Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.

Asa de corvo

Asa de corvos carniceiros, asa

De mau agouro que, nos doze meses,

Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes

O telhado de nossa própria casa...

Perseguido por todos os reveses,
5

É meu destino viver junto a essa asa,

Como a cinza que vive junto à brasa,

Como os Goncourts, como os irmãos siameses!

É com essa asa que eu faço este soneto

E a indústria humana faz o pano preto
10

Que as famílias de luto martiriza...

É ainda com essa asa extraordinária

Que a Morte -a costureira funerária-

Cose para o homem a última camisa!


Uma noite no cairo

Noite no Egito. O céu claro e profundo

Fulgura. A rua é triste. A Lua Cheia

Está sinistra, e sobre a paz do mundo

A alma dos Faraós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando à lua...
5

O Cairo é de uma formosura arcaica.

No ângulo mais recôndito da rua

Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egito é sempre assim quando anoitece!

Às vezes, das pirâmides o quedo
10

E atro perfil, exposto ao luar, parece

Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste àqueles misereres,

Num quiosque em festa alegre turba grita

E dentro dançam homens e mulheres
15

Numa aglomeração cosmopolita.

Tonto de vinho, um saltimbanco da Ásia,

Convulso e roto, no apogeu da fúria,

Executando evoluções de razzia

Solta um brado epilético de injúria!
20

Em derredor duma ampla mesa preta

-Última nota do conúbio infando-

Vêem-se dez jogadores de roleta

Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superfície.
25

Dorme soturna a natureza sábia...

Embaixo, na mais próxima planície,

Pasta um cavalo esplêndido da Arábia.

Vaga no espaço um silfo solitário.

Troam kinnors! Depois tudo é tranqüilo...
30

Apenas como um velho estradivário,

Soluça toda a noite a água do Nilo!


O martírio do artista

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,

A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,

Busca exteriorizar o pensamento

Que em suas fronetais células guarda!

Tarda-lhe a Idéia! A Inspiração lhe tarda!
5

E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,

Como o soldado que rasgou a farda

No desespero do último momento!

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...

É como o paralítico que, à míngua
10

Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos

Para falar, puxa e repuxa a língua,

E não lhe vem à boca uma palavra!


Duas estrofes

(À memória de João de Deus.)

Ah! ciechi! il tanto affaticar che giova?

Tutti torniano alla gran madre antica

E il nostro nome appena si ritrova.

Petrarca



A queda do teu lírico arrabil

De um sentimento português ignoto
5

Lembra Lisboa, bela como um brinco,

Que um dia no ano trágico de mil

E setecentos e cinqüenta e cinco,

Foi abalada por um terremoto!

A água quieta do Tejo te abençoa.
10

Tu representas toda essa Lisboa

De glórias quase sobrenaturais,

Apenas com uma diferença triste,

Com a diferença que Lisboa existe

E tu, amigo, não existes mais!
15


O Mar, a Escada e o Homem

«Olha agora, mamífero inferior,

À luz da epicurista ataraxia,

O fracasso de tua geografia

E de teu escafandro esmiuçador!

Ah! jamais saberás ser superior,
5

Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia,

Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia

Voando ao vento o vastíssimo vapor,

Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!

E a verticalidade da Escada íngreme:
10

Homem, já transpuseste os meus degraus?!».

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços,

Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços

No pandemônio aterrador do Caos!


Iguais às linhas perpendiculares

Caíram, como cruéis e hórridas hastas,

Nas suas 33 vértebras gastas

Quase todas as pedras tumulares!

A frialdade dos círculos polares,
5

Em sucessivas atuações nefastas,

Penetrara-lhe os próprios neuroplastas,

Estragara-lhe os centros medulares!

Como quem quebra o objeto mais querido

E começa a apanhar piedosamente
10

Todas as microscópicas partículas,

Ele hoje vê que, após tudo perdido,

Só lhe restam agora o último dente

E a armação funerária das clavículas!


Ricordanza della mia gioventù

A minha ama-de-leite Guilhermina

Furtava as moedas que o Doutor me dava.

Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava...

Via naquilo a minha própria ruína!

Minha ama, então, hipócrita, afetava
5

Susceptibilidades de menina:

-«Não, não fora ela!»- E maldizia a sina,

Que ela absolutamente não furtava.

Vejo, entretanto, agora, em minha cama,

Que a mim somente cabe o furto feito...
10

Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha...

Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,

Eu furtei mais, porque furtei o peito

Que dava leite para a tua filha!


A um mascarado

Rasga essa máscara ótima de seda

E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos...

É noite, e, à noite, a escândalos e incestos

É natural que o instinto humano aceda!

Sem que te arranquem da garganta queda
5

A interjeição danada dos protestos,

Hás de engolir, igual a um porco, os restos

Duma comida horrivelmente azeda!

A sucessão de hebdômadas medonhas

Reduzirá os mundos que tu sonhas
10

Ao microcosmos do ovo primitivo...

E tu mesmo, após a árdua e atra refrega,

Terás somente uma vontade cega

E uma tendência obscura de ser vivo!


Vozes de um túmulo

Morri! E a Terra-a mãe comum-o brilho

Destes meus olhos apagou!... Assim

Tântalo, aos reais convivas, num festim,

Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
5

Por quê?! Antes da vida o angusto trilho

Palmilhasse, do que este que palmilho

E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta

Construí de orgulho ênea pirâmide alta...
10

Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,

Hoje que apenas sou matéria e entulho

Tenho consciência de que nada sou!


A antítese do novo e do obsoleto,

O Amor e a Paz, o Ódio e a Carnificina,

O que o homem ama e o que o homem abomina.

Tudo convém para o homem ser completo!

O ângulo obtuso, pois, e o ângulo reto,
5

Uma feição humana e outra divina

São como a eximenina e a endimenina

Que servem ambas para o mesmo feto!

Eu sei tudo isto mais do que o Eclesiastes!

Por justaposição destes contrastes,
10

Junta-se um hemisfério a outro hemisfério,

Às alegrias juntam-se as tristezas,

E o carpinteiro que fabrica as mesas

Faz também os caixões do cemitério!...


