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Os próceres do Romantismo

I. Porto Alegre

Manuel de araújo Porto Alegre nasceu no Rio Grande do Sul em 29 de novembro de 1806 e faleceu, feito Barão de Santo Ângelo, em Lisboa, em 29 de dezembro de 1879. Como crescidíssimo número de literatos brasileiros, era um autodidata. Após os primeiros e forçosamente mofinos estudos preparatórios feitos na sua província natal, veio para o Rio de Janeiro em 1827. Destinava-se à Academia Militar. Não indicava este propósito nenhuma vocação pela carreira das armas. Porto Alegre cedia à necessidade que levou tantíssimos moços brasileiros pobres a procurarem aquela escola para adquirirem economicamente uma instrução que de outro modo não poderiam fazer. Como lhe falhasse a matrícula na Academia Militar, voltou-se para a de Belas-Artes, onde ao cabo do primeiro ano alcançou o prêmio de pintura e arquitetura. O pintor Debret, daquele grupo de artistas franceses que no tempo de D. João VI vieram aqui fundar o ensino artístico, foi um dos seus mestres e por tal maneira se lhe afeiçoou, que regressando à França, em 1831, levou-o consigo. Até o ano de 1837 viajou Porto Alegre pela Bélgica, Itália, Suíça, Inglaterra e Portugal, e nessas viagens completou a sua instrução geral e educação artística. Voltando ao Brasil nesse ano, fundou com outros o Conservatório Dramático e a Academia de Ópera Lírica, e tomou parte ativa e conspícua no movimento literário do Romantismo, colaborando em várias revistas, dirigindo outras, trabalhando no Instituto Histórico e publicando obras diversas. Posteriormente entrou para o Corpo Consular, tornando à Europa, que desde 1859 quase sempre habitou e onde morreu. Em Paris pertenceu ao grupo da Niterói, revista brasileira de ciências, letras e artes ali publicada em 1836, e que serviu de órgão à iniciação da literatura brasileira no Romantismo. Do mesmo grupo eram Magalhães e Sales Tôrres Homem, que a política devia em breve tomar às letras. Nesse período estreou com o poema A voz da natureza, composto em Nápoles, em 1835. Este «Canto sobre as ruínas de Cumas» é naquela época um poema estranho, inteiramente fora dos moldes da poesia contemporânea, alguma coisa que, não obstante fraquezas de inspiração e forma, se aproxima da poesia bem mais moderna da Lenda dos séculos e que tais interpretações poéticas da história. Em 1843, noutra revista que foi parte importante no movimento do nosso Romantismo, a Minerva Brasiliense, deu Porto Alegre à luz as suas primeiras Brasilianas. Muito mais tarde as reuniu em volume com outras composições e este mesmo título, que era de si um programa literário.100 A sua intenção declara-o ele no prefácio, não lhe pareceu ficasse baldada, «porque foi logo compreendida por alguns engenhos mais fecundos e superiores que trilharam a mesma vereda». E em seguida confessa ter desejado «seguir e acompanhar o Sr. Magalhães na reforma da arte, feita por ele em 1836 com a publicação dos Suspiros poéticos e completada em 1856 com o seu poema da Confederação dos Tamoios». O testemunho precioso de Porto Alegre ratifica plenamente o consenso geral dos contemporâneos do papel principal de Magalhães no advento do nosso Romantismo. Porto Alegre é, entretanto, um engenho mais vasto, mais profundo, mais completo que o seu amigo e êmulo. E mais pessoal também, e mais intenso. Não obstante não é, como não era Magalhães, um romântico de vocação ou de índole. Pelo menos nenhum deles o foi como serão os da geração seguinte à sua. Ao Romantismo dos dous preclaros amigos faltam algumas feições, e acaso das mais características, desse importante fato literário, como o extremo subjetivismo e o individualismo insólito. Quase lhes ficou estranho, principalmente a Porto Alegre, o amor, que em Magalhães é apenas o amor comedido, burguês, doméstico, ao invés justamente do que cantavam e faziam os corifeus do Romantismo europeu. Esta falta lhes amesquinhou o estro e a expressão, em ambos sempre mais retórica, mais eloqüente mesmo que sentida. As Brasilianas são uma obra de escola e de propósito, em que a intenção, louvabilíssima embora e às vezes realizada com talento, é mais visível que a inspiração. Estão muito longe da emoção sincera e tocante das Americanas, de Gonçalves Dias, que viriam dar ao íntimo sentimento brasileiro, qual era naquele momento histórico, a sua exata expressão.

A obra capital de Porto Alegre é, porém, o grande poema Colombo, publicado em 1866, em pleno Romantismo, quando a poesia brasileira havia já rompido com a tradição poética portuguesa antiga, e florescia aqui a segunda geração romântica. Entrementes, de 1844 a 1859, escrevera, fizera representar ou publicar várias peças de teatro, libretos de ópera, dramas, comédias e outras obras, que se nenhuma lhe assegura renome como autor dramático, demonstram-lhe todas a versatilidade do engenho e a atividade literária, e serviram para impedir não secasse a corrente iniciada com Magalhães e Martins Pena e para, materialmente ao menos, avolumarem-na. No mesmo período da sua estadia no Brasil antes do Consulado, escreveu em periódicos cujo fundador, diretor ou simples colaborador, foi, viagem, crítica literária e de arte, biografias, pronunciando como orador do Instituto Histórico vários discursos, que são talvez a sua obra mais notável em prosa. Na Revista dessa associação publicou a sua conhecida Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense e artigos de iconografia brasileira. Como a quantos do mesmo gênero escreveu, os inspirava mais a intenção patriótica de exalçar além do legítimo cousas da pátria que discreto senso crítico. Mas era moda louvar descomedidamente, engrandecer sobre posse, tudo o que era nosso, na ingênua esperança de nos valorizarmos. A índole de si mesma entusiasta e pomposa de Porto Alegre cedeu gostosamente à moda.

A obra de prosador de Porto Alegre é menos considerável que a de Magalhães, e não foi, como a deste, jamais reunida em livro. Menos vernáculo como prosador que o seu êmulo, o é muito mais como poeta, no Colombo. Mas sobretudo lhe é superior pela abundância e vigor das idéias, movimento e colorido do estilo, e brilho da forma. Neste, como é muito nosso, freqüentemente excede-se e cai no empolado e no retórico. Magalhães escreve mais natural e simplesmente, sem aliás evitar sempre os extremos, o banal e o inchado. Esta marca do verdadeiro escritor, ter idéias gerais, Porto Alegre é um dos primeiros dos nossos em que se nos depara.

É extraordinariamente raro que ainda um homem de grande engenho, como sem dúvida era Porto Alegre, resista às influências e se forre aos preconceitos do seu ambiente espiritual. Em plena pujança das suas faculdades literárias, aos cinqüenta anos e em mais de metade do século que rompera com a tradição clássica das grandes epopéias, compôs e publicou um poema de um prólogo e quarenta cantos com mais de vinte e quatro mil versos, Colombo.

Por mais difícil que se nos antolhe a leitura deste extensíssimo poema, merece ele que vençamos a nossa hodierna repugnância de ler grandes epopéias e o leiamos. Há nele uma realmente assombrosa imaginação e fecundidade de invenção, insignes dons de expressão verbal, como raro se achará outro exemplo na poesia da nossa língua, magnificências de descrições verdadeiramente primorosas, revelando no poeta o artista plástico, um nobre intuito quase sempre felizmente realizado de pensamento, correção quase impecável de versificação, vernaculidade estreme, engenhosas audácias de criação e de expressão, e outras qualidades que o fazem uma das mais excelentes tentativas para reviver na nossa língua, se não nas literaturas contemporâneas, essa espécie de poemas. Mas os gêneros ou formas literárias valem também por sua conformidade com o tempo que os produziu. O poema de Porto Alegre vinha já de todo obsoleto e inoportunamente, com um maquinismo poético apenas suportável na pura lenda e não em uma epopéia de fundo histórico. Representa um em todo caso nobre esforço de vontade de uma inspiração que não podia ser natural e espontânea, por desconforme com tudo quanto constitui a mentalidade e estimula o estro do poeta. O leitor pode admirar o meio sucesso desse ingente esforço. Mas não lhe sente emoção capaz de comovê-lo até lhe fazer aceitar essa nova criação épica. O Colombo é uma obra mais de razão e de inteligência que de instinto e sentimento, como foram os monumentos poéticos que ele anacronicamente procurava continuar.

II. Teixeira e Sousa

Fluminense, como a maior parte dos primeiros românticos, Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa nasceu em Cabo Frio aos 28 de março de 1812 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1.º de dezembro de 1861. Teve algo de romântica a vida do criador do romance brasileiro. Filho legítimo de um português com uma preta, apenas fazia os seus primeiros estudos quando se viu obrigado, pela precária situação econômica da família, a abandoná-los e adotar uma profissão mecânica, a de carpinteiro. Por alguns anos exerceu este ofício no Rio de Janeiro, para onde viera de Itaboraí com o fim de nele aperfeiçoar-se. Cinco anos depois regressou à terra natal. Tinham-lhe morrido os quatro irmãos mais velhos. Aos vinte anos achou-se só no mundo, com escassíssimos bens que lhe herdara o pai. Senhor de si, voltou aos estudos com o mesmo antigo ardor e o mesmo mestre, o cirurgião Inácio Cardoso da Silva, professor régio em Cabo Frio, e também poeta, cujos versos Teixeira e Sousa mais tarde piedosamente reuniu e publicou. Em 1840 voltou ao Rio de Janeiro, onde a simpatia de cor, de engenho poético e de amor às letras facilmente o ligou a Paula Brito.

