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Aspectos literários do século XVIII

Literariamente, o século XVIII se caracteriza pela escassez de poetas na sua primeira metade, pela fundação das academias literárias do fim do seu primeiro quartel aos começos do último, pela abundância da sua literatura histórica, e, o que principalmente o ilustra, pelo advento, no seu terço final, de um grupo de poetas, que foram os melhores no período colonial.

Excluído Antônio José da Silva, o engenhoso e mal-aventurado judeu fluminense, queimado pela Inquisição de Lisboa, em 1739, nenhum poeta de algum valor se nos depara no Brasil naquele momento. Antônio José, de brasileiro só teve, porém, o acidente do nascimento. Sua formação e atividade literária foi toda portuguesa, e não há no seu estilo, quer de prosador quer de poeta, bem como na sua inspiração, nada que não seja genuinamente português. E o que porventura não é português é antes italiano (como as coplas de que misturou as suas óperas) ou espanhol do que brasileiro.

Não houve nesse tempo nenhum poeta equivalente a Gregório de Matos ou mesmo a Botelho de Oliveira. É, entretanto, crescido o número de escrevedores e versificadores do século XVIII, de que se encontram menções. Só Jaboatão, e unicamente na sua ordem franciscana, nomeia perto de trinta e lhes menciona as obras, muitas impressas, outras manuscritas: de devoção, panegíricos de santos, sermões e também versos e história7. O mesmo sucedia nas outras ordens religiosas. A prosa, porém, tirante a dos pregadores, nenhum de mérito que mereça recordação, e a de algum memorialista ou noticiador da terra, igualmente somenos, não deixou de si lembrança estimável.

Dos poetas do século XVII anteriores aos mineiros, não há nenhum que se salve por uma inspiração feliz como a da Ilha de Maré, ou por qualquer feição particular como a satírica de Gregório de Matos. Somenos sob todos os aspectos, o poeta dos Eustáquidos, Fr. Manoel de Santa Maria Itaparica, merece todavia comemorado pela sua Descrição versejada da ilha de Itaparica. Os Eustáquidos são um «poema sacro e tragicômico» da vida de S. Eustáquio. Esta classificação do próprio autor e o seu objeto já deixam ver que sensaboria metrificada não é. Vem-lhe apensa a Descrição, interessante somente por ser a segunda manifestação na poesia brasileira da mesma emoção nativista, patriótica se quiserem, que produziu a Ilha de Maré e que constituiria um rasgo particular da nossa poesia8.

Como na Prosopopéia de Bento Teixeira e geralmente em todos os versejadores do período colonial, é manifesta neste poema de sessenta e cinco oitavas a lição de Camões. Esta infelizmente revela-se apenas na imitação canhestra e até na paródia de algum verso do grande épico ou ainda no arremedo de situações ou passos dos Lusíadas.

Não sem galanteria invoca o poeta a Musa, como sua companheira de todos os tempos, bons e maus:

Musa que no florido de meus anos

teu furor tantas vezes me inspiraste

e na idade em que vêm os desenganos

também sempre fiel me acompanhaste,

tu, que influxos repartes soberanos

deste monte Helicon, que já pisaste,

agora me concede o que te peço

para seguir seguro o que começo.



O seu verso tem quase sempre esta facilidade e correção. A descrição da sua ilha natal, mais vasada nos moldes clássicos que a de Botelho de Oliveira, tem, conquanto topográfica, a emoção nativista que falta a Bento Teixeira. Pinta a vida dos pescadores da ilha, a pescaria da baleia, sua principal indústria, a fabricação do seu azeite, e noticia os produtos, dons e bens da terra, seus frutos e novidades. E terminando, frouxamente aliás, a descrição da ilha que fica no

Porto em que está hoje situada

A opulenta e ilustrada Bahia



assim conclui:

Até aqui Musa: não me é permitido

que passe mais avante a veloz pena;

a minha pátria tenho definido

com esta descrição breve e pequena;

e se o tê-la tão pouco engrandecida

não me louva mas antes me condena,

não usei termos de poeta esperto,

fui historiador em tudo certo.



Com o mesmo sentimento nativista sensível, embora sem emoção notável, desde a Prosopopéia e mais manifesto em Botelho de Oliveira, precedeu este poema de alguns anos o de Santa Rita Durão. Também no canto V do seu poema Eustáquidos, Fr. Santa Maria Itaparica, num sonho que finge, põe certo Postero a profetizar o advento do Brasil e nascimento do poeta, anunciando o poema da Descrição da sua ilha natal, que ele

Há de cantar em lira temperada.



Tudo isto com grande insulsez. O tal poema sacro e herói-cômico por si só não daria ao nome do frade poeta o mínimo relevo se lho não levantasse a emoção simpática com que cantou a sua pátria, como à ilha do seu nascimento chamou, e não documentasse a continuidade da inspiração que se ia criando e ficaria na poesia brasileira como um dos seus traços distintivos. Sob aspecto da língua não deixa de ser interessante a medíocre produção de Fr. Itaparica. A língua literária do Brasil ainda era então e seria por todo o período colonial, apenas talvez com menos arte e menos número, a mesma de Portugal. Não havia ainda tempo para que os cruzamentos e outras influências mesológicas houvessem modificado o falar brasileiro, e menos para que as modificações porventura havidas passassem do falar corrente à língua dos escritores educados por portugueses e feitos só, ou muito principalmente, na leitura de livros portugueses ou latinos. A de Fr. Itaparica é, pois, a língua do tempo, gongórica, empolada e sobretudo amaneirada. Todas as impressões e idéias se lhe reduzem em adjetivos, que apenas com variações sinonímicas se repetem copiosamente com pouca propriedade. Aliás o defeito não é raro, mesmo nos chamados clássicos. Usa abundantemente de termos pouco vulgares ou já então obsoletos e também de espanholismos e neologismos, tudo denotando rebusca de linguagem. Encontram-se-lhe: elado, fenestras, temblar, gateando, lesura, trufatil(?), olorizar, cláveo, estúpeo (do grego stupeo, caule, mas feito adjetivo?), pevidosa, ahulidos(?). Descrevendo o preparo do azeite da baleia em Itaparica, fala dos negros empregados nesse serviço:

Cujos membros de azeite andam untados

daquelas cirandagens salpicados.



em que a palavra cirandagem desviada do seu sentido vernáculo (=sarandalha) alimpaduras que se apartam cirandando (joeirando) e se lançam fora, tem já a acepção brasileira de restos imprestáveis, imundície miúda, guloseimas vis.

Nenhum outro poeta que mereça lembrado ou mesmo que o não mereça, mas com obra conhecida, nos depara este sáfaro período da poesia no Brasil. A música do parnaso foi publicada em 1705, mas os seus poemas são incontestavelmente dos últimos anos do século anterior, nos quais passou também a atividade literária do seu autor. Outrossim poetou nesta época Sebastião da Rocha Pita, acaso a melhor figura literária dela. A sua produção poética, porém, nos seria totalmente desconhecida não foram os documentos relativos às academias literárias de que fez parte, existentes na Biblioteca Nacional e as transcrições deles feitas por Fernandes Pinheiro.56 Há notícia vaga e insegura de que escrevera também um romance em verso castelhano. É como historiador que ele tem um lugar na nossa literatura colonial.

Só para o fim da terceira década do século XVIII, se nos antolham alguns escritores em prosa mais estimáveis que os aludidos. Seguindo de perto o seu aparecimento o das academias literárias aqui fundadas desde meados da segunda década, não é porventura indiscreto ver neles influências destas.

Como assembléia ocasional de literatos que reciprocamente se recitavam os seus versos e prosas, havia academias no Brasil ainda em antes do século XVIII. Gregório de Matos, notavelmente, e elas se refere nos seus versos satíricos. Mas como associações literárias e regularmente organizadas datam de 1724. Foi nesta era criada a primeira, a Academia Brasileira dos Esquecidos. Para em tudo imitar as da metrópole, cujo arremedo era, fundava-se conforme aquelas com a proteção real, sob os auspícios do vice-rei, ou antes estabelecida por ele no seu próprio palácio. Nestes termos, imagem acabada do estilo da época e seu, lhe noticia a fundação Rocha Pita, que foi um dos seus membros mais conspícuos:

A nossa portuguesa América (e principalmente a província da Bahia), que na produção de engenhosos filhos pode competir com Itália e Grécia, não se achava com as academias introduzidas em todas as repúblicas bem organizadas, para apartarem a idade juvenil do ócio contrário das virtudes e origem de todos os vícios e apurarem a sutileza dos engenhos. Não permitiu o vice-rei que faltasse no Brasil esta pedra de toque no estimável oiro dos seus talentos, de mais quilates que o das suas minas. Erigiu uma doutíssima academia, que se faz em palácio na sua presença. Deram-lhe fama as pessoas de maior graduação e entendimento que se acham na Bahia, tomando-o por seu protetor. Têm presidido nela eruditíssimos sujeitos. Houve graves e discretos assuntos, aos que se fizeram elegantes e agudíssimos versos; e vai continuando nos seus progressos, esperando que em tão grande proteção se dêem ao prelo os seus escritos, em prêmio das suas fadigas.»

A Academia dos Renascidos fundava-se em 1759 com quarenta sócios de número, ou efetivos, e oitenta supranumerários, ou correspondentes. A maioria versejava ou fazia prosa oficial ou acadêmica. Glosando motes, versificando temas preestabelecidos ou também amplificando retoricamente assuntos oferecidos aos seus curtos engenhos, nenhum destes versejadores ou prosistas tinham virtudes literárias por que perdurasse na memória dos homens e as suas obras, ainda as impressas, é como se não existissem.

No Rio de Janeiro foi instituída em 1736 a Academia dos Felizes, e mais tarde, em 1752, a dos Seletos, que de fato se resumiu a uma sessão magna literária, como diríamos hoje, consagrada a celebrar o governador e capitão-general Gomes Freire de Andrade, que a presidiu. Tinham estas reuniões a vantagem de serem prazo dado e auditório fácil e benévolo de letrados e poetas e portanto um estímulo oferecido ao seu estro.

Criadas quando acaso já não correspondiam às condições da sua origem européia, mais por imitação das do Reino, vontade e inspiração oficial do que como uma exigência e produto na incipiente cultura indígena, tiveram as academias literárias no Brasil, uma existência transitória e inglória. Mas não de todo inútil e sem efeito nessa cultura e na literatura que a devia representar. Apesar da origem oficial, e de serem um arremedo, havia porventura nelas um sentimento de emulação com a metrópole, e portanto um primeiro e leve sintoma do espírito local de independência. Acaso a denominação da primeira, de Academia Brasileira dos Esquecidos, revê o despeito dos seus fundadores contra o esquecimento dos letrados coloniais na formação das academias portuguesas anteriores. O propósito que não só essa, mas a dos Renascidos e a dos Felizes declaradamente tiveram, de estudar sob os seus diversos aspectos o Brasil e a sua história, traduz evidentemente um íntimo sentimento de apego à terra, com a intenção, ainda certamente pouco consciente, da parte que no seu desenvolvimento devia caber aos seus letrados.

A qualificação que todas, apesar do oficialismo da sua origem ou existência, se deram de Brasileiras (brasílica), quando ainda não existia ou não era vulgar o patronímico da terra, porventura já revela um sentimento de separação, do qual não tinham quiçá esses acadêmicos consciência, mas que o despeito ou motivos menos egoísticos, como a ufania da sua terra, criara. Como quer que seja apontavam todas ao progresso das letras e da cultura espiritual do Brasil, e trabalhando, ainda mal, como trabalharam, por esse propósito, trabalharam primeiro pela nossa emancipação intelectual e, por esta, sem aliás disso se aperceberem, pela nossa emancipação nacional. Isso, entretanto, não as impediu de continuarem a fazer a mesma obra literária dos portugueses, e fazerem-na inferiormente. Sobre haverem iniciado o comércio e trato recíproco dos homens de letras do Brasil, convocando-os de toda a parte dele para se lhes associarem, tiveram o efeito imediatamente útil de chamar a atenção e despertar o gosto e o amor do estudo da nossa história e das nossas cousas. São testemunho desse seu influxo a História da América Portuguesa, com que Rocha Pita realizou um dos propósitos da Academia Brasílica dos Esquecidos, e a História militar do Brasil, de José de Mirales, sócio da dos Renascidos, e confessadamente escrita por sua influência.

Estes, com Nuno Marques Pereira, o autor do Peregrino da América, são os escritores de prosa mais conhecidos desta fase da nossa literatura. Deles, porém, só merecem a atenção da história literária Rocha Pita e Marques Pereira.

De Nuno Marques Pereira não sabem os biógrafos senão que nasceu em Cairu, na Bahia, em 1652, e faleceu em Lisboa em 1728. Dos seus estudos, vida e feitos nada se conhece, que não seja suspeito de infundado. Era presbítero secular. No intuito piedoso de denunciar ou de emendar os costumes do Estado, que se lhe antolhavam péssimos, escreveu o livro citado, único lavor literário que se lhe sabe, e cujo título completo lhe define o estímulo e propósito. Chama-se compridamente: Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam vários discursos espirituais e morais com muitas advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela milícia diabólica no Estado do Brasil.

O Peregrino da América, como abreviadamente se lhe chama, não é de modo algum um conto ou novela, não tem o menor parentesco com a chamada literatura de cordel, cousa que no Brasil é do século XIX, quando aqui apareceu como imitação seródia ou contrafação da portuguesa, então já em decadência. Não se pode dizer que o livro de Marques Pereira haja iniciado o gênero romanesco ou novelístico no Brasil. É, porém, uma ficção, como o são também os Diálogos das grandezas do Brasil. Uma ficção de fim e caráter religioso, obra de devoção e edificação. Consiste totalmente a ficção em o autor, ou quem finge escrever a narrativa, dizer-se um peregrino ou viajor que trata da sua salvação (p. 3, ed. 1728) e que andando pelo mundo aproveita ensejos e oportunidades de doutrinar cristãmente os diversos interlocutores que se lhe deparam, e esse mundo que, segundo um destes, o Ancião do cap. I, «é estrada de peregrinos e não lugar nem habitação de moradores, porque a verdadeira pátria é o Céu». Este pensamento do misticismo cristão é o de todo o livro. Nem ele tem outra fabulação que os repetidos fingidos encontros do Peregrino com indivíduos com quem troca reflexões morais e religiosas, no propósito manifesto de os doutrinar. Seria ele de todo desinteressante para nós, que não nos compadecemos mais com estas exortações parenéticas, se o autor lhes não houvesse freqüentemente misturado cousas da vida real, contado anedotas, citado ditos e reflexões profanas, aplicado a sua doutrina e moralidade a casos concretos, revendo a vida e os costumes do tempo e lugar, referido fatos da sua experiência e feito considerações através das quais divisamos sentimentos e idéias contemporâneas e aspectos da existência colonial. Infelizmente esta feição do seu livro, que seria para nós hoje a mais importante e aprazível, é de muito excedida pela de prédica de moral caturra e trivialíssima, na pior maneira do mau estilo da época. Os moralistas só os sofremos em literatura com originalidade, agudeza e bom estilo. Nada salva, pois, o Peregrino da América de ser a sensaboria que se tornou mal passado o século em cujo primeiro terço foi publicado. Não pensavam assim os seus contemporâneos. Este livro, que raros serão capazes de ler integralmente, foi um dos mais lidos no seu tempo e no imediatamente posterior, como provam as cinco edições que dele se fizeram em menos de quarenta anos, número considerável para a época.

Não era romance ou novela, mas em prosa e impressa era a primeira obra de imaginação escrita por natural da terra. E dizia de cousas desta, e de envolta com referências aos seus costumes, notações de sua vida, alusões aos seus moradores, derramava-se em considerações de suas manhas. Talvez esteja principalmente nesta atualidade o segredo da sua estimação e sucesso. Já não era, todavia, tanta a dos letrados seus patrícios para o fim do século, pois Silva Alvarenga, no canto V do seu poema herói-cômico O desertor das letras (1774), enumerando livros então considerados somenos e desprezíveis, cita entre eles o Peregrino da América.

Ao Peregrino da América excedem sem dúvida muito em valor literário, em distinção de pensamento e excelência de expressão as Reflexões sobre a vaidade dos homens, de Matias Aires da Silva de Eça, publicada em Lisboa em 1752. Entretanto são quase desconhecidas, mesmo dos eruditos e dos historiadores mais minuciosos da nossa literatura, não obstante o apreço que parece haverem merecido dos contemporâneos, se tal se pode inferir das quatro edições que teve até 1768. Matias Aires nasceu em São Paulo a 27 de março de 1705, de José Ramos da Silva, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda de Lisboa, e de sua mulher D. Catarina de Horta. Não se lhe conhece a data da morte. Na companhia de seus pais foi para Portugal com menos de 12 anos, ali graduou-se de mestre em artes na Universidade de Coimbra e substituiu o pai na Provedoria da Casa da Moeda, e, parece, nunca mais tornou ao Brasil. Seria, pois, um espírito de pura formação portuguesa, apenas melhorando, ou somente modificado, quanto à cultura, pela estadia em França, onde se formou em direito canônico e direito civil. Pode ser estivesse também em outros países europeus. Além das Reflexões sobre a vaidade dos homens ou discursos morais sobre os efeitos da vaidade, com o mesmo objeto de filosofia moralizante escreveu mais uma Carta sobre a fortuna, que saiu anexa à 4ª edição das Reflexões (1786). Há também da sua lavra, mas já em outra ordem de idéias, o Problema de arquitetura civil, por que os edifícios antigos têm mais duração e resistem mais ao tremor de terra que os modernos? (Lisboa, 1777) e um Discurso congratulatório pela felicíssima convalescença e real vida de El-Rei D. José, saído em 1759.

Como moralista, Matias Aires ainda seria hoje benemérito de leitura e estima, sequer pela maior isenção do seu espírito das estreitezas do moralismo eclesiástico dominante no seu tempo, e também pela sua expressão mais desempeçada dos vícios estilísticos do tempo, mais livre, menos pesada e até mais elegante. Encontra-se-lhe mesmo, não obstante não fazer senão glosar a velha lição judaico-cristã sobre a vaidade, um ou outro conceito menos vulgar finamente enunciado. Ele seria o melhor dos nossos moralistas se de fato a sua obra não valesse principalmente ou quase somente como uma curiosidade literária daqueles tempos, sem tal superioridade de pensamento ou de expressão que lhe determine a integração nas nossas letras, e menos qualquer repercussão ou influxo nelas9.

O aparecimento destas duas obras é um acontecimento literário acaso mais importante que a numerosa produção poética anterior. A prosa é a linguagem da virilidade e da razão. Entrando a exprimir-se também em prosa quando até aí, salvo o exemplo isolado de Fr. Vicente do Salvador, só em verso se exprimira, dava a mentalidade que se ia formando, mostra de maior madureza e variedade de aptidões. O versar das letras históricas e outras, no mesmo século, pelos Mirales, Jaboatões, Taques, Madres de Deus, Borges da Fonseca, Velosos, sem embargo da insuficiência literária dos seus produtos, mais claramente o comprova.

Sebastião da Rocha Pita nasceu na cidade da Bahia a 3 de maio de 1660. Foram seus pais João Velho Godin e D. Brites da Rocha Pita, filha do Capitão-Mor Sebastião da Rocha Pita, «uma das primeiras e mais poderosas pessoas de Pernambuco», informa, justamente desvanecido da sua prosápia, o neto. Estudou com os jesuítas no seu colégio da Bahia, até os dezesseis anos. Como no tempo faziam tantos rapazes da colônia de famílias abastadas, da Bahia foi estudar a Coimbra, em cuja Universidade se bacharelou em cânones. De volta à terra, foi feito coronel de um regimento de infantaria de ordenanças. Casando com uma patrícia, retirou-se para uma rica fazenda às margens do Paraguaçu, perto da Cachoeira, onde fez vida de cavalheiro agricultor, dando-se também às letras. Além de um romance em verso, que parece haver merecido pouca estimação, deu à luz, em Lisboa, duas obras pequenas, e de assunto mais de reportagem que de literatura, Breve compêndio e narração do fúnebre espetáculo que na cidade da Bahia se viu na morte d'El-Rei D. Pedro II, em 1709, e Sumário da vida e morte da Ex.ma Sr.ª D. Leonor Josefa de Vilhena e das exéquias que se celebraram à sua memória na cidade da Bahia, em 1721. Com estas obrinhas teria tomado gosto das notícias da sua terra. A fundação contemporânea da Academia Brasílica dos Esquecidos porventura o estimularia nesse sentido.

Seus sócios deviam «tomar por matéria geral dos seus estudos a história brasileira», segundo dizia o próprio auto da sua fundação. Rocha Pita, que fora dos seus fundadores e dos mais conspícuos, empreendeu escrever a do Brasil, mais cabalmente do que havia sido ainda escrita. Para realizar o seu intento passou-se a Lisboa e aí publicou, no dito ano de 1730, a História da América portuguesa.

Nem pela intuição e sentimento histórico, nem pelo sabor literário, emparelha a História de Rocha Pita com a do Fr. Vicente do Salvador. Está em tudo e por tudo obsoleta, e além da feição por assim dizer oficial da sua composição, é perluxa, enfática e inchada de pensamento e linguagem. Justamente o excessivo floreio de estilo com que foi intencionalmente escrita, e que no-la torna desagradável, fazia-a no seu tempo estimável e foi, não de todo sem razão, estimada.

Escrita em estilo de prosa poética, como se fora um poema em louvor do Brasil, com mais entusiasmo e arroubo de sentimento patriótico do que com a serenidade e o bom juízo da história, marca justamente a transição da poesia a que quase exclusivamente se reduzia a nossa produção literária para a prosa em que íamos começar a mais freqüentemente exprimir-nos. Os seus censores oficiais, sujeitos dos mais doutos do tempo, cobriram-na de louvores, não só à sua composição, mas ao seu merecimento de obra histórica. Gostava-se então do que ora nos despraz. A frase de Rocha Pita acham-na eles «verdadeiramente portuguesa, desafetada, pura, concisa e conceituosa». Afora o casticismo, aliás de mau cunho, não pode a crítica hoje senão verificar-lhe as qualidades opostas, isto é, a prolixidade, a afetação, o inchado do frasear e o abuso de conceitos corriqueiros ou rebuscados. De seu valor histórico disseram os censores cousas justas e boas, se bem prejudicadas pelo seu tom hiperbólico, aliás consoante com o do livro.

O mérito incontestável da História de Rocha Pita, ainda com as restrições que do ponto de vista das exigências da história se lhe possam fazer, o de ser a mais completa publicada, como lhe reconheceram os censores oficiais, não o era só para os portugueses que assim podiam melhor informar-se dos sucessos da sua grande colônia. Aos brasileiros, o livro do historiador baiano, escrito num estilo que lhes seria muito grato ao paladar literário e sentimento nativista, ensinava-lhes a história da sua terra, sublimando-a por tal forma, que eles se ufanariam de serem seus filhos.

