu desafio, desta cova escura,
No histerismo danado da tortura
Todos os monstros que os teus peitos criam.
Tu não és minha mãe, velha nefasta!
Com o teu chicote frio de madrasta
50
Tu me açoitaste vinte e duas vezes...
Por tua causa apodreci nas cruzes,
Em que pregas os filhos que produzes
Durante os desgraçados nove meses!
Semeadora terrível de defuntos,
55
Contra a agressão dos teus contrastes juntos
A besta, que em mim dorme, acorda em berros;
Acorda, e após gritar a última injúria,
Chocalha os dentes com medonha fúria
Como se fosse o atrito de dois ferros!
60
Pois bem! Chegou minha hora de vingança.
Tu mataste o meu tempo de criança
E de segunda-feira até domingo,
Amarrado no horror de tua rede,
Deste-me fogo quando eu tinha sede...
65
Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!
Súbito outra visão negra me espanta!
Estou em Roma. Ë Sexta-feira Santa.
A treva invade o obscuro orbe terrestre.
No Vaticano, em grupos prosternados,
70
Com as longas fardas rubras, os soldados
Guardam o corpo do Divino Mestre.
Como as estalactites da caverna,
Cai no silêncio da Cidade Eterna
A água da chuva em largos fios grossos...
75
De Jesus Cristo resta unicamente
Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente
Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!
Não há ninguém na estrada da Ripetta.
Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
80
As luzes funerais arquejam fracas...
O vento entoa cânticos de morte.
Roma estremece! Além, num rumor forte,
Recomeça o barulho das matracas.
A desagregação da minha Idéia
85
Aumenta. Como as chagas da morféia
O medo, o desalento e o desconforto
Paralisam-me os círculos motores.
Na Eternidade, os ventos gemedores
Estão dizendo que Jesus é morto!
90
Não! Jesus não morreu! Vive na serra
Da Borborema, no ar de minha terra,
Na molécula e no átomo... Resume
A espiritualidade da matéria
E ele é que embala o corpo da miséria
95
E faz da cloaca uma urna de perfume.
Na agonia de tantos pesadelos
Uma dor bruta puxa-me os cabelos.
Desperto. É tão vazia a minha vida!
No pensamento desconexo e falho
100
Trago as cartas confusas de um baralho
E um pedaço de cera derretida!
Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
105
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
Meu coração, como um cristal, se quebre;
O termômetro negue minha febre,
110
Torne-se gelo o sangue que me abrasa,
E eu me converta na cegonha triste
Que das ruínas duma casa assiste
Ao desmoronamento de outra casa!
Ao terminar este sentido poema
115
Onde vazei a minha dor suprema
Tenho os olhos em lágrimas imersos...
Rola-me na cabeça o cérebro oco.
Por ventura, meu Deus, estarei louco?!
Daqui por diante não farei mais versos.
120
Pau d´Arco, 1904.
Não crê em nada, pois, nada há que traga
5
Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim não cabe
10
Na sua vida, é que essa mágoa infinda
Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda!
Pau d´Arco, 1906.
Não trago sobre a túnica fingida
5
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.
O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
10
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!
Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
15
Estou à espera de que o Sol desponte!
Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.
20
As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!
A Noite vai crescendo apavorante
25
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!
E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação...
30
É a luta, é o prélio enorme, é a
rebelião
Da criatura contra a natureza!
Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
35
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.
E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!
40
É natural que esse Hércules se esforça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.
Ah! Por todos os séculos vindouros
45
Ha de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!
Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é
improfícuo, em suma;
50
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher talvez capaz de amar-me.
O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
55
Onde morreram todos os doentes.
Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que
bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!
60
Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!
Que dentro de minh'alma americana
65
Não mais palpite o coração -esta arca,
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana!
Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
70
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!
Melancolia! Estende-me a tu'asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
75
Dize a este monstro que eu fugi de casa!
Pau d´Arco, 1905.
Que voz é esta que a gemer concentro
5
No meu ouvido e que do meu ouvido
Como um bemol e como um sustenido
Rola impetuosa por meu peito adentro?!
-Por que é que este gemido me acompanha?!
Mas dos meus olhos no sombrio palco
10
Súbito surge como um catafalco
Uma cidade ao mapa-mundi estranha.
A dispersão dos sonhos vagos reúno.
Desta cidade pelas ruas erra
A procissão dos Mártires da Terra
15
Desde os Cristãos até Giordano Bruno!
Vejo diante de mim Santa Francisca
Que com o cilício as tentações
suplanta,
E invejo o sofrimento desta Santa,
Em cujo olhar o Vício não faísca!
20
Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,
Depois de embebedado deste vinho,
Sair da vida puro como o arminho
Que os cabelos dos velhos embranquece!
Por que cumpri o universal ditame!?
25
Pois se eu sabia onde morava o Vício,
Por que não evitei o precipício
Estrangulando minha carne infame?!