Francisco Paula Brito (1809-1861) é, na sua situação secundária, uma das figuras mais curiosas e mais simpáticas dessa época literária. Nascido no Rio de Janeiro, de gente de cor e humilde, chegou-lhe a puberdade e juventude em pleno movimento da Independência e estabelecimento da monarquia, e dessa época conservou o ardor patriótico e o desvanecido nacionalismo que a assinalou. De quase nenhumas letras, mas inteligente e curioso, despertou-se-lhe o gosto por aquelas e pelos seus cultores no trato de umas e outros, no exercício do seu ofício de tipógrafo. Mais tarde montou uma imprensa de conta própria, à qual anexou uma loja de livros. Como fosse muito caroável de literatos, a quem com periódicos que fundou, como a Marmota (1849-1861), oferecia a satisfação de se verem publicados e louvados, a sua loja, no antigo Largo do Rossio, tornou-se o prazo dado da mocidade literária do tempo, e, como era igualmente patriota ardente e chefe político de bairro, freqüentavam-no também homens públicos notáveis, doutores e outros letrados. Por ser a sua loja um centro de notícias, palestras e novidades da vida urbana que não seriam sempre de extrema veracidade e antes facilmente mentirosas, deu-lhe o povo a alcunha de «A Petalógica». Foram seus habituados todos os nossos primeiros e ainda muitos dos segundos românticos, de todas as graduações. Desse comércio com letrados, a inteligência aberta e pronta de mestiço de Paula Brito tirou o melhor proveito. Ele também se fez escritor e poeta. Aliás o foi em tudo mediocremente, revelando apenas um generoso esforço e excelentes intenções de servir as letras nacionais, e a mesma sociedade, com publicações de caráter educativo, moralizador e patriótico, edições de obras brasileiras e também com as suas produções em prosa e verso. Mais rico de boa vontade que de bens de fortuna, não só acolheu, apresentou, protegeu os jovens de vocação literária que o procuravam, como festejou, celebrou, preconizou os literados já feitos, mecenas quase tão pobre e desvalido como os seus protegidos, e sequer sem idoneidade para mentor literário, teve entretanto o amável Paula Brito ação apreciável e frutuosa no momento em que a sua loja, se não ele, era o centro da vida literária no Rio de Janeiro.

Teixeira e Sousa foi simultaneamente empregado e colaborador literário de Paula Brito, em cuja célebre loja conheceu, imagina-se com que cândida admiração, os sujeitos mais afamados em letras, a roda literária, habituada da Petalógica. Aí repartia o tempo que lhe deixava a freguesia entre ouvir aqueles personagens e escrever os seus primeiros versos. Começou por composições dramáticas, mas como se lhe não abrissem as portas do teatro, e na doce ilusão de ganhar mais alguma cousa do que lhe podia dar o patrão e amigo, fez romances. Escusa dizer que nem versos nem romances lhe deram fortuna. Era, porém, uma real vocação literária, desajudada embora de gênio e de cultura. Não só não desanimou, mas na constância do engano que lhe acalentava a ambição, e vendo a proteção que recebiam alguns letrados, imaginou compor um poema que lha atraísse. E o compôs numa improvisação rápida, em doze cantos de oitava rima, à moda de Camões. Escritos os seis primeiros, foi com eles, como carta de recomendação, ao ministro da Fazenda solicitar-lhe um emprego. Deu-lhe o prócere o de guarda da Alfândega com 400 mil-réis anuais, o que para o tempo e situação do poeta não seria tão mau como figurou Norberto na biografia de Teixeira e Sousa. O poema é A independência do Brasil, mais um dos muitos pecos rebentos da árvore camoniana, e este de todo mofino. A crítica, com Gonçalves Dias à frente, foi-lhe impiedosa. À vista, porém, da sua condescendência habitual com não melhores frutos da musa indígena contemporânea, é lícito supor que a humildade de condição do poeta fosse parte na justiça que lhe faziam. Desse péssimo poema salvou-se o autor com um verso que, como aquele também único verso da tragédia troçada por Pailleron, é bom, e ficaria proverbial:

Em nobre empresa a mesma queda é nobre.



Magalhães o citaria, sem nomear o autor, no seu prefácio dos Fatos do espírito humano, deturpando-o. Um escritor português, com a incoercível antipatia com que quase sempre olharam os escritores seus patrícios para os nossos, chamou-lhe de Camões africano. Esquecia que Camões como Teixeira e Sousa os tem havido em barda na sua terra, como lhe não lembrava que desde o século XV havia uma numerosíssima escravaria negra em Portugal... Auxiliado por amigos e associado a Paula Brito, abandonando o mesquinho emprego, abriu uma oficina tipográfica conjuntamente loja de objetos de escritório. Casou, fez família e maus negócios, fechou a loja e aceitou para viver o lugar de mestre-escola do Engenho Velho com casa e 800 mil-réis anuais, nomeado pelo marquês de Monte Alegre. Sem jeito nem gosto pela ingrata profissão de mestre de meninos, pediu ao Ministro Nabuco lhe desse a escrivania vaga de Macaé. Nabuco fez melhor, nomeou-o para uma escrivania da Corte, o que era para ele quase a abastança: escrivão da Primeira Vara do Juízo do Comércio do Rio de Janeiro. Foi isto em 1855. Mal passados seis anos morria Teixeira e Sousa com 49 anos de idade. Fora carpinteiro, tipógrafo, caixeiro, revisor de provas, guarda da Alfândega, editor, mestre-escola e por fim escrivão do Foro. Mas sobretudo foi, com mal empregada e malograda vocação, homem de letras. E não as tinha de todo más, pois compunha versos latinos e era lido nas literaturas modernas.

Antes do mal sorteado poema da Independência do Brasil, publicara Teixeira e Sousa dous volumes de poesias com o título de Cânticos líricos (1841-1842) e o poema romântico, em cinco cantos, de versos endecassílabos soltos, Os três dias de um noivado (1844), inspirado de uma lenda indígena. Mais de uma daquelas poesias e um ou outro passo deste poema dizem que havia um poeta, que porventura apenas carecia de cultura e polimento, neste desventurado amador das letras. Um soneto seu ao menos, embora o prejudique o amaneirado do estilo, é um dos melhores do tempo e já prenuncia o lirismo da segunda geração romântica, muito mais subjetivo do que o era o da primeira. É este:

Vi o semblante teu, morri de gosto,

amei-te e tu regeste a minha sorte;

tu foste a minha estrela, e tu meu norte;

que mágico poder tem o teu rosto!

Foste ingrata, mudou-se o teu composto,

sofri da ingratidão o cruel corte,

anelei no meu mal a torva morte;

que mágico poder tem o desgosto!

Choras arrependida?... Ó! Não, serena,

serena o rosto teu meu doce encanto;

que mágico poder tem tua pena!

Resistir aos teus ais... quem pode tanto?!

Que te adore outra vez amor ordena;

que mágico poder não tem teu pranto!



Não é, porém, como poeta que Teixeira e Sousa tem um lugar nesta geração e nesta História, mas como o primeiro escritor brasileiro de romance, portanto o criador do gênero aqui. O Período Colonial que com Nuno Marques Pereira tivera no Peregrino da América a primeira ficção, essa, porém, de moral e edificação religiosa, nada produziu que se possa chamar de novela ou romance. A renovação literária indicada por Magalhães produzira algumas novelas e contos, publicados geralmente nos periódicos dessa época e muito poucos dados à luz em volume. Daquelas, a mais antiga são As duas órfãs, de Noberto, aparecida em 1841. Romance propriamente, o primeiro é o Filho do pescador, de Teixeira e Sousa, de 1843. Sucessivamente publicou Teixeira e Sousa mais cinco romances, As fatalidades de dous jovens (1846), Maria ou a menina roubada (1859), Tardes de um pintor ou as intrigas de um jesuíta (1847), A providência (1854), Gonzaga ou a conspiração de Tiradentes (1848-1851). Destes, alguns saíram primeiramente em jornais e periódicos, como a Marmota de Paula Brito. Por esta constância de produção num gênero que, antes que Macedo o seguisse em 1844 com A moreninha, era ele o único a cultivar, ganhou Teixeira e Sousa direito inconcusso ao título de criador do romance brasileiro. Os seus infelizmente tornaram-se para nós ilegíveis, tanta é a insuficiência da sua invenção e composição, e também da sua linguagem.