Gemidos de arte

Pau d`Arco, 4-V-1907.


I

Esta desilusão que me acabrunha

É mais traidora do que o foi Pilatos!...

Por causa disto, eu vivo pelos matos,

Magro, roendo a substância córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos
5

E sinto, haurindo o tépido ar sereno,

O mesmo assombro que sentiu Parfeno

Quando arrancou os olhos de Dionisos!

Em giro e em redemoinho em mim caminham

Ríspidas mágoas estranguladoras,
10

Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras

Brônzeas, também giram e redemoinham.

Os pães -filhos legítimos dos trigos-

Nutrem a geração do Ódio e da Guerra....

Os cachorros anônimos da terra
15

São talvez os meus únicos amigos!

Ah! Por que desgraçada contingência

À híspida aresta sáxea áspera e abrupta

Da rocha brava, numa ininterrupta

Adesão, não prendi minha existência?!
20

Por que Jeová, maior do que Laplace,

Não fez cair o túmulo de Plínio

Por sobre todo o meu raciocínio

Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
25

Carinhos, com que guarda meus sapatos,

Por que me deu consciência dos meus atos

Para eu me arrepender de todos eles?!

Quisera, antes, mordendo glabros talos,

Nabucodonosor ser no Pau d'Arco,
30

Beber a acre e estagnada água do charco,

Dormir na manjedoura com os cavalos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.

Dorme num leito de feridas, goza

O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
35

Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! Escapar de ser aborto!

Sair de um ventre inchado que se anoja,

Comprar vestidos pretos numa loja

E andar de luto pelo pai que é morto!
40

E por trezentos e sessenta dias

Trabalhar e comer! Martírios juntos!

Alimentar-se dos irmãos defuntos,

Chupar os ossos das alimarias!

Barulho de mandíbulas e abdomens!
45

E vem-me com um desprezo por tudo isto

Uma vontade absurda de ser Cristo

Para sacrificar-me pelos homens!

Soberano desejo! Soberana

Ambição de construir para o homem uma
50

Região, onde não cuspa língua alguma

O óleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nódoas e sem lixos,

Subtraída à hediondez de ínfimo casco,

Onde a forca feroz coma o carrasco
55

E o olho do estuprador se encha de bichos!

Outras constelações e outros espaços

Em que, no agudo grau da última crise,

O braço do ladrão se paralise

E a mão da meretriz caia aos pedaços!
60

II

O sol agora é de um fulgor compacto,

E eu vou andando, cheio de chamusco,

Com a flexibilidade de um molusco,

Úmido, pegajoso e untuoso ao tato!

Reúnam-se em rebelião ardente e acesa
65

Todas as minhas forças emotivas

E armem ciladas como cobras vivas

Para despedaçar minha tristeza!

O sol de cima espiando a flora moça

Arda, fustigue, queime, corte, morda!...
70

Deleito a vista na verdura gorda

Que nas hastes delgadas se balouça!

Avisto o vulto das sombrias granjas

Perdidas no alto...Nos terrenos baixos,

Das laranjeiras eu admiro os cachos
75

E a ampla circunferência das laranjas.

Ladra furiosa a tribo dos podengos.

Olhando para as pútridas charnecas

Grita o exército avulso das marrecas

Na úmida copa dos bambus verdoengos.
80

Um pássaro alvo artífice da teia

De um ninho, salta, no árdego trabalho,

De árvore em árvore e de galho em galho,

Com a rapidez duma semicolcheia.

Em grandes semicírculos aduncos,
85

Entrançados, pelo ar, largando pelos,

Voam à semelhança de cabelos

Os chicotes finíssimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem

Nas árvores. O ar cheira. A terra cheira...
90

E a alma dos vegetais rebenta inteira

De todos os corpúsculos do pólen.

A câmara nupcial de cada ovário

Se abre. No chão coleia a lagartixa.

Por toda a parte a seiva bruta esguicha
95

Num extravasamento involuntário.

Eu, depois de morrer, depois de tanta

Tristeza, quero, em vez do nome -Augusto-,

Possuir aí o nome dum arbusto

Qualquer ou de qualquer obscura planta!
100

III

Pelo acidentalíssimo caminho

Faísca o sol. Nédios, batendo a cauda,

Urram os bois. O céu lembra uma lauda

Do mais incorruptível pergaminho.

Uma atmosfera má de incômoda hulha
105

Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte

Fede. O ardente calor da areia forte

Racha-me os pés como se fosse agulha.

Não sei que subterrânea e atra voz rouca,

Por saibros e por cem côncavos vales,
110

Como pela avenida das Mappales,

Me arrasta à casa do finado Tôca15!

Todas as tardes a esta casa venho.

Aqui, outrora, sem conchego nobre,

Viveu, sentiu e amou este homem pobre
115

Que carregava canas para o engenho!

Nos outros tempos e nas outras eras,

Quantas flores! Agora, em vez de flores,

Os musgos, como exóticos pintores,

Pintam caretas verdes nas taperas.
120

Na bruta dispersão de vítreos cacos,

À dura luz do sol resplandecente,

Trôpega e antiga, uma parede doente

Mostra a cara medonha dos buracos.

O cupim negro broca o âmago fino
125

Do teto. E traça trombas de elefantes

Com as circunvoluções extravagantes

Do seu complicadíssimo intestino.

O lodo obscuro trepa-se nas portas.

Amontoadas em grossos feixes rijos,
130

As lagartixas dos esconderijos

Estão olhando aquelas coisas mortas!

Fico a pensar no Espírito disperso

Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,

Como um anel enorme de aliança,
135

Une todas as coisas do Universo!

E assim pensando, com a cabeça em brasas

Ante a fatalidade que me oprime,

Julgo ver este Espírito sublime,

Chamando-me do sol com as suas asas!
140

Gosto do sol ignívomo e iracundo

Como o reptil gosta quando se molha

E na atra escuridão dos ares, olha

Melancolicamente para o mundo!

Essa alegria imaterializada,
145

Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro16,

É o pedaço já podre de pão duro

Que o miserável recebeu na estrada!