Até que dia o intoxicado aroma
Das paixões torpes sorverei contente?
30
E os dias correrão eternamente?!
E eu nunca sairei desta Sodoma?!
À proporção que a minha insônia
aumenta
Hieróglifos e esfinges interrogo...
Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
35
Toda a alvorada esplêndida se ostenta.
Vagueio pela Noite decaída...
No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus
Vai projetando sobre os campos largos
O derradeiro fósforo da Vida.
40
O Sol, equilibrando-se na esfera,
Restitui-me a pureza da hematose
E então uma interior metamorfose
Nas minhas arcas cerebrais se opera.
O odor da margarida e da begônia
45
Subitamente me penetra o olfato...
Aqui, neste silencio e neste mato,
Respira com vontade a alma campônia!
Grita a satisfação na alma dos bichos.
Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
50
As árvores, as flores, os corimbos
Recordam santos nos seus próprios nichos.
Com o olhar a verde periferia abarco.
Estou alegre. Agora, por exemplo,
Cercado destas árvores, contemplo
55
As maravilhas reais do meu Pau d'Arco.
Cedo virá, porém, o funerário,
Atro dragão da escura noite, hedionda,
Em que o Tédio, batendo na alma, estronda
Como um grande trovão extraordinário.
60
Outra vez serei pábulo do susto
E terei outra vez de, em mágoa imerso,
Sacrificar-me por amor do Verso
No meu eterno leito de Procusto!
Espelham-se os esplendores
5
Do céu, em reflexos, nas
Águas, fingindo cristais
Das mais deslumbrantes cores.
Em fulvos filões doirados
Cai a luz dos astros por
10
Sobre o marítimo horror
Como globos estrelados.
Lá onde as rochas se assentam
Fulguram como outros sóis
Os flamívomos faróis
15
Que os navegantes orientam.
Vai uma onda, vem outra onda
E nesse eterno vaivém
Coitadas! não acham quem,
Quem as esconda, as esconda...
20
Alegoria tristonha
Do que pelo Mundo vai!
Se um sonha e se ergue, outro cai;
Se um cai, outro se ergue e sonha.
Mas desgraçado do pobre
25
Que em meio da Vida cai!
Esse não volta, esse vai
Para o túmulo que o cobre.
Vagueia um poeta num barco.
O Céu, de cima, a luzir
30
Como um diamante de Ofir
Imita a curva de um arco.
A Lua -globo de louça-
Surgiu, em lúcido véu.
Cantam! Os astros do Céu
35
Ouçam e a Lua Cheia ouça!
Ouça do alto a Lua Cheia
Que a sereia vai falar...
Haja silêncio no mar
Para se ouvir a sereia.
40
Que é que ela diz?! Será uma
História de amor feliz?
Não! O que a sereia diz
Não é história nenhuma.
É como um
requiem profundo
45
De tristíssimos bemóis...
Sua voz é igual à voz
Das dores todas do mundo.
«Fecha-te nesse medonho
Reduto de Maldição,
50
Viajeiro da Extrema-Unção,
Sonhador do último sonho!
Numa redoma ilusória
Cercou-te a glória falaz,
Mas nunca mais, nunca mais
55
Há de cercar-te essa glória!
Nunca mais! Sê, porém, forte.
O poeta é como Jesus!
Abraça-te à tua Cruz
E morre, poeta da Morte!».
60
-E disse e porque isto disse
O luar no Céu se apagou...
Súbito o barco tombou
Sem que o poeta o pressentisse!
Vista de luto o Universo
65
E Deus se enlute no Céu!
Mais um poeta que morreu,
Mais um coveiro do Verso!
Cantam nautas, choram flautas
Pelo mar e pelo mar
70
Uma sereia a cantar
Vela o Destino dos nautas!
Pau d`Arco, maio, 1907.
Do observatório em que eu estou situado
5
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, através do vidro azul, parece
Um paralelepípedo quebrado!
O sono esmaga o encéfalo do povo.
Tenho 300 quilos no epigastro...
10
Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta opressão desapareça
Vou amarrar um pano na cabeça,
15
Molhar a minha fronte com vinagre.
Aumentam-se-me então os grandes medos.
O hemisfério lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando à ação mecânica dos
dedos!
20
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquele semicírculo medonho!
Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
25
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, Sexta-feira, 3 de maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
A lâmpada a estirar línguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
30
Como um degenerado psicopata
Eis-me a contar o número das telhas!
-Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,
A conta recomeço, em ânsias: -Uma...
35
Mas novamente eis-me a perder a conta!
Sucede a uma tontura outra tontura.
-Estarei morto?! E a esta pergunta estranha
Responde a Vida -aquela grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura!
40
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as fases de um eclipse...
Começo a ver coisas de Apocalipse
No triângulo escaleno do ladrilho!
Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
45
Cinco lençóis balançam numa corda,
Mas aquilo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençóis desmancho.
Vêm-me à imaginação sonhos
dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa...
50
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!
Então dois ossos roídos me assombraram...
-«Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
55
E os formigueiros já nos desprezaram».
Figuras espectrais de bocas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro...
Choro e quero beber a água do choro
Com as mãos dispostas à feição de
conchas.
60
Tal uma planta aquática submersa,
Antegozando as últimas delícias
Mergulho as mãos -vis raízes
adventícias-
No algodão quente de um tapete persa.
Por muito tempo rolo no tapete.
65
Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cai sobre o meu estômago vazio
Como se fosse um copo de sorvete!
A alta frialdade me insensibiliza;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
70
Minha família ainda está dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
Abro a janela. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulcral Quarto Minguante
75
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratórios tênues tubos
Dos poros vegetais, no ato da entrega
Do mato verde, a terra resfolega
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
80
Côncavo, o Céu, radiante e estriado, observa
A universal criação. Broncos e feios,
Vários reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da úmida erva.
Babujada por baixos beiços brutos,
85
No húmus feraz, hierática, se ostenta
A monarquia da árvore opulenta
Que dá aos homens o óbolo dos frutos.
De mim diverso, rígido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
90
Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
95
Que festejou os funerais de Hamleto!
Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!
Quisera ser, numa última cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
100
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!
Mistêrios de um fósforo
Paraíba, 1910.
Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o
Depois. E o que depois fica e depois
Resta é um ou, por outra, é mais de um, são
dois
Túmulos dentro de um carvão promíscuo.
Dois são, porque um, certo, é do sonho
assíduo
5
Que a individual psiquê humana tece e
O outro é o do sonho altruístico da
espécie
Que é o
substractum dos sonhos do
indivíduo!
E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:
-«Cinza, síntese má da podridão,
10
Miniatura alegórica do chão,
Onde os ventres maternos ficam podres;
Na tua clandestina e erma alma vasta,
Onde nenhuma lâmpada se acende,
Meu raciocínio sôfrego surpreende
15
Todas as formas da matéria gasta!».
Raciocinar! Aziaga contingência!
Ser quadrúpede! Andar de quatro pés
É mais do que ser Cristo e ser Moisés
Porque é ser animal sem ter consciência!
20
Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima,
harto,
Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto
O amargor específico do absinto
E o cheiro animalíssimo do parto!
E afogo mentalmente os olhos fundos
25
Na amorfia da cítula inicial,
De onde, por epigênese geral,
Todos os organismos são oriundos.
Presto, irrupto, através ovóide e hialino
Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
30
Minha massa encefálica minguante
Todo o gênero humano intra-uterino!
É o caos da ávita víscera avarenta
-Mucosa nojentíssima de pus,
A nutrir diariamente os fetos nus
35
Pelas vilosidades da placenta!
Certo, o arquitetural e íntegro aspecto
Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele
Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele
Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!
40
É a flor dos genealógicos abismos
-Zooplasma pequeníssimo e plebeu,
De onde o desprotegido homem nasceu
Para a fatalidade dos tropismos:
Depois, é o céu abscôndito do Nada,
45
É este ato extraordinário de morrer
Que há de, na última hebdômada, atender
Ao pedido da célula cansada!
Um dia restará, na terra instável,
De minha antropocêntrica matéria
50
Numa côncava xícara funérea
Uma colher de cinza miserável!
Abro na treva os olhos quase cegos.
Que mão sinistra e desgraçada encheu
Os olhos tristes que meu Pai me deu
55
De alfinetes, de agulhas e de pregos?!
Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis.
Dentro um dínamo déspota, sozinho,
Sob a morfologia de um moinho,
Move todos os meus nervos vibráteis.
60
Então, do meu espírito, em segredo,
Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,
Na síntese acrobática de um salto,
O espectro angulosíssimo do Medo!
Em cismas filosóficas me perco
65
E vejo, como nunca outro homem viu,
Na anfigonia que me produziu
Nonilhões de moléculas de esterco.
Vida, mônada vil, cósmico zero,
Migalha de albumina semifluida,
70
Que fez a boca mística do druida
E a língua revoltada de Lutero;
Teus gineceus prolíficos envolvem
Cinza fetal!... Basta um fósforo só
Para mostrar a incógnita de pó,
75
Em que todos os seres se resolvem!
Ah! Maldito o conúbio incestuoso
Dessas afinidades eletivas,
De onde quimicamente tu derivas,
Na aclamação simbiótica do gozo!
80
O enterro de minha última neurona
Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar.
E esse acidente químico vulgar
Extraordinariamente me impressiona!
Mas minha crise artrítica não tarda.
85
Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,
Na abjeção embriológica da vida
O futuro de cinza que me aguarda!