Se houvéramos de aceitar a precedência cronológica como única ou principal indicação de prioridade literária -que antes deve ser julgada pela valia e influxo da obra, a Teixeira e Sousa caberia também a primazia na introdução do nosso segundo indianismo. Com efeito, de parte algumas passageiras referências a assuntos indígenas, ou episódicas apresentações de índios em alguns poemas da fase imediatamente anterior ao Romantismo, é ele o primeiro a fazer do nosso selvagem tema de uma ficção em verso e a tomar índios para suas personagens principais nos Três dias de um noivado, «poema romântico» de que a Minerva Brasiliense publicou fragmentos em 1843 e que veio a lume em 1844. Que o inspirara ou estimulara a invenção de Chateaubriand do indianismo na literatura francesa com a sua Atala, fornece ele próprio um documento na seguinte estrofe do seu poema:

Tu que de ermos ásperos, inóspitos

do Grão Meschacebeu viste os arcanos;

que debuxaste dos agrestes íncolas

a par de usos seus, beleza egrégia

na melindrosa virgem das palmeiras,

com sublime pincel, bardo sicambro,

tua Atala tão gentil, tão pura e meiga,

perdoa, inda era menos que Mirília.



É que, sob a influência do Romantismo europeu, em revolta contra o classicismo, o indianismo se apresentava à nossa mente revoltada contra a hegemonia literária portuguesa, que era o nosso classicismo, como o nosso natural recurso de reação espiritual nacionalista. Foi antes o estímulo político da Independência que a ação de nossos escritores uns sobre os outros que originou aqui o indianismo romântico e o generalizou. Ao mesmo tempo que Teixeira e Sousa escrevia, talvez ainda em Itaboraí, esse poema já indianista de inspiração, assunto e sentimento (1842-43), Gonçalves Dias, segundo informe fidedigno no seu biógrafo A. H. Leal, compunha as poesias americanas que deviam vir à luz em volume no Rio em 1846, e criar pela força de beleza que trazia o indianismo.

III. Pereira da Silva

João Manuel Pereira da Silva nasceu no Rio de Janeiro a 30 de agosto de 1817 e faleceu em Paris a 14 de junho de 1898. Era formado em Direito pela Faculdade de Paris, foi deputado geral, presidente de província e exerceu outras funções públicas igualmente importantes. Escritor abundante, como todos os do grupo de que fez parte, foi historiador político e literário, biógrafo, crítico, romancista e poeta. É o tipo do amador, do diletante, em letras, escrevendo pelo gosto, acaso pela vaidade de escrever, sem no íntimo se lhe dar muito do que escreve e menos de como escreve. Tinha sem dúvida vocação literária, mas sem dons correspondentes que a fecundassem. Escrever era para ele um hábito, como que um vício elegante, qual jogar as armas ou montar a cavalo, um desporto agradável e distinto. Não lhe importava nem a têmpera das armas nem a qualidade do animal, o essencial para ele era jogá-las ou montá-lo. Assim a sua obra copiosa e volumosa, importante pelos assuntos, pouco vale pelo fundo e pela forma. Historiador, escreveu história com pouco estudo, com quase nenhuma pesquisa, sem crítica nem escrúpulos de investigação demorada e paciente; crítico, não passa de um elogiador retórico, com vasta mas superficial leitura das literaturas modernas e mal assimilada conquanto extensa informação literária, sem idéias próprias nem alguma originalidade; poeta, é menos que medíocre, e romancista, carece absolutamente de imaginação. Mas como veio sempre escrevendo desde a inauguração do Romantismo até o pleno modernismo, por mais de cinqüenta anos, dando um exemplo raro de constância no labor literário, o seu nome ganhou em suma certa aura e a sua figura literária ficou até a sua morte em evidência, e, ao menos por aquela virtude, estimada. O exemplo seria demais belíssimo se outro fosse o valor da sua volumosa obra. Desta apenas lhe sobrevive ainda, antes por ser a única no gênero que pelo merecimento que possa ter, a História da fundação do império brasileiro (Paris, 1864-1868), aliás cheia de inexatidões e falhas, como todas as suas obras históricas.

Se Teixeira e Sousa foi o criador do romance que nos habituamos a chamar de brasileiro, isto é, o que representa a nossa vida comum e descreve os nossos costumes, paisagens, tipos, foi entretanto Pereira da Silva quem, precedendo-o, criou o romance de ficção histórica, então em voga com Walter Scott e seus primeiros discípulos. Ufanava-se com motivo no prefácio da primeira edição do seu Jerônimo Corte Real, «crônica do século XVI», de que este era um dos primeiros da literatura portuguesa moderna, pois que viu a luz do dia nos anos de 1839. Realmente só o precedeu em Portugal o Arco de Sant'Ana, de Garrett, que é de 1833. Em 1839 publicou Pereira da Silva o romance histórico O aniversário de D. Miguel em 1825, mas é apenas uma novela de trinta e três páginas, como é apenas uma novela de poucas mais páginas Religião, amor e pátria, saída no mesmo ano. Jerônimo Corte Real também teve a sua primeira publicação no Jornal do Comércio em forma de curta novela, que o autor ampliou em romance, alongando-o aliás com desenvolvimento impertinente, quando a deu em livro de 240 páginas, em 1865. Do mesmo gênero de Jerônimo Corte Real é Manoel de Morais, «crônica do século XVII». Sabendo-se como ele fazia história, avalia-se como faz o romance histórico. Os seus realmente não têm valia alguma como quadro das épocas que presumem pintar, nem qualidades de imaginação ou expressão que lhes atenuem esse defeito. Esta aliás é talvez melhor nestes seus dous romances que no resto dos seus livros, e, em todo caso, é superior à dos de Teixeira e Sousa.

É Pereira da Silva um dos criadores da nossa história literária. Precedeu mesmo Varnhagen nesses estudos, mas de pouco lhe vale essa precedência meramente cronológica, porque o que fez nesse gênero, quer no Parnaso Brasileiro (1843) quer no Plutarco Brasileiro (1847), não tem a originalidade nem a segurança dos trabalhos de Varnhagen. São a repetição sem crítica do já sabido, com muitas novidades de pura invenção ou de falha ou viciosa informação. Acham-se-lhe porém na obra crítica, desde 1842, alguns conceitos que deviam mais tarde ser espalhafatosamente apresentados como originais e inéditos. Tal é o de literatura que aquela data já Pereira da Silva declarava ser «o desenvolvimento das forças intelectuais todas de um povo; o complexo de suas luzes e civilização; a expressão do grau de ciência que ele possui; a reunião de tudo quanto exprimem a imaginação e o raciocínio pela linguagem e pelos escritos». Sem menosprezar-lhe inteiramente as constantes provas do seu gosto das letras e da sua longa persistência em documentá-lo com obras de toda a espécie, os seus contemporâneos, não obstante as sinceras louvaminhas de parceiros, não se enganaram sobre o valor da sua obra, e apenas mediocremente o estimaram como escritor. A história da literatura lhes ratificará este sentimento.

IV. Varnhagen

Cronologicamente pertence também a esta geração um escritor que, sem ter como tal grandes recomendações, foi todavia um dos mais prestimosos da literatura e da cultura brasileira: Francisco Adolfo de Varnhagen. Nasceu em Sorocaba (S. Paulo) em 17 de fevereiro de 1816 de pai alemão, criou-se e educou-se em Portugal, onde passou a infância e juventude. Conquanto houvesse percorrido uma grande extensão do litoral e ainda do sertão brasileiro, em viagens de observação e estudo, nunca propriamente habitou o Brasil, quero dizer, nunca nele se demorou com ânimo de se domiciliar. O fato de sua origem germânica e formação portuguesa e européia, da sua constante ausência e pouca convivência do seu país natal e mais tarde de ter constituído família fora dele, dão a Varnhagen uma fisionomia particular, um todo nada exótico. Da estirpe germânica tirava seu instinto de veneração e respeito dos magnates, dos poderosos, das instituições consagradas e das cousas estabelecidas. É talvez o único brasileiro sem falha neste particular, justamente porque é em suma pouco brasileiro de temperamento, de índole e ainda de sentimento. Levou-o à pia batismal o próprio capitão general da província em que nasceu, o Conde de Palma. Desde aí é com tais próceres que anda. Como historiador, raro acha a censurar nos que têm o mando, ao contrário esforça-se por lhes encontrar sempre razões e desculpas. Do mesmo modo justifica sempre todas as instituições, descobre-lhes ou inventa-lhes virtudes e benefícios. Mal pode esconder o júbilo e a vaidade pela troca feita pelo imperador, seu amigo e protetor, do seu nome já glorioso de Varnhagen pelo de visconde de Porto Seguro. Consagrou toda a sua laboriosa existência a estudar a história do Brasil, e a servi-lo com dedicação e zelo em cargos e missões diplomáticas. Sente-se-lhe, entretanto, não sei que ausência de simpatia, no rigor etimológico da palavra, pelo país que melhor que ninguém estudou e conhecia, e era o do seu nascimento. Não é patriotismo, entenda-se, que lhe desconhecemos, esse o tinha ele, como qualquer outro e do melhor. Faltava-lhe, porém, não lho sentimos ao menos, aquele não sei que íntimo e ingênuo, mais instintivo que raciocinado, sentimento da terra e da gente. Ele não tem as idiossincrasias do país. Por isso Varnhagen não é de fato romântico, senão pela época literária em que viveu e colaborou; de todos os brasileiros seus contemporâneos no período inicial do Romantismo, é talvez o único que além de não ser indianista, isto é, de não ter nenhuma simpatia pelo índio como fator da nossa gente, ao contrário o menospreza, o deprime e até lhe aplaude a destruição. É também o único que altamente estima o português, lhe proclama a superioridade, oculta ou disfarça os defeitos do regime colonial e, propositadamente, lhe adota o pensamento e a língua. Só ele dos seus companheiros a escreveria vernaculamente, sem sequer o incoercível brasileirismo da posição dos pronomes, todos neles indefectivelmente postos à portuguesa. Mas a escreve apenas corretamente, de estudo e propósito, com esforço manifesto, sem espontaneidade, fluência ou elegância, nem os idiotismos por que o verdadeiro escritor revela a sua nacionalidade. Por tudo isto se não achou Varnhagen em simpatia com os seus confrades de geração, nem estes com ele. Enquanto por espírito de camaradagem e muito também de solidariedade na obra que juntos amorosamente faziam, eles se não regateavam mútuos encômios e acoroçoamentos freqüentemente desmerecidos e indiscretos, olvidavam a Varnhagen ou o tratavam como colaborador somenos. Raramente se lhe acha o nome, e ainda assim parcamente elogiado, nos muitos escritos com que reciprocamente se sustentavam e à sua causa. Será porque não compreendessem a importância para esta da obra de erudição que ele fazia? Será porque a esses poetas, que todos sobretudo o eram, essa obra parecesse de pouco alcance literário e pouco gloriosa? No entanto quase todos eles faziam também história, mesmo literária. É verdade que a faziam de palpite, como poetas, sem investigação própria, sem acurado estudo, retórica e declamatoriamente, com a sua imaginação ou repetição do já feito pelos portugueses. Apenas Norberto, mas somente em parte da sua obra, escapa a este reproche.