Não são os cinco mil milhões de francos

Que a Alemanha pediu a Jules Favre...
150

É o dinheiro coberto de azinhavre

Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

Seja este sol meu último consolo;

E o espírito infeliz que em mim se encarna

Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
155

Só, com a misericórdia de um tijolo!...

Tudo enfim a mesma órbita percorre

E as bocas vão beber o mesmo leite...

A lamparina quando falta o azeite

Morre, da mesma forma que o homem morre.
160

Súbito, arrebentando a horrenda calma,

Grito, e se grito é para que meu grito

Seja a revelação deste Infinito

Que eu trago encarcerado na minh'alma!

Sol brasileiro! Queima-me os destroços!
165

Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,

De pé, à luz da consciência infame,

À carbonização dos próprios ossos!


Versos de amor

A um poeta erótico.

Pau d`Arco, Agosto, 1907.


Parece muito doce aquela cana.

Descasco-a, provo-a, chupo-a... ilusão treda!

O amor, poeta, é como a cana azeda,

A toda a boca que o não prova engana.

Quis saber que era o amor, por experiência,
5

E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,

Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,

Todas as ciências menos esta ciência!

Certo, este o amor não é que, em ânsias, amo

Mas certo, o egoísta amor este é que acinte
10

Amas, oposto a mim. Por conseguinte

Chamas amor aquilo que eu não chamo.

Oposto ideal ao meu ideal conservas.

Diverso é, pois, o ponto outro de vista

Consoante o qual, observo o amor, do egoísta
15

Modo de ver, consoante o qual, o observas.

Porque o amor, tal como eu o estou amando,

É espírito, é éter, é substância fluida,

É assim como o ar que a gente pega e cuida,

Cuida, entretanto, não o estar pegando!
20

É a transubstanciação de instintos rudes,

Imponderabilíssima e impalpável,

Que anda acima da carne miserável

Como anda a garça acima dos açudes!

Para reproduzir tal sentimento
25

Daqui por diante, atenta a orelha cauta,

Como Marsias-o inventor da flauta-

Vou inventar também outro instrumento!

Mas de tal arte e espécie tal fazê-lo

Ambiciono, que o idioma em que te eu falo
30

Possam todas as línguas decliná-lo

Possam todos os homens compreendê-lo!

Para que, enfim, chegando à última calma

Meu podre coração roto não role,

Integralmente desfibrado e mole,
35

Como um saco vazio dentro d'alma!


I

A meu Pai doente.


Para onde fores, Pai, para onde fores,

Irei também, trilhando as mesmas ruas...

Tu, para amenizar as dores tuas,

Eu, para amenizar as minhas dores!

Que coisa triste! O campo tão sem flores,
5

E eu tão sem crença e as árvores tão nuas

E tu, gemendo, e o horror de nossas duas

Mágoas crescendo e se fazendo horrores!

Magoaram-te, meu Pai?! Que mão sombria,

Indiferente aos mil tormentos teus
10

De assim magoar-te sem pesar havia?!

-Seria a mão de Deus?! Mas Deus enfim

É bom, é justo, e sendo justo, Deus,

Deus não havia de magoar-te assim!

II

A meu Pai morto.


Madrugada de Treze de Janeiro.
15

Rezo, sonhando, o ofício da agonia.

Meu Pai nessa hora junto a mim morria

Sem um gemido, assim como um cordeiro!

E eu nem lhe ouvi o alento derradeiro!

Quando acordei, cuidei que ele dormia,
20

E disse à minha Mãe que me dizia:

«Acorda-o!». Deixa-o, Mãe, dormir primeiro!

E saí para ver a Natureza!

Em tudo o mesmo abismo de beleza,

Nem uma névoa no estrelado véu...
25

Mas pareceu-me, entre as estrelas flóreas,

Como Elias, num carro azul de glórias,

Ver a alma de meu Pai subindo ao Céu!

III

Podre meu Pai! A Morte o olhar lhe vidra.

Em seus lábios que os meus lábios osculam
30

Microrganismos fúnebres pululam

Numa fermentação gorda de cidra.

Duras leis as que os homens e a hórrida hidra

A uma só lei biológica vinculam,

E a marcha das moléculas regulam,
35

Com a invariabilidade da clepsidra!...

Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos

Roída toda de bichos, como os queijos

Sobre a mesa de orgíacos festins!...

Amo meu Pai na atômica desordem
40

Entre as bocas necrófagas que o mordem

E a terra infecta que lhe cobre os rins!


Depois da orgia

O prazer que na orgia a hetaira goza

Produz no meu sensorium de bacante

O efeito de uma túnica brilhante

Cobrindo ampla apostema escrofulosa!

Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
5

O sistema nervoso de um gigante

Para sofrer na minha carne estuante

A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia

Que ao comércio dos homens me traz presa,
10

Livre deste cadeado de peçonha,

Semelhante a um cachorro de atalaia

Às decomposições da Natureza,

Ficar latindo minha dor medonha!


A árvore da serra

-As árvores, meu filho, não têm alma!

E esta árvore me serve de empecilho...

É preciso cortá-la, pois, meu filho,

Para que eu tenha uma velhice calma!

-Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
5

Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!

Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...

Esta árvore, meu pai, possui minh'alma...

-Disse -e ajoelhou-se, numa rogativa:

Não mate a árvore, pai, para que eu viva!"
10

E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,

O moço triste se abraçou com o tronco

E nunca mais se levantou da terra!


Paraíba, 1909.


No auge de atordoadora e ávida sanha

Leu tudo, desde o mais prístino mito,

Por exemplo: o do boi Ápis do Egito

Ao velho Niebelungen da Alemanha.

Acometido de uma febre estranha
5

Sem o escândalo fônico de um grito,

Mergulhou a cabeça no Infinito,

Arrancou os cabelos na montanha!

Desceu depois à gleba mais bastarda,

Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
10

A vontade do vômito plebeu...

E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria

O vencido pensava que cuspia

Na célula infeliz de onde nasceu.


O corrupião

Escaveirado corrupião idiota,

Olha a atmosfera livre, o amplo éter belo,

E a alga criptógama e a úsnea e o cogumelo,

Que do fundo do chão todo o ano brota!