A velha tendência de apreço e gabo da terra, primeiro vagido do nosso brasileirismo, gosto e louvor não artificial e de estudo, mas natural e espontâneo, por inspirá-lo realmente a grandeza e opulência dela, tendência manifesta, como temos visto, desde os primeiros representantes espirituais do povo aqui em formação, aparecia agora na obra de Rocha Pita como que raciocinada, sistematizada na prosa túmida e florida do seu primeiro historiador publicado. E desde então esse feitio empolado e hiperbólico de dizer da nossa pátria (casando-se aliás perfeitamente com o excesso de detratação ela) seria um rasgo notável do nosso sentimento nacional, manifestando-se literariamente. Apenas haverá d'ora avante poeta ou prosador que não a celebre e cante com os arroubos líricos do seu historiador Rocha Pita. Graças à sua influência, tão consoante com o nosso próprio gênio, será ela magnificada sobre posse, a exata noção da sua natureza deturpada, a sua geografia falsificada, as suas verdadeiras feições escondidas ou desfiguradas sob postiços e arrebiques de patriotismo convencional ou simplório. Das nossas mofinas montanhas, pouco mais que colinas comparadas com as do antigo continente, ou com as de outras regiões do nosso, não teve Rocha Pita pudor de escrever que «umas parecem ter os ombros no céu, outras penetrá-lo com a cabeça». E os demais aspectos naturais do Brasil são assim por ele engrandecidos.

Ufana-se e embevece-se na enumeração hiperbólica da nossa fauna e flora, e no seu ingênuo entusiasmado aceita e propala as noções errôneas que ainda viciam a nossa história natural popular com a existência de feras temíveis, de gados que se alimentam de terra, cobras que trituram o «maior touro» e o devoram. Muitas das nossas abusões e enganos da opulência e feracidade da nossa terra, ilusões umas porventura auspiciosas, outras certamente funestas, vieram de Rocha Pita e de sua influência.

Em meio onde a história era apenas um tema literário e até retórico, sem disciplina científica ou rigoroso método de investigação e crítica, não era despicienda a obra do escritor brasileiro. Compendiava e ordenava não sem capacidade e num estilo ao sabor da época, as dispersas e desconcertadas noções da história do país e vulgarizava-as em forma acessível e simpática. Os seus defeitos e falhas não seriam aos contemporâneos tão patentes quanto avultam para nós.

Poder-se-ia incluir aqui, e não deixaram de fazê-lo os historiadores da nossa literatura, um outro brasileiro, o padre Francisco de Souza, natural da ilha de Itaparica, na Bahia, onde nasceu em 1628, falecido em Goa, na Índia portuguesa, em 1713. Em Lisboa publicou ele em 1710 o seu grosso livro Oriente conquistado a Jesus Cristo pelos padres da Companhia de Jesus na província de Goa, notável exemplar da historiografia e da linguagem e estilo do tempo. Tendo vivido mais de 80 anos, dos quais a máxima parte em Portugal e na Ásia, e escrito de cousas de todo estranhas ao Brasil e segundo o espírito e a maneira portuguesa, esse nosso patrício apenas o é pelo acidente do nascimento. Literariamente ainda nos pertence menos que Gabriel Soares ou o autor dos Diálogos das grandezas.

Da mesquinheza poética da maior parte do século XVIII, surde entretanto, pelo seu último terço, uma por todos os títulos considerável produção poética. Também, ao menos pelo número e mérito particular de informação, aparecem trabalhos históricos que constituem contribuição notável à prosa brasileira. No momento assinalado, uma plêiade de poetas brasileiros entram a concorrer dignamente com os poetas portugueses contemporâneos, a fazerem-se bem aceitos da literatura mãe. Mais brasileiros que nenhuns outros até aí, por mais vivo sentimento da terra natal ou adotiva, ao qual já porventura podemos chamar de nacional, estabelecem esses poetas a transição da fase puramente portuguesa da nossa literatura para a sua fase brasileira. Esta, iniciada pelo romantismo ao cabo do primeiro terço do seguinte século, terá nalguns deles os seus inconscientes precursores.

São em suma esses poetas, reunidos sob a denominação, a meu ver imprópria, de «escola mineira», quando apenas formam um grupo literário, sem algum rasgo característico que coletivamente os distinga, os que enchem esse período de transição e o constituem. Com a criação das academias literárias, o crescimento da população, o seu desenvolvimento mental e econômico e mais o das comunicações da colônia com o Reino, aumentou consideravelmente o número de versejadores, cujos nomes constam de repertórios e livros de consulta especiais. Da multidão desses sobressaem, com qualidades que lhes asseguram um lugar à parte, aqueles a quem, não obstante não passarem de seis, me proponho a chamar englobadamente de plêiade mineira: Santa Rita Durão, Cláudio Manoel da Costa, Basílio da Gama, Alvarenga Peixoto, Tomás Gonzaga e Silva Alvarenga. Estes merecem lugar separado nesta História.

Outros contemporâneos seus, Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), Antônio Mendes Bordalo (1750-1806), Domingos Vidal de Barbosa (1760-1793?), Bartolomeu Antônio Cordovil (1746-1810?), Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811), e que tais versejadores que impertinentemente têm sido anexados à chamada escola mineira, de todo não pertencem ao grupo de poetas com que indiscretamente a formaram. Alguns lhe não pertencem sequer cronologicamente, como Tenreiro Aranha, nascido quando este grupo já ia em adiantada formação. São demais tão insignificantes que podemos dispensar-nos de os levar em conta no estudo da nossa evolução literária. Deles é um dos de melhor engenho o mulato ou crioulo Caldas Barbosa. Nasceu no Rio de Janeiro por volta de 1740 ou nesse ano, e faleceu em Lisboa em 1800. Passou o maior tempo da sua vida em Portugal, como familiar, parasita, quase fâmulo dos condes de Pombeiro, capelão e poeta mercenário dessa família fidalga e generosa. Não tem nenhuma superioridade, porém apenas valerá menos que muitos dos poetas portugueses seus contemporâneos com quem conviveu e emulou. Vivendo a vida portuguesa, conservou, entretanto, alerta, o sentimento íntimo da poética popular brasileira revelado no estilo de algumas composições suas em que desce até as formas indecorosas ou delambidas do verso popular:

Meu bem está mal com eu

gentes de bem pegou nele

tape, tape, tipe, tipe,

ai Céu

ela é minha iaiá

o seu moleque sou eu.



E que tais modos triviais do nosso lirismo popular de mistura com reminiscências, sentimento e sensações de cousas brasileiras.

Cuidei que o gosto de amar

sempre o mesmo gosto fosse

mas um amor brasileiro

eu não sei por que é mais doce.

Gentes como isto

cá é temperado

que sempre o favor

me sabe a salgado:

nós lá no Brasil

a nossa ternura

a açúcar nos sabe

tem muita doçura

Ó! Se tem! Tem

Tem um mel mui saboroso

é bem bom, é bem gostoso.



Cantados à viola, com os requebros e denguices da musa mulata, e o sotaque meloso do brasileiro, versos tais teriam em Portugal o sainete do exótico, para resgatar-lhes a mesquinhez da inspiração e da forma. Não enriquecem a poesia brasileira. Na história desta, Caldas Barbosa apenas terá a importância de testemunhar como se havia já operado no fim do século XVIII a mestiçagem luso-brasileira, que, primeiro física, acabara por influir a psique nacional. Era natural que essa influência no domínio mental se principiasse a manifestar num mestiço de primeiro sangue, como parece era o «fulo Caldas», dos apodos dos seus rivais portugueses. Depois de Gregório de Matos, na segunda metade do século XVII, o qual pode ser, apesar da sua jactância do contrário, não fosse branco estreme, é com Caldas Barbosa que expressamente se revela na poesia brasileira, a musa popular brasileira na sua inspiração dengosamente erótica e no seu estilo baboso.

Ao contrário da poesia, a prosa aqui escrita no mesmo momento, a prosa a que, sequer pelo seu gênero e intuitos, possamos chamar de literária, não deixou documentos que a valorizassem. Os que existem são todavia, relativamente numerosos, e alguns meritórios no tocante à nossa historiografia e informação geral do país. Mas como escritores minguam a todos, ou pouco avultam em todos, os atributos que lhes valeria essa qualificação. De outros a atividade mental e literária foi inteiramente portuguesa e passou-se em Portugal. Estão neste caso os irmãos Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724) e Alexandre de Gusmão (1695-1753), ambos paulistas, de Santos. O primeiro nada tem de comum com a literatura, senão uns medíocres sermões nunca mais lidos; o segundo, alto e versátil engenho, pertence por toda a sua formação e atividade à literatura portuguesa, que justificadamente o adotou.

Os brasileiros a que primeiro nos referimos como autores de obras em prosa são: Pedro Taques de Almeida Pais Leme (17..-1777); Fr. Gaspar da Madre Deus (1730-1800); Antônio José Vitorino Borges da Fonseca (1718-1786); Fr. Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-176.). São todos estes autores de crônicas e relações históricas de nenhum ou de ruim sabor literário ou de secas e insípidas genealogias, acaso subsídios valiosos para a nossa história, mas somenos como boas letras. Sobre o aspecto literário os sobreleva Fr. Vicente do Salvador com a sua História do Brasil, e o mesmo Rocha Pita com a da América portuguesa. Entretanto esta abundância de escritos históricos e outros que poderíamos citar, no século XVIII, não é sem importância e significação na história da nossa literatura, como expressão da nacionalidade. Testemunha que se continuava a operar aqui o trabalho íntimo e lento de uma consciência nacional que buscava apoio e estímulo na indagação dos fastos da terra, da prosápia e feitos de seus filhos, de que já tirara desvanecimento. Também provava a nossa capacidade para lucubrações que no Reino haviam dado renome e consideração aos seus cultores. Se tivessem sido então publicados, houveram esses escritos podido ser um fator do sentimento de solidariedade nacional, que é o mesmo fundamento das nações. Eram em todo caso prova desse sentimento manifesto neles no apreço exagerado e na ufania, não raro indiscreta, dela. O isolamento completo e a separação dos que aqui cultivaram letras não eram já tão completas graças à fundação das academias literárias, que os chamaram donde quer que viessem, para si, como supranumerários ou correspondentes. A literatura dessa época, tomada a expressão do seu mais lato sentido, revela a formação vagarosa e ainda obscura mas certa de uma gente que começa a ter o sentimento de si mesma, que dá provas de inteligência e capacidade mental e que, tendo a confiada opinião da excelência da sua pátria, não tardará muito que não entre a pensar na sua autonomia política. O estímulo daquilo que, na obscuridade dos seus rincões pátrios, escreviam e guardavam esses historiógrafos desinteressados e modestos, andaria já recôndito no sentimento popular. É por isso que, sem embargo da sua formação portuguesa e do seu respeito e apego às tradições espirituais da metrópole, os poetas brasileiros das últimas décadas do século XVIII foram, com espontaneidade que lhes explica a distinção, os intérpretes de tal sentimento. Fato significativo, a poesia de então, pelo estro de Santa Rita Durão, propõe-se claramente a cantar o Brasil, com a mesma intenção patriótica com que Camões cantara Portugal.

Capítulo VI

A plêiade mineira

Das capitanias brasileiras era certamente a de Minas a que mais motivos dava ao surto deste sentimento e aspiração. Nos povos como nos indivíduos, o principal estímulo à autonomia é a consciência, que lhes dá a abastança, de se poderem prover a si mesmos. Descobertas na segunda metade do século XVII, as minas que denominaram a região, e grandemente incrementada nesta a mineração do ouro e do diamante, aflui-lhe das capitanias vizinhas, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, toda a gente, e foi muita, para quem aquelas julgadas fáceis riquezas eram irresistível chamariz. Assim se começou a fazer a população da Capitania de Minas Gerais, desde então a mais avultada, a mais densa e logo depois a mais rica do Brasil. Como a riqueza cria a cultura, pelas facilidades que lhes proporciona, também a mais culta.

Por disposição geográfica do país, e pela variedade dos sítios minerais descobertos, a vida local, longe de se concentrar exclusivamente numa cidade capital, dispersava-se por vários pontos importantes, Sabará, São João del Rei, Diamantina, Mariana, Serro. Com as suas escolas avulsas, seminários episcopais, colégios de jesuítas ou aulas de outros religiosos, também atraídos pelo engodo das minas, eram tais vilas e cidades outros tantos pequenos focos de instrução, e contribuíam para difundi-la pelas comarcas cujo centro eram e pela capitania. Valeriam ainda porventura mais como estímulo do espírito de autonomia, do municipalismo, que devia contrastar o oficialismo reinícola da capital. A riqueza feita a muitos dos seus moradores pela mineração, do mesmo passo que os excitava a uma vida larga e de luxo, largueza e luxo relativos mas consoantes com o meio, e para ele até ostentoso, movia-os a mandarem os filhos não só a Portugal, mas também a outros países europeus, seguir estudos superiores. No século XVIII, mormente na sua segunda metade, o número de doutores, leigos e eclesiásticos, e de clérigos com estudos superiores dos seminários, era com certeza em Minas Gerais maior do que em qualquer outra capitania. Já então, devido justamente a serem principalmente de religiosos os estabelecimentos de ensino e as aulas avulsas de latim criadas em várias localidades pelas reformas de Pombal, andava muito espalhado o estudo do latim e sabê-lo era vulgar em Minas. A ciência do latim constituía ainda, mesmo na mais adiantada Europa, o fundamento e o essencial de toda a cultura. Nas festividades feitas em Mariana, em 1748, por ocasião da ereção do bispado e posse do seu primeiro prelado, nos outeiros e academias realizadas como partes das festas, numerosos versejadores e letrados recitaram, além de discursos congratulatórios e sermões penegíricos, grávidos de erudição latina e hidrópicos de hipérboles, dúzias de poemas, curtos e longos, décimas, sonetos, elegias, acrósticos, cantos heróicos, glosas, silvas, epigramas, em latim e em português.69 Da lição e cultura da capitania podemos fazer idéia pelas livrarias particulares nela àquele tempo existentes. Dão-nos informação a respeito os autos de seqüestros feitos nos bens dos implicados na chamada Conjuração Mineira. Além dos livros profissionais de estudo e consulta, constituíam-nas geralmente os melhores autores latinos no original e gregos no original e em traduções latinas, e mais os franceses Descartes, Condillac, Corneille, Racine, Bossuet, Montesquieu, Voltaire, tratados e dicionários de história e erudição, as décadas de Barros e Couto, os poetas clássicos portugueses, e também Tasso, Milton, Metastásio, Quevedo, afora dicionários de várias línguas, obras de matemáticas, ciências naturais e físicas e outras.

Ainda em antes de findar o primeiro quartel do século, começaram a manifestar-se em Minas sintomas de descontentamento da metrópole e de hostilidades aos seus propostos à governança da capitania. Contam-se desde então alguns alvorotos e motins, pomposa e impropriamente apelidados de revoltas e até de revoluções pelos historiadores indígenas, contra o governo colonial. Reprimidos alguns com a bruta violência com que em todos os tempos todos os governos presumem impedir o natural levante contra os seus desmandos, a sua repressão apenas serviu para desenvolver ou acirrar a animadversão do brasileiro contra o reinol. Dos governadores da capitania os houve fidalgos da melhor nobreza portuguesa, homens de corte e de sociedade, talvez com os vícios e defeitos nessas comuns, mas em todo caso com as prendas que eram o apanágio de sua classe. Acompanhavam-nos outros gentis-homens, que com os filhos da terra mais graduados por educação, haveres, famílias e postos, faziam em Vila Rica, a pitoresca capital de Minas, uma pequena corte. Festas de igreja, freqüentes e pomposas, cavalhadas, canas e outros divertimentos do Reino para aqui, a que acudiam os vizinhos desde Diamantina, Mariana e mais longe, e animavam.

Mais numerosa e mais densa que nenhuma outra do Brasil, a população de Minas, aquela ao menos que tinha Vila Rica por centro imediato, sentia-se melhor o contacto recíproco, criador da solidariedade. Sendo a mais rica, era também a mais isenta, a mais desvanecida de suas possibilidades. Este desvanecimento bairrista tinha-o Tiradentes em sumo grau. O espírito localista, feição congênita dos mineiros, oriundos das condições físicas e morais do desenvolvimento da capitania, fortificava ali o nativismo ou nacionalismo regional. O sentimento da liberdade e da independência, atribuído geralmente aos montanheses, parece ter em Minas mais uma vez justificado o conceito. Foi este meio que produziu a floração de poetas que é a plêiade mineira. Em qualquer outro do Brasil o seu aparecimento se não compreenderia.

Esses poetas são: Santa Rita Durão (17...-1784), Cláudio da Costa (1729-1780), Basílio da Gama (1741-1795), Alvarenga Peixoto (1744-1793), Tomás Gonzaga (1744-1807?), Silva Alvarenga (1749-1814). Estes são os que formam o grupo até aqui impropriamente chamado de escola mineira, e que chamaremos, porventura, com mais propriedade, a plêiade mineira. Além destes, e pelo mesmo tempo, produziu Minas muitos outros poetas, somenos a este, meros versejadores ocasionais, como sempre os houve aqui, dos quais nenhum ultrapassou a fama local contemporânea. Os mais miúdos noticiadores nomeiam: Joaquim Inácio de Seixas Brandão, Joaquim José Lisboa, Antônio Caetano Vilas Boas da Gama, irmão de Basílio, Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, Francisco Gregório Pires Monteiro Bandeira, Miguel Eugênio da Silva Mascarenhas, Silvério Ribeiro de Carvalho, Francisco e Domingos Barbosa, Matias Alves de Oliveira. São nomes sem outra significação e valia que o de servirem para atestar a existência em Minas de forças poéticas que ajudam a explicar a formação daquela plêiade.

Mas a só influência deste meio, onde nasceram e se criaram, não bastaria a explicar-lhes o estro e surto poético, e menos a atividade literária. A esse primeiro influxo pátrio juntou-se preponderantemente o de sua longa permanência na Europa, do seu convívio em um ambiente social e literário mais estimulante dos seus dons nativos do que seria a sua terra e o meio, em suma acanhado, em que se haviam criado. O contrário aliás passou com Tomás Gonzaga, do grupo o único que não era brasileiro, e o único de quem se pode dizer que foi o Brasil que o fez poeta. Não se conhece com efeito nenhuma produção anterior às liras de Marília de Dirceu, e estas resultaram de seus amores malfadados com uma brasileira, e, concomitantemente, de sucessos em que se achou envolvido no Brasil, que aos seus louros de poeta juntaram a coroa de mártir da liberdade.

I. Os líricos

Quando se lhes formou o espírito aos poetas mineiros ou começavam eles a poetar, viçava em Portugal o arcadismo, movimento propositadamente iniciado ali por meados do mesmo século XVIII contra o gongorismo do século antecedente. O arcadismo, porém, foi mais que uma escola, um estilo literário. Ao contrário dos seus manifestos intuitos não conseguiu, se não muito parcialmente, nem desbancar o seiscentismo, nem fazer regressar as letras portuguesas, como era o seu propósito, à natureza e ao natural, à nobre simplicidade, à pureza da frase, à verossimilhança dos pensamentos. Aliás estas virtudes nunca foram comuns nessas letras. E no arcadismo ficaram ainda ressaibos demasiados do sescentismo contra o qual se organizara.

Os poetas mineiros, como os demais poetas brasileiros da mesma época, nenhum benemérito de menção particular, são antes de tudo Arcades, ainda quando não pertencem efetivamente a alguma das Arcádias do Reino. No Brasil nenhuma houve com existência real de sociedade organizada de poetas. As de que se fala não passaram de imaginações e fingimentos seus. Como Árcades portugueses, eles não foram somente ao geral dos seus contemporâneos da metrópole, antes, como reconheceu Garrett e o têm verificado outros historiadores da literatura portuguesa, contribuíram para lhe avultar e enriquecer a poesia naquela época. O que decididamente os sobreleva àqueles e os torna mais notáveis e, para nós ao menos, mais interessantes, são as suas novas contribuições à poesia portuguesa, com as quais também entra a nossa a se distinguir dela. Introduzem um novo elemento de emoção, o seu nativismo comovido, o seu patriotismo particular; um novo assunto, a gente e a natureza americana, e com isto, e resultante disto, novos sentimentos e sensações, indefiníveis talvez mais sensíveis, que o meio novo de que eram, do qual ou no qual cantavam, lhes influía nas almas. Escapando, pelo seu mesmo exotismo ao predomínio absoluto das tradições literárias portuguesas, ao rigor da moda poética então na metrópole vigente, puderam ser e foram mais naturais, mais isentos dos defeitos e vícios em que se desmanda ali essa moda. São, em suma, menos gongóricos que os portugueses, sacrificam muito menos à mitologia e ao trem clássico do que eles.

Segundo a ordem cronológica de sua manifestação, Cláudio da Costa é o primeiro destes poetas. Nasceu no Sítio da Vargem, distrito da cidade de Mariana, aos 5 de junho de 1729, de João Gonçalves da Costa, português, e Teresa Ribeiro de Alvarenga, mineira. Seu pai ocupava-se de mineração e lavoura. Por parte de pai, seus avós eram portugueses, e de mãe brasileiros, de São Paulo e de boa geração. Eram gente abonada, pois quatro dos seus cinco filhos cursaram a Universidade de Coimbra. Tinha em Minas um tio frade e doutor, Fr. Francisco Vieira, que fora opositor daquela Universidade e era agora procurador-geral da Religião da SS. Trindade no Brasil. Com ele iniciou os primeiros estudos de latim em Ouro Preto, donde aos quatorze anos se passou ao Rio de Janeiro. Aqui, no colégio dos jesuítas, estudou filosofia. Com vinte anos embarcou para Portugal, com destino a Coimbra, em cuja Universidade se formou em cânones. Entre 1753 e 54 recolheu ao Brasil, dando-se à advocacia em Vila Rica, onde também exerceu o importante cargo de secretário do Governo. Por sua idade, boa lição clássica, fama de douto e crédito de autor publicado, exerceu Cláudio da Costa ali uma espécie de magistério entre os seus confrades em musa, maiores e menores, que todos lhe liam as suas obras e lhe escutavam os conselhos. Aos sessenta anos foi comprometido na chamada Conjuração Mineira. Preso, e sem dúvida apavorado com as conseqüências da tremenda acusação de réu de inconfidência, suicidou-se na prisão.

Na minuta manuscrita de seus escritos que acompanha os citados apontamentos, declara Cláudio que «aplicado desde os primeiros anos ao estudo das belas-letras» conservava inéditos em 1759: Rimas nas línguas latina, italiana, portuguesa, castelhana e francesa em poesia heróica e lírica, dois tomos in 4º. É preciosa a confissão, menos como testemunho da capacidade poética do nosso patrício em cinco línguas, que por mostrar quanto, com mais de meio século de permeio, e a despeito da Arcádia, estava ainda perto de Botelho de Oliveira, o poeta seiscentista da Música do Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas. Cláudio Manoel da Costa é aliás, e ficaria, o mais português dos poetas mineiros, o mais seiscentista e simultaneamente o mais arcádico, o mais achegado à inspiração e poética portuguesa tradicional e a do momento em que se lhe formou o espírito, em suma, o menos brasileiro do grupo. Di-lo bastantemente o só título de seus escritos inéditos e publicados, Rimas pastoris ou Musa bucólica, centúria sacra, poema ao glorioso parto de Maria Santíssima, Monúsculo poético, Culto métrico a certa abadessa, e quejandos.