O primeiro escrito considerável de Varnhagen, já da sólida erudição de que ele seria um dos raros exemplos nas nossas letras, foram as suas Reflexões críticas sobre a obra de Gabriel Soares, publicadas no tomo V da «Coleção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas» pela Academia Real das Ciências de Lisboa (1836). Começando a sua fecunda iniciativa da rebusca e publicação de monumentos interessantes para a nossa história geral, dá, em 1839, à luz, também em Lisboa, o Diário da navegação, de Pêro Lopes.

Em 1840 escreve no Panorama, o célebre órgão da renovação literária portuguesa, uma Crônica do descobrimento do Brasil, que seria o primeiro romance brasileiro se não fosse apenas uma dessaborida crônica romanceada sobre a carta de Caminha, cujo descobridor na Torre do Tombo foi Varnhagen. Sem falar em outros seus escritos de maior interesse português que brasileiro, dos anos imediatamente subseqüentes, enceta em 1845, com os Épicos brasileiros, nova edição prefaciada e anotada dos poemas de Santa Rita Durão e Basílio da Gama, as suas publicações diretamente relativas à nossa história literária, pouco depois prosseguidas com a do Florilégio da poesia brasileira ou coleção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles, tudo precedido de um «Ensaio Histórico sobre as Letras do Brasil».

Pelo rigoroso e acurado da sua investigação e estudo e dos seus resultados, pela novidade das suas notícias, pelo inédito e seguro da sua informação, pelo número e justeza de algumas de suas idéias gerais, pela largueza de sua vista, esta obra de Varnhagen lançava os fundamentos, e o futuro provou que definitivos, da história da nossa literatura. Não valem contra este conceito a precedência meramente cronológica de alguns tímidos e deficientíssimos ensaios de Cunha Barbosa, de Pereira da Silva, de Norberto, de Magalhães e outros, que apenas repetiram as conhecidas notícias dos bibliógrafos e memorialistas portugueses, sem lhe acrescentar nada de novo, e ainda errando o que já andava sabido. Neste investigar dos nossos primórdios literários, continuado na sua História geral do Brasil, onde em vários passos se ocupa da nossa evolução literária, e em papéis e memórias diversas publicadas em periódicos e revistas, descobriu, noticiou, editou e fez editar Varnhagem alguns preciosos escritos. Tais foram os Diálogos das grandezas do Brasil, de Gabriel Soares, a Narrativa epistolar, de Cardim, a Prosopopéia, de Bento Teixeira, a História do Brasil, de Fr. Vicente do Salvador, sem contar quantidade de espécies novas para a vida e obra de outros escritores do período colonial.

A obra capital de Varnhagen é, porém, a sua História do Brasil, que ele chamou de Geral por abranger nela todas as manifestações da nossa vida e atividade, ainda a literária e a artística. Publicada primeiro em 1857 e reeditada em 1872, é um livro de primeira ordem, se não pela sua estrutura, ainda assim não de todo defeituosa, pelo bem apurado dos fatos, riqueza e variedade das informações, harmonia do conjunto e exposição geralmente bem feita. Sem imaginação, sem qualidades estéticas de escritor, sem relevo ou elegância de estilo, Varnhagen escreve, todavia, decorosamente. Merece igual apreciação outra considerável obra sua, a História das lutas com os holandeses, publicada já fora do período romântico. Na nossa literatura histórica, as obras de Varnhagen são certamente o que temos de mais notável.

Tentou ele, como vimos, pela sua Crônica romanceada do Descobrimento do Brasil, as obras de imaginação ou de ficção. Carecendo de qualidades de imaginação e fantasia e de estilo, não lhe podia suceder bem. O seu Amador Bueno, «drama épico-histórico-americano» (Lisboa, 1847, Madri, 1858), com o seu Sumé, «lenda mito-religiosa-americana», e o seu Caramuru, romance histórico brasileiro, em redondilhas de seis sílabas, saído primeiro no Florilégio e depois em separado, apenas lhe documentam a incapacidade para essa espécie de literatura. É pela sua obra de historiador e de erudito que Varnhagen merece, e tem, um distinto lugar na história da nossa literatura, da qual foi o criador e permanece o alicerce ainda inabalado.

Varnhagen veio a falecer longe do Brasil, como sempre tinha vivido, em Viena d'Áustria, a 20 de junho de 1878.

A filosofia da História de Varnhagen é a comum filosofia espiritualista cristã do seu tempo, com o pensamento moral e político da sua educação portuguesa. É em história um providencialista, em política um homem de razão de Estado, da ordem, da autoridade e do fato consumado. Depois de narrar as depredações do corsário inglês Cavendish nas costas do Brasil, diz que veio a «falecer no mar, dentro de pouco tempo, provavelmente ralado pelos remorsos» (Hist. geral, I, 391). Os remorsos matarem um corsário do século XVI! Duguay-Trouin, regressando do seu assalto feliz ao Rio de Janeiro, «sofreu temporais que lhe derrotaram a esquadra, como se a Providência quisesse castigar os que os nossos haviam deixado impunes» (ibid. II, 816). Malogrou-se a revolução pernambucana de 1817. «Ainda assim desta vez (e não foi a última) o braço da Providência, afirma seriamente Varnhagen, bem que à custa de lamentáveis vítimas e sacrifícios, amparou o Brasil, provendo em favor da sua integridade» (ibid. 1150, II). Esta filosofia tem ao menos a vantagem de não ser presunçosa e de dispensar qualquer outra. Era aliás a do tempo, e dela se serviram aqui todos os historiadores sem exceção de João Lisboa, o mais alumiado de todos. Varnhagen, porém, com abuso, piorando o seu caso com o carrancismo da sua educação portuguesa se não de seu próprio temperamento literário.

Joaquim Norberto de Souza Silva nasceu no Rio de Janeiro a 6 de junho de 1820 e faleceu em Niterói a 14 de maio de 1891. Nesta geração de laboriosos homens de letras, foi um dos mais laboriosos, e a alguns respeitos, um dos melhores e mais úteis deles. Ou porque a existência fosse então mais fácil ou porque o amor desinteressado das letras fosse então maior, é certo que nenhuma geração literária brasileira antes ou depois desta trabalhou e produziu tanto como esta. As bibliografias de Norberto enumeram-lhe cerca de 80 obras diversas, grandes e pequenas, desde 1841 publicadas em volume ou em jornais e revistas, afora prefácios, introduções crítico-literárias a obras que editou e outras. No acervo literário encontra-se-lhe de tudo, poesia de vários gêneros, teatro, romance, biografia, ensaios e estudos literários, administração pública, história política e literária e crítica. Como Norberto não tinha nem o talento, nem a cultura, pois era um fraco autodidata, que presume tamanha e tão variada produção, é ela na máxima parte medíocre ou insignificante. Deste enorme lavor apenas se salvam, para bem da sua reputação, os seus vários trabalhos sobre as nossas origens literárias, os seus excelentes estudos sobre os poetas mineiros, a sua grande e boa monografia da Conjuração Mineira e algumas memórias históricas publicadas na Revista do Instituto. Por aqueles trabalhos é Norberto, depois de Varnhagen, o mais prestimoso e capaz dos indagadores da história da nossa literatura, um dos instituidores desta. Como crítico, porém, sacrifica demais ao preconceito nacionalista de achar bom quanto era nosso, de encarecer o mérito de poetas e escritores somenos, no ingênuo pressuposto de servir à causa das nossas letras. Ele as serviu otimamente aliás, menos pelo que de original produziu, que é tudo secundário, ou por esse zelo indiscreto delas que fê-las suas conscienciosas investigações de alguns tipos e momentos da nossa história literária, e publicações escorreitas de algumas obras que andavam inéditas ou dispersas e desencontradiças dos nossos melhores poetas coloniais.