Mas a ânsia de alto voar, de à antiga rota
5

Voar, não tens mais! E pois, preto e amarelo,

Pões-te a assobiar, bruto, sem cerebelo

A gargalhada da última derrota!

A gaiola aboliu tua vontade.

Tu nunca mais verás a liberdade!...
10

Ah! Tu somente ainda és igual a mim.

Continua a comer teu milho alpiste.

Foi este mundo que me fez tão triste,

Foi a gaiola que te pôs assim!


Noite de um visionário

Número cento e três. Rua Direita.

Eu tinha a sensação de quem se esfola

E inopinadamente o corpo atola

Numa poça de carne liquefeita!

-«Que esta alucinação tátil não cresça!»
5

-Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos,

Com a rebeldia acérrima dos nervos

Minha atormentadíssima cabeça.

É a potencialidade que me eleva

Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
10

Minh'alma -este sombrio personagem

Do drama panteístico da treva!

Depois de dezesseis anos de estudo

Generalizações grandes e ousadas

Traziam minhas forças concentradas
15

Na compreensão monística de tudo.

Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme

Me aspergia, banhava minhas tíbias

E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,

Cortando o melanismo da epiderme.
20

Arimânico gênio destrutivo

Desconjuntava minha autônoma alma

Esbandalhando essa unidade calma,

Que forma a coerência do ser vivo.

E eu saí a tremer com a língua grossa
25

E a volição no cúmulo do exício,

Como quem é levado para o hospício

Aos trambolhões, num canto de carroça!

Perante o inexorável céu aceso

Agregações abióticas espúrias,
30

Como uma cara, recebendo injúrias,

Recebiam os cuspos do desprezo.

A essa hora, nas telúrias reservas,

O reino mineral americano

Dormia, sob os pés do orgulho humano,
35

E a cimalha minúscula das ervas.

E não haver quem, íntegra, lhe entregue,

Com os ligamentos glóticos precisos,

A liberdade de vingar em risos

A angústia milenária que o persegue!
40

Bolia nos obscuros labirintos

Da fértil terra gorda, úmida e fresca,

A ínfima fauna abscôndita e grotesca

Da família bastarda dos helmintos.

As vegetalidades subalternas
45

Que os serenos noturnos orvalhavam,

Pela alta frieza intrínseca, lembravam

Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.

E no estrume fresquíssimo da gleba

Formigavam, com a símplice sarcode,
50

O vibrião, o ancilóstomo, o colpode

E outros irmãos legítimos da ameba!

E todas essas formas que Deus lança

No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,

Um pedaço de língua disponível
55

Para a filogenética vingança!

A cidade exalava um podre báfio:

Os anúncios das casas de comércio,

Mais tristes que as elégias17 de Propércio,

Pareciam talvez meu epitáfio.
60

O motor teleológico da Vida

Parara! Agora, em diástoles de guerra,

Vinha do coração quente da terra

Um rumor de matéria dissolvida.

A química feroz do cemitério
65

Transformava porções de átomos juntos

No óleo malsão que escorre dos defuntos,

Com a abundância de um geyser deletério.

Dedos denunciadores escreviam

Na lúgubre extensão da rua preta
70

Todo o destino negro do planeta,

Onde minhas moléculas sofriam.

Um necrófilo mau forçava as lousas

E eu -coetâneo do horrendo cataclismo-

Era puxado para aquele abismo
75

No redemoinho universal das cousas!


Alucinação à beira-mar

Um medo de morrer meus pés esfriava.

Noite alta. Ante o telúrico recorte,

Na diuturna discórdia, a equórea coorte

Atordoadoramente ribombava!

Eu, ególatra céptico, cismava
5

Em meu destino!... O vento estava forte

E aquela matemática da Morte

Com os seus números negros, me assombrava!

Mas a alga usufrutuária dos oceanos

E os malacopterígios subraquianos
10

Que um castigo de espécie emudeceu,

No eterno horror das convulsões marítimas,

Pareciam também corpos de vítimas

Condenadas à Morte, assim como eu!


Pau d´Arco, 1904.


Meu coração tem catedrais imensas,

Templos de priscas e longínquas datas,

Onde um nume de amor, em serenatas,

Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
5

Vertem lustrais irradiações intensas

Cintilações de lâmpadas suspensas

E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais

Entrei um dia nessas catedrais
10

E nesses templos claros e risonhos...

E erguendo os gládios e brandido as hastas,

No desespero dos iconoclastas

Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!


Versos íntimos

Pau d´Arco, 1901.


Vês?! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão -esta pantera-

Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
5

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo Acende teu cigarro!

O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
10

A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!


Pau d´Arco, 1902.


Toma as espadas rútilas, guerreiro,

E à rutilância das espadas, toma

A adaga de aço, o gládio de aço, e doma

Meu coração -estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro
5

E o mais possante gladiador de Roma.

E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,

Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.

Veio depois um domador de hienas
10

E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem..

E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,

Que ninguém doma um coração de poeta!


A ilha de Cipango

Pau d´Arco, 1904.


Estou sozinho! A estrada se desdobra

Como uma imensa e rutilante cobra

De epiderme finíssima de areia...

E por essa finíssima epiderme

Eis-me passeando como um grande verme
5

Que, ao sol, em plena podridão, passeia!

A agonia do sol vai ter começo!

Caio de joelhos, trêmulo... Ofereço

Preces a Deus de amor e de respeito

E o Ocaso que nas águas se retrata
10

Nitidamente reproduz, exata,

A saudade interior que há no meu peito...

Tenho alucinações de toda a sorte...

Impressionado sem cessar com a Morte

E sentindo o que um lázaro não sente,
15

Em negras nuanças lúgubres e aziagas

Vejo terribilíssimas adagas,

Atravessando os ares bruscamente.

Os olhos volvo para o céu divino

E observo-me pigmeu e pequenino
20

Através de minúsculos espelhos.

Assim, quem diante duma cordilheira,

Pára, entre assombros, pela vez primeira,

Sente vontade de cair de joelhos!

Soa o rumor fatídico dos ventos,
25

Anunciando desmoronamentos

De mil lajedos sobre mil lajedos...