Poetou e escreveu com abundância segundo se vê das suas mesmas citadas informações, e o testemunha a parte publicada de sua obra.

Nos citados «Apontamentos» figuram entre os seus manuscritos Poesias dramáticas que se têm muitas vezes representado nos teatros de Vila Rica, Minas em geral e Rio de Janeiro e Várias traduções de dramas de Metastásio. Alguns destes dramas em rima solta, outros em prosa, proporcionados ao teatro português. Sobre confirmarem a variedade de aptidões poéticas de Cláudio da Costa, seriam estas obras contribuição porventura estimável para a história da nossa literatura dramática e ainda do nosso teatro. Parece que se perderam todas. De sua copiosa obra poética, a porção verdadeiramente insigne são os Sonetos, entre os quais os há rivalizando os mais excelentes da língua. Obedecendo à poética preconizada pelos fautores da Arcádia, embora com sobrevivências do seiscentismo, duas feições distinguem os sonetos de Cláudio Manuel da Costa: um vago perfume camoniano e uma sensibilidade particular porventura a primeira manifestação da nostalgia brasileira, depois repetida por tantos poetas nossos. São amostras destes dois traços os sonetos:

Se os poucos dias que vivi contente

foram bastantes para o meu cuidado,

que pode vir a um pobre desgraçado

que a idéia do seu mal não acrescente!

Aquele mesmo bem, que me consente,

talvez propício, meu tirano fado

esse mesmo me diz, que o meu estado

se há de mudar em outro diferente.

Leve pois a fortuna os seus favores;

eu os desprezo já; porque é loucura

comprar a tanto preço as minhas dores:

Se quer que me não queixe, a sorte escura

ou saiba ser mais firme nos rigores

ou saiba ser constante na brandura.



Onde estou! Este sítio desconheço;

quem fez tão diferente aquele prado!

tudo outra natureza tem tomado;

e em contemplá-las tímido esmoreço.

Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço

de estar a ela um dia reclinado:

ali em vale um monte está mudado:

quanto pode dos anos o progresso!

Árvores aqui vi tão florescentes

que faziam perpétua a primavera:

nem troncos vejo agora decadentes.

Eu me engano: a região esta não era:

mas que venho a estranhar, se estão presentes,

meus males com que tudo degenera!



Este é o rio, a montanha é esta,

estes os troncos, estes os rochedos,

são estes inda os mesmos arvoredos;

esta é a mesma rústica floresta.

Tudo cheio de horror se manifesta,

rio, montanhas, troncos e penedos

que de amor nos suavíssimos enredos

foi cena alegre, e urna é já funesta.

Oh! Quam lembrado estou de haver subido

aquele monte, e às vezes, que baixando

deixei do pranto o vale umedecido!

Tudo me está a memória retratando;

que na mesma saudade do infame ruído

vem as mortas espécies despertando.



Memórias do presente, e do passado

fazem guerra cruel dentro em meu peito;

e bem que ao sofrimento ando já feito,

mais que nunca desperta hoje o cuidado.

Que diferente, que diversos estado

é este, em que somente o triste efeito

da pena, a que meu mal me tem sujeito,

me acompanha entre aflito e magoado!

Tristes lembranças! E que em vão componho

a memória da vossa sombra escura!

Que néscio em vós a ponderar me ponho!

Ide-vos; que em tão mísera loucura

todo o passado bem tenho por sonho;

só é certa a presente desventura.



Adorador fiel das musas européias, age não obstante nele o incoersível império da terra natal, para onde quisera trazer e onde quisera aclimatar aquelas musas, e o seu cortejo clássico de «ninfas, o pastor, a ovelha, o touro»:

Musas, canoras Musas, este canto

vós me inspirastes, vós meu tenro alento

erguestes brandamente àquele assento.

Que tanto, ó Musas, prezo, adoro tanto.

Lágrimas tristes são, mágoas e pranto,

tudo o que entoa o músico instrumento;

mas se o favor me dais, ao mundo atento

em assunto maior farei espanto.

Se em campos não pisados algum dia

entre a Ninfa, o Pastor, a ovelha, o touro,

efeitos são da vossa melodia;

que muito, ó Musas, pois, que em fausto agouro

cresçam do pátrio rio à margem fria

a imarcescível hera, o verde louro!



Sem embargo dos seus poemas de intuitos nativistas, como a Fábula do Ribeirão do Carmo e Vila Rica, faltou-lhe infelizmente talento para desta transplantação fazer melhor do que instalar na paisagem e no ambiente americano os estafados temas e motivos da cansada poesia pastoril portuguesa, sem ter ao menos, como Gonzaga, alguma forte paixão que os reviçasse. Influenciado sem dúvida pelo exemplo de Basílio da Gama e de Durão, compôs o seu poema brasileiro, se não pelo sentimento e inspiração, pelo assunto, Vila Rica. É uma obra medíocre, indigna do poeta dos Sonetos e ainda de outros versos, a qual apenas revê o apego à tradição que fazia anacronicamente viver esse gênero na literatura da nossa língua.

Vernáculo nesta e correto na forma e estilo poético de fino e delicado sentimento, com tons bastante pessoais, apenas um todo nada gongórico, Cláudio Manoel da Costa é, todavia, julgando-o pelo conjunto da sua obra, o mais árcade dos árcades brasileiros. Não tem alguma emoção grande ou profunda, poetiza por poetizar, academicamente, seguindo de perto a escola na inspiração, nos temas preferidos, nas formas métricas. É um virtuose e um diletante, se podemos juntar os dois termos, mas o é com engenho e não raro, nos Sonetos, formosamente. Nenhum dos seus poemas em que se pode enxergar algo de sentimento pátrio, ou de influxo da terra natal, se distingue na sua obra. Revelam, porém, todos, ainda que vagamente, como tais motivos começavam a impor-se aos engenhos brasileiros, dos quais volvido meio século se iam tornar prediletos.

Nasceu Tomás Antônio Gonzaga em Portugal, na cidade do Porto, em 1744, de pai fluminense e mãe portuguesa, filha de inglês. Como o pai houvesse exercido a magistratura na Bahia, Tomás Gonzaga passou algum tempo da adolescência nessa cidade, ainda então a principal do Brasil. Voltando com a família a Portugal, aos vinte e quatro anos bacharelou-se em leis em Coimbra. Por ter sido opositor a cadeiras da faculdade jurídica, fez jus ao título de desembargador. Com essa graduação veio para o Brasil, em 1782, nomeado ouvidor de Vila Rica, a pitoresca e sombria capital de Minas Gerais. Afora a declaração de uma de suas liras, de que por amor de Marília destruíra os versos que antes de a conhecer consagrara a outras mulheres, declaração que apenas será gentileza de namorado, não se conhece testemunho de que Gonzaga houvesse poetado antes de vir para o Brasil. Ao contrário, nenhum indício há de o ter feito. Foi o Brasil que o fez poeta, e é isto que o naturaliza brasileiro. Aqui se lhe depararam os motivos do seu poetar, primeiro a mulher que parece ter amado de um grande e terno amor, principal estímulo do seu estro até então adormecido; depois os sucessos que, a despeito da sua inocência, o envolveram na chamada Conjuração Mineira. Despedaçando-lhe a existência, que se lhe antolhava auspiciosamente fagueira, esses sucessos ajuntaram às emoções dolorosas dos seus contrariados amores o abalo cruel de uma calamidade inaudita: a acusação do crime de lesa-majestade, a prisão, os ferros, os maus tratos, a masmorra, um longo e martirizante processo, a perspectiva da forca, em suma o desmoronar súbito e brutal de todas as suas risonhas esperanças de namorado e funcionário, em via de realização. De sua dor fez as formosas canções que o imortalizaram, como um dos bons poetas do amor da nossa língua. A brasileira sua amada era uma jovem matuta, sem outra cultura e espírito que as suas graças naturais. Para ser dela entendido e tocá-la, versejou-lhe naturalmente, simplesmente, com o mínimo de artifícios clássicos possível à poética portuguesa, quase sem arrebiques literários, nem rebuscas de expressão, que ela pudesse desentender. Assim como lhe forneceu o motivo e o estímulo de inspiração, deu-lhe o Brasil também o estilo que o distingue e sobreleva aos seus pares. Como poeta é, pois, Gonzaga um lídimo produto brasileiro.

Comutada a pena de morte, imposta pela alçada que julgou a presumida conspiração, em degredo para Angola, em África, ali morreu de miséria moral e física pelos anos de 1807 a 1809. A primeira edição de suas liras, sob o título que se devia tornar famoso de Marília de Dirceu, apareceu em Lisboa, em 1792, no mesmo ano da sua condenação e desterro. E desde então se tem feito delas, aumentadas de suas partes, cuja autenticidade é questionável, trinta e quatro edições. Nenhum outro poema da nossa língua, com a só exceção dos Lusíadas, teve tão grande número de edições.

Marília de Dirceu, o título consagrado das liras de Gonzaga, é a mais nobre e perfeita idealização do amor da nossa poesia. Clássica embora de língua e poética, é uma obra pessoal, escapa e superior às fórmulas e competências das escolas. Canta de amor numa toada sinceramente sentida e por isso tocante, do amor como a grande e fecunda e honesta paixão humana nas suas relações com a vida, ainda nos seus aspectos prosaicos, a existência e os sentimentos vulgares ou sublimes. Por essa expressão é Gonzaga um grande poeta.

No que em Gonzaga se revê o português, como aliás em Cláudio da Costa, brasileiro nato, é nos afeites portugueses de sua poesia, os fingimentos pastoris, imagens e tropos de ambos derivados. Isso mesmo, porém, não é mais essencialmente português do que italiano ou espanhol, se não puramente arcádico. Mas a realidade da sua situação, a verdade do seu sentimento, a sinceridade da sua emoção, sobrelevaram as máculas postas no seu poema pelos inevitáveis estigmas da poética em voga e quase as apagaram. Se o Brasil o naturalizou seu, fazendo-o poeta, ele por sua vez foi o principal agente de naturalização aqui da sentimentalidade voluptuosa do lirismo português. Foi ele, com efeito, o primeiro que no Brasil cantou tão constante, tão exclusiva e tão ternamente de amor.

Dos poetas desta plêiade, o de obra menos considerável é Inácio José de Alvarenga Peixoto. Natural do Rio de Janeiro, filho de Simão de Alvarenga Braga e de D. Ângela Micaela da Cunha, que ignoramos se eram brasileiros ou portugueses, gente se não de bom nascimento, abonada. Feitos os primeiros estudos com os jesuítas, na sua cidade natal, por volta de 1760 foi concluí-los em Portugal. Em Coimbra formou-se em leis, em Cintra foi juiz de fora e no Reino demorou-se até depois de 1775. Neste ano ainda se encontrava ali, onde, com outros poetas e versejadores brasileiros, Basílio da Gama e seu irmão Antônio Caetano Vilas Boas da Gama, Joaquim Inácio de Seixas, da família da futura namorada de Gonzaga, Silva Alvarenga e outros mais versejou à inauguração da estátua de D. José I. De Portugal voltou despachado ouvidor da Comarca do Rio das Mortes. Este cargo, e o seu posterior casamento com uma senhora mineira de família paulista, levou Alvarenga Peixoto a domiciliar-se e estabelecer-se em Minas, onde trocou a profissão de magistrado pela de fazendeiro e minerador e o título acadêmico de doutor pelo de coronel, pelo qual ficou mais conhecido. Dera-lhe esta patente, com o comando do regimento de cavalaria da campanha do Rio Verde, o Governador D. Luís da Cunha Menezes. Vivendo em São João del Rei, ia freqüentemente a Vila Rica, onde era hóspede habitual de Gonzaga, de quem devia ter sido companheiro em Coimbra e era ainda parente. Estes dois poetas e Cláudio da Costa encontravam-se em fraternal convívio, comunicando-se mutuamente as suas composições e conversando de letras e, naturalmente, das cousas da capitania. Destas conversações, em que tomariam parte outros homens de letras ou de alguma representação na capitania, mal entendidas por uns, deturpadas por outros, originou-se a suspeita de uma conjuração contra o domínio português, com o intento de conflagrar a capitania e proclamar a sua independência. Não obstante o seu aulicismo e a constância de suas manifestações bajulatórias de veneração a soberanos e magnates portugueses seus delegados, foi Alvarenga Peixoto comprometido nela, preso e, com Gonzaga e seus outros companheiros de suspeição, trazido algemado para as lôbregas masmorras do Rio de Janeiro. Após um longo processo de três anos, delas saiu para o desterro de Ambaca em África, onde pouco depois morreu em 1793.

A crermos os seus biógrafos, incluindo o melhor deles, Norberto Silva, Alvarenga Peixoto escreveu muito maior número de composições do que as que se lhe conhecem, e que Norberto foi quem mais completa e cuidadosamente colecionou. Voltando de Portugal ao Rio de Janeiro, aqui o acolheu benignamente o vice-rei Marquês de Lavradio. No teatro ou «casa da ópera», como lhe chamavam, criado por este vice-rei, fez Alvarenga Peixoto, sempre chegado aos magnates, representar uma tradução em versos de Mérope, tragédia de Maffei e também um drama original, igualmente em versos, Enéias no Lácio. Tal é ao menos a versão de Cunha Barbosa propalada por Norberto, ignoramos com que fundamento. Infelizmente essas tentativas, como as de Cláudio da Costa, e outros que porventura houve, perderam-se totalmente. Assim também se teriam perdido, levadas no tufão da devassa e seqüestros de que foram objeto os acusados de inconfidência e seus bens, muitas outras composições de Alvarenga Peixoto. No que dele nos resta -vinte sonetos, duas liras, três odes incompletas, uma cantata e um canto em oitava rima- percebe-se um bom poeta, de seu natural fácil e fluente. Não lhe falta imaginação nem conceito. Infelizmente o motivo principal de sua inspiração no que dele nos ficou, versos na maior parte de encômios a magnates, versos de cortesão, lhe haveria prejudicado dotes que mais se adivinham que se sentem. Passa como um dos seus melhores sonetos A saudade, feito depois da sua sentença de morte. Não lhe seriam inferiores A lástima, composta «na masmorra da Ilha das Cobras, lembrando-se da família», nem o feito à Rainha D. Maria I suplicando-lhe a comutação da pena de morte, se não houvesse em ambas demasiados traços da ruim poética do tempo, empolada e campanuda. Comparticipa Alvarenga Peixoto do sentimento comum a estes poetas de afeto, pode mesmo dizer-se de ufania, da terra natal, unido a um sincero apego a Portugal. Manifesta-se na maior parte dos poemas que lhe conhecemos, particularmente na ode à Rainha D. Maria I, da qual se poderia inferir ter havido aqui a esperança de que ela cá viesse, em visita à sua colônia:

Se o Rio de Janeiro

só a glória de ver-vos merecesse

já era vosso mundo novo inteiro

[...]

Vinde, real senhora

honrar os nossos mares por dous meses

vinde ver o Brasil que vos adora

[...]

Vai, ardente desejo,

entra humilhado na real Lisboa

sem ser sentido do invejoso Tejo

aos pés augusto voa,

chora e faze que a mãe compadecida

dos saudosos filhos se condoa

[...]

Da América o furor

perdoai, grande augusta; é lealdade

são dignos de perdão crimes de amor.



Este sentimento, que é manifesto em todos os poetas, desdiz do que lhes imputou a torva e suspicaz política dos governadores e vice-reis portugueses, cujo excessivo zelo lhes transformou apenas indiscretas conversações em conjuração e fez destes árcades ideológicos réus de inconfidência, destruindo estúpida e maldosamente três destes amáveis poetas. Este íntimo sentimento casava-se-lhes na fantasia com a ambição patriótica de que se aumentasse na monarquia portuguesa a importância de sua terra e que as nobres estirpes daquela dessem aqui rebentos que lhe quisessem como a sua. Estas e outras quimeras, vagos e indecisos sonhos de poetas, se encontram no Sonho e no Canto genetlíaco, de Alvarenga Peixoto, em que, a propósito do filho do governador D. Rodrigo de Menezes, se rejubila de que:

Os heróis das mais altas cataduras

principiam a ser patrícios nossos.



Chegamos ao último, na ordem do tempo, dos líricos deste belo grupo. É Manoel Inácio da Silva Alvarenga, natural de Vila Rica, em Minas, onde nasceu em 1749, donde saiu apenas adolescente e aonde não mais voltou. Era filho de um homem pardo, Inácio Silva Alvarenga, músico de profissão, como têm sido tantíssimos de sua raça no Brasil, e pobre, e de mãe desconhecida. A benevolência de pessoas a quem a sua inteligência e vocação estudiosa interessava, deveu poder vir para o Rio estudar, e daqui, feitos os preparatórios, seguir para Coimbra, onde se bacharelou em cânones, sempre com as melhores aprovações, em 1775 ou 76, com 27 anos de idade. Em Portugal relacionou-se com alguns patrícios, como Alvarenga Peixoto e Basílio da Gama, mais velhos do que ele e também poetas. Do último, parece, foi grande amigo. Celebrou-o mais de uma vez, e efusivamente, em seus versos. No círculo destes e de outros brasileiros dados às musas, ter-se-ia primeiro feito conhecido. Em 1774 publicara em Coimbra o poema herói-cômico. O Desertor (8º, 69 págs.), metendo à bulha o escolasticismo coimbrão, pouco antes desbancado pelas reformas pombalinas, e celebrando estas reformas. Franco é o mérito literário deste poema. Não é, todavia, despiciendo como documento de um novo estado de espírito, mais literal e desabusado, da sociedade portuguesa sob a ação de Pombal, e do caminho que havia feito em espíritos literários brasileiros o sentimento pátrio, manifestado no poema em alusões, referências, lembranças de cousas nossas. Quando foi do dilúvio poético da inauguração da estátua eqüestre de D. José I, em 1775, Silva Alvarenga o engrossou com um soneto e uma ode. O mesmo motivo inspirou-lhe ainda a epístola em alexandrinos de treze sílabas Ao sempre augusto e fidelíssimo rei de Portugal o Senhor D. José I no dia da colocação de sua real estátua eqüestre. Era então estudante, e tal se declara no impresso da obra. Dois anos depois vinha a lume o Templo de Netuno, poemeto (idílio) de sete páginas em tercetos e quartetos, muito bem metrificados, com que, ao mesmo tempo que celebra a aclamação da Rainha D. Maria I:

Possa da augusta filha o forte braço

por longo tempo sustentar o escudo,

que ampara tudo o que seu reino encerra

e encher de astros o céu, de heróis a terra.



se despede sinceramente sentido de seu amigo o patrício Basílio da Gama:

Ainda me parece que saudoso

te vejo estar da praia derradeira

cansando a vista pelo mar undoso.

Sei que te hão de assustar de quando em quando

os ventos, os vários climas e o perigo

de quem tão longos mares vai cortando.

Vive, Termindo, e na inconstante estrada

pisa a cerviz da indômita fortuna,

tendo a volúbil roda encadeada

aos pés do trono em sólida coluna.



Com este conselho baixamente prático ao recém-protegido de Pombal para que angarie também o patrocínio da rainha de pouco aclamada, e que ia ser o centro da reação contra aquele, termina Silva Alvarenga o seu poema. Antes de lhes exprobrarmos a vileza do sentimento, consideremos que era muito menor e muito mais desculpável do que iguais que agora vemos em todo o gênero de plumitivos. Ele procedia consoante o tempo e o uso geral de poetas e literatos, que ainda não tinham outro recurso que a proteção dos poderosos. Precede imediatamente esta quadra menos digna, e acaso por isso mesmo menos bela, o formoso e sentido terceto:

Se enfim respiro os puros climas nossos,

no teu seio fecundo, ó Pátria amada,

em paz descansem os meus frios ossos,



que revê o sentimento do amor da terra natal comum a todos estes poetas, que todos o manifestaram de forma a lhe sentirmos o trabalho de transformação do limitado nativismo, se não apenas bairrismo, de seus predecessores em um patriotismo mais consciente e amplo. Vinha este poema assinado por «Alcindo Palmireno, árcade ultramarino» e era endereçado a «José Basílio da Gama, Termindo Sepílio». Estas alcunhas arcádicas, e outras que tomaram vários poetas do mesmo grupo, como a de Dirceu, de Gonzaga, não indicam nos que as traziam a qualidade de associados de alguma das sociedades literárias então existentes com o nome de Arcádias. Somente de Cláudio e Basílio se pode crer que a tais sociedades pertencessem. Na maioria dos outros, do grupo mineiro ou não, era apenas um apelido genérico. Arcádia quer dizer assento de poetas, e por extensão poesia, e, em Portugal e aqui, a poesia na época vigente. Árcade valia, pois, o mesmo que poeta. «Árcade ultramarino» não dizia mais que poeta do ultramar, sem de forma alguma indicar a existência no Brasil dessas sociedades, que de fato nunca aqui existiram.

Foi Silva Alvarenga um dos mais fecundos e melhores poetas da plêiade mineira. Desde o Desertor das letras, o seu poema herói-cômico contra o carrancismo do ensino universitário, não cessou de versejar. Em folhas avulsas, folhetos, coleções e florilégios diversos, jornais literários portugueses e brasileiros (pois ainda foi contemporâneo dos que primeiro aqui apareceram), foram publicadas as suas muitas obras. A de mais vulto, o poema madrigalesco Glaura, saiu em Lisboa em 1799 e 1801. As notas de aprovação obtidas em Coimbra por Silva Alvarenga lhe argúem hábitos de estudo sério, que tudo faz supor conservasse depois de graduado e pela vida adiante. Era seguramente homem de muito boas letras, com a melhor cultura literária que então em Portugal se pudesse fazer. Quanto a ela, juntava, além do engenho poético, talento real, espírito e bom gosto pouco vulgar no tempo; sobejam-lhe as obras para o provar, nomeadamente os seus prefácios e poemas didáticos. Assenta consigo mesmo, embora segundo a Arcádia e Garção, que na «imitação da natureza consiste toda a força da poesia», e a sua Epístola a José Basílio, insistindo nesta opinião, está cheia de discretos conceitos de bom juízo literário. Se nem sempre os praticou, é que mais pode com ele a influência do momento literário que as excelentes regras da sua arte poética. Lera Aristóteles, Platão, Homero. Lida com eles e os cita de conhecimento direto, e a propósito. Conhece as literaturas modernas mais ilustres, inclusive a inglesa. Não lhe são estranhas as ciências matemáticas, físicas ou naturais. No seu poema As artes, as figura, ou se lhes refere com apropriadas alegorias ou pertinentes alusões.