Concorreu mais para avultar grandemente a produção literária do seu tempo e geração. Na esteira de Magalhães fez também poesia americana, cantou os índios, pôs em verso cenas e episódios da nossa história ou das nossas tradições, e, até, com pouco engenho e nenhum sucesso, tentou a naturalização da balada, forma poética por sua singeleza absolutamente antipática à gente, como a portuguesa e a nossa, de alma pouco ingênua e que de raiz ama a eloqüência da poesia. Em Norberto se exagera o espiritualismo sentimental de Magalhães, e o seu maneirismo poético. Além dos portugueses e brasileiros lê o pseudo-Ossian, Lamartine, George Sand (ainda então M.me Du Devant, como a cita), A. de Vigny, Delavingne e Chateaubriand, Lope de Rueda, Victor Hugo, Parny, Ducis, Shakespeare. O alimento romântico não lhe tira toda a substância clássica, e, cedendo-lhe, escreve também uma tragédia em verso, em cinco atos, respeitando deliberadamente as regras aristotélicas: Clitemnestra. Das peças que escreveu Norberto, parece que a única representada, em 1846, e por João Caetano, foi Amador Bueno ou a fidelidade paulistana, em 5 atos. Também se representaram traduções suas do Tartufo, de Molière, e do Carlos VII, de Dumas pai, segundo a informação pouco segura de Sacramento Blake.

Noberto foi mais o criador, se não do romance brasileiro da ficção novelística em prosa aqui. A sua novela, aliás por ele mesmo chamada de romance, As duas órfãs, foi publicada em 1841 (8.º, 35 págs.), dois anos portanto antes do Filho do pescador, de Teixeira e Sousa, que é de fato pelo desenvolvimento e volume o primeiro romance brasileiro. Em 1852 reuniu Norberto essa e mais três novelas sob o título, impróprio quanto ao primeiro termo, de Romances e novelas, num volume em oitavo de 224 páginas. São todas de assunto e inspiração nacional. A intuição que Norberto tinha do romance acha-se expressa na sua notícia sobre Teixeira e Sousa: «expandir-se pelas minuciosidades das descrições dos quadros da natureza, perder-se em reflexões filosóficas e demorar-se nas trivialidades de um enredo cheio de incidentes para retardar o desenlace da ação principal».

Certamente Teixeira e Sousa nos seus longos romances cumpriu mais à risca este programa, aliás da sua índole e gosto; Norberto, porém, ainda nas suas novelas o seguiu.

Norberto publicou várias coleções de poesias, quatro ou cinco pelo menos, além de numerosos poemas que em tempos diversos saíram em períodicos e não foram jamais reunidos. Embora muito apreciados no seu tempo, nenhum só desses poemas viveu na nossa memória ou sobreviveu ao poeta. A história literária é uma impertinente e implacável desconsoladora da vaidade literária, patenteando a do próprio trabalho das letras e o efêmero e precário da glória contemporânea. Mas no seu tempo, ao menos, não foi de todo vão esse ímprobo labor dos Norbertos, dos Teixeiras e Sousas e de outros companheiros seus na criação da nossa literatura. Eles trouxeram a pedra que por oculta e desconhecida nem por isso deixa de ter servido para levantar o edifício.

Não obstante haver compilado um volume de estudos alheios da língua portuguesa, o que faria supor-lhe particular estudo dela, Norberto não escreveu bem. Como os escritores seus confrades de escola e companheiros de geração, não teve mesmo a nossa preocupação de bem escrever, com acerto e elegância. É geralmente natural desataviado, mas não raro também incorreto. Quando se quer elevar a um estilo mais castigado, guinda-se e cai no empolado e no difuso. Perpetra menos galicismos do que hoje e do que o vulgo dos escritores portugueses seus contemporâneos. Aliás os da sua geração incorriam menos nesse defeito que os posteriores.

A sua obra capital em prosa é a História da Conjuração Mineira, nada obstante a opinião que dela possa fazer o nosso sentimentalismo político, uma das boas monografias da nossa literatura histórica. E mais bem ordenada e composta do que é comum em livros tais aqui escritos. Além disso, o que também não é aqui vulgar, uma obra original, feita principalmente com pesquisas próprias e de estudo pessoal.

Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, na província do Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1820, e morreu na cidade do Rio de Janeiro em 11 de abril de 1882. Foi historiador, poeta, romancista, corógrafo, dramaturgo e comedista, além de jornalista político e literário. Nem pelo vigor do pensamento, nem por qualidades de expressão literária, se abaliza como escritor. É como criador, com Magalhães e Teixeira e Sousa, e mais eficaz do que estes, do romance brasileiro, como um dos principais fomentadores do nosso teatro, e porventura o seu melhor engenho, como autor de um poema romântico, no gênero um dos melhores produtos literários dessa época, e enfim pela influência que, principalmente como romancista, exerceu, que Macedo é um dos tipos mais vivos da nossa literatura. Foi um dos escritores mais fecundos que temos tido, talvez o mais fecundo. Deixou mais de vinte romances, quase outras tantas peças de teatro, poesia e aquele poema romântico em seis cantos, livros de história e corografia do Brasil, quatro grossos volumes de biografia, obras didáticas, discursos acadêmicos e políticos, além de estudos históricos, e folhetins e artigos diversos de sua colaboração em jornais e revistas. Afora os romances, o teatro e aquele poema, o resto é de somenos valor. Macedo fazia história como fazia romance, descuidadamente, ao correr da pena, sem nenhum escrúpulo de investigação e de estudo. Os seus grossos tomos de biografia são totalmente sem préstimo.

A sua primeira obra em livro é o romance A moreninha, de 1844. Seguem-se-lhe, no ano seguinte, O moço loiro (2 vols. In-8.º), em 1848, Os dois amôres (2 vols. In-8.º), em 49 Rosa e, a breves trechos, Vicentina, O forasteiro (aliás escrito antes de todos estes), O culto do dever, A luneta mágica, O Rio do Quarto, Nina, As mulheres de mantilha, Um noivo e duas noivas, e outros, sem contar as novelas colecionadas sob vários títulos. A maior parte tem mais de um tomo.

A moreninha foi um acontecimento literário e popularizou-se rapidamente. A crítica exultou com o seu aparecimento. Dutra e Melo, na Minerva Brasiliense, do mesmo passo que o celebra com grandes gabos, expõe a teoria do romance como devia ser e era aqui praticado. Preconiza o romance histórico e o romance filosófico, que ainda ninguém aqui fizera, contanto que neste se não sigam «os delírios da escola francesa, um Louis Lambert por exemplo». Se bem cair no preceito do Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, deve esse romance tornar-se moralizador e poético. Reconhece que «autores de merecimento, poetas distintos (aludiria certamente a Magalhães, Teixeira e Sousa e Noberto) se tinham já ocupado do romance sentimental produzindo belas páginas». De todo esse artigo de escritor então muito conceituado, deduz-se que o romance devia ser poético, sentimental, moralizador. Foi assim realmente que mais ou menos o fizeram os romancistas dessa geração e ainda da seguinte.

A moreninha consagrou definitivamente o autor que até a sua morte foi conhecido como «o Macedo d'A moreninha» ou também pelo apelido familiar de «o Macedinho». Esse romance, ainda hoje muito lido, é talvez o que maior número de edições e republicações tem tido no Brasil.

Os romances de Macedo são todos talhados por um só molde. São ingênuas histórias de amor, ou antes de namoro, com a reprodução igualmente ingênua de uma sociedade qual era a do seu tempo, chã e matuta. Cuidando aumentar-lhes o interesse, e acaso também fazê-los mais literários, carrega o autor no romanesco, exagera a sentimentalidade até à pieguice, filosofa banalidades a fartar e moraliza impertinentemente. São romances morais, de família; leitura para senhoras e senhoritas de uma sociedade que deles próprios se verifica inocente, pelo menos sem malícia, e que, salvo os retoques do romanesco, essas novelas parece retratam fielmente. A sua filosofia é trivial, otimista e satisfeita, conforme o espírito da época romanceada. A sua moral, a tradicional nos povos cristãos, sem dúvidas, nem conflitos de consciência, a moral de catecismo para uso vulgar. Nem a prejudica o abuso de namoro, ou alguns casos de amor romanesco, pois tudo não aponta senão ao casamento e acaba invariavelmente nele, para completa satisfação dos bons costumes. Pouco variam as situações e tipos dos romances de Macedo. Ou eram de fato uma e outros constantes na sociedade de que Macedo escreveu o romance, ou ao romancista faltou a arte de lhes descobrir as forçosas variações. São infalíveis neles certas categorias de personagens, a moça apaixonada, amorosa ou namoradeira, a intrigante ou invejosa que contra esta conspira, o galã, ora fatal e irresistível, ora apenas simpático e galanteador, a velha namoradeira e ridícula, o velho azevieiro e grotesco, o estudante engraçado, divertido e trêfego, o traidor que maquina contra o galã e a sua amada, o ancião (o ancião de Macedo é um homem de 50 anos, como as suas jovens amorosas não têm nunca mais de dezesseis) experiente, amigo certo e conselheiro avisado e mais o gracioso ou jocoso da comédia. Vem a pêlo a terminologia teatral, porque Macedo é em muito autor dramático, e os seus romances deixam por mais de uma feição rever este conspícuo feitio do seu engenho. Ao invés dos escritores nossos patrícios dessa fase e ainda dos das subseqüentes, Macedo é um escritor alegre e satisfeito, porventura o único da nossa literatura. A sua arte lhe é um divertimento, e o seu objeto, praticando-a, divertir os seus contemporâneos, sem talvez se lhe dar dos vindouros. Diverti-los moralizando-os, risonhamente, despreocupadamente, sem outro propósito mais alto, tal parece ter sido o seu intuito literário.