E ao longe soam trágicos fracassos

De heróis, partindo e fraturando os braços

Nas pontas escarpadas dos rochedos!
30

Mas de repente, num enleio doce,

Qual se num sonho arrebatado fosse,

Na ilha encantada de Cipango tombo,

Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha

A árvore da perpétua maravilha,
35

À cuja sombra descansou Colombo!

Foi nessa ilha encantada de Cipango,

Verde, afetando a forma de um losango,

Rica, ostentando amplo floral risonho,

Que Toscanelli viu seu sonho extinto
40

E como sucedeu a Afonso Quinto

Foi sobre essa ilha que extingui meu sonho!

Lembro-me bem. Nesse maldito dia

O gênio singular da Fantasia

Convidou-me a sorrir para um passeio...
45

Iríamos a um país de eternas pazes

Onde em cada deserto há mil oásis

E em cada rocha um cristalino veio.

Gozei numa hora séculos de afagos,

Banhei-me na água de risonhos lagos,
50

E finalmente me cobri de flores...

Mas veio o vento que a Desgraça espalha

E cobriu-me com o pano da mortalha,

Que estou cosendo para os meus amores!

Desde então para cá fiquei sombrio!
55

Um penetrante e corrosivo frio

Anestesiou-me a sensibilidade

E a grandes golpes arrancou as raízes

Que prendiam meus dias infelizes

A um sonho antigo de felicidade!
60

Invoco os Deuses salvadores do erro.

A tarde morre. Passa o seu enterro!...

A luz descreve ziguezagues tortos

Enviando à terra os derradeiros beijos.

Pela estrada feral dois realejos
65

Estão chorando meus amores mortos!

E a treva ocupa toda a estrada longa...

O Firmamento é uma caverna oblonga

Em cujo fundo a Via-Láctea existe.

E como agora a lua cheia brilha!
70

Ilha maldita vinte vezes a ilha

Que para todo o sempre me fez triste!


Pau d´Arco, 1905.


Como a crisálida emergindo do ovo

Para que o campo flórido a concentre,

Assim, oh! Mãe, sujo de sangue, um novo

Ser, entre dores, te emergiu do ventre!

E puseste-lhe, haurindo amplo deleite,
5

No lábio róseo a grande teta farta

-Fecunda fonte desse mesmo leite

Que amamentou os éfebos de Esparta.

Com que avidez ele essa fonte suga!

Ninguém mais com a Beleza está de acordo,
10

Do que essa pequenina sanguessuga,

Bebendo a vida no teu seio gordo!

Pois, quanto a mim, sem pretensões, comparo,

Essas humanas coisas pequeninas

A um biscuit de quilate muito raro
15

Exposto aí, à amostra, nas vitrinas.

Mas o ramo fragílimo e venusto

Que hoje nas débeis gêmulas se esboça,

Há de crescer, há de tornar-se arbusto

E álamo altivo de ramagem grossa.
20

Clara, a atmosfera se encherá de aromas,

O Sol virá das épocas sadias...

E o antigo leão, que te esgotou as pomas,

Há de beijar-te as mãos todos os dias!

Quando chegar depois tua velhice
25

Batida pelos bárbaros invernos,

Relembrarás chorando o que eu te disse,

À sombra dos sicômoros eternos!


A Santos Neto.

Paraíba, 1906.


Para iludir minha desgraça, estudo.

Intimamente sei que não me iludo.

Para onde vou (o mundo inteiro o nota)

Nos meus olhares fúnebres, carrego

A indiferença estúpida de um cego
5

E o ar indolente de um chinês idiota!

A passagem dos séculos me assombra.

Para onde irá correndo minha sombra

Nesse cavalo de eletricidade?!

Caminho, e a mim pergunto, na vertigem:
10

-Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem?

E parece-me um sonho a realidade.

Em vão com o grito do meu peito impreco!

Dos brados meus ouvindo apenas o eco,

Eu torço os braços numa angústia douda
15

E muita vez, à meia-noite, rio

Sinistramente, vendo o verme frio

Que há de comer a minha carne toda!

É a Morte -esta carnívora assanhada-

Serpente má de língua envenenada
20

Que tudo que acha no caminho, come...

-Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro,

Sai para assassinar o mundo inteiro,

E o mundo inteiro não lhe mata a fome!

Nesta sombria análise das cousas,
25

Corro. Arranco os cadáveres das lousas

E as suas partes podres examino...

Mas de repente, ouvindo um grande estrondo,

Na podridão daquele embrulho hediondo

Reconheço assombrado o meu Destino!
30

Surpreendo-me, sozinho, numa cova.

Então meu desvario se renova...

Como que, abrindo todos os jazigos,

A Morte, em trajes pretos e amarelos

Levanta contra mim grandes cutelos
35

E as baionetas dos dragões antigos!

E quando vi que aquilo vinha vindo

Eu fui caindo como um sol caindo

De declínio em declínio; e de declínio

Em declínio, com a gula de uma fera,
40

Quis ver o que era, e quando vi o que era,

Vi que era pó, vi que era esterquilínio!

Chegou a tua vez, oh! Natureza!

Eu desafio agora essa grandeza,

Perante a qual meus olhos se extasiam...
45

Eu desafio, desta cova escura,

No histerismo danado da tortura

Todos os monstros que os teus peitos criam.

Tu não és minha mãe, velha nefasta!

Com o teu chicote frio de madrasta
50

Tu me açoitaste vinte e duas vezes...

Por tua causa apodreci nas cruzes,

Em que pregas os filhos que produzes

Durante os desgraçados nove meses!

Semeadora terrível de defuntos,
55

Contra a agressão dos teus contrastes juntos

A besta, que em mim dorme, acorda em berros;

Acorda, e após gritar a última injúria,

Chocalha os dentes com medonha fúria

Como se fosse o atrito de dois ferros!
60

Pois bem! Chegou minha hora de vingança.

Tu mataste o meu tempo de criança

E de segunda-feira até domingo,

Amarrado no horror de tua rede,

Deste-me fogo quando eu tinha sede...
65

Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo!

Súbito outra visão negra me espanta!

Estou em Roma. Ë Sexta-feira Santa.