Formado em cânones voltou Silva Alvarenga ao Rio de Janeiro em 1777, e aqui se deixou ficar, talvez porque nenhum afeto ou interesse de família, que não a tinha regular, o chamasse a Minas, sua terra natal. Vários poemas seus, nomeadamente a sua Ode à mocidade portuguesa, a epístola a Basílio da Gama e As artes, acima citado, mostram em Silva Alvarenga um espírito ardoroso de cultura, de progresso intelectual, e entusiasta de letras e ciências. Ele traria para o Brasil desejos e impulsos de promover tudo isto aqui. Angariando a boa vontade do vice-rei de então, Marquês do Lavradio, fundou, com outros doutos que aqui encontrou, uma sociedade científica, cujo objeto principal «era não esquecerem os seus sócios as matérias que em outros países haviam aprendido, antes pelo contrário adiantar os seus conhecimentos». Foi efêmera a existência desta sociedade. Num outro vice-rei, Luís de Vasconcelos e Sousa, encontrou igualmente o nosso poeta animação e patrocínio. Por ele teve a nomeação de professor régio de uma aula de retórica e poética, solenemente inaugurada em 1782, e sob os seus auspícios restaurou, em 1786, com a denominação agora de Sociedade Literária, a associação extinta. Dela foi secretário e porventura a alma. A mal conhecida existência destas duas associações literárias fundadas por Alvarenga deu azo às hipóteses e imaginações que têm aliás ocorrido como certezas, de uma Arcádia Ultramarina, criada por ele com o concurso de Basílio da Gama, que entretanto estava em Portugal, donde nunca mais saiu. Dos sócios destas duas sociedades, médicos, letrados, padres, o único nome que escapou ao completo esquecimento e a história literária recolheu além do de Silva Alvarenga, foi o de Mariano José Pereira da Fonseca, o futuro Marquês de Maricá, autor das Máximas. A esta atividade literária juntava Alvarenga a profissão de advogado. Mudado o vice-rei liberal pelo Conde de Rezende, que não o era (1790), este, tornado mais desconfiado pelos recentes sucessos da Inconfidência Mineira, enxergou nessa reunião de estudiosos e homens de letras não sei que sinistros projetos de conjura contra o poder real. Preso em 1794, após múltiplos interrogatórios e mais de dois anos de prisão nas lôbregas masmorras da fortaleza de Santo Antônio, foi Silva Alvarenga restituído sem julgamento à liberdade. Teve sorte. Não eram acaso mais culpados do que ele os seus confrades de Minas, dois anos antes, comutada a sentença de morte em desterro, mandados morrer nas inóspitas areias africanas. Faltou apenas um pouco mais de zelo ao vice-rei Rezende e ao principal juiz da nova alçada, o poeta do Hissope, Dinis. Viveu até 1814 e colaborou ainda no Patriota, a revista literária que fomentou o movimento intelectual anterior à independência.

Pelo espírito, pelo temperamento literário, pelo estilo tanto como pela idade, é Silva Alvarenga o mais moderno dos poetas do grupo, o menos iscado dos vícios da época, o mais livre dos preconceitos da escola, cujas alusões e ridículo não desconhecia, como se vê na sua Epístola a José Basílio. Tem além disso bom humor, espírito e, em suma, revê melhor que os outros a emancipação produzida em certos espíritos pela política antijesuítica de Pombal. Com ser mestre de retórica, evita mais que os outros os recursos do arsenal clássico e mitológico. E quando cede à corrente, o faz com muito mais personalidade senão originalidade, mesmo com desembaraço e liberdade rara no tempo. É disso prova a sua formosa heróide Teseu e Ariana, uma das melhores amostras da nossa poesia, naquela época.

II. Os épicos

É principalmente na épica que os brasileiros, se não sobrelevam aos portugueses da segunda metade do século XVIII, concorrem dignamente com eles. Os dois poemas brasileiros, o Uraguai, de Basílio da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão, não desmerecem das melhores epopéias portuguesas da época.

José Basílio da Gama nasceu nos arredores da antiga Vila de S. José do Rio das Mortes, depois S. José de El-Rei, hoje Tiradentes, 1741. Foram seus pais o capitão-mor Manoel da Costa Vilas Boas, português, e D. Quitéria Inácia da Gama, brasileira, ambos de bom nascimento. A mãe descendia da nobre família Gama de Portugal, motivo por que talvez o filho lhe preferisse o apelido ao do pai. De seus ascendentes somente eram brasileiros a mãe e a avó materna. Órfão de pai em anos verdes, e talvez minguado de bens, veio para o Rio de Janeiro cursar de favor o colégio dos jesuítas. Estava para professar na Companhia quando foi esta dissolvida e seus membros expulsos dos domínios portugueses. Aproveitando a exceção em favor dos não professos, abandonou Basílio da Gama a Companhia. Do Brasil passou a Portugal e daí a Roma, onde foi admitido à Arcádia Romana. De Roma voltou ao Brasil em fins de 1766 ou princípios de 1767. Em meados do ano seguinte tornava a Portugal, com destino à Universidade de Coimbra. Preso em Lisboa como ex-jesuíta, esquivou o conseqüente desterro para Angola consagrando um formoso poema ao casamento de uma filha do Marquês de Pombal, ministro todo-poderoso de D. José I. No próprio ano (1769) desse Epitalâmio, saiu da Impressão régia o Uraguai. Como no mesmo volume vinha a Relação abreviada, famosa diatribe contra os jesuítas, obra pessoa de Pombal, é legítimo conjeturar que por conta deste correra a publicação do poema. Dedicado no texto ao irmão de Pombal, ex-governador do Pará, Maranhão, era oferecido ao marquês em um soneto preliminar. Desde então não saiu mais Basílio da Gama de Portugal, sendo inexata a notícia corrente de uma segunda vinda ao Brasil depois da publicação do Uraguai. Além deste, que é a sua obra capital, compôs mais de trinta poemas, entre maiores e menores, sem contar algumas glosas. Em 1754 foi nomeado oficial da Secretaria do Reino. Sucessivamente obteve mais tarde o título de escudeiro fidalgo da Casa Real (1787) e o hábito de Santiago da Espada. Emprego e mercê lhe davam uma renda anual que não só o punha ao abrigo de privações, mas lhe facultava viver com relativa largueza. Aos cinqüenta e quatro anos, ou perto deles, faleceu em Lisboa, solteiro, a 31 de julho de 1795.

Pouco adequado a um poema épico segundo os moldes clássicos, era o assunto de Basílio da Gama: a guerra que Portugal, auxiliado pela Espanha, fez aos índios dos Sete Povos das Missões do Uruguai, rebelados contra o tratado de 1750, que os passava ao domínio português, tirando-os aos seus padres os jesuítas que os haviam descido, amansado e aldeado, e os despejava de suas terras. Tal tema, ainda exagerado por uma imaginação épica, daria apenas um episódio em poema de mais vulto. Demais faltava ao poeta o recuo do tempo para uma possível idealização do acontecimento, cujos autores ainda viviam. A epopéia tinha, pois, de ser uma simples narrativa histórica em versos de fatos recentíssimos, a que uma animosidade contra os jesuítas, que se manifestava já na Espanha e Portugal, e iria breve resultar nos atos de Pombal e de Aranda, dava um desmesurado relevo. Limitado pela realidade material do acontecimento, ainda a todos presente, peado pela contemporaneidade das personagens, de todos conhecidas, não podia o poeta dar à sua imaginação a liberdade e o alor necessários à idealização do seu tema. Pelas circunstâncias da sua composição, tinha fatalmente o seu poema de lhe sair limitado no tempo e no espaço, e sobretudo despido das roupagens e feições propriamente épicas. Varnhagen notou que a ação não chega a durar um ano, e o leitor atento observará como o poeta se cinge à realidade prosaica dos sucessos.

Ao poeta não prejudicou, antes serviu, esta situação que lhe criou o assunto. Obrigou-o a limitar as proporções do seu poema e impediu-o de seguir os moldes clássicos, inventando ao redor do fato principal os desenvolvimentos que a coetaneidade deles não comportava. Fossem estas causas mais que o engenho do poeta que deram ao Uraguai a sua feição particular entre os últimos poemas ainda oriundos da corrente camoniana, em lhes haver cedido o patenteou ele. O gênio não é a emancipação absoluta das condições que nos rodeiam e limitam. Consiste principalmente em compreendê-las no que elas têm de mais sutil, de mais fugaz e de mais difícil. A superioridade de Basílio da Gama está em ter compreendido, ou antes sentido, que os poetas são principalmente entes de sensação, que o assunto não lhe dava para uma epopéia como aquelas que então, à cola da de Camões, se faziam, e haver, contra o gosto, a voga, a corrente do seu tempo avançado muito além dele e dado à literatura portuguesa o seu primeiro poema romântico. Com efeito, não se parece o Uraguai com qualquer outro poema do tempo. Desvia-se do trilho costumeiro da poética em vigor. Não começa pela invocação, antes entre ex-abrupto na matéria do poema, o que era absolutamente novo:

Fumam ainda nas desertas praias

lagos de sangue tépidos e impuros,

em que ondeiam cadáveres despidos,

pasto de corvos.



Não obedece à quase indefectível prática da oitava endecassílaba; é em verso branco, e os demais deles belíssimos. Não recorre ao maravilhoso pagão ou outro, não se encontra mácula de gongorismo. A língua é a do seu tempo, castiça, sem rebusca, clara, límpida, e o estilo natural e simples, apenas com o mínimo de artifício que a mesma composição exigia. Não refuge a misturar o burlesco com o grave, nem disfarça as feições realistas do seu reconto épico. Por todos estes rasgos, e por alguns outros sinais intrínsecos de metrificação, linguagem e estilo e mais pela liberdade espiritual e sentimentos liberais e humanos que o animam, é já o Uraguai um poema romântico, o precursor na poesia do tempo do romantismo americano, o iniciador do indianismo, que viria a ser no século XIX o traço mais distinto e significativo da renascença literária do Brasil.

Basílio da Gama tem de raiz a inspiração épica. Além do Uraguai, em que a provou excelentemente, do Quitubia (1791), que é, com pouca sorte aliás, outra demonstração dela, afetava o poeta o tom épico de preferência a outro, ainda em poemas de natureza a o não pedirem. Quase não cantou de amor, faltando por isso ao seu lirismo esse poderoso elemento sentimental e estético. É, porém, um espírito livre e um coração terno. Da liberdade de seu espírito que faz dele um liberal de antes dos tempos, há indícios sobejos não só no Uraguai, mas em vários poemas seus. Revela-se ainda o seu gosto por Voltaire, de quem traduziu a tragédia Mahomet, e a sua desafeição à guerra e às mesmas façanhas e glórias militares, insólitas no seu tempo. Não sabemos de outro poeta contemporâneo que haja tão declaradamente anteposto os labores e artes da paz, «às bélicas fadigas» e augurado uma futura era pacífica, em que fugissem do mundo

As guerras sanguinosas

detestadas das mães e das esposas,



e em que

No capacete a abelhas os favos cria,

curva-se em foice a espada reluzente.



Também da sua ternura há exemplos bastantes nos seus versos, particularmente nas lembranças do seu amigo Alpoim, no Uraguai, e de outro amigo seu, o árcade romano Mireu, no mesmo poema, e em vários outros menores, aludindo enternecido a amigos e benfeitores. A sua obra deixa uma grata impressão de admirativa simpatia.

Na história literária, a importância de Basílio da Gama é o maior do que a de qualquer outro da mesma plêiade. Sobre se revelar no Uraguai porventura o melhor engenho de entre esses poetas, foi o primeiro a tomar por motivos de inspiração cousas americanas e pátrias. Soube demais cantá-las com um raro espírito de liberdade cívica e poética, sem as escravizar a fórmulas consagradas e ainda com peregrinas qualidades de invenção e estilo. Observou Costa e Silva que foi Santa Rita Durão o fundador da poesia brasileira, por ser «o primeiro que teve o bom senso de destacar-se das preocupações européias que havia bebido nas escolas, para compor uma epopéia brasileira pela ação, pelos costumes, pelos sentimentos e idéias e pelo colorido local». Esqueceu-lhe que o Uraguai precedera o Caramuru de doze anos e que mais do que estes se mostrava estreme de preocupações européias bebidas nas escolas.

Deste grupo de poetas é Frei José de Santa Rita Durão o mais velho, pois nasceu em Cata Preta, distrito de Mariana, no qual também viu a luz Cláudio da Costa, pelos anos de 1717 a 1720. Seu pai, o sargento-mor Paulo Rodrigues Durão, era português e abastado. Ignoramos a nacionalidade da mãe, D. Ana Garcêz de Morais. Era o pai homem religioso e nimiamente devoto. Por sua morte deixou importantes legados para quantidade de objetos e esmolas por sua alma e pelas de seus pais, escravos e outros. Iguais sentimentos piedosos seriam os da família, consoante era então comum em Minas. Explica-se assim a vocação religiosa de seu filho José, o nosso poeta, que depois de estudos preparatórios no colégio dos jesuítas do Rio de Janeiro, onde a vocação incipiente se lhe teria desenvolvido, passou-se a Portugal. Ali, na ordem de Santo Agostinho, entrou, fez o noviciado e, em 1738, entre os vinte e vinte três anos, professou. Para seus alimentos dera o pai à ordem dois mil cruzados. Já professo num colégio desta, em Coimbra, fez os estudos para a formatura na Universidade, onde se doutorou em teologia. Foi lente na sua Ordem e teve o título de substituto na Universidade. Viveu uma vida feliz de estudos e alguns pequenos trabalhos literários. Cultivou então a amizade do célebre erudito português, o futuro arcebispo de Évora, Frei Manoel do Cenáculo, que associou o nosso patrício aos seus estudos das línguas orientais contra o estreito confinamento dos jesuítas na só literatura latina. Não se sabe ao certo por que se achou Durão na contingência de deixar Portugal, retirando-se, senão fugindo, para Espanha. Na carta em que conta a Fr. Manoel do Cenáculo a sua escapula e lhe reclama o apoio, apenas diz: «As minhas desgraças me levaram inconsideradamente à Cidade... em 1762», sem explicar quais desgraças foram. Após alguns vexames que por motivo de estado de guerra entre a Espanha e Portugal ali sofreu, inclusive a prisão, pôde transferir-se à Itália, onde se achava já em 1764. Em Roma soube fazer-se patrocinar por alguns figurões da Cúria, entre os quais o famoso Ganganeli, o futuro papa Benedito XIV, que lhe arranjou o lugar de bibliotecário da livraria pública Lancisiana, onde esteve por nove anos, bem aceito dos literatos romanos, que o meteram em várias das suas sociedades literárias. É notável que ele não figure com algum nome arcádico, indicando ter pertencido à Arcádia Romana. Naquele cargo aposentou-se, no propósito de concorrer a uma cadeira das que se esperava vagassem na Universidade de Coimbra com a iminente expulsão dos jesuítas. Graças, parece, ao apoio de Cenáculo e à benevolência do nosso compatriota D. Francisco de Lemos, amigo de Durão, recém-nomeado por Pombal reitor da Universidade, realizou-se-lhe aquele propósito, pois o encontramos em 1778 recitando como opositor a oração de sapiência na abertura das aulas.

Por esse tempo teria começado o seu poema, cuja composição continuaria quando, acaso receoso da reação antipombalina, recolheu à casa de sua ordem em Lisboa, em 1779. Aí concluído ou limado, foi publicado em 1781.

Em nenhum dos poetas da plêiade mineira, ou quaisquer outros seus contemporâneos, o nativismo que preludiou aqui o nacionalismo e o patriotismo, como estímulo de inspiração literária, manifesta-se tão claramente como em Santa Rita Durão. O seu poema tinha já, por volta de 1778 a 80, quando foi imaginado e escrito, um propósito patriótico. «Os sucessos do Brasil, escreveu o poeta nas Reflexões prévias, antepostas ao seu livro, não mereciam menos um poema que os da Índia. Incitou-me a escrever este o amor da pátria.» Como por trás de Camões, trazido aqui à memória por Durão, vemos a João de Barros, o insigne historiador do descobrimento e conquista da Índia, assim atrás de Santa Rita Durão enxergamos Rocha Pita, o autor vanglorioso da História da América portuguesa. Não precisava Durão confessar que o lera. O seu poema bastaria para o atestar e certificar-nos de que dele principalmente derivam não só passos, incidentes e digressões do Caramuru, mas principalmente o seu entusiasmo patriótico. Patriotismo, porém, que não era ainda o brasileirismo estreme, senão um sentimento misto, comum a todos esses poetas, de lealdade portuguesa e de amor à terra natal, sentimento que se dividia entre a nação, que era Portugal, e a pátria, que era o Brasil.

Sobre ser impertinente fazer do descobrimento da Bahia, ou ainda do Brasil, uma epopéia, à luz da estética não era muito melhor que o de Basílio da Gama o tema de Durão. Tinha, porém, sobre o daquele a vantagem do maior recuo do tempo, menor precisão ou maior incerteza histórica, dando ao poeta ensanchas a desenvolvimentos em que aproveitou a História do Brasil do descobrimento ao governo-geral e ainda a previsão da luta contra os holandeses. Como todos sabem, o assunto do poema do episódio meio histórico, meio lendário, do naufrágio do aventureiro português Diogo Álvares Correia, que, soçobrando nas costas orientais do Brasil, justamente no recôncavo da Bahia, escapou do naufrágio e caiu nas mãos dos índios que aí havia. Guardado para servir-lhes de repasto, conseguiu esquivar a sua triste sorte e dominar-lhes com o pavor que lhes causou matando no vôo um pássaro, e fazendo outras façanhas com um arcabuz que acertara salvar da catástrofe. Sobre esse fato verossímil, e que se teria repetido entre navegadores e selvagens, ignorantes das armas de fogo, bordou a imaginação popular circunstâncias e acrescentou desenvolvimentos que a história mais tarde, por mão do operosíssimo Varnhagen, provaria lendários, como a viagem de Diogo Álvares à França em companhia da gentia Paraguaçu, sua noiva, o batismo desta em Paris e o casamento deste casal, sendo padrinhos em ambas as cerimônias Henrique II e a sua mulher, a célebre Catarina de Médicis, que deu o seu nome à sua exótica afilhada. Diogo Álvares, dizia a lenda, perfilhada pelos cronistas, recebeu dos índios, por causa da arma flamante com que dava a morte, a alcunha de Caramuru. Este nome, que é simplesmente o de um peixe, e que lhe deram por o terem apanhado no mar, a nossa fantasia etnológica o interpretou de vários modos, todos evidentemente falsos. Não havia aliás em Diogo Álvares, nem houve nos seus atos, os predicados de um herói de epopéia, e a mesma lenda não lhos dá. Nem o poeta lhos soube emprestar que os relevassem.

Pela sua concepção e execução era o Caramuru, mais do que o Uraguai, um dos muitos poemas saídos da fonte camoniana. Sem embargo desta falta de originalidade inicial, da mesma forma e estilo poético, e de reminiscências do poema de Camões, tem o Caramuru qualidades próprias e estimáveis. Como poema nacional leva a primazia ao Uraguai, apesar da sua inferioridade poética. Além da intenção manifesta que o gerou como a epopéia do descobrimento do Brasil, é o Caramuru mais nosso pela sua ação e teatro dela, o Recôncavo, o berço por assim dizer da nacionalidade que se ia criar aqui, e ainda pelos múltiplos testemunhos do seu interesse e amor do país. Descreve-o e conta-o Durão já com o desvanecimento de sua grandeza e excelência e a previsão de seus altos destinos. Estes, porém, se lhe não antolhavam ainda na formação de uma nacionalidade distinta, mas apenas no concurso decisivo que a sua pátria de nascimento traria à restauração da grandeza da nação cuja era parte

O Brasil aos lusos confiado

será, cumprindo os fins do alto destino,

instrumento talvez neste hemisfério

de recobrar no mundo o antigo império.



Infelizmente o modo, imposto pelo seu estado de frade, e frade de bons costumes, por que tratou o drama amoroso, e que serve de núcleo ao seu poema, privou-o de dar-lhe a emoção que nos poderia ainda comover. Gravíssima falta de senso estético foi o fazer de Diogo Álvares e Paraguaçu, o aventureiro português e a índia sua namorada e depois sua mulher, um casal de castos amantes. É uma situação contra a natureza, contra os fatos, contra a verossimilhança, e mais que tudo inestética. Não se imagina um rude aventureiro português do século XVI, ardente e voluptuoso, quais se mostraram na conquista, na situação singular, e como quer que seja esquerda, descrita por Durão, com uma formosa índia, moça e amorosa, em meio desta natureza excitante e dos fáceis costumes indígenas, e sem nenhum estorvo social, comportando-se qual se comportou o seu, isto é, como um santo ou um lendário cavaleiro cristão, e a reservando, num milagre de continência, para sua esposa segundo a Santa Madre Igreja e ainda em cima doutrinando-a que nem um missionário profissional sobre as excelências da castidade. Não obstante o seu profundo catolicismo, Camões não caiu neste erro, e ao contrário enalteceu o seu poema com os conhecidos passos de uma tão artística voluptuosidade.

Como o Uraguai, o Caramuru insinua o americanismo na poesia portuguesa, abre aos índios e às cousas indígenas maior espaço na brasileira do que o fizera aquele, e funda o primeiro indianismo. Não os acompanharam os outros poetas do grupo. Nestes mesmos, porém, sentimentos e inspirações mais nativos e mais nativistas do que até aí, as suas repetidas alusões ou referências a cousas pátrias, a nostalgia dela em alguns deles entremostrada, procedem incontestavelmente de Basílio da Gama e Durão, mormente do primeiro, do qual há claras impressões em quase todos estes poetas. Durão parece não os haver tocado tanto. Não se encontram reminiscências, e menos memória deles, em seus poemas. É que o seu trazia ainda muito da velha fórmula que o arcadismo desses poetas menosprezava. Sem embargo do propósito patriótico de Durão, e das manifestações eloqüentes do seu brasileirismo, eles, mais artistas que patriotas, lhe preferiram, como nós hoje, Basílio da Gama, a quem Cláudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Silva Alvarenga louvaram com admirativa estimação e imitaram, mostrando sentirem o que de novo, inspirado e alto havia no seu gênio.

A três dos representantes da plêiade mineira, Cláudio da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomás Gonzaga, tem sido atribuído o poema satírico das Cartas Chilenas, composto em Minas, na segunda metade do século XVIII. É mais que uma sátira, uma diatribe contra o governador D. Luís da Cunha Menezes e sua administração. Ele figura como o herói burlesco sob o pseudônimo de Fanfarrão Minésio. Fingem-lhe a ação e sucessos passados em Santiago do Chile, nomes que, conforme já notara Varnhagen, cabem no verso tanto como Vila Rica e Minas.

Escrito em forma de cartas dirigidas por um tal Critilo e certo Doroteo, ambos poetas, tem este poema, se assim se lhe pode chamar, real valor literário. Saíram à luz pela primeira vez, em edição da revista Minerva Brasiliense, no Rio de Janeiro, em 1845, em número de sete. Deu uma segunda, mais completa do que esta, com treze cartas ou cantos, a Livraria Laemmert, desta cidade, em 1863. Dirigiu-a Luís Francisco da Veiga, autor conhecido de vários estimáveis trabalhos históricos, o qual, entre os papéis de seu pai, encontrara um manuscrito do poema. Nesse manuscrito, que aliás não era um autógrafo, ocorre a assinatura de Tomás Antônio Gonzaga (sic) sob a data: Vila Rica, 9 de fevereiro de 1798, no fim da dedicatória em prosa, que precede imediatamente o «Prólogo» igualmente em prosa. O pai do editor literário, Saturnino da Veiga, ainda contemporâneo daqueles poetas, o acreditava de Gonzaga. O primeiro editor das Cartas Chilenas, o escritor chileno aqui residente e redator da Minerva Brasiliense, Santiago Nunes Ribeiro, com a sua edição publicara um outro testemunho da autoria de Gonzaga. É o de Francisco das Chagas Ribeiro, abonado por Nunes Ribeiro como «ancião entusiasta da literatura brasileira, depositário de muitos dos seus tesouros e cujo testemunho, se não é irrecusável, é muito poderoso e digno de respeito». (Apud Cartas Chilenas, edição Laemmert, introdução de L. F. da Veiga). Francisco das Chagas Ribeiro, sobre o qual se me não deparou outra informação, pôs no seu manuscrito esta declaração: «Tenho motivos para certificar que o Dr. Tomás Antônio Gonzaga é o autor das Cartas Chilenas». E assinou.