A atividade dramática de Macedo vai de 1849 aos últimos anos de 60 ou aos primeiros de 70. É justamente o período de maior florescimento do nosso teatro, que então realmente existiu com autores e atores nacionais, queridos e estimados do público. Entre os últimos havia-os, é certo, portugueses, mas esses, quase todos domiciliados aqui, achavam-se de fato nacionalizados. Macedo concorreu para esse teatro com mais de uma dúzia de peças, dramas em prosa e verso, comédias, óperas, que são o moderno vaudeville, e farsas, mostrando em tudo vocação decidida para o gênero fácil e boa veia cômica. Como esta lhe vinha mais do natural que a dramática, valem as suas comédias mais do que os seus dramas. Na comédia acha-se ele melhor, em um mundo mais natural, mais espontâneo e que lhe é mais familiar e conhecido que o dos seus dramas. Na inspiração e feitura destes, sente-se a influência da dramaturgia francesa contemporânea, como em Lusbela, por exemplo, a da Dame aux Camélias, ou de quejandos modelos. Demasiado românticos de assunto, excessivamente romanescos de composição e estilo, falham mais os seus dramas do que as suas comédias na representação que presumem ser da nossa vida. Não logram também atingir por qualidades superiores de invenção e expressão a generalidade da representação humana que supra ou exceda aquela. Há, porém, neles condições de teatralidade e arte de desenvolvimento e exposição. O principal defeito do nosso teatro, o que mais nos afronta com a sua desnaturalidade, é o diálogo geralmente falso ou em desacordo com o que ouvimos na rua ou na sala. A nossa sociedade, de fato ainda não de todo perfeitamente policiada, se não criou já uma sociabilidade, com fórmulas dialogais e de tratamento mútuo entre os interlocutores, que o escritor de outras línguas quase não faz senão reproduzir. Esse tratamento no nosso teatro mostra afrontosa incoerência, que é aliás a mesma dos nossos hábitos de conversação. Querendo evitá-la, Macedo e muitos dos nossos escritores de teatro ainda hoje recorrem ao tratamento da segunda pessoa do plural, que fora do estilo oficial ou do verso, de todo não usamos. E como o ridículo é um pouco o insólito, essas formas ridiculizam as peças que as empregam. O teatro romântico na comédia popular de Pena, de Macedo, de Alencar e de autores de menor nome, deu da sociedade do tempo uma cópia em suma exata. Desmerece, porém, essa representação no drama ou na comédia da nossa alta vida. Esta a viram sempre através de suas impressões de romântica francesa. Daí a pouca fidelidade na pintura dela e nos sentimentos que lhe atribuem. Nunca houve de fato na nossa sociedade preconceitos de raça ou de casta bastante generalizados e profundos, capazes de determinar as situações como a de Lusbela, de Macedo.

Num momento de feliz inspiração escreveu Macedo A nebulosa, poema não só romântico de intenção e de escola, mas nimiamente romanesco. Não obstante a sua sensibilidade lamurienta, e o aparelho ultra-romântico da ação, cheia de maravilhas de mágica, há neste único poema de Macedo grandes belezas de poesia e expressão. Mais de um trecho seu ainda nos impressiona pela força de emoção que lhe pôs o poeta. Mas ainda para o tempo desmasiava-se o poema em indiscretos apelos ao patético e sentimentalidade que fazem que hoje não o leiamos sem enfado.

Concomitantemente com estes principais representantes da nossa primeira fase romântica, poetaram aqui outros muitos sujeitos, como os fluminenses Joaquim José Teixeira (1822-1884), José Maria Velho da Silva (1811-1901), Antônio Félix Martins (1812-?), José Maria do Amaral (1812-1885), Firmino Rodrigues Silva (de Niterói, 1816-1879); os mineiros Cândido José de Araújo Viana (marquês de Sapucaí - 1893-1875) e Antônio Augusto de Queiroga (1812-1855); o baiano Francisco Moniz Barreto (1804-1868), e o pernambucano Antônio Peregrino Maciel Monteiro (1804-1868).

Publicistas, políticos, diplomatas, advogados, médicos, funcionários públicos, poetas o são apenas ocasionalmente, inconseqüentemente, mais de recreio que de vocação, e a sua obra de amadores sobre escassa, o que lhes revê a inópia do estro, é em suma insignificante. Vale somente como indício de uma inspiração poética que se não limitava aos próceres do movimento romântico.

Havia no entanto entre eles um bom, um verdadeiro poeta, José Maria do Amaral, antes um árcade retardatário do que um puro romântico, mas um árcade todo impregnado do lirismo garretiano. Os seus sonetos, nunca reunidos em volume, são talvez como tais, e como poesia subjetiva, o que melhor deixou essa geração. A fama de que gozou Moniz Barreto, devida ao seu singular talento de improvisador, qualidade então apreciadíssima, não a confirma agora a leitura da sua obra, reflexo demasiado apagado do dessorado elmanismo.

Capítulo XI

Gonçalves Dias e o Grupo maranhense

Os impulsos de renovação literária dos nossos românticos da primeira hora, Magalhães, Porto Alegre, Norberto, Macedo e outros, os veio perfazer o poderoso talento de Gonçalves Dias. Da poesia genuinamente brasileira, não por exterioridade de inspiração ou de forma ou pela intenção dos temas e motivos, mas pelo íntimo sentimento do nosso gênio com as suas idiossincrasias e peculiaridades, em suma da psique nacional, foi ele o nosso primeiro e jamais excedido poeta.

Gonçalves Dias é nas nossas letras um dos raros exemplos comprobatórios da falaz teoria da raça. Parece que nele se reuniam as três de que se formou o nosso povo. Seu pai era português de nascimento, a mãe aquilo que chamamos no Norte, donde era, cafuza, isto é, o resultado do cruzamento do índio com o negro. Nasceu em Caxias, no Maranhão, em 1823, da união natural de seu pai com aquela boa mestiça, que lhe foi mãe carinhosa. Da terra natal, onde iniciou os estudos de latim com o mestre público local, passou com o pai à capital da Província, seguindo logo ambos daí para Portugal, o pai em busca de saúde, ele de instrução. Pouco depois de ali chegado, morreu-lhe o pai, que já ia muito doente. Com quatorze anos, achou-se Gonçalves Dias só, em terra estranha. Esta circunstância, agravando a nostalgia que sem dúvida lhe produzia o apartamento da pátria e da mãe, aumentar-lhe-ia a natural dor da perda do pai. No belíssimo poema autobiográfico Saudades, que dedicou à irmã, transpira ainda, não obstante os anos passados, a sua grande mágoa, «essa dor que não tem nome»:

De quando sobre as bordas de um sepulcro

anseia um filho, e nas feições queridas

dum pai, dum conselheiro, dum amigo

o selo eterno vai gravando a morte!

Escutei suas últimas palavras,

repassado de dor! - Junto ao seu leito,

de joelhos, em lágrimas banhado

recebi os seus últimos suspiros.

E a luz funérea e triste que lançaram

seus olhos turvos, ao partir da vida

de pálido clarão cobriu meu rosto

no meu amargo pranto refletindo

o cansado porvir que me aguardava!



Tornou ao Maranhão, mas já em 1840 estava de volta a Portugal matriculado na Universidade de Coimbra. Ou assim nascesse, e é talvez o mais certo, ou as circunstâncias do seu nascimento, aquele golpe precocemente sofrido, a orfandade, o prematuro afastamento da terra natal e das suas mais caras afeições de infância, assim o houvessem feito, foi Gonçalves Dias, não obstante alguns lampejos de bom humor e de jovialidade, uma alma profundamente melancólica e profundamente sensível. Ela se lhe formou ainda em meio das agitações conseqüentes à Independência. Deu-o a mãe à luz quando o pai, por esquivar perseguições que a sua qualidade de português lhe poderia atrair, achava-se foragido nos matos vizinhos de Caxias, habitando uma palhoça, onde Gonçalves Dias nasceu, na carência de qualquer conforto, entre aflições e medos. Deixaram-lhe forte e viva impressão estes primeiros incidentes de sua vida. Di-lo ele à sua irmã naquele poema, uma das suas melhores páginas:

Parti, dizendo adeus à minha infância,

aos sítios que eu amei, aos rostos caros

que já no berço conheci, àqueles

de quem, mau grado a ausência, o tempo, a morte

e a incerteza cruel do meu destino,

não me posso lembrar sem ter saudades,

sem que aos meus olhos lágrimas despontem.