A treva invade o obscuro orbe terrestre.

No Vaticano, em grupos prosternados,
70

Com as longas fardas rubras, os soldados

Guardam o corpo do Divino Mestre.

Como as estalactites da caverna,

Cai no silêncio da Cidade Eterna

A água da chuva em largos fios grossos...
75

De Jesus Cristo resta unicamente

Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente

Sente vontade de abraçar-lhe os ossos!

Não há ninguém na estrada da Ripetta.

Dentro da Igreja de São Pedro, quieta,
80

As luzes funerais arquejam fracas...

O vento entoa cânticos de morte.

Roma estremece! Além, num rumor forte,

Recomeça o barulho das matracas.

A desagregação da minha Idéia
85

Aumenta. Como as chagas da morféia

O medo, o desalento e o desconforto

Paralisam-me os círculos motores.

Na Eternidade, os ventos gemedores

Estão dizendo que Jesus é morto!
90

Não! Jesus não morreu! Vive na serra

Da Borborema, no ar de minha terra,

Na molécula e no átomo... Resume

A espiritualidade da matéria

E ele é que embala o corpo da miséria
95

E faz da cloaca uma urna de perfume.

Na agonia de tantos pesadelos

Uma dor bruta puxa-me os cabelos.

Desperto. É tão vazia a minha vida!

No pensamento desconexo e falho
100

Trago as cartas confusas de um baralho

E um pedaço de cera derretida!

Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.

Eu, somente eu, com a minha dor enorme

Os olhos ensangüento na vigília!
105

E observo, enquanto o horror me corta a fala,

O aspecto sepulcral da austera sala

E a impassibilidade da mobília.

Meu coração, como um cristal, se quebre;

O termômetro negue minha febre,
110

Torne-se gelo o sangue que me abrasa,

E eu me converta na cegonha triste

Que das ruínas duma casa assiste

Ao desmoronamento de outra casa!

Ao terminar este sentido poema
115

Onde vazei a minha dor suprema

Tenho os olhos em lágrimas imersos...

Rola-me na cabeça o cérebro oco.

Por ventura, meu Deus, estarei louco?!

Daqui por diante não farei mais versos.
120


Eterna mágoa

Pau d´Arco, 1904.


O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo; o homem que é triste

Para todos os séculos existe

E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
5

Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.

Quer resistir, e quanto mais resiste

Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe

É que essa mágoa infinda assim não cabe
10

Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;

E quando esse homem se transforma em verme

É essa mágoa que o acompanha ainda!


Queixas noturnas

Pau d´Arco, 1906.


Quem foi que viu a minha Dor chorando?!

Saio. Minh'alma sai agoniada.

Andam monstros sombrios pela estrada

E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
5

As insígnias medonhas do infeliz

Como os falsos mendigos de Paris

Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem

O próprio Pedro Américo não pinta...
10

Para pintá-lo, era preciso a tinta

Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte

Espera alguém, armado de arcabuz,

Na ânsia incoercível de roubar a luz,
15

Estou à espera de que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude

E a minha mágoa de hoje é tão intensa

Que eu penso que a Alegria é uma doença

E a Tristeza é minha única saúde.
20

As minhas roupas, quero até rompê-las!

Quero, arrancado das prisões carnais,

Viver na luz dos astros imortais,

Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
25

E dentro do meu peito, no combate,

A Eternidade esmagadora bate

Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza

Na mais terrível desesperação...
30

É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião

Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca

Inda mesmo que os músculos se esforcem;

Os pobres braços do mortal se torcem
35

E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta

Que, rolando dos últimos degraus,

O Hércules treme e vai tombar no caos

De onde seu corpo nunca mais levanta!
40

É natural que esse Hércules se esforça,

E tombe para sempre nessas lutas,

Estrangulado pelas rodas brutas

Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
45

Ha de travar-se essa batalha vã

Do dia de hoje contra o de amanhã,

Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me

É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
50

Não sou capaz de amar mulher alguma

Nem há mulher talvez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes

E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;

O coração do Poeta é um hospital
55

Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto;

A bênção matutina que recebo...

E é tudo: o pão que como, a água que bebo,

O velho tamarindo a que me encosto!
60

Vou enterrar agora a harpa boêmia

Na atra e assombrosa solidão feroz

Onde não cheguem o eco duma voz

E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana
65

Não mais palpite o coração -esta arca,

Este relógio trágico que marca

Todos os atos da tragédia humana!

Seja esta minha queixa derradeira

Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
70

Seja este, enfim, o último canto meu

Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tu'asa!

És a árvore em que devo reclinar-me...

Se algum dia o Prazer vier procurar-me
75

Dize a este monstro que eu fugi de casa!


Pau d´Arco, 1905.


Noite. Da mágoa o espírito noctâmbulo

Passou decerto por aqui chorando!

Assim, em mágoa, eu também vou passando

Sonâmbulo... sonâmbulo... sonâmbulo...

Que voz é esta que a gemer concentro
5

No meu ouvido e que do meu ouvido

Como um bemol e como um sustenido

Rola impetuosa por meu peito adentro?!

-Por que é que este gemido me acompanha?!

Mas dos meus olhos no sombrio palco
10

Súbito surge como um catafalco

Uma cidade ao mapa-mundi estranha.

A dispersão dos sonhos vagos reúno.

Desta cidade pelas ruas erra

A procissão dos Mártires da Terra
15

Desde os Cristãos até Giordano Bruno!

Vejo diante de mim Santa Francisca

Que com o cilício as tentações suplanta,

E invejo o sofrimento desta Santa,

Em cujo olhar o Vício não faísca!
20

Se eu pudesse ser puro! Se eu pudesse,

Depois de embebedado deste vinho,

Sair da vida puro como o arminho

Que os cabelos dos velhos embranquece!

Por que cumpri o universal ditame!?
25

Pois se eu sabia onde morava o Vício,

Por que não evitei o precipício

Estrangulando minha carne infame?!

Até que dia o intoxicado aroma

Das paixões torpes sorverei contente?
30

E os dias correrão eternamente?!

E eu nunca sairei desta Sodoma?!