Estas duas atribuições, por sujeitos ainda contemporâneos do poeta, e ao que parece respeitáveis, bastariam, em boa crítica, para dirimir a questão, se não houvesse contra elas valiosos testemunhos ou documentos.

Depois de estudo mais atento das Cartas, eu, que de primeiro não acreditava fossem de Gonzaga, pendo hoje a crer que dele são, e não vejo razão entre as muitas dadas, que prevaleça contra a atribuição que de sua autoria lhe fazem Saturnino da Veiga e Chagas Ribeiro. Ao contrário, militam a favor do seu testemunho os seguintes motivos: a) pelo seu valor literário e poético (que é muito maior do que se tem dito) não podem essas Cartas ser senão de algum dos poetas conhecidos que viviam em Minas na época da sua composição, não sendo provável a existência de nenhum outro capaz de as escrever e que ficasse de todo incógnito; b) esse poeta devia reunir duas condições, manifestas no contexto do poema: ser português e ser inimigo rancoroso do governador satirizado. Que o autor das Cartas Chilenas é português de naturalidade mostram-no os versos 5 e 15 da pág. 149 da edição Laemmert, em que positivamente alude à sua vinda da Europa e ao seu nascimento em Portugal. Revela-se ainda português nas suas várias alusões todas pouco simpáticas à terra e às suas cousas, e em que, atacando acrimoniosamente o governador e a sua administração, não malsina jamais do regime ou do governo colonial. Revê-se ainda o reinol, branco estreme e de categoria fina, na sua manifesta antipatia aos mulatos, a quem não perde ensejo de apodar (págs. 106, 203, 312 e passim). A sua linguagem nimiamente castiça, de boleio de frase e vocabulário muito de Portugal, e outros sinais idiomáticos que uma análise miúda revelaria, traem também o português. Ora, como o único português do grupo era Gonzaga, a ele se deve atribuir o poema, onde aliás se encontram pensamentos, imagens e expressões que coincidem com as da Marília de Dirceu. (Cp. pág. 100: «Que importa que os acuses...» com a lira XXXVI da 1ª parte).

As Cartas são evidentemente de um inimigo acérrimo do governador, a quem não poupam as mais terríveis acusações e convícios. Ora, dos três poetas que somente podiam ser os seus autores, e únicos a quem têm sido atribuídas, só Gonzaga era sabidamente inimigo dele. Alvarenga Peixoto, ao contrário, é um favorecido, um protegido de Cunha Menezes, que o fez coronel, honraria que o desvaneceu mais que o seu título de doutor, e lhe concedeu adiasse o pagamento de certa dívida à Fazenda Real.

Cláudio era personagem quase oficial, ligado ao governo da Capitania, que por duas vezes (1762-1765 e 1769-1773) secretariara, era já setuagenário, idade menos apropriada às violências da sátira. Gonzaga, ao contrário, como ouvidor da comarca e deputado à Junta de Fazenda, achou-se em conflito com aquele governador, quando foi da arrematação do Contrato das entradas no triênio de 785 a 787, em que Cunha Menezes «de sua própria particular autoridade», segundo o Ministro do Reino, Martinho de Melo e Castro (V. Rev. do Inst., VI, 54 e seg.) e contra o voto fundamentado de Gonzaga, mandou adjudicar ao seu protegido José Pereira Marques, o Marquesio das Cartas Chilenas, aquele contrato. Foi esta questão do contrato das entradas, em que, talvez, tanto o governador como o ouvidor estavam empenhados por martes diversas, que criou a recíproca hostilidade de Cunha Menezes e Gonzaga, e principalmente motivou as Cartas Chilenas, e que fez o poeta tomá-lo «entre dentes», segundo a sua expressão, muito portuguesa, do início da 4ª. E a 8ª é inteiramente consagrada à prevaricação do governador em contratos e despachos, de que o poeta o acusa e malsina quase com as mesmas razões e palavras que a Gonzaga ouvidor atribuiu o Ministro Melo e Castro no documento acima citado. Repetirei que é notável que, maldizendo este poema tão afrontosamente do governador e da sua roda, jamais deixa perceber o menor sentimento de desgosto da metrópole e do regime colonial. Um português qualquer poderia aliás deixá-lo transparecer; não o podia Gonzaga, que, como magistrado reinol e vogal da Junta da Real Fazenda, fazia parte conspícua do governo da Capitania. Não obstante esta sua cautela, só a sua autoria conhecida, ou desconfiada, de tão terrível libelo contra um recente governador e vários funcionários seus parciais explica que ele fosse, contra a sua manifesta inocência, comprometido numa conspiração, se conspiração houve, de que tudo -os seus sentimentos de português, a sua lealdade de funcionário, o seu interesse pessoal e a sua situação de noivo amorosíssimo- forçosamente o afastava. O argumento de que o poeta sentimental e mimoso de Marília não podia escrever aquelas violentas Cartas, de virulenta sátira, roçando às vezes pela obscenidade, é de uma pobre psicologia, contradita por mil exemplos da história literária.

Todos os poetas deste grupo, o que talvez se não reproduza mais na história da nossa literatura com qualquer dos grupos literários que nela possamos distinguir, além do estro, tinham a mais completa cultura literária do tempo. Todos fizeram com aproveitamento as suas humanidades, todos, exceto Basílio da Gama, tinham o seu curso universitário, eram doutores em leis ou cânones. Todos parecem a par do saber da sua época, ao menos do que, sem estudos especiais, se adquire com aquela cultura. Os brasileiros do grupo todos saíram do seu país, estanciaram largos anos em Portugal e alguns, como Durão e Basílio, estiveram em Espanha e Itália. Liam os enciclopedistas franceses. Quase todos, além do latim, sabiam o grego, e de ambas as línguas versavam os poetas no original. Durão, afora essas duas línguas clássicas, sabia o hebraico. A todos eram familiares os escritores antigos, particularmente os poetas, e os principais escritores e poetas modernos, italianos, franceses e espanhóis, e ainda alguns ingleses. Cláudio da Costa poetava em italiano, acaso não menos excelentemente que em português, e o podia fazer ainda em castelhano e francês; traduziu Voltaire e cantou a Milton. Basílio da Gama também traduziu Voltaire.

Conheceram-se, trataram-se, foram camaradas ou amigos quase todos. Ligou-os o sentimento da pátria comum, o mesmo amor às letras, a irmandade do estro, e mais, o mesmo espírito liberal, comum a todos e manifesto na obra de todos. Silva Alvarenga compreendia e admirava a Basílio da Gama e o cantou com entusiasmo, pode dizer-se patriotismo. Cláudio da Costa, com igual entusiasmo, consagrou uma ode aos árcades seus patrícios e endereçou poemas a Alvarenga Peixoto. Serviu também de centro não só a este e a Gonzaga, mas a outros menores que poetavam em Vila Rica, que todos, segundo a verídica tradição, lhe submetiam ao saber e experiência os seus versos. Gonzaga alude carinhosamente em suas liras a Cláudio e a Alvarenga Peixoto, seus íntimos. Naquela época de acesa briga de poetas, se não sabe que hajam os nossos entre si brigado.

Todas essas coincidências e circunstâncias não foram certamente alheias à constituição deste grupo de poetas e à feição e distinção que os assinalam na nossa literatura e ainda na poesia portuguesa. Para alguns deles ao menos, a sua justa celebridade foi grandemente ajudada, sem quebra aliás no seu merecimento, pelos desgraçados sucessos em que foram envolvidos. Aureolando-os de martírio, não serviriam pouco, e justo é que assim fosse, à sua glória de poetas.

Capítulo VII

Os predecessores do Romantismo

I. Os poetas

Verdadeiramente é do século XIX que podemos datar a existência de uma literatura brasileira, tanto quanto pode existir literatura sem língua própria.

Se a Independência do Brasil oficialmente começa em 1822, de fato a sua autonomia, e até hegemonia no sistema político português, data de 1808, quando, emigrando para cá, a dinastia portuguesa, na realidade, fez do Rio de Janeiro a capital da monarquia. Virtualmente o Império do Brasil estava criado desde que o príncipe regente, D. João, realizando um velho, intermitente mas nunca desvanecido pensamento político português, proclamou que o seu protesto contra a violência napoleônica se erguia do seio de um novo império.

Ardores e alentos novos criou então o povo que há três séculos se vinha aqui formando e cuja consciência nacional, desde o século XVII, com as guerras holandesas, entrara a despontar. O fato do Ipiranga, precedido da singular situação resultante da estada aqui da família real e conseqüente transformação da colônia em reino unido ao de Portugal, perfizera essa consciência e lhe influíra a vontade de existir com a vida distinta que faz as nações. Em tais momentos, como em todos os partos, são infalíveis as roturas. Deu-se aqui o rompimento entre brasileiros e portugueses, pode dizer-se o levante de uns contra outros, fenômeno necessário da separação dos dois povos. Para completá-la devia esse sentimento forçosamente interessar a todos aos aspectos da vida do brasileiro, até aí comum com a do português, e as várias feições do seu pensamento e sentimento. Não foi maior a rotura porque o fato político que a produziu foi antes uma transação que uma revolução e por se haver passado justamente no momento em que a metrópole se afeiçoava ao mesmo modelo político adotado pela colônia. Em todo caso, foi suficiente para diferençar desde então como entidades políticas distintas portugueses e brasileiros.

Exageravam estes a ruindade da administração colonial, aumentavam-lhe com as mais deslavadas hipérboles de um patriotismo exaltado os vexames e as incapacidades. Aos seus olhos, com a importância de metrópole, perdia também Portugal o prestígio moral e mental, de criador, educador e guia dessa sociedade que aqui se emancipava.

Era precisamente a hora em que na Europa, na verdadeira Europa, em Alemanha, em Inglaterra, em França, manifestavam-se claramente já os sinais da renovação literária que iria interessar todos os aspectos do pensamento e ainda do sentimento europeu: o Romantismo. Quaisquer que hajam sido os seus motivos e característicos, sejam quais forem as definições que comporte (e inúmeras lhe tem sido dadas), o Romantismo foi sobretudo um movimento de liberdade espiritual, primeiro, se lhe remontarmos às últimas origens, filosófica, literária e artística depois, e ainda social e política. Em arte e literatura seu objetivo foi fazer algo diferente do passado e do existente, e até contra ambos. Excedeu o seu propósito, e em todos os ramos de atividade mental, até nas ciências, foi uma reação contra o espírito clássico, que, embora desnaturado, ainda dominava em todos.

Iniciou-se na Alemanha pelos últimos vinte e cinco anos do século XVIII. Reinava então em Portugal o pseudo-classicismo da Arcádia. No Brasil cantavam os poetas mineiros, alguns deles românticos por antecipação, mas em suma era o mesmo Arcadismo o tom dominante nas letras. Da Alemanha irradiou por Inglaterra e França. Nestes países as suas primeiras manifestações consideráveis são já do princípio do século XIX. Só quase vinte e cinco anos mais tarde começaria a sua influência a se fazer sentir em Portugal, onde as suas ainda indecisas manifestações datam exatamente do princípio do segundo quartel do século. Com a sua terceira década entra ele no Brasil. Não foi, entretanto, de Portugal que o recebemos, senão de França, que ia ser e permanecer a principal fornecedora de idéias, de sentimentos e até de estilo à nossa literatura.

Mas entre o fim do renascimento poético aqui operado (dentro aliás só de si mesmo e sem irradiação notável) pela plêiade mineira e as primeiras manifestações do nosso Romantismo, isto é, entre o último decênio do século XVIII e o terceiro do XIX, dá-se na poesia brasileira uma paralisação do movimento que parecia prenunciar-lhe a autonomia. Pode mesmo dizer-se que se dá um regresso ao estafado Arcadismo português. Nunca tivera o Brasil tantos poetas, se a esses versejadores se pode atribuir o epíteto. Relativamente aos progressos que já fizéramos, nunca os tivera tão ruins, tão insípidos e incolores.

Nesta fase arrolam os historiadores ou simples noticiadores da nossa literatura mais de vinte. Na vã presunção de lhes emprestarem valor, pois não é crível que efetivamente lho encontrem, sobre nomeá-los adjetivam-nos com qualificativos que a leitura dos seus poemas não só desabona mas prejudica.

São, calando ainda bastantes nomes, e na ordem cronológica, Francisco de Melo Franco (1757-1823), Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814), José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), Silvério Ribeiro de Carvalho (1746-1843?), José Elói Otôni (1764-1851), Fr. Francisco de S. Carlos (1768-1829), Francisco Vilela Barbosa (marquês de Paranaguá) (1769-1846), Luís Paulino Pinto da França (1771-1824), Paulo José de Melo Azevedo e Brito (1779-1848), Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), Domingos Borges de Barros (visconde de Pedra Branca) (1780-1855), João Gualberto Ferreira dos Santos Reis (1787-185?), Manoel Alves Branco (visconde de Caravelas) (1797-1854), Joaquim José da Silva (?), Ladislau dos Santos Titara (1802-1861), Álvaro Teixeira de Macedo (1807-1849?), Antônio Augusto de Queiroga (1812-1855), Francisco Bernardino Ribeiro (1815-1837), Joaquim José Lisboa (?).

A máxima parte destes compridos nomes não despertará na memória do leitor, ainda ilustrado, reminiscência literária alguma. É como se lhe citassem poetas chineses. Os que não morreram de todo, de morte aliás merecidíssima, vivem apenas numa vaga e indefinida tradição, mantida pelos professores de literatura. Algum raro amador das letras pátrias, mais por curiosidade que por gozo literário, lerá ainda, ou melhor terá lido, José Bonifácio, Elói Otôni, Fr. Francisco de S. Carlos, Sousa Caldas, talvez Pedra Branca. Os outros nem mais essa curiosidade despertam. Tais como Pinto de França e algum outro, que, idos moços e até crianças para Portugal, lá se criaram, educaram e deixaram ficar, são de educação e sentimento portugueses, e português é o seu estro e estilo poético. Custa a reconhecer nesta lista um verdadeiro poeta. Na grande maioria, são apenas versejadores de mais ou menos engenho e arte, os melhores com a erudição poética e literária comum aos doutos do tempo, com a qual, a custo e raro, conseguem realçar a penúria do seu estro, sem disfarçar entretanto a trivialidade do seu estilo poético, repetição insulsa e fraco arremedo do da metrópole, então igualmente miserável. Já entrado o século XIX, versejavam copiosamente odes, sonetos, epitalâmios, cantatas, glosas, liras, epigramas, ditirambos, metamorfoses, epístolas, enfim toda a farta e extravagante nomenclatura dos séculos passados. Versejavam sem inspiração nem sentimento, artificialmente, por ofício ou presunção. Repetiam sem o talento de os renovar os tropos e imagens da mitologia clássica e as formas estafadas de uma poética anacrônica e obsoleta. Natividade Saldanha, com a falsa eloqüência que de bom grado confundimos com poesia, celebra os feitos e vultos patrícios com reminiscência, epítetos, figuras e apelidos clássicos e pagão. É «a fatigante ênfase do ditirambo histórico», de que fala Morley, aqui vulgaríssima. A fecundidade poética de alguns é assombrosa. Ladislau Titara, de 1827 a 1852, publicou oito tomos em formato de 8.º de Obras poéticas, somando 1819 páginas de versos, e o seu irmão Gualberto, em seis anos, quatro tomos do mesmo formato. Que exemplo a futuros escritores!

À imitação do seu Horácio, que sabem talvez de cor, mas cujo íntimo sentimento mal alcançam, e de cujo talento andam afastadíssimos, e seguindo velhos hábitos arraigados dos poetas portugueses, são-lhes motivos de inspiração fatos e datas de pessoas gradas, a cuja benevolência armam com lisonjas metrificadas, elogios poéticos, epitalâmios por casamentos, nascimentos e quejandos.

Sousa Caldas é certamente o melhor deles todos, o mais vigoroso lírico dos predecessores imediatos do Romantismo. Ele fez um trabalho considerável de erudito e poeta traduzindo em vernáculo os Salmos atribuídos a Davi. Algumas dessas traduções não são em verdade indignas dos louvores que é de praxe fazer-lhes. Não teria, porém, idéia muito exata da poesia hebraica quem por elas houvesse de julgá-la. Mas, ainda excelente, perderia o lavor do nosso patrício muito do seu valor pelo mesmo desinteresse com que hoje a maioria dos leitores se dispensam de ler traduções dos poemas de pura invenção religiosa e de uso devoto. Conquanto se digam católicos, não é certamente neles que procuram nem acham a emoção estética de que acaso sintam necessidade. Os Salmos de Davi, traduzidos pelo padre Sousa Caldas para língua falada por muitos milhões de católicos, ficaram na primeira e única edição. Publicados há noventa anos, não são ainda um livro raro. Escreveu também Sousa Caldas Poesias sacras e profanas, impressas no tomo II das Obras poéticas. Padecem as primeiras do mesmo percalço dos Salmos, pois não é mais, se alguma vez foi, sob as formas e maneiras da poesia profana, odes, cantatas e outras tais que buscamos a edificação religiosa ou a satisfação estética para a nossa piedade. De resto, em nossa gente o sentimento religioso não foi jamais tal que comportasse a espécie de deleite proveniente da leitura e meditação dos poemas bíblicos versificados em vulgar. Mais devotos que religiosos, preferimos sempre as aparências e exteriorizações da religião sob a forma oral dos sermões ou visual e sensitiva das pompas cultuais.

Como poeta profano, Sousa Caldas se não extrema dos portugueses seus contemporâneos, se bem valha mais que qualquer dos seus patrícios coevos. E, salvo os mineiros, mais que todos os poetas seus antecessores. É mais correto e mais rico versejador que estes, e sobretudo mais vernáculo. Sob o aspecto da língua pode, entre os brasileiros, passar por distinto. As suas produções originais consideradas melhores são a cantata Pigmalião e a ode Ao Homem Selvagem. Àquela infelizmente se depara na cantata Dido, de Garção, um desfavorável confronto. A ode Ao homem selvagem, essa é realmente formoso transunto das idéias de Rousseau, em sustentação das quais foi escrita. Os seis sonetos que nos deixou Sousa Caldas, sem distinção alguma, antes lhe desabonam que lhe acreditam o estro.

À imitação das Lettres Persannes, de Montesquieu, Sousa Caldas escrevera uma obra em prosa de filosofia prática e moral em forma epistolar. Dela apenas nos restam duas cartas que não bastam para autorizar um juízo do seu trabalho. Revela-se contudo aí escritor fácil, castiço e, para o seu tempo, meio e estado, espírito liberal e tolerante. Versam justamente essas duas cartas sobre a atitude da Igreja perante os escritos contrários à sua moral e dogmas, o que o leva a considerar o tema geral geral da livre expressão do pensamento. Fá-lo Sousa Caldas com aquele latitudinarismo que foi sempre a marca do ultramontanismo franco-italiano10.

Não pode divergir muito o juízo que devemos fazer de José Elói Otôni, que, como Sousa Caldas, foi poeta sacro e profano. Mas o foi com menos talento, e principalmente, com menos vigor. As suas traduções dos pseudos Provérbios de Salomão e do Livro de Jó, feitos do latim da Vulgata, são antes paráfrases que traduções. Não há achar-lhes o sabor que do original parecem guardar algumas traduções diretamente feitas em prosa ou verso. As poesias originais de Otôni não destoam da comum mediocridade da poesia sua contemporânea11. José Elói Otôni nasceu na cidade do Serro, em Minas Gerais, em 1764. Depois dos primeiros estudos em sua terra, esteve na Itália e em Portugal, onde ainda voltou duas vezes em outras épocas de sua vida, vindo a falecer no Rio de Janeiro, num emprego público subalterno, em 1851.

Um frade franciscano fluminense, Fr. Francisco de S. Carlos, compôs pela mesma época, «em honra da Santa Virgem», segundo reza o título, um poema, A Assunção, que é uma das mais insulsas e aborridas produções da nossa poesia. Em oito estirados cantos de versos decassílabos, rimados uniformemente em parelha, monotonia que é aumentada pela pobreza das rimas e geral mesquinheza da forma, descreve o poeta a Assunção da Virgem desde a ressurreição do seu túmulo, em Éfeso, até à sua chegada ao Paraíso, através de várias peripécias maravilhosas por ele imaginadas. O poema é do princípio ao fim prosaico, sem se lhe poder tirar algum episódio ou trecho realmente belo, a inventiva pobre, balda de novidades ou grandeza, a língua mesquinha e vulgar. Entretanto críticos houve que o acharam digno de rivalizar com o Paraíso Perdido, de Milton, e a Messíada, de Klopstock, e não duvidaram de qualificá-lo de «poema eminentemente nacional» e de considerá-lo como «um dos monumentos que nos legou a geração passada (do princípio do século XIX) para a formação da nossa literatura». Chamar-lhe «poema eminentemente nacional», porque introduziu nas suas descrições frutas, plantas e animais do Brasil e alguns aspectos da natureza brasileira, é equivocar-se sobre o sentido da expressão. O vezo de cantar as cousas da terra, de nomeá-las, citá-las ou descrevê-las, às vezes comovidamente, mas também às vezes sem emoção alguma, era velho na nossa poesia. Vinha, conforme mostramos, dos fins do século XVI; praticou-o Durão no Caramuru, cultivaram-no alguns dos poetas mineiros e outros. Tal sestro revia o despontar do sentimento nativista e o seu sucessivo desenvolvimento. Ao tempo de Fr. Francisco de S. Carlos era já tão comum o emprego desse recurso poético, que nada tinha de particularmente notável. Tanto mais que o usou o franciscano poeta sem a menor distinção. Apenas continuava uma tradição criada, da qual há exemplos noutros poetas seus contemporâneos deste infausto período das nossas letras, como na Discrição curiosa, do ruim poeta mineiro Joaquim José Lisboa. E como a continuava sem a relevar por quaisquer virtudes de fundo ou de forma, fazendo apenas nomenclaturas áridas, não sabendo tirar desse expediente nenhum partido estético, não lhe pode servir isso de recomendação ao seu insípido poema. O que era nos seus predecessores novidade interessante, reveladora de um sentimento, uma emoção, uma inspiração nova na poesia portuguesa, era nele simples repetição, não levantada por algum talento superior de expressão.

Destas duas dúzias de poetas menores, o único, além de Sousa Caldas, que porventura se destaca por uma inspiração mais sincera e dons de expressão que o extremam, é José Bonifácio de Andrada e Silva, o José Bonifácio, principal cooperador da nossa independência nacional. As circunstâncias que o fizeram e em que foi poeta, lhe explicam o destaque.