Ave educada nas floridas selvas

vim da praia beijar a fina areia;

subitâneo tufão arrebatou-me,

perdi a verde relva, o brando ninho.

Nem jamais casarei doces gorjeios

ao saudoso rugir dos meus palmares;

porém a branca angélica mimosa

com seu candor enamorando as águas,

floresce às margens do meu pátrio rio.



E a mesma imagem se repete mais adiante, mostrando a obsessão daquela impressão dolorosa:

Ave educada nas floridas selvas,

um tufão me expeliu do pátrio ninho;

as tardes dos meus dias vorrascosos

não terei de passar sentado à porta

do abrigo de meus pais, nem longe dele,

verei tranqüilo aproximar-se o inverno

e pôr do sol dos meus cansados anos!



O tufão que o expeliu do pátrio ninho foi o casamento do pai com outra mulher que não aquela de quem ele nascera. A dor que lhe envolveu a infância afeiçoou-lhe a índole pessoal e poética e pôs-lhe n'alma a tristeza forte que será a sua marca e o seu encanto. A ela juntaram-se-lhe despertadas ou alvoroçadas pelos gabos desde menino ouvidos ao seu talento, ambições de sobrelevar-se à sua mesquinha condição:

Um dia apareceu um recém-nado,

Como a concha que o mar à praia arroja;

Cresceu qual cresce a planta em terra inculta,

Que ninguém educou, a chuva apenas,

Infante viu da roda sepulturas,

Em que não atentou;


Então sentiu brotarem na sua alma

Sonhos de puro amor, sonhos de glória

Sentiu no peito um mundo de esperanças,

Sentiu a força em si - patente o mundo.



Em 1845 formado em Direito, regressou à sua província. Foi à terra natal que deixou logo «ralado de desgostos, por motivos que se não declara», informa discretamente um seu grande amigo e amoroso biógrafo. Esses motivos seriam de ordem doméstica e provenientes da coexistência da mãe e da madrasta, que aliás parece-lhe fora caroável. A entristecer-lhe o ânimo já de raiz e das circunstâncias de sua vida melancólico, a amargurar-lhe a alma e travar-lha de dissabores, que a sua sensibilidade de poeta e de valetudinário exagerariam, concorreram mais as condições de penúria e dependência em que, graças à bondade e comiseração de patrícios, amigos raríssimos, lograra completar a formatura em Coimbra. Pouco se demorando na capital de sua Província, veio para o Rio de Janeiro em meados de 1846 e aqui publicou os seus Primeiros cantos. Antes publicara apenas um pequeno poema Inocência no trovador de Coimbra e três ou quatro de igual extensão no Arquivo, jornal do Maranhão.

A crítica, tanto a do Rio de Janeiro como a das províncias, acolheu este primeiro livro de Gonçalves Dias com calorosos e merecidos encômios e, o que mais vale e é menos comum, com atilada compreensão do seu valor. O balbucio de Magalhães e Porto Alegre era já em Gonçalves Dias a fala clara, perfeita e melodiosa. Com muito mais harmonia, mais íntimo e mais vivo sentimento, mais espontânea e original inspiração, maior sensibilidade emotiva, havia relevantemente nele dons de expressão muito superiores. Pode dizer-se que aqueles poemas revelam -e os posteriores o confirmariam- o primeiro grande poeta do Brasil.

Esta preeminência de que os contemporâneos tiveram a intuição, a vieram confirmar os Segundos cantos e sextilhas de Frei Antão, publicados também no Rio dois anos depois. Valem menos as Sextilhas como prova do seu saber da língua e um feliz postiço arcaico desta, que por testemunharem a delicadeza e vigor da sua imaginação e pensamento poético e riqueza de sua inspiração lírica. Corroboraram-no ainda os Últimos cantos, de 1851, tudo reunido mais tarde sob o título de Cantos, na primeira edição de Leipzig (F. A. Brackhaus, 1857, 16.º, XXVIII, 654 págs.). Sucederam-se novas edições em número de quatro, contadas da primeira dos Cantos quando acabava o poeta de morrer. Alguns dos poemas dos Primeiros Cantos, porventura os melhores, repunham em a nossa poesia o índio nela primeiro introduzido por Basílio da Gama e Durão. Era essa a sua grande e formosa novidade. Nos poemas daqueles poetas não entrava o índio senão como elemento da ação ou de episódios, sem lhes interessar mais do que o pediam o assunto ou as condições do gênero. Nos cantos de Gonçalves Dias, ao contrário, é ele de fato a personagem principal, o herói, a ele vão claramente as simpatias do poeta, por ele é a sua predileção manifesta.

Entre a publicação dos Primeiros e dos Últimos cantos compôs Gonçalves Dias os primeiros seis de um poema americano Os Timbiras, dos quais publicou em Leipzig, em 1857, os quatro primeiros. Continuava a mesma inspiração simpática ao índio e a mesma idealização afetuosa dos seus feitos e gestos, que distinguirá o segundo indianismo, cujo iniciador foi exatamente Gonçalves Dias, do primeiro criado por Basílio da Gama. Os Timbiras, como as Americanas, não só ficariam, a todas as luzes, os mais belos poemas de inspiração indianista aqui produzidos, mas os únicos que sobrevivem aos motivos ocasionais dessa inspiração e ao gosto do momento. Um deles, I-Juca-Pirama, é sob todos os aspectos, essenciais ou formais, uma das raras obras-primas da nossa poesia e ainda de nossa língua. O próprio Portugal, geralmente pouco simpático às nossas tentativas de emancipação literária, pelo mais autorizado então dos seus órgãos intelectuais, Alexandre Herculano, não só reconhecia nos Primeiros cantos «as inspirações de um grande poeta», mas lastimava não houvesse o poeta dado neles maior espaço às poesias americanas. Os Timbiras cediam ao preconceito do poema épico da tradição portuguesa, continuada aqui desde os começos da nossa poesia. Acostando-se-lhe, fazia-o entretanto Gonçalves Dias com manifesta superioridade de inspiração e de expressão. Aquela é mais sincera, vem-lhe mais do íntimo. Porventura impulsado por um recôndito sentimento de sua alma de caboclo, avivado pela nostalgia do «filho do bosque», traz muito maior vigor de idealização. A expressão é muito mais rica, muito mais variada e melodiosa -sobre tudo muito mais melodiosa- que a de qualquer outro dos nossos poemas. Do maior dos nossos épicos até então, Basílio da Gama terá, com mais opulenta imaginação, a harmonia do verso branco, no qual já rivalizava com Garrett. A influência do Uraguai é visível no poema. Mas não o deslustra essa influência, que apenas revê a continuidade da nossa tradição poética. Indicia esse influxo, e quase reproduz o verso do Uraguai

No espaço azul não chega o raio



estoutro dos Timbiras, aludindo ao surto do condor após a presa feita,

E sobe audaz onde não chega o raio.



Também a apóstrofe - América infeliz! do formosíssimo canto terceiro recorda o -Gentes da Europa nunca vos trouxera- do segundo canto do Uraguai.

Nenhum poeta moderno teve como Camões o sentimento do paganismo e do seu maravilhoso. Assim também nenhum poeta brasileiro, em prosa ou verso, teve em grau igual ao de Gonçalves Dias o sentimento do nosso índio e do que lhe constituía a feição própria. Todos os nossos indianistas, maiores e menores, sem excetuar o próprio Alencar, que é quem em tal sentimento mais se aproxima de Gonçalves Dias, o foram antes de estudo e propósito que de vocação. Daí a sua inferioridade relativamente ao poeta dos Timbiras e os despropósitos em que caíram. E o conceito pode ser generalizado a toda a obra lírica de Gonçalves Dias.

É que ele é um dos raros, se não foi o único, dos nossos que, com os dons naturais para o ser, a vida fez poeta. Não a moda, a retórica, a camaradagem, a presunção ou algum estímulo vaidoso ou interesseiro, ou sequer patriótico, o fizeram poeta senão a dor e o sofrimento. É primeiro o afastamento do torrão natal e do carinho materno em anos verdes, a perda do pai e o isolamento em terra estranha, a amargura do seu nascimento mais que humilde, o sentimento da sua inferioridade social -contrastando com a sua fidalguia moral e mental, é a humilhação de viver de amigos, é a sua penúria de recursos e mesquinhez de vida, é o desencontro de suas ambições com as suas possibilidades, é o convívio do meio mesquinho seu conterrâneo e por fim e acaso mais que tudo, quando já lhe sorrira a glória e ele assim mesmo se enobrecera pelo gênio e trabalho, a recusa da mulher muito amada, por motivo do seu nascimento. Não há, ou apenas haverá um destes passos da sua vida dolorosa, aos quais outros fora possível acrescentar, que não tenha deixado impressões, ecos, vislumbres nos seus poemas. A nostalgia inspira-lhe a Canção do exílio, no seu gênero e ingenuidade acaso o mais sublime trecho lírico da nossa poesia, a expressão mais intensa e mais exata do nosso íntimo sentimento pátrio. As agruras da sua juventude as Saudades, de tão fina sensação dolorosa, de tão bela e comovedora expressão. Os seus amores infelizes esses dois soberbíssimos trechos sem iguais no nosso lirismo: Se se morre de amor e Ainda uma vez, adeus, e mais aquele encantador No jardim, amostra peregrina em a nossa poesia de emoção profunda casada à profunda singeleza. Nem desmerecem destes os poemas da mesma inspiração, que lhe brotam, cheios de lágrimas do fundo d'alma: Ó que acordar e Se muito sofri já, não mo perguntes13 .