À proporção que a minha insônia aumenta

Hieróglifos e esfinges interrogo...

Mas, triunfalmente, nos céus altos, logo
35

Toda a alvorada esplêndida se ostenta.

Vagueio pela Noite decaída...

No espaço a luz de Aldebarã e de Árgus

Vai projetando sobre os campos largos

O derradeiro fósforo da Vida.
40

O Sol, equilibrando-se na esfera,

Restitui-me a pureza da hematose

E então uma interior metamorfose

Nas minhas arcas cerebrais se opera.

O odor da margarida e da begônia
45

Subitamente me penetra o olfato...

Aqui, neste silencio e neste mato,

Respira com vontade a alma campônia!

Grita a satisfação na alma dos bichos.

Incensa o ambiente o fumo dos cachimbos.
50

As árvores, as flores, os corimbos

Recordam santos nos seus próprios nichos.

Com o olhar a verde periferia abarco.

Estou alegre. Agora, por exemplo,

Cercado destas árvores, contemplo
55

As maravilhas reais do meu Pau d'Arco.

Cedo virá, porém, o funerário,

Atro dragão da escura noite, hedionda,

Em que o Tédio, batendo na alma, estronda

Como um grande trovão extraordinário.
60

Outra vez serei pábulo do susto

E terei outra vez de, em mágoa imerso,

Sacrificar-me por amor do Verso

No meu eterno leito de Procusto!


Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas.

Espelham-se os esplendores
5

Do céu, em reflexos, nas

Águas, fingindo cristais

Das mais deslumbrantes cores.

Em fulvos filões doirados

Cai a luz dos astros por
10

Sobre o marítimo horror

Como globos estrelados.

Lá onde as rochas se assentam

Fulguram como outros sóis

Os flamívomos faróis
15

Que os navegantes orientam.

Vai uma onda, vem outra onda

E nesse eterno vaivém

Coitadas! não acham quem,

Quem as esconda, as esconda...
20

Alegoria tristonha

Do que pelo Mundo vai!

Se um sonha e se ergue, outro cai;

Se um cai, outro se ergue e sonha.

Mas desgraçado do pobre
25

Que em meio da Vida cai!

Esse não volta, esse vai

Para o túmulo que o cobre.

Vagueia um poeta num barco.

O Céu, de cima, a luzir
30

Como um diamante de Ofir

Imita a curva de um arco.

A Lua -globo de louça-

Surgiu, em lúcido véu.

Cantam! Os astros do Céu
35

Ouçam e a Lua Cheia ouça!

Ouça do alto a Lua Cheia

Que a sereia vai falar...

Haja silêncio no mar

Para se ouvir a sereia.
40

Que é que ela diz?! Será uma

História de amor feliz?

Não! O que a sereia diz

Não é história nenhuma.

É como um requiem profundo
45

De tristíssimos bemóis...

Sua voz é igual à voz

Das dores todas do mundo.

«Fecha-te nesse medonho

Reduto de Maldição,
50

Viajeiro da Extrema-Unção,

Sonhador do último sonho!

Numa redoma ilusória

Cercou-te a glória falaz,

Mas nunca mais, nunca mais
55

Há de cercar-te essa glória!

Nunca mais! Sê, porém, forte.

O poeta é como Jesus!

Abraça-te à tua Cruz

E morre, poeta da Morte!».
60

-E disse e porque isto disse

O luar no Céu se apagou...

Súbito o barco tombou

Sem que o poeta o pressentisse!

Vista de luto o Universo
65

E Deus se enlute no Céu!

Mais um poeta que morreu,

Mais um coveiro do Verso!

Cantam nautas, choram flautas

Pelo mar e pelo mar
70

Uma sereia a cantar

Vela o Destino dos nautas!


Tristezas de um quarto minguante

Pau d`Arco, maio, 1907.


Quarto Minguante! E, embora a lua o aclare,

Este Engenho Pau d'Arco é muito triste...

Nos engenhos da várzea não existe

Talvez um outro que se lhe equipare!

Do observatório em que eu estou situado
5

A lua magra, quando a noite cresce,

Vista, através do vidro azul, parece

Um paralelepípedo quebrado!

O sono esmaga o encéfalo do povo.

Tenho 300 quilos no epigastro...
10

Dói-me a cabeça. Agora a cara do astro

Lembra a metade de uma casca de ovo.

Diabo! não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

Vou amarrar um pano na cabeça,
15

Molhar a minha fronte com vinagre.

Aumentam-se-me então os grandes medos.

O hemisfério lunar se ergue e se abaixa

Num desenvolvimento de borracha,

Variando à ação mecânica dos dedos!
20

Vai-me crescendo a aberração do sonho.

Morde-me os nervos o desejo doudo

De dissolver-me, de enterrar-me todo

Naquele semicírculo medonho!

Mas tudo isto é ilusão de minha parte!
25

Quem sabe se não é porque não saio

Desde que, Sexta-feira, 3 de maio,

Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!

A lâmpada a estirar línguas vermelhas

Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
30

Como um degenerado psicopata

Eis-me a contar o número das telhas!

-Uma, duas, três, quatro... E aos tombos, tonta

Sinto a cabeça e a conta perco; e, em suma,

A conta recomeço, em ânsias: -Uma...
35

Mas novamente eis-me a perder a conta!

Sucede a uma tontura outra tontura.

-Estarei morto?! E a esta pergunta estranha

Responde a Vida -aquela grande aranha

Que anda tecendo a minha desventura!
40

A luz do quarto diminuindo o brilho

Segue todas as fases de um eclipse...

Começo a ver coisas de Apocalipse

No triângulo escaleno do ladrilho!

Deito-me enfim. Ponho o chapéu num gancho.
45

Cinco lençóis balançam numa corda,

Mas aquilo mortalhas me recorda,

E o amontoamento dos lençóis desmancho.

Vêm-me à imaginação sonhos dementes.

Acho-me, por exemplo, numa festa...
50

Tomba uma torre sobre a minha testa,

Caem-me de uma só vez todos os dentes!

Então dois ossos roídos me assombraram...

-«Por ventura haverá quem queira roer-nos?!