José Bonifácio nasceu em Santos, São Paulo, aos 13 de junho de 1763. Feitos os seus primeiros estudos no Brasil e completos os seus dezoito anos, passou-se a Portugal, e ali, em Coimbra, se formou em filosofia e leis. Fundada em 1774, pelo duque de Lafões, a Academia Real das Ciências de Lisboa, foi, com o patrocínio daquele magnate, seu membro e depois secretário. Ao mesmo apoio deveu a comissão especial de estudar nos principais centros científicos europeus ciências naturais e metalurgia. Dez anos empregou nestes estudos, percorrendo os principais países da Europa, onde os podia com mais proveito fazer. De volta a Portugal, foi nomeado intendente geral das minas, com a graduação de desembargador, recebendo também o grau de doutor em ciências naturais e o encargo de inaugurar na Universidade de Coimbra uma cadeira de metalurgia e geognosia, a qual regeu até à invasão francesa de 1807. Criado, por motivo desta invasão, um batalhão acadêmico, foi dele José Bonifácio major e logo depois tenente-coronel. Mais tarde serviu o cargo de intendente de polícia do Porto. Em 1819 retirou-se, com licença, para o Brasil. Vivia em S. Paulo, sua província natal, quando sobrevieram os acontecimentos de 1820 e 1821 e começaram no Rio de Janeiro os primeiros movimentos da Independência. Estes despertaram-lhe o sentimento nacional, acaso adormecido por cerca de quarenta anos de existência portuguesa. Fez-se parte conspícua nesse movimento, do qual foi, com D. Pedro, o principal protagonista. Como ministro e conselheiro muito ouvido do recém fundado império e deputado à sua assembléia constituinte, teve um grande papel nessa primeira fase da construção do país sob o novo regime, sendo, pelos seus talentos e capacidades, a primeira figura dela. A excessiva energia que, como primeiro-ministro, empregou contra os seus oposicionistas, ia comprometendo a causa que tão bem servira. Em todo caso motivou a excitação dos ânimos que produziu os sucessos donde resultou a demissão de José Bonifácio e o seu exílio.

Era José Bonifácio uma natureza pessoalíssima, de índole autoritária e violenta. Como todos os políticos do seu temperamento, tanto era despótico no poder como abominava o despotismo em não sendo ele o déspota. Nimiamente orgulhoso e demasiado convencido da sua superioridade, aliás real, no meio político donde o expulsavam, doeu-lhe profundamente o exílio a que o constrangiam os seus adversários, desterrando-o da pátria cuja independência, com mais presunção que razão, exclusivamente se atribuía. Encheu-se de despeito e raiva contra o soberano, a quem com mau gosto reprochou de ingrato, contra os políticos seus adversários, e até contra a pátria. Foi neste estado d'alma de homem que se crê indispensável e a quem dispensam, de homem soberbo de si e humilhado pelos mesmos a quem se julgava proeminente e tinha por seus devedores, que repontou em José Bonifácio, aos sessenta e dois anos, o estro poético de que já dera amostras quando estabelecido em Portugal. Facit indignatio versum. Em Bordéus, em cujos arredores se fixara durante o exílio, publicou o volume das Poesias avulsas, de Américo Elísio, em 1825. A sua forte e não comum cultura literária e científica, e grandes experiências da vida, fortificaram-lhe o engenho poético. A paixão real fez o resto. Era um apaixonado e estava apaixonado. Aquela deu-lhe aos versos, não obstante o ressaibo arcádico que se lhe descobre no estilo, no feitio e até na alcunha com que se disfarçou o autor, uma vida, uma emoção, uma sinceridade como se não encontra em nenhum dos poetas seus patrícios e contemporâneos, e que fazem dele acaso o único que tem personalidade e que, por isso, possamos ouvir ainda hoje. Ao contrário de toda a poesia do tempo, a sua, ao menos a inspirada da sua situação atual, é pessoal, vibrante das suas paixões políticas e patrióticas e dos seus mesmos sentimentos egoístas, do seu orgulho, da sua soberba, da sua vaidade malferida, e que ele não procura dissimular. Soam nelas queixas, reproches, imprecações e brados pela liberdade que ele próprio, de essência despótico, recusara aos seus antagonistas quando no poder. E mais, sem embargo de queixas e exprobrações que chegam à negação da pátria,

Morrerei no desterro em terra estranha,

que no Brasil só vis escravos medram:

para mim o Brasil não é mais pátria,

pois faltou à justiça.



Vivíssimo amor dela e fervorosos anseios por ela. Ainda quando, por distrair-se das suas angústias de repúblico despeitado, recorre aos prazeres reais ou imaginários de que Baco era o patrono clássico, o pensamento saudoso e amargurado se lhe volve à pátria distante:

Em bródio festivo

mil copos retinam;

que a nós não nos minam

remorsos cruéis;

em júbilo vivo

juremos constantes

de ser como dantes

à pátria fiéis

[...]

Gritemos unidos

Em santa amizade

Salve, ó liberdade!

E viva o Brasil!

Sim, cessem gemidos,

que a pátria adorada

veremos vingada

do bando servil.



A sua forte cultura, desempeçada do caturrismo português por longo comércio com a melhor da Europa, e aliviada do aparelho escolástico e clássico pela sua paixão, deu-lhe à expressão poética mais calor, mais vida e movimento do que tinha a do tempo. Há versos seus que, pela liberdade e personalismo da sua inspiração, pelo subjetivismo dos sentimentos, exuberância usual da expressão e despejo de apetites, como que aventam já o Romantismo. A sua ode A Natureza, no seu sincretismo do pseudoclássico com o que se chamava romântico nas terras por onde José Bonifácio peregrinou, é exemplo e testemunho de que nele a nova corrente literária começava, ainda a despeito seu, a influir. Lembre-se que José Bonifácio traduziu para nova língua, em verso, o pseudo Ossian, um dos ídolos do Romantismo.

Manifestações patrióticas como as de José Bonifácio, mas sem a vibração das suas, são aliás comuns na poesia desta fase. Raro será dos citados o poeta em que se não deparem. Ainda portugueses pela retórica, são já brasileiros pelo coração. Vimos como Caldas Barbosa, predecessor imediato desses poetas, não obstante as condições em que se lhe desenvolveu o engenho e em que poetou, conservou um íntimo sentimento da sua terra e espontaneamente o exprimia. O poema de Fr. Francisco de S. Carlos superambunda de manifestações do mesmo sentimento. Joaquim Lisboa consagra à terra natal uma descrição em verso, da qual aliás só se salva a intenção. Bartolomeu Cordovil celebra em seus poemas as cousas e melhorias do seu Goiás. Natividade Saldanha, esse mais que todos, canta as glórias do seu Pernambuco e os seus heróis, comparando-os aos da poesia e história clássicas. De envolta, celebrando o Brasil, proclama aos brasileiros:

Ó jovens brasileiros,

descendentes de heróis, heróis vós mesmos

pois a raça de heróis não degenera,

eis o vosso modelo:

o valor paternal em vós reviva

a pátria que habitais comprou seu sangue,

que em vossas veias pulsa.

Imitai-os, porque eles no sepulcro

vos chamem com prazer seus caros filhos.



Vilela Barbosa festeja a primavera do seu «pátrio Brasil», retoricamente ainda, mas revendo o sentimento, desajudado de engenho, que o inspirava. O mesmo é exato dizer do Cônego Januário da Cunha Barbosa, cujo talento era também muito inferior às suas boas intenções e cuja obra, em todos os gêneros medíocre, apenas tem o mérito destas. A poesia brasileira deve-lhe entretanto um inestimável serviço, a compilação e publicação do Parnaso brasileiro, com que salvou de total perda grande número de produções dos nossos poetas da época colonial.

A atividade destes poetas é toda dos últimos anos do século XVIII e dos trinta primeiros do XIX. Muitos deles viram as suas obras publicadas, já em volume, já em coleções ou periódicos, na mesma época em que as compuseram. As de outros correram manuscritas ou impressas em folhas avulsas. Afora a tendência assinalada de celebrar a terra, com um mais vivo sentimento do que se pode chamar a sua capacidade política, com que continuavam a inspiração nativista de desde o início da nossa poesia, não há nesta fase nada que a distinga da ruim poesia portuguesa contemporânea, ou que a aproxime do que nesta havia de melhor. Excetuados José Bonifácio e Sousa Caldas, cuja obra é mais sólida e revela mais talento, os mais são de fato insignificantes. Em José Bonifácio só tem aliás valor os poemas inspirados da sua paixão de repúblico fundamente ferido na sua soberba, ou em que ele mais misturou essa paixão. O resto se não sobreleva à mediocridade comum. É de um árcade imbuído de filintismo. Predecessores do Romantismo, não lhe são os precursores, pois bem pouco é o que se lhes possa descobrir pronunciando o movimento que aqui se ia em breve iniciar, e do qual alguns destes poetas foram contemporâneos, inadvertidos. Não souberam sequer continuar os mineiros, dos quais não há neles outro sinal que o apontado, nem preceder os românticos. Ocupam apenas um vazio, a fase entre os dois movimentos poéticos, sem o preencherem. E tomados em conjunto, não se lhes sente na poesia impressão ou influxo da evolução que desde a chegada da família real portuguesa se operava aqui, nem mesmo da independência cujos contemporâneos e testemunhas muitos deles foram. Árcades de decadência, mostraram-se verdadeiramente impassíveis, muito antes que o desinteligente parnasianismo houvesse importado de Paris a moda de o ser de caso pensado.

II. Prosadores

Sob o aspecto literário, tão mesquinha e despicienda como a poesia foi a prosa da fase que precedeu imediatamente o Romantismo. Nenhuma grande ou sequer notável obra literária produziu. Foi, porém, como a poesia, fértil em escrevedores de assunto que só remota e subsidiariamente poderão dizer com a literatura: economia política e social, direito público e administrativo, questões políticas, comércio e finanças. A história, que também fizeram, a trataram em mofino estilo, e mesquinhamente, à moda de anais e crônicas. O número relativamente grande dos que destes assuntos e de outros congêneres escreveram e a cópia dos escritos publicados neste período, são um documento precioso da nossa vida intelectual e da nossa cultura nessa época. Se os poetas, com raras exceções, ficaram alheios às circunstâncias precursoras da independência, os prosadores, ao contrário, mostram-se influenciados e interessados pelo que aqui se passava, e, de boa vontade e ânimo puro, lhe trouxeram ao seu concurso. Toda a sua obra, mal construída sob o aspecto literário, com pouco ou sem algum mérito de fundo ou forma que a fizesse sobreviver ao seu tempo, ou que lhe desse nele qualquer proeminência literária, obra de publicistas e de jornalistas de ocasião, apontando a fins imediatamente práticos, serviu ou procurou servir à constituição de nossa nação, a qual já tinha como certa e definitiva. Não se pode todavia incorporar ao nosso patrimônio propriamente literário.

Uma das manifestações espirituais mais interessantes do sentimento público brasileiro no momento que precedeu a independência é o aparecimento, em 1813, no Rio de Janeiro, do Patriota, jornal literário, político, mercantil, etc. Fundou-o e dirigiu, e publicou-o na Impressão Régia, criada em 1808 pelo príncipe regente, Manoel Ferreira de Araújo Guimarães, polígrafo baiano, formado em Portugal, matemático, engenheiro, economista, poeta e jornalista, homem, como tantos outros naquele fecundo período da nossa formação nacional, cheio de boa vontade. Como com muita razão reparava outro publicista nacional, Hipólito José da Costa Pereira, o famoso redator do célebre Correio Brasiliense, de Londres, que à só publicação de um jornal com o nome de Patriota era um sinal dos tempos. «Há dez anos, escrevia ele no seu Correio, em 1813, estando a Corte em Lisboa, que ninguém se atreveria a dar a um jornal o nome de Patriota, e a Henríada, de Voltaire, estava no número dos livros que se não podiam ler sem correr o risco de passar por ateu, pelo menos por jacobino. E temos agora em tão curto espaço já se assenta que o povo do Brasil pode ler a Henríada, de Voltaire, e pode ter um jornal com o título de Patriota, termo que estava proscrito como um dos que tinham o cunho revolucionário». Nos dois anos completos que durou, foi o Patriota um centro de convergência do trabalho mental brasileiro, particularmente aplicado ao estudo das cousas do país, e nele colaboraram, com alguns dos poetas citados, Pedra Branca, Silva Alvarenga, José Bonifácio e todos os homens doutos do tempo que deixaram qualquer sinal de si nas nossas letras, marquês de Maricá, Camilo Martins Lage, Pedro Francisco Xavier de Brito, Silvestre Pinheiro Ferreira, José Saturnino da Costa Pereira, etc. O Brasil e tudo quanto lhe interessava o conhecimento e o progresso eram os seus assuntos prediletos.

José de Sousa de Azevedo Pizarro e Araújo (1753-1830), José da Silva Lisboa (visconde de Cairu) (1756-1835), Baltazar da Silva Lisboa (1761-1840), Luís Gonçalves dos Santos (1764-1844), Mariano José Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) (1773-1848), José Feliciano Fernandes Pinheiro (visconde de S. Leopoldo) (1774-1847), além de somenos nomes com que facilmente se alongaria esta lista, formam como prosistas o exato pendant dos poetas nomeados seus contemporâneos. Tem, porém, sobre estes a superioridade de uma obra que ao tempo foi mais útil e serviu melhor à causa da nação e particularmente da sua cultura. A de alguns deles tem ainda o mérito de haverem iniciado qualquer cousa na cultura ou nas letras brasileiras: assim a de Cairu estréia aqui os estudos econômicos e de direito público e mercantil, a de Maricá a literatura moralista. É o que lhes dá direito ao menos à menção dos seus nomes na história da nossa literatura. Com exceção de um ou outro, não são propriamente escritores com idéias e dons de expressão literária, ou que representem o espírito ou o sentimento do seu povo, nem as suas obras têm qualidades que nos permitam lê-las sem fastio e displicência e pelas quais se incorporassem no patrimônio das nossas boas letras. São, porém, expoentes ingênuos e expositores sinceros da cultura da sua época no Brasil, seus promotores e fautores aqui. Tais são principalmente o visconde de Cairu, o marquês de Maricá, o visconde de S. Leopoldo e o mesmo Aires de Casal, se não fora português.

José da Silva Lisboa, a quem seus grandes méritos literários e relevantes serviços públicos mereceram o título de visconde de Cairu, pelo qual é mais conhecido, é certamente pela extensão e solidez dos seus conhecimentos, e fecundidade do seu labor, a figura mais proeminente das nossas letras, tomada a expressão no seu sentido mais lato da fase que vamos historiando. Nasceu na Bahia em 1756, completou os estudos secundários e fez superiores em Portugal, onde lecionou grego e hebraico no Colégio das Artes, de Coimbra, e após uma longa e bem preenchida existência no Brasil como professor, publicista, funcionário público, magistrado e parlamentar, faleceu no Rio de Janeiro em 1836. O seu mérito é muito maior como jurista, economista, comercialista e publicista ou sabedor e escritor de questões públicas, políticas e administrativas, do que como literato, se bem tenha sido o visconde de Cairu um dos brasileiros de mais vasta literatura. Contemporâneo de Adam Smith, o criador da economia política, parece foi o nosso patrício o primeiro que nas línguas neolatinas escreveu dessa nova ciência, divulgando desde 1798 as idéias do pensador inglês. As três principais obras de Silva Lisboa sobre a matéria são Princípios de direito mercantil (1798-1803), Princípios de economia política (1804) e Estudos de bem comum (1819-1820). Conta-se que Monte Alverne, mais que seu adversário teórico, seu inimigo pessoal e inimigo rancoroso como saía ser, entrando na sua aula de filosofia do seminário de S. José no dia da morte de Cairu, com um gesto desabrido, com que acaso escondia o sentimento, declarara «que não dava aula porque morrera um grande homem, apesar de que a sua cabeça não passava de uma gaveta de sapateiro». Também a antipatia, em que pese a Carlyle, aguça a inteligência e facilita a compreensão. A frase atribuída ao soberbo frade traduz na sua vulgaridade uma impressão exata da copiosa, desigual e disforme obra do douto e laboriosíssimo escritor que foi Cairu. Consta-lhe a produção impressa ou manuscrita de setenta e sete números de obras maiores ou menores de direito, economia política ou social, história, questões do dia e públicas, didascálica, jornalismo, polêmica, pedagogia, moral. Como composição, fatura, estilo, esta produção é irregular, desigual e ainda extravagante e disparatada, revendo à pressa e até à precipitação do trabalho, a excitação ou a paixão do momento, o produto de ocasião. A literatura dela só podia aproveitar pequeníssima parte, a História dos principais sucessos políticos do Brasil por exemplo, a Vida de Wellington e pouco mais. Esta mesma, porém, carece de predicados literários que a recomendem à nossa estima. Em todos os gêneros produtos das circunstâncias, as obras de Cairu não sobrevivem às que as produziram.

Mariano José Pereira da Fonseca, quase somente conhecido pelo seu título de marquês de Maricá, vinha do tempo dos últimos vice-reis do Brasil, um dos quais o Conde de Resende, sob a inculpação de inconfidente, o teve preso por mais de dois anos. No vice-reinado de Luís de Vasconcelos fundaram alguns homens de estudo e letras do Rio de Janeiro, o doutor Manoel Inácio da Silva Alvarenga, mestre régio de retórica e conhecido poeta da plêiade mineira, João Marques Pinto, mestre régio de grego, o médico Jacinto José da Silva, o nosso Mariano José Pereira da Fonseca e outros letrados, uma sociedade literária. As reuniões periódicas destes homens de letras, em tempos em que ainda estava fresca a lembrança da chamada Conjuração Mineira, cujos sócios eram em maioria também homens de letras, foram havidas por suspeitas, dissolvida a sociedade e presos e processados os seus membros.

Mariano da Fonseca nasceu no Rio de Janeiro em 1773, e na mesma cidade faleceu em 1848. Formou-se em matemática e filosofia em Coimbra, o que correspondia à profissão de engenheiro. Como aconteceu geralmente a todos os brasileiros de instrução e mérito da época da Independência, teve importante situação política e social no primeiro reinado, distinções honoríficas e altos cargos, senador, conselheiro de Estado. Aos quarenta ou quarenta e um anos começou a publicar no Patriota, de Araújo Guimarães, as suas Máximas, pensamentos e reflexões, sob o pseudônimo de Um brasileiro. Porventura para lhes dar o peso da autoridade de maior experiência, mais tarde, em nova edição que delas fez, declarou havê-las escrito dos sessenta aos setenta e três. Norberto lhe reparou no equívoco e o corrigiu com razão.92 De 1837 a 1841 publicou, já sob o título de marquês de Maricá, as suas Máximas, pensamentos e reflexões em três partes respectivamente, distribuindo-as gratuitamente. Como ele tenha depois facultado a todos a reimpressão das suas obras, devemos crer que esta rara generosidade obedecia a um pensamento de interesse pela doutrinação moral dos seus patrícios. O marquês de Maricá, como La Rochefoucauld, com quem mui indevidamente o comparou uma crítica mais patriótica que esclarecida, não escreveu em sua vida senão máximas. Ele próprio as computou, na última coleção que delas imprimiu, em 1845. É, pois, segundo a qualificação moderníssima e depois do autor do Compêndio do peregrino da América e de Matias Aires, o primeiro moralista da nossa literatura. Não tinha, porém, uma filosofia sua ou sequer alheia afeiçoada pela sua própria experiência e meditação. Repete os lugares comuns da ética contemporânea, mistura de cristianismo sentimental e de liberalismo político. A sua psicologia, escolástica e vulgar, jamais vai ao fundo das cousas, nem descobre na alma humana novidades ou aspectos recônditos ou inéditos. À sua observação falta finura e penetração, ou originalidade. Faz parte da vulgar sabedoria comum e ele não a soube relevar pelos dons singulares de expressão que o gênero requer, e que são porventura o principal mérito dos seus grandes modelos franceses. Máximas e pensamentos, valem talvez principalmente pela forma que revestem. São o imprevisto, o ressalto, junto à concisão e à justeza desta que os valoriza. O escolho do gênero é a banalidade, clara ou mascarada com o paradoxo ou a singularidade. Neste escolho bateu freqüentemente o marquês de Maricá. Nem por isso perdem as suas Máximas a importância que lhe assinalei de primeiro exemplar do moralismo leigo e literário em a nossa literatura. E para o comum dos leitores que dispensam no assunto refinamentos, sutilezas de idéias e expressão, podem ser leitura agradável e proveitosa, porque o essencial é são e a forma escorreita, sem rebusca indiscreta de purismo e já do nosso tempo e gosto.

José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de S. Leopoldo, nascido em Santos (S. Paulo) em 1774 e falecido em Porto Alegre (Rio Grande do Sul) em 1847, foi sujeito considerável pela sua ilustração e alta situação social e política no reinado do primeiro imperador. Formado em direito pela Universidade de Coimbra, em Portugal fez os seus primeiros trabalhos literários, traduções e compilações de assuntos de imediata utilidade prática, ali publicados de 1799 a 1801. No Brasil, após haver exercido diversas comissões de serviço público, foi eleito em 1821, deputado às Cortes da nação portuguesa quando da reforma governamental por que esta passou, e como tal tornou a Portugal. Espírito conservador e moderado, foi dos poucos deputados brasileiros que juraram a constituição por elas feita. De volta ao Brasil em seguida à declaração da Independência, foi aqui deputado geral, presidente de província, ministro do Império, senador e ocasionalmente encarregado de uma missão de caráter diplomático. Por estes serviços teve o título de visconde de S. Leopoldo, nome por que ficou quase exclusivamente conhecido. Além de memórias biográficas de compatriotas ilustres ou sobre limites do Brasil e ainda monografias interessantes para a nossa história literária, escreveu uma obra notável para o tempo e ainda hoje estimável, Anais da Capitania de S. Pedro. Como livro, quero dizer, sob o puro aspecto bibliográfico, o mais bem feito dessa época, o mais perfeito de composição e estrutura. Não obstante algumas incorreções de linguagem, galicismos e alguns mais graves defeitos de estilo, a sua redação revê o homem educado em Portugal e a leitura dos portugueses. A língua é geralmente melhor do que aqui comumente escrita. Como historiador distingue-se já o visconde de S. Leopoldo por bom critério histórico, aptidões críticas, capacidade de apurar os sucessos nos documentos autênticos de preferência originais ou inéditos, informação segura das fontes ou informes impressos do assunto ou a ele aproveitáveis, arte de dispor e referir os fatos e, notavelmente, menos prolixidade como era, e continuou a ser, de costume. As suas Memórias, publicadas postumamente na Revista do Instituto Histórico (tomos 37-38), conquanto lhes falte o interesse das revelações inéditas e mesmo das indiscrições, que principalmente dão relevo e pico a este gênero de literatura, sem que lho levante também um estilo mais literário, são todavia, até pela raridade delas nas nossas letras, estimáveis.

Todos os mais autores de prosa desta mesma fase ainda menos consideráveis são. Nenhum é um escritor que se faça todavia ler com aprazimento.