Antes e depois de Gonzaga jamais se ouvira em a nossa poesia cantos de amor tão repassados de íntimo sentimento e de uma tão formosa expressão. Os poetas contemporâneos dos últimos anos de Gonçalves Dias, os seus sucessores imediatos, os poetas da segunda geração romântica, os repetirão com emoção às vezes igual, nenhum porém com a alta e essencial beleza dos seus. Com ele achava enfim o lirismo brasileiro a sua expressão mais eminente, a sua feição modelar, nunca mais, se não atingida, excedida.

O poeta a mais de um respeito genial desdobra-se em Gonçalves Dias num dos prosadores mais seletos das nossas letras. Às obras líricas junta simultaneamente com inspiração muito mais romântica que a de Magalhães e seus colaboradores, a dramática. Em 1847 publica D. Leonor de Mendonça, drama original de assunto português, em três atos e cinco quadros. Antes, em 1843, compusera o Patkul, no ano seguinte Beatriz Cenci e mais tarde (1860) Boabdil, todos só postumamente publicados. Não sabemos por que não foi nenhum destes dramas representado tendo aparecido o primeiro e sendo escritos os outros justamente na época em que nascia o teatro brasileiro, que eles teriam concorrido para enriquecer e ilustrar. Ainda do ponto de vista teatral, não é nenhum deles inferior aos de Magalhães e companheiros, e ao menos Leonor de Mendonça lhes é, como criação artística e mérito literário, superior. Está este longe da intensa emoção e da alta e serena beleza do Frei Luís de Souza, de Garrett, mas não lhe está tanto da sobriedade e formosa singeleza de estilo. Publicando-o, precedeu-o o autor de um prefácio em que, de parte os inevitáveis sacrifícios à poética do tempo, há conceitos originais e inteligentes da literatura dramática e de seus meios de expressão. Mais que tudo, é interessante neste drama a interpretação do duvidoso caso histórico que lhe forneceu o tema. Além de original e psicologicamente verdadeira, é humana e dramática. Segundo o poeta, determinaram-no somente as condições do meio, «a fatalidade filha das circunstâncias e que dimana dos nossos hábitos e da nossa civilização», como ele chãmente explica, sem parecer dar maior importância ao seu achado, que não era vulgar para a época. É pelo menos reparável que fazendo teatro Gonçalves Dias só o fizesse de assuntos estrangeiros. Podia-se acaso ver neste fato a clara consciência que teria de que a nossa sociedade, a histórica e a atual, dificilmente depararia ao poeta assuntos propícios à criação dramática. Embora assim fosse, não é menos de notar-lhe a abstenção de assuntos nacionais, pois a grandeza do poeta consiste por muito em sobrepujar tais dificuldades. Quanto a trazer o índio para o teatro, como o trouxe para a poesia, parece andou acertadíssimo, sem embargo do muito que há de dramaticamente belo no I-Juca-Pirama. Mas a estética particular do governo desaconselha a invasão, ainda acompanhada de música, do selvagem no teatro.

A obra puramente poética de Gonçalves Dias sobrepujou em acabamento e mérito a tudo o mais que escreveu, de modo a o velar e esconder mesmo à maioria dos seus admiradores. O seu brasileirismo, que não era apenas manifestação do seu indianismo, mas lhe estava, para falar com o nosso povo, na massa do sangue, e lhe vinha do nascimento e criação em um meio genuinamente brasileiro e de influições da raça indígena na formação da sua psique, o fortificaram estudos da história e etnografia nacional, nos quais revelou outras faces do seu talento e capacidade literária: qualificações para tais estudos, aptidão crítica, facilidade e pertinência de exposição. As suas memórias sobre a existência de amazonas no Brasil, sobre o descobrimento casual ou não deste e sobre as civilizações indígenas do país e da Oceânia, como antes desde as suas Reflexões acerca dos Anais de Berredo, do mesmo passo que lhe comprovam não comum erudição destes assuntos, documentam no poeta não vulgar versatilidade de talento.

A estes diversos escritos, e até alguns de caráter administrativo e oficial, colaboração em revistas e jornais, ensaios apenas encetados, folhetins, cumpre juntar como prova da atividade mental do poeta e gosto e vocação dos estudos brasileiros, o Dicionário da língua tupi (Leipzig, 1858) e o Vocabulário da língua geral... usada no Alto Amazonas (Rev. do Inst., XVII). Todas estas obras em prosa de Gonçalves Dias, ainda as que não são de natureza literária, distinguem-se pela linguagem e estilo mais cuidados do que era aqui comum, salvo nos seus comprovincianos. São por isso das que ainda podemos ler com facilidade e prazer. Não só por qualidades de pensamento, de imaginação e de sentimento, senão pelas de expressão, é Gonçalves Dias um dos nossos clássicos, ou por outra um daqueles pouco numerosos escritores brasileiros que o sendo pelas íntimas qualidades de que procede um estilo, escrevem certa, fluente e elegantemente. Ainda como escritor português, um ou outro deslize não o desabona de vernáculo. E o é com mais naturalidade, menos intencionalmente e de estudo do que os seus camaradas do grupo Odorico Mendes, Sotero dos Reis e João Lisboa.

Ensaiou também Gonçalves Dias o romance, e quase foi ele, antes de Texeira e Sousa, o seu inventor aqui. Ainda em Coimbra, por 1841 ou 42, escreveu um a que deu o título realista de Memórias de Agapito Goiaba, do qual apareceram fragmentos no Maranhão em 1846. Era um livro de memórias e recordações pessoais travestidas e idealizadas, à moda da Nova Heloísa, e só por isso seria certamente curioso. Apesar deste exemplo ilustre, se não estava ainda na despudorada literatura pessoal cujo criador foi exatamente Rousseau. À delicadeza de Gonçalves Dias repugnou publicá-lo e o destruiu mais tarde. Pelo que dessa tentativa nos resta, presumimos que além do sainete das reminiscências e confidências disfarçadas num romance vivido, teria este sobre os dos criadores do gênero aqui, aquilo que totalmente lhes faltou, virtudes de composição e de expressão. É, porém, como poeta o maior e o mais completo que o Brasil criou, e o que lhe é mais afim, que Gonçalves Dias vive e viverá na nossa literatura, da qual é uma das figuras mais eminentes, se não a mais eminente. Vive e viverá também pela sua influência, que foi considerável e legítima e não cessou ainda de todo, e que porventura reviverá quando, passado este momento de exotismo desvairado e incoerente, volvermos à mesma fonte donde dimana o nosso sentimento, não indígena e nativista, mas social e humano.

O Grupo maranhense

Os comprovincianos e admiradores de Gonçalves Dias levantaram-lhe em S. Luís uma estátua. De sobre o airoso fuste de uma palmeira de mármore, eleva-se a sua débil e melancólica figura de romântico. Em cada face do plinto onde assenta a planta que o poeta fez, com o canoro sabiá, símbolo da terra brasileira, destacam-se em relevo os medalhões de ilustres conterrâneos e camaradas do poeta: João Lisboa (1812-1863), Odorico Mendes (1799-1864), Sotero dos Reis (1800-1871), Gomes de Sousa. A idéia feliz da associação destes nomes na justa homenagem que ao máximo de seus filhos prestava a sua terra natal, comemora a coexistência simultânea nesse mesmo torrão brasileiro de um grupo de intelectuais, como ora dizemos, que por mal dela e nosso jamais se repetiria. Console-se o Maranhão, também à Atenas, que lhe deram por antonomástico, nunca jamais lhe voltou o tempo de Péricles.

Conquistado pelos portugueses ao franceses em antes de passados três lustros do século XVII, era desde 1624 o Maranhão constituído em Estado, separado do Brasil, aumentado do Grão-Pará, do Piauí e do Ceará. Como o Brasil, teve o seu governador particular, geralmente fidalgo de boa linhagem, sua legislação e administração privativa. A posição geográfica aproximava-o mais da metrópole que o Brasil, tornando-lhe as comunicações com ela mais prontas. Não seria pouco motivo para lhe atrair a imigração que se não desenraíza de todo da pátria e que é talvez, como qualidade de gente, a melhor. Nota o insigne historiador maranhense que o Maranhão recebeu menos degradados que o Brasil. Desde 1655, como galardão dos seus serviços na expulsão dos holandeses, foram pelo rei concedidos aos «cidadãos» de S. Luís (e de Belém do Grão-Pará) os privilégios dos do Porto. «Qualquer que fosse, pondera o mesmo historiador, a