Os vermes já não querem mais comer-nos
55

E os formigueiros já nos desprezaram».

Figuras espectrais de bocas tronchas

Tornam-me o pesadelo duradouro...

Choro e quero beber a água do choro

Com as mãos dispostas à feição de conchas.
60

Tal uma planta aquática submersa,

Antegozando as últimas delícias

Mergulho as mãos -vis raízes adventícias-

No algodão quente de um tapete persa.

Por muito tempo rolo no tapete.
65

Súbito me ergo. A lua é morta. Um frio

Cai sobre o meu estômago vazio

Como se fosse um copo de sorvete!

A alta frialdade me insensibiliza;

O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
70

Minha família ainda está dormindo

E eu não posso pedir outra camisa!

Abro a janela. Elevam-se fumaças

Do engenho enorme. A luz fulge abundante

E em vez do sepulcral Quarto Minguante
75

Vi que era o sol batendo nas vidraças.

Pelos respiratórios tênues tubos

Dos poros vegetais, no ato da entrega

Do mato verde, a terra resfolega

Estrumada, feliz, cheia de adubos.
80

Côncavo, o Céu, radiante e estriado, observa

A universal criação. Broncos e feios,

Vários reptis cortam os campos, cheios

Dos tenros tinhorões e da úmida erva.

Babujada por baixos beiços brutos,
85

No húmus feraz, hierática, se ostenta

A monarquia da árvore opulenta

Que dá aos homens o óbolo dos frutos.

De mim diverso, rígido e de rastos

Com a solidez do tegumento sujo
90

Sulca, em diâmetro, o solo um caramujo

Naturalmente pelos mata-pastos.

Entretanto, passei o dia inquieto,

A ouvir, nestes bucólicos retiros,

Toda a salva fatal de 21 tiros
95

Que festejou os funerais de Hamleto!

Ah! Minha ruína é pior do que a de Tebas!

Quisera ser, numa última cobiça,

A fatia esponjosa de carniça

Que os corvos comem sobre as jurubebas!
100

Porque, longe do pão com que me nutres

Nesta hora, oh! Vida, em que a sofrer me exortas

Eu estaria como as bestas mortas

Pendurado no bico dos abutres!


Mistêrios de um fósforo

Paraíba, 1910.


Pego de um fósforo. Olho-o. Olho-o ainda. Risco-o

Depois. E o que depois fica e depois

Resta é um ou, por outra, é mais de um, são dois

Túmulos dentro de um carvão promíscuo.

Dois são, porque um, certo, é do sonho assíduo
5

Que a individual psiquê humana tece e

O outro é o do sonho altruístico da espécie

Que é o substractum dos sonhos do indivíduo!

E exclamo, ébrio, a esvaziar báquicos odres:

-«Cinza, síntese má da podridão,
10

Miniatura alegórica do chão,

Onde os ventres maternos ficam podres;

Na tua clandestina e erma alma vasta,

Onde nenhuma lâmpada se acende,

Meu raciocínio sôfrego surpreende
15

Todas as formas da matéria gasta!».

Raciocinar! Aziaga contingência!

Ser quadrúpede! Andar de quatro pés

É mais do que ser Cristo e ser Moisés

Porque é ser animal sem ter consciência!
20

Bêbedo, os beiços na ânfora ínfima, harto,

Mergulho, e na ínfima ânfora, harto, sinto

O amargor específico do absinto

E o cheiro animalíssimo do parto!

E afogo mentalmente os olhos fundos
25

Na amorfia da cítula inicial,

De onde, por epigênese geral,

Todos os organismos são oriundos.

Presto, irrupto, através ovóide e hialino

Vidro, aparece, amorfo e lúrido, ante
30

Minha massa encefálica minguante

Todo o gênero humano intra-uterino!

É o caos da ávita víscera avarenta

-Mucosa nojentíssima de pus,

A nutrir diariamente os fetos nus
35

Pelas vilosidades da placenta!

Certo, o arquitetural e íntegro aspecto

Do mundo o mesmo inda é, que, ora, o que nele

Morre, sou eu, sois vós, é todo aquele

Que vem de um ventre inchado, ínfimo e infecto!
40

É a flor dos genealógicos abismos

-Zooplasma pequeníssimo e plebeu,

De onde o desprotegido homem nasceu

Para a fatalidade dos tropismos:

Depois, é o céu abscôndito do Nada,
45

É este ato extraordinário de morrer

Que há de, na última hebdômada, atender

Ao pedido da célula cansada!

Um dia restará, na terra instável,

De minha antropocêntrica matéria
50

Numa côncava xícara funérea

Uma colher de cinza miserável!

Abro na treva os olhos quase cegos.

Que mão sinistra e desgraçada encheu

Os olhos tristes que meu Pai me deu
55

De alfinetes, de agulhas e de pregos?!

Pesam sobre o meu corpo oitenta arráteis.

Dentro um dínamo déspota, sozinho,

Sob a morfologia de um moinho,

Move todos os meus nervos vibráteis.
60

Então, do meu espírito, em segredo,

Se escapa, dentre as tênebras, muito alto,

Na síntese acrobática de um salto,

O espectro angulosíssimo do Medo!

Em cismas filosóficas me perco
65

E vejo, como nunca outro homem viu,

Na anfigonia que me produziu

Nonilhões de moléculas de esterco.

Vida, mônada vil, cósmico zero,

Migalha de albumina semifluida,
70

Que fez a boca mística do druida

E a língua revoltada de Lutero;

Teus gineceus prolíficos envolvem

Cinza fetal!... Basta um fósforo só

Para mostrar a incógnita de pó,
75

Em que todos os seres se resolvem!

Ah! Maldito o conúbio incestuoso

Dessas afinidades eletivas,

De onde quimicamente tu derivas,

Na aclamação simbiótica do gozo!
80

O enterro de minha última neurona

Desfila... E eis-me outro fósforo a riscar.

E esse acidente químico vulgar

Extraordinariamente me impressiona!

Mas minha crise artrítica não tarda.
85

Adeus! Que eu vejo enfim, com a alma vencida,

Na abjeção embriológica da vida

O futuro de cinza que me aguarda!