Capítulo VIII

O Romantismo e a primeira geração romântica

Tivesse o príncipe regente de Portugal, logo depois rei D. João VI, o propósito de preparar o Brasil para a independência, não haveria porventura procedido tão atilada e eficazmente. Por uma série de medidas econômicas e políticas, mal chegado ao Brasil havia ele começado a reforma completa do velho regime colonial, naquilo justamente que mais devia concorrer para despertar nos brasileiros o sentimento da sua personalidade e importância e lhes acoroçoar veleidades porventura latentes de autonomia e emancipação. A autonomia nos dera de fato a transplantação da realeza para cá, a elevação do Brasil a reino e a ereção do Rio de Janeiro em capital da monarquia portuguesa. A emancipação surgiria do conflito dessa autonomia com a insensata contrariedade que lhe criou a reação recolonizadora portuguesa.

Da geração que testemunhou, acompanhou e até fomentou ou promoveu os sucessos da nossa independência política, surgiu um seleto grupo de homens de estudo e letras que lhe completaram o feito insigne, dando à recente nação o abono indispensável da sua capacidade de cultura. É esse grupo que, sob o aspecto literário, chamo a primeira geração romântica, quero dizer os escritores que, influenciados pelo Romantismo europeu e seguindo-lhe aqui os ditames, apareceram de 1836 em diante e cuja atividade se dilatou por um quarto de século.

Além de Monte Alverne (1784-1858), que foi de algum modo um precursor do movimento como o mais escutado preceptor filosófico dos seus principais fautores, e de Magalhães, o seu iniciador, mormente constituem essa geração intelectual, Porto Alegre (1806-1879), amigo e êmulo de Magalhães; Teixeira e Sousa (1812-1861); Pereira da Silva (1817-1898); Varnhagen (1819-1882); Norberto da Silva (1820-1891) e, o maior deles, Gonçalves Dias (1823-1864). Outros nomes podiam alongar esta lista, nenhum, porém, com a significação e importância de quaisquer destes.

Distingue-se esta geração pela versatilidade dos talentos, variedade da obra e propósito patriótico da sua atividade mental. Quase todos eles, senão todos, são poetas, dramaturgos, novelistas, eruditos, críticos, publicistas, e Porto Alegre será demais pintor e arquiteto. No seu ardor pelos créditos intelectuais de sua pátria, parecia quererem completa a sua literatura; que se não limitasse, como até então, quase exclusivamente à poesia.

Quando todos eles se faziam homens, o cônego Januário da Cunha Barbosa, que com grandes créditos de literato e orador sagrado vinha da geração anterior, zeloso dos interesses mentais da novel pátria, fundou com outros letrados e homens de boa vontade o Instituto histórico, geográfico e etnográfico brasileiro. Com a publicação do Parnaso Brasileiro (1829), foi este o melhor serviço prestado por Januário Barbosa, não só às nossas letras, mas à nossa cultura. Teve o Instituto histórico, em verdade, o papel de uma Academia que, sem restrições de especialidades, se abrisse a todos as capacidades nacionais e a todos as lucubrações por pouco que interessassem ao Brasil. E assim, de propósito ou não, deu ao movimento espiritual que se aqui operava uma base racional no estudo da história, da geografia e da etnografia do país, compreendidas todas largamente. Os principais românticos foram todos seus sócios conspícuos e colaboradores da Revista que desde 1839 começou o Instituto histórico a publicar trimensalmente. A todos os literatos brasileiros do tempo serviu esta instituição de traço de união e confraternidade literária e de estímulo.

Além de patriótica, ostensivamente patriótica, a primeira geração romântica é religiosa e moralizante. Estas feições fazem que seja triste, como aliás será a segunda. Somente a tristeza desta é a do ceticismo, do desalento e fastio da vida, segundo Byron, Musset, Espronceda e quejandos mestres seus. A melancolia de Magalhães e seus parceiros é a tristeza de que penetrou a alma humana o sombrio catolicismo medieval. Na alma portuguesa, donde deriva a nossa, aumentou-a a forçada beataria popular, sob o terror da Inquisição e o jugo, acaso pior, do jesuitismo. Rematava-a o descontentamento criado nesses brasileiros pela desconformidade entre as suas ambições intelectuais e o meio. Já em prosa, já em verso, todos eles lastimam-se da pouca estima e mesquinha recompensa do gênio que, parece, acreditavam ter e do desapreço do seu trabalho literário. Não tinha aliás razão. Era inconsiderado pretender que um povo em suma inculto, e de mais a mais ocupado com a questão política, a organização da Monarquia, a manutenção da ordem, de 1817 a 1848 alterada por todo o país, cuidasse de seus poetas e literatos. Não é, todavia, exato que, apesar disso, os descurasse por completo. O povo amava esses seus patrícios talentosos e sabidos, revia-se gostosamente neles, acatava desvanecido os louvores que mereciam aos que acreditava mais capazes de os apreciar. Supria-lhe esta capacidade, o sentimento patriótico restante dos tempos ainda próximos da Independência, e a ingênua vaidade nacional com ela nascida. O imperador começou então o seu mecenato, nem sempre esclarecido, mas sempre cordial, em favor dessa geração que lhe vinha ilustrar o reinado. D. Pedro II, que por tantos anos devia ser a única opinião pública que jamais houve no Brasil, iniciou por esse tempo a sua ação, ao cabo utilíssima, na vida intelectual da nação. Prezando-se de literato e douto, apreciou pelo seu povo incapaz de fazê-lo, e acoroçoou e premiou esses seus representantes intelectuais. Se não todos, a maioria da primeira geração romântica, com muitos outros depois dela, em todo o reinado, mereceram-lhe decidido patrocínio. Revestia este não só a forma de sua amizade pessoal, que aliás nunca chegava ao valimento, porém a mais concreta e prestadia de empregos, comissões, honrarias. E, louvados sejam, não lhe foram ingratos. As principais obras em todos os gêneros dessa época são-lhe dedicadas, em termos que revêem o reconhecimento da munificência imperial. Todos eles foram fervorosos e sinceros monarquistas, menos aliás por amor do princípio que do monarca. E se não pode malsinar-lhes ou sequer suspeitar-lhes a dedicação, sabendo-se quão escrupuloso era o imperante nos seus favores e quão parco era deles. Mas a vaidade, infalível estigma profissional, destes literatos, se não contentava desta alta estima; quisera mais, quisera o impossível, que, como nas principais nações literárias da Europa, dessem às letras aqui consideração, glória e fortuna. Foi esse, aliás, um dos rasgos do Romantismo, o exagero da vaidade nos homens de letras e artistas, revendo a intensidade do descomedido individualismo da escola. Os dessa geração, porém, ainda tiveram pudor de não aludir sequer à feição material das suas ambições, pudor que, passado o Romantismo, desapareceria de todo, principalmente depois da emigração de literatos estrangeiros, industriais das letras, e da invasão do jornalismo pela literatura ou da literatura pelo jornalismo. A desconformidade entre aqueles nossos primeiros homens de letras e o meio, essa, porém, era real, continuou e acaso tem aumentado com o tempo. E basta para, com a mofineza sentimental que, sobre ser muito nossa, era também da época, explicar o matiz de tristeza da primeira geração romântica, no tom geral do seu entusiasmo político literário. Aumentando na segunda geração romântica, nunca mais desapareceria esse matiz das nossas letras, sob este aspecto expressão exata do nosso humor nacional.

Ao contrário do que até então se passava, a educação literária da maioria dos escritores dessa geração se fizera aqui mesmo. Por desgosto da metrópole, entraram a abandonar-lhe a escola, até aí assídua e submissamente freqüentada. Falavam, pois, a língua que aqui se falava, e naturalmente a escreviam como a falavam, sem mais arremedo do casticismo reinol. A que escreveram, e não é por ventura este um dos seus somenos méritos do ponto de vista da nossa evolução geral, mérito que avultará quando de todo nos emanciparmos literariamente de Portugal, não é mais a que aqui antes deles se escrevia. É outro o boleio da frase, a construção mais direta, a inversão menos freqüente. Usam mais comumente dos tempos compostos dos verbos, à francesa ou à italiana. Refogem ao hábito clássico português de nas suas orações de gerúndio começá-las por ele. Colocam os pronomes oblíquos segundo lhes pede o falar do país e não conforme a prosódia portuguesa, que entra então a ser aqui motivo de chufa e troça. Usam de extrema e até abusiva liberdade no colocá-los. Dão maior extensão a certas preposições. A forma do modo finito seguido de um infinitivo com preposição à maneira portuguesa, preferem a do infinito seguido de gerúndio. E propositadamente, ou propositalmente, como escrevem segundo aqui soa, empregam vocábulos de origem americana ou africana, já perfilhados pelo povo. Aceitam as deturpações ou modificações de sentido das formas castiças aqui popularmente operadas, e começam a dar foros de literários a todos esses vocábulos ou dizeres, de fato lidimamente brasileiros e para nós vernáculos, por serem de cunho do povo que aqui se constituía em nação distinta e independente. São, entretanto, parcos de estrangeirismos, quer de vocabulário, quer de sintaxe. O fundo da língua conserva-se neles mais puro, embora sem afetação de casticismo. Sua linguagem e estilo são por via de regra nativos, infelizmente até sem as qualidades essenciais à boa composição literária. Sempre crescendo e avultando segue esta maneira, que começou com eles, até depois da segunda geração romântica. Só na segunda fase do que chamamos modernismo, com a introdução dos estudos filológicos segundo o seu novo conceito, e da sua reação sobre o da língua nacional, consoante os mesmos programas do ensino oficial entraram a chamar à nossa, inicia-se aqui um movimento em contrário àquela indiferença pelo apuro desta. Começa-se então a fazer timbre de escrever bem segundo os ditames gramaticais e os modelos chamados clássicos. A mesma crítica, que até aí descarava este relevante aspecto da obra literária, principia a prestar-lhe atenção e a notá-lo, ainda quando ela própria o desatende. Não sei quem ao cabo tem razão. Foi mais firme já o meu parecer da necessidade de conservarmos o português castiço estreme quanto possível nas modificações que o seu novo habitáculo americano lhe impõe. Começo a convencer-me da impossibilidade de tal propósito. Não o poderíamos realizar senão artificialmente como uma reação erudita, sem apoio nas razões íntimas da mentalidade nacional e com sacrifício da nossa espontaneidade e originalidade. Nem teria tal reação probabilidade de definitivamente vingar numa população que será amanhã de muitos milhões, originariamente de várias e diversas línguas. Não se pode admitir que a gente brasileira se submeta a uma disciplina lingüística de todo oposta aos instintos profundos das suas necessidades de expressão determinadas pela variedade de seus falares ancestrais e pelas exigências imediatas da sua situação social e moral.

Apenas a literatura não deve esquecer que ela é, sobre o aspecto da expressão, uma força conservadora. Sem oferecer resistência caprichosa e desarrazoada à natural evolução da língua que lhe serve de instrumento, cumpre-lhe não se lhe submeter enquanto os seus resultados não tiverem a generalidade de fatos lingüísticos indisputáveis. A intromissão inoportuna da literatura nessa evolução, sobretudo para lhe aceitar indiscretamente todas as novidades inventadas com pretexto dela, não pode senão prejudicá-la naquilo que justamente é importante da sua existência, a sua faculdade de expressão. Se ela, porém, por outro lado, se ativesse rigorosamente ao casticismo português, no genuíno sentido deste vocábulo, o brasileiro acabaria por ficar alheio aos seus escritores e estes aos seus patrícios, por motivo da descorrelação entre a língua falada por uns e a escrita por outros.

E é talvez esta a mais íntima causa da falta de simpatia -agora talvez maior do que dantes- entre os nossos escritores e o nosso povo. Nesta sociedade descomedidamente igualitária, como talvez outra não exista, o escritor e o público vivem inteiramente alheados um do outro pelo pensamento e pela expressão. A reação vernaculista dos maranhenses durante justamente esta primeira fase romântica, não obstante os preclaros modelos de Sotero dos Reis, João Lisboa, Odorico Mendes e Gonçalves Dias, ficou estéril. Destes nomes, o único que sobrevive na memória do povo é o de Gonçalves Dias, o poeta dos versos simples e populares da Canção do Exílio.

Também o segredo da popularidade persistente dos poetas da segunda geração romântica não está somente em que eles foram os de mais rico e sincero sentimento que jamais tivemos, mas em que o exprimiram numa língua e forma poética ao alcance de todos, sem artifício de métrica nem arrebiques de estilo. O mesmo acontece com os principais romancistas dessa fase. Macedo e Alencar, como o documentam os registros da Biblioteca Nacional e vos informarão os livreiros e mais que tudo o provam as suas constantes reimpressões, continuam a ter mais leitores do que os romancistas de hoje, apesar de não terem por si os reclamos do noticiário camaradeiro e das parcerias de elogio mútuo.

Os nossos escritores da primeira geração romântica, se não menos artistas, são também em suma menos artificiosos que os do mesmo período em Portugal. A sua arte literária, quando a têm, é ingênua e canhestra, o que lhes dá ao estilo algo, não de todo desagradável, dos primitivos. Com exceção do pomposo Porto Alegre e de certos poetas menores, como Norberto em algumas das sua infelizes tentativas épicas e dramáticas, os melhores deles escrevem se não singelamente, o que parece incompatível com o nosso gênio literário, todavia em estilo menos torcido e enfático que o geral da ex-metrópole, e do qual não escaparam no mesmo período os melhores dali, porventura com a única exceção relevante de Garrett. Esta relativa simplicidade é uma das virtudes mais estimáveis dos bons poetas da segunda geração romântica. Pecam, entretanto, os de ambas estas gerações pelo excesso de sentimentalismo e de romanesco que, principalmente na ficção em prosa, roça neles pela pieguice e pelo amaneirado do pensamento e da expressão. Não tem ainda as preocupações de forma que chamamos de artísticas. E não eram desses artistas natos da palavra escrita que, sem intenção nem rebusca, acham a forma excelente. Apenas Gonçalves Dias na maior parte da sua obra, e Porto Alegre no seu tão mal julgado quanto desconhecido Colombo, e alguma vez na sua prosa característica, a encontraram. Porto Alegre, cujo bom gosto era menos apurado que o de Gonçalves Dias, prejudicou-se no entanto pela sua inclinação bárbara, mas muito da índole literária nacional, ao pomposo e reluzente do estilo e ao rebuscado do pensamento e da forma.

Capítulo IX

Magalhães e o Romantismo

Favorecido pela autonomia de fato resultante da mudança da Corte portuguesa para cá, pelo apartamento intelectual da metrópole começado a operar com a criação de faculdades, escolas, institutos de instrução e da imprensa, e, sobretudo, pela total independência política proclamada em 1822, e efervescência cívica por ela produzida, manifestou-se no Brasil, por volta de 1840, o movimento de reforma literária chamado o Romantismo.

É aos Suspiros poéticos e saudades, coleção de poesias publicada em Paris, em 1836, por Domingos José Gonçalves de Magalhães, que ele próprio, os críticos e leitores contemporâneos atribuíram o início do Romantismo aqui. Razoavelmente se não pode discordar deste conceito. O leitor de hoje, entretanto, só com esforço e aplicação encontrará nesse livro o que plenamente o justifique. E somente da comparação com o que era aqui a poesia antes dele, lhe virá a certeza de que não é errado.

Tem um duplo caráter a inspiração desses poemas, patriótico e religoso. O patriotismo, significando com esta palavra não só o amor e devoção da terra, mas o sentimento da sua distinção de Portugal, já era, desde os mineiros, e aumentada pelos poetas difíceis de dominar que lhes sucederam, a feição particularmente notável da poesia brasileira. Era aliás apenas o desenvolvimento do nativismo nela manifestado desde o século XVII, que se acentuava na proporção do progresso do país. A religião, ou melhor a religiosidade poética de Magalhães, era o produto direto da revivescência religiosa operada na Alemanha pelo idealismo filosófico de Kant e Hegel, em França pelo sentimentalismo católico de Chateaubriand. E mais o resultado imediato da influência de Monte Alverne, o facundo professor dessa filosofia, mestre muito querido e admirado do poeta.

Em nenhum destes dois rasgos da poética de Magalhães há mais que traços, como se diria em química, do movimento de emancipação estética desde o fim do século anterior iniciado na Europa. Traços iguais encontram-se em José Bonifácio e, apenas mais apagados, em Sousa Caldas. O impressionismo poético dos Suspiros e saudades, revelado no livro por poemas inspirados das ruínas romanas, da meditação sobre a sorte dos impérios, dos grandes espetáculos da natureza ou das magníficas fábricas humanas, gerando o assombro da grandeza de Deus e dos prodígios do Cristianismo, a nostalgia curtida entre túmulos e ciprestes, a cisma dos destinos da pátria, nas paixões humanas e no nada da vida, todos temas aqui novos, já é certamente, por mais de um aspecto da inspiração e da expressão, romântico, como romântico é o subjetivismo de que procede essa impressão poética. Mas o é sem clara consciência ou intuição profunda. Se do prefácio que sob o vocábulo de «Lede» lhe pôs o poeta, páginas de pouco valor filosófico ou estético, algo pode tirar-se é que o poeta não concebia a poesia senão como um «aroma d'alma», que «deve de contínuo subir ao Senhor»; «som acorde da inteligência» «deve santificar as virtudes e amaldiçoar o vício». «O poeta, resume ele em um vazio anfiguri, empunhando a lira da Razão, cumpre-lhe vibrar as cordas eternas do Santo, do Justo e do Belo.» E logo abaixo exprobra «à maior parte dos nossos poetas» e «ao mesmo Caldas, o primeiro dos nossos líricos» «não se terem apoderado desta idéia». Essas páginas anódinas, mal pensadas e mal escritas, nada têm do ardor dos iniciadores ou neófitos da nova escola fora daqui. Delas se não deduz nenhuma idéia clara da estética do poeta e do seu conceito dessa escola. Procurou dá-la desde o aparecimento do livro, Sales Tôrres Homem, o futuro Visconde de Inhomirim, que então ainda fazia literatura, num artigo da Niterói, Revista Brasiliense, ao tempo publicada em Paris. Apenas, porém, com um pouco mais de clareza que o mesmo poeta. Sales Tôrres Homem via o Romantismo como uma reação contra o paganismo e a literatura deste derivada, assim como via que da mesma fonte cristã bebiam inspirações «não só a poesia, como as artes e a filosofia, irmã da teologia». E põe de manifesto a inspiração religiosa e patriótica do poeta, que é também a da sua crítica. Como a patriótica, a inspiração religiosa não era uma novidade na poesia brasileira. Estavam frescos os exemplos de Sousa Caldas e de Elói Otôni, além de mostras acidentais de outros poetas contemporâneos destes ou seus antecessores. Deus, sob vários vocábulos (até o de Tupá: «Tupá, ó Númen dos meus pais», de Firmino Rodrigues Silva) e perífrases, bem como a religião e seus mistérios entravam freqüentemente em tropos, imagens, figuras e em toda a poética daquela fase intermédia. Erraria quem destas manifestações inferisse um íntimo e forte sentimento religioso nesses poetas e no povo cujos órgãos eram. É um simples vezo, um cacoete literário, oriundo da sua educação, inteiramente eclesiástica. Desde que se iniciou, com o primeiro estabelecimento dos portugueses, até o começo da segunda metade do século XIX, a instrução aqui foi toda e exclusivamente dada por padres nas escolas, colégios e seminários, e ainda nas famílias. Os homens mais instruídos, os letrados que encheram as listas de sócios das academias literárias coloniais, eram em sua maioria padres ou frades, doutores em cânones, homens de igreja em suma. A forma oral e popular da literatura tinha a sua mais alta, mais freqüente e mais autorizada expressão no sermão. Desta educação recebida, na escola e fora dela, de eclesiásticos, mais do que um real sentimento religioso resultou o hábito de expressões de caráter religioso não só em a nossa conversação corrente, mas em nossos escritos, discursos, poesias. São antes tropos, frases feitas, locuções proverbiais que a expressão de verdadeiro sentimento religioso. Justamente nesta fase, os dois sentimentos, patriótico e religioso, misturavam-se aqui. Nas crises nacionais graves, como nos transes individuais, o espírito humano apavorado, revendo a origem deste sentimento, faz-se religioso. Aqui, demais, eram em grande número eclesiásticos os principais adeptos e fatores da revolução que se operava. Do púlpito, as vozes mais ou menos eloqüentes de Januário Barbosa, de S. Carlos, de Sampaio e de Monte Alverne pregavam ao mesmo tempo pela religião e pela pátria. Nas aulas, mestres, em maioria clérigos regulares ou seculares, juntavam às suas lições fundamentalmente religiosas as suas excitações patrióticas. No Rio de Janeiro, o principal centro de cultura e de vida literária do país, como o principal foco do movimento da independência nacional, Fr. Francisco de Monte Alverne fazia do púlpito ou da cátedra estrado de tribuno político, misturando constantemente, com eloqüência retumbante, havida então por sublime, a religião e a pátria. De resto, o Romantismo europeu, mesmo na Alemanha, foi em seus princípios, não só uma reação religiosa, mas até católica. Esta sua feição bastava para o tornar simpático aqui, onde o elemento eclesiástico era mentalmente preponderante.

Foi este meio e momento que produziu Magalhães. Nascido em 1811 no Rio de Janeiro, a sua infância, adolescência e juventude passaram-se na quadra mais ativa e efervescente da nossa vida política, que justamente então em verdade começava. Era menino de onze anos pela Independência, e pelo 7 de abril entrava em plena juventude. Coincidiu-lhe a idade viril com a da pátria. Se houvesse em Magalhães maior personalidade, mais caráter, quero dizer qualidades morais salientes e ativas que lhe estimulassem o engenho, o momento e o meio teriam podido fazer dele um grande poeta. Não logrou ser senão um distinto poeta, cujo sentimento se ressente das circunstâncias em que se criou, cujo estro e inspiração revêem aquele meio e momento, mas sem o relevo e a distinção que foi de moda atribuir-lhe. Não se veja, aliás, nessa atribuição apenas a mesquinhez do gosto e do senso crítico do tempo ou um efeito das camaradagens literárias do autor, senão a conseqüência dos mesmos exaltados sentimentos nacionais do momento. Nem foi ele o único a quem esta circunstância aproveitou. Ao contrário, ela influiu preponderantemente na admiração ingênua e desavisado apreço que os nossos avós da primeira geração após a Independência tiveram por todos os seus poetas e literatos. A sua vaidade patriótica, então exagerada, desvanecia-se deles, como prova da nossa capacidade mental a opor às presunções e preconceitos portugueses da nossa inferioridade. E, ou fosse porque candidamente estivessem persuadidos do mérito dos escritores patrícios, ou por despique da opinião da metrópole, lho encareciam descomedidamente. Que, por Magalhães, não era a manifestação de uma parceria ou conventículo de literatos, mas o sentimento geral e sincero mostra-o o terem dele aproveitado ainda os mais medíocres. Tal sentimento é o inspirador da crítica nimiamente laudatória e até louvaminheira da época, e que se continuaria até nós em virtude de um hábito adquirido. É também esse sentimento, ininteligente certamente, mas ao cabo respeitável, que levaria os primeiros historiadores das nossas letras, que justamente então começam a aparecer, à enumeração fastidiosa e inútil de nomes e nomes, e a juntar-lhes os mais descabidos encômios.

Antes dos Suspiros poéticos e saudades, publicara Magalhães, em 1832, um volume de Poesias, reproduzido mais tarde nas Poesias avulsas (Rio de Janeiro, Garnier, 1864). Superabunda de provas de que àquela data estava ainda Magalhães no subarcadismo reinante em Portugal e aqui em todo o primeiro quartel do XIX século e continuado até o pleno advento do Romantismo. Sob a influência desse subarcadismo ou pseudoclassicismo, como se lhe tem chamado, conservou-se Magalhães ainda nas duas décadas seguintes. E acaso se pudesse dizer que, salvo a exceção da Confederação dos Tamoios e de parte a intenção do seu teatro, nunca se lhe emancipou de todo. Como o seu amigo e êmulo Porto Alegre, era Magalhães de temperamento mais um árcade que um romântico, e mais do que àquele acontecia, lhe iam contra a índole as audácias do Romantismo, naturais e necessárias nos movimentos revolucionários como foi esse. Há poemas seus dos anos de 40, e até de 60, de todo em todo arcádicos, odes pindáricas, com os obsoletos cortes clássicos de estrofes, épodos e antiestrofes, a terminologia mitológica, os tropos e figuras da velha retórica quintilianesca, com que os pseudoclássicos de todos os países desde a Renascença ingenuamente presumiram emular com os latinos e gregos e reproduzi-los. Nessas poesias avulsas bem pouco há que, ao menos pela inspiração e estilo, eleve Magalhães acima dos poetas seus imediatos predecessores, nem que o separe deles. Apenas na composição e forma desses poemas é possível notar alguma diferença na maior objetividade dos assuntos e ainda nos títulos de diversas composições. Ao amor da pátria, à liberdade, à guerra, ao dia 25 de março, ao dia 7 de abril e quejandos, não são comuns na poesia anterior. Talvez se pudesse dizer que pronunciam o individualismo romântico assuntos e títulos como À saudade, A volta do exílio e outras inspiradas de motivos pessoais, assim como as Noites melancólicas, se o seu íntimo sentimento e estilo não fossem ainda os da poética dominantes antes do Romantismo. Compõe elogios dramáticos em verso, como o da Independência do Brasil, tal qual Tenreiro Aranha, e cartas amistosas em prosa e verso, tal qual Sousa Caldas. Escreve epicédios, liras, epístolas, copiosamente, perluxamente mas sem engenho que revigore e alente essas formas de todo gastas. Aliás o vinco dessas categorias poéticas era profundo na poesia da nossa língua, e o próprio Golçalves Dias ainda capitulou com ele quando já era de todo anacrônico e impertinente o seu emprego.

No mesmo ano em que, com 21 de idade, estreara com as Poesias (1832), partiu Magalhães para a Europa, em viagem de instrução e recreio. Para ser doutor, título aqui indispensável de recomendação, formara-se antes em medicina no Rio de Janeiro. Quatro anos depois apareciam em Paris os Suspiros poéticos e saudades.

Nesse período percorrera a França, a Bélgica, a Itália, a Suíça. Não foi grande a modificação que o contato de cousas novas e sugestivas operou na sua índole poética. Em suma os Suspiros poéticos, acolhidos e saudados como uma renovação literária, não se distinguem com tal relevo das Poesias do ano de 32, que sem mais exames possamos atribuir-lhe aquele efeito. Teve-o entretanto.

As formas poéticas eram outras, já a dos poemas soltos não sujeitos a uma nomenclatura preestabelecida. Bania o poeta, ou ao menos olvidava, as odes com as suas repartições clássicas, e o resto daquelas categorias, e quando se endereçava aos amigos não mais lhes trocava os nomes por apelidos arcádicos, como nas Poesias avulsas. O soneto, forma estrófica de que os árcades usaram e abusaram, e numerosos na primeira coleção, desaparece totalmente desta, onde não se nos depara nenhum. O Romantismo foi parco em sonetos. Há mais variedade, mais liberdade nas formas métricas e quase nenhum socorro aos recursos mitológicos ou clássicos. O próprio título da coleção indica uma subjetividade, um sentimentalismo maior, e da leitura verifica-se que é de fato maior e influi na emoção dos próprios poemas objetivos. O poeta refere e reporta a si, o que é bem romântico, todas as comoções que lhe vêm dos aspectos da natureza, da contemplação dos sucessos humanos, das meditações sobre temas e ficções abstratas. Mistura-lhes constantemente a sua nostalgia, o seu pesar, os sofrimentos que experimenta ou cisma. Da biografia conhecida de Magalhães não parece tenha sido desventurado ou tido grandes penas na vida. Ao invés, quanto dele sabemos, foi um mimoso da fortuna. Dos seus poemas, entretanto, resultaria a presunção contrária. É talvez ele quem inaugura na poesia brasileira o estilo lamuriento dos que já algures chamei de nostálgicos da desgraça, moda poética que tanto floresceu aqui. Não achou, no entanto, a sua dor, talvez por não ser verdadeiramente sentida, nenhuma expressão bastante forte para nos comover também a nós. O abstrato do seu estilo, porventura a sua característica, sob o aspecto do estilo, concorreu ainda mais para diminuir-lhe a intensidade da emoção já de si, parece, pouco profunda e o calor da expressão, apenas altieloqüente. Daí, e da prolixidade, outra feição do seu poetar, o desmaio e o banal da sua poesia, apesar dos seus propósitos filosóficos. É que ele lhe pôs não os seus íntimos sentimentos atuados pela sua filosofia, as suas emoções apenas influídas por ela, senão os próprios ditames da escola e do livro, e levou para a sua arte intenções pedagógicas. Os passos de inspiração filosófica dos seus poemas são puramente didáticos e não a expressão de uma simples emoção poética:

Não, o medo não foi quem sobre a terra

os joelhos dobrou ao homem primeiro,

e as mãos aos céus ergueu-lhe. Não, o medo

não foi o criador da Divindade!

Foi o espanto, o amor, a consciência,

e a sublime efusão d'alma e sentidos,

viu o homem seu Deus por toda a parte,

e a sua alma exaltou-se de alegria.



Todo esse poema O Cristianismo, cujos são estes desenxabidos versos, é didático, sem que um sentimento poético, inspirado embora do religioso, se nele manifeste de maneira a tocar-nos. Noutro seu poema, muito celebrado, todo ele justificativo deste conceito, se nos deparam trechos como o seguinte, antes versos de professor de filosofia que de poeta filósofo:

Assaz, oh Deus, o homem sobre a terra

revela teu poder, tua grandeza,

a Razão, és tu mesmo; a liberdade,

com que prendaste o homem, não, não pode

dominar a Razão, que te proclama!

Se muda para mim fosse a Natura,

na Razão que me aclara, e não é minha,

senhor, tua existência eu descobrira.



Em arte não basta não imitar para ser original. Não se descobre em Magalhães imitações, nem predileção por algum dos mestres do Romantismo. Mas também se lhe não lobriga originalidade. Se alguma tinha, prejudicou-a a sua filosofia de escola, o seu demasiado respeito das tradições literárias, e obliterou-lha o abstrato e o fluido do seu estilo poético. A diplomacia, carreira em que apenas estreado em letras entrou, com a sua gravidade protocolar, a sua artificialidade, a sua futilidade, a sua compostura de mostra, não devia ter pouco contribuído para sufocar em Magalhães, ou amesquinhá-los, os dons poéticos mais vivazes que porventura recebera na natureza. Influências de filosofia escolástica e livresca e do decoro da situação social fazem-no versejar os mais triviais lugares-comuns:

Um Deus existe, a Natureza o atesta:

a voz do tempo a sua glória entoa,

de seus prodígios se acumula o espaço;

e esse Deus, que criou milhões de mundos,

mal queira, num minuto

pode ainda criar mil mundos novos.



Se a sua emoção poética, a sua inspiração, carece de profundeza, pobre é também a sua expressão. Raro se faz nalguma forma sintética, conceituosa ou intuitiva. Por via de regra se derrama em um longo fraseado, com exclamações e apóstrofes. Roma lhe não inspira senão banalidades da sua história corriqueira e dos seus mais triviais aspectos:

Roma é bela, é sublime, é um tesouro

de milhões de riquezas; toda a Itália

é um vasto museu de maravilhas.

eis o qu'eu dizer possa; esta é a Pátria

do pintor, do filósofo, do vate.



O prosaico escandaloso destes versos não é uma exceção ou uma raridade. De todo este grosso volume dos Suspiros poéticos (mais de 350 páginas) apenas vive hoje, e merece viver, o Napoleão em Waterloo, que sem ter a profundeza, a intensa emoção humana e poética do Cinque magio, de Manzoni, salva-se por um alevantado sopro épico e sem embargo de alguns desfalecimentos, uma bela forma eloqüente e comovida.

O que os contemporâneos acharam de novo no livro, e o pelo que ele os impressionou, foi, com a ausência dos fastidiosos e safados assuntos antes preferidos, mitológicos e clássicos, dos rançosos tropos da caduca retórica, a personalidade do autor. Não se revelava esta no vigor do sentimento ou no ressalto da expressão, como com Victor Hugo em França ou Garrett em Portugal, mas se apresentava nas numerosas referências a si mesmo, nas suas declarações de fé e de princípios, nas suas confissões e lástimas. Por pouco que tudo isso fosse realmente, ou por pouco que nos pareça a nós, foi então, com ajuda do sentimento nacionalista predominante, achado muito. A despeito das restrições que podemos fazer hoje, havia ainda nos Suspiros poéticos, e se não enganaram os contemporâneos, a exalação de uma alma, tocada da nova graça romântica, influída, por pouco que fosse, pelo sopro da liberdade estética que agitava a atmosfera européia e tão bem se casava com o de liberdade política que soprava em sua pátria. E às vezes exalava-se linda e sentidamente:

Castas Virgens da Grécia,

que os sacros bosques habitais do Pindo!

Oh Numes tão fagueiros,

que o berço me embalastes

com risos lisonjeiros

assaz a infância minha fascinastes.

Guardai os louros vossos,

guardai-os, sim, qu'eu hoje os renuncio.

Adeus ficções de Homero!

Deixai, deixai minha alma

em seus novos delírios engolfar-se,

sonhar com as terras do seu pátrio Rio;

só de suspiros coroar-me quero,

de saudades, de ramos de cipreste;

só quero suspirar, gemer só quero.

E um cântico formar co'os meus suspiros.

      Assim pela aura matinal vibrado

      o Anemocórdio, o ramo pendurado,

      em cada corda geme,

      e a selva peja de harmonia estreme.



Renunciando às musas clássicas, é, entretanto, na sua língua que lhes refoge. Distingue o Magalhães dos Suspiros poéticos da geração poética precedente e do mesmo Magalhães dos versos de 32, outra feição muito do Romantismo, a soberba do poeta, o senso da nobreza da sua missão, a alevantada ambição que se lhe gera deste pressuposto. São manifestações do individualismo romântico, embora nele contidas, mais discretas do que acaso cumpria, sem os entusiasmos, transbordantes até à descompostura, de muitos dos corifeus da escola. Leiam-se o Vate, A Poesia, A Mocidade. Este poema sobretudo revê, e não sem intensidade, aquela «tragédia da ambição» que, segundo Brandes, se apresentava na alma da juventude romântica francesa. Como quer que seja, esse grosso volume de poesias teve, de 1836 a 1865, três edições, fato aqui extraordinário.

Que no fundo de Magalhães, porém, havia permanecido o árcade retardatário das Poesias de 1832, provam-no os poemas posteriores a 1836, publicados sob o título de Poesias várias, como segunda parte das Poesias avulsas, em 1864. Neles volta à poética apenas esquecida nos Suspiros. Prova-o mais, de desde o título, a sua posterior coleção de versos, Urânia, em que tudo lembra mais a poética obsoleta que a em voga.

A inspiração poética, como a forma que a realiza, ou o estilo, é função do temperamento do poeta que a condiciona. O de Magalhães era evidentemente mais consoante ao pensamento geral e à poética dos últimos cinqüenta anos, do que com as idéias e a poética do seu tempo. Pode ser que, como ele próprio insinua através de Wolf, fosse o Romantismo alemão, simplesmente como expressão do sentimento nacional, como revolta contra a servidão de todo o mundo ao classicismo francês, que lhe atuasse o estro. Em todo caso, sob uma forma comedida e reportada, revendo o seu medíocre entusiasmo pelo movimento, cujo promotor e chefe, mais por força das cousas quer por íntima persuação, foi aqui.

Se Magalhães houvera ficado nos Suspiros poéticos, talvez fosse apenas um nome a mais no comprido rol dos nossos poetas. Quaisquer que fossem os méritos dessa coleção, não eram tais que só por ela pudesse o autor tomar na literatura brasileira a importância que alcançou. Deu-lha mui justamente o volume e a variedade da sua obra, provando nele capacidades que, sem serem sublimes, eram menos comuns, aptidões literárias diversas e vocação literária incontestável.

Magalhães, e o seu exemplo influiria os seus companheiros e discípulos da primeira geração romântica, sentiu que o renovamento literário de que as circunstâncias o faziam o principal promotor, carecia de apoiar-se em um labor mental mais copioso, mais variado e mais intenso, do que até então aqui feito, e que uma literatura não pode constar somente de poesia, e menos de pequenos poemas soltos. Com esta intuição, senão inteligência clara do problema, que para ele e os jovens intelectuais seus patrícios se estabelecia, Magalhães colaborou em revistas com ensaios diretamente interessantes ao movimento literário e ao pensamento brasileiro, criou, com Martins Pena, o teatro nacional, iniciou, com Teixeira e Sousa, o romance, reatou com os Tamoios a tradição da poesia épica do Caramuru e do Uraguai, fez etnografia e história brasileiras, deu à filosofia do Brasil o seu primeiro livro que não fosse um mero compêndio, e ainda fez jornalismo político e literário, e crítica. Pela sua constância, assiduidade, dedicação às letras, que a situação social alcançada no segundo reinado, ao contrário do que foi aqui comum, nunca lhe fez abandonar, é Magalhães o primeiro em data dos nossos homens de letras, e um dos maiores pela inspiração fundamental, volume, variedade e ainda mérito da sua obra. Pode dizer-se que ele inicia, quanto é ela possível aqui, a carreira literária no Brasil, e ainda por isso é um fundador.

Os preconceitos pseudoclássicos de Magalhães e a sua índole literária, sempre mais arcádica que romântica, levaram-no no teatro à tragédia, na poesia ao poema épico. Em ambos os casos inspirou-o o espírito nacionalista da época, o propósito de fazer literatura nacional, de assunto e sentimento. Declara ele próprio o seu desejo de encetar a carreira dramática com um assunto nacional. A sua estética confessada no prefácio da tragédia de Antônio José lhe oscila entre «o rigor dos clássicos e o desalinho dos românticos». Como eclético de temperamento e de filosofia, admirador fervoroso de Cousin, Magalhães toma a posição soberba de um artista alheio e superior a escolas, emancipado. «O poeta independente, diz ele no seu magro Discurso sobre a história da literatura do Brasil, citando Schiller12, não reconhece por lei senão as inspirações de sua alma, e por soberano o seu gênio.» Gênio é uma palavra de que Magalhães abusava, metendo-a até um passo onde forçosamente se referia a si próprio. Infelizmente, gênio não tinha nenhuma, e a postura de poeta independente que alardeava não lhe calhava ao modesto engenho. Era a formação pseudoclássica do seu espírito, consoante com a sua índole literária, e o seu ecletismo filosófico que lhe impunham essa atitude. O próprio título de tragédia que deu às suas peças de teatro contrastava o parecer do Romantismo, que em nome da liberdade da arte, e da verdade humana, refugava a velha fórmula clássica.

O renovador do teatro, e simultaneamente principal fautor do Romantismo português, Garrett, não por simples imitação, mas com razões excelentes, chamou ao seu admirável Frei Luís de Sousa de «drama», não obedeceu à regra dos cinco atos e escreveu-o em prosa, porventura a mais bela que jamais se fez em nossa língua. Magalhães, que tem sobre Garrett o mérito da prioridade na introdução do teatro moderno em português, ao invés deliberadamente chamava à sua de tragédia, punha-lhe os cinco atos clássicos, embora para isso tivesse de derramar a composição, e fazia-a em verso, segundo a fórmula consagrada. Distinguem-na, porém, do mesmo passo revendo a influência do Romantismo, o assunto moderno e nacional, a familiaridade da expressão apesar do verso clássico, e o pensamento liberal que a inspira, não obstante o catolicismo do autor. Não será o Antônio José, sob o puro aspecto literário e estético, uma perfeita ou sequer notável obra d'arte, mas é sem dúvida um documento muito apreciável da capacidade do poeta, e não de todo sem força dramática ou beleza de expressão. E, o que muito importa, no conjunto da nossa literatura dramática, sobre a iniciar, não é despecienda. Sente-se ainda que é uma obra feita de inspiração. Põe-no de manifesto o contraste com o Olgíato, obra prolixa, difusa e declamatória. O Otelo é apenas a tradução em verso da incolor tragédia do pseudoclássico francês Ducis, a qual nesta dinamização já nada conserva da fortíssima emoção shakespeariana.

Como quer que seja, o impulso da literatura dramática estava dado. Em outubro do mesmo ano de 1838, Martins Pena, engenho teatral mais nativo que Magalhães, fazia representar a sua primeira comédia, O juiz de paz na roça, lidimamente brasileira, por figurar com toda a verdade um aspecto cômico da nossa vida. Seguindo o exemplo de Magalhães, todos os românticos escreverão teatro. Nenhum, porém, antes da segunda geração, com o talento, a arte e o sucesso dele.

Da impressão feita na mente portuguesa pela epopéia de Camões, resultou não só em Portugal mas no Brasil a criação épica, que é um dos mais curiosos aspectos da literatura da nossa língua. Desvaneceram-se dela por tal forma os portugueses, que é de ver o filaucioso entono com que presumiram amesquinhar a literatura francesa, reprochando-lhe a carência de uma epopéia. Ao contrário, eles as tinham em demasia. Desta opinião resultou mais o parvoinho pressuposto de que um poeta, para merecer inteira estimação, cumpria-lhe escrever um poema épico. Aos brasileiros herdaram o seu preconceito. Os nossos românticos encontravam-no sancionado pelos exemplos de Bento Teixeira, de Santa Rita Durão, de Basílio da Gama, de Cláudio da Costa e de outros poetas autores de poemas épicos mais ou menos consideráveis. No propósito deliberado de fomentar a literatura da nação estreante, Magalhães fizera poesia, fizera teatro, fizera novela, escrevera ensaios filosóficos, históricos e literários. Em 1856 coroou, segundo seria a sua mesma persuasão, a sua obra de renascença com um poema épico, em dez cantos, em endecassílabos soltos, de assunto e de inspiração nacional, a Confederação dos Tamoios.

O aparecimento desta obra foi um acontecimento literário. Contra ela escreveu José de Alencar, então estreante, uma crítica acerba, e o que é pior, freqüentemente desarrazoada. Saíram-lhe em defesa ninguém menos que Monte Alverne e o próprio Imperador D. Pedro II, que fora, às ocultas, o editor do poema. Tinha razão Magalhães quando do seu citado estudo sobre a história da nossa literatura notava que no começo daquele século «uma só idéia absorve todos os pensamentos, uma idéia até então quase desconhecida; é a idéia da pátria; ela domina tudo, e tudo se faz por ela e em seu nome. Independência, liberdade, instituições sociais, reformas políticas, todas as criações necessárias em uma nova nação, tais são os objetos que ocupam as inteligências, que atraem a atenção de todos, e os únicos que ao povo interessam». Continuava verdadeira a sua observação, e desse sentimento menos de são patriotismo que de vaidade patriótica aproveitou ele largamente, e aproveitava agora no sucesso da Confederação dos Tamoios. O que principalmente disseram do poema os seus defensores é que era uma obra de inspiração patriótica. Este errado critério de juízo de uma obra literária ou artística permaneceria nos nossos costumes, como um vício de crítica irradicável, e ainda não desapareceu de todo. O próprio Alencar, três lustros depois, defendendo obras suas dos ataques da crítica ou da opinião pública, apelava para o sentimento patriótico que lhas inspirava. Este indiscreto sentimento, principalmente, ajudou a nomeada que no seu tempo teve a Confederação dos Tamoios, como em geral favoreceu a obra dos nossos primeiros românticos, dele inspirada.

O poema de Magalhães apareceu um ano antes dos quatro cantos dos Timbiras, de Gonçalves Dias. Parece, entretanto, que os contemporâneos não repararam que a Confederação dos Tamoios, voltando ao índio estreado na poesia brasileira por Basílio da Gama e Durão, nada criava, mas apenas seguia a sua retauração nela, desde 1846 feita por Gonçalves dias nos seus Primeiros cantos. Apenas à feição que se chamou indianismo, e que foi de princípio a mais singular do nosso Romantismo, trouxe o poema de Magalhães o concurso precioso de uma obra considerável e de um homem socialmente mais considerado que Gonçalves Dias, com altas e prestigiosas amizades e relações, poeta então muito mais estimado que o seu jovem êmulo. Era ainda o momento em que um falso critério sociológico e um desvairado sentimentalismo queriam fazer do índio um elemento demasiado interessante da nossa nacionalidade. Portanto, lisonjeava o sentimento público, e lhe aproveitava da simpatia. A Confederação dos Tamoios não criou na nossa literatura o que se viria chamar «indianismo», e que se não foi todo o nosso Romantismo, foi a sua feição mais peculiar. Mas, com a autoridade literária de que então gozava o seu autor, trouxe à iniciativa de Gonçalves Dias uma cooperação apenas inferior à ação deste, se é que no momento não foi havida por superior. Em 1859, três anos depois da Confederação, apresentava Magalhães ao Instituto histórico uma extensa memória sobre Os indígenas do Brasil perante a história, que poderia ser como o comentário perpétuo de seu poema. O fim declarado desse trabalho é reabilitar o elemento indígena. Não era outro o íntimo pensamento do indianismo.

Magalhães foi principalmente e sobretudo poeta. Por sua obra de poeta influiu poderosamente na implantação do Romantismo aqui, e, portanto, na fundação da literatura que desde então se começa a distinguir da portuguesa. Mas escreveu também prosa, ensaios diversos e tratados filosóficos. Como prosador é seguramente, não obstante alguns defeitos nativos (como o já ridiculamente famoso da colocação dos pronomes), um dos mais vernáculos, pela propriedade do vocabulário, sempre nele castiço, e de parte os legítimos sacrifícios ao seu falar brasileiro, pela correção sintática do fraseado. É mais simples, mais natural, menos rebuscado ou trabalhado o seu estilo do que era o dos escritores que aqui o precederam, e ainda da maior parte dos que se lhe seguiram. Sob o aspecto da linguagem e estilo são escritos estimáveis, e que se deixam ainda ler sem dificuldade, antes com aprazimento, os seus opúsculos citados. A sua Biografia do padre Mestre Fr. Francisco de Monte Alverne, e páginas suas de literatura amena como O pavão, podem passar por exemplos de boa prosa, como não era vulgar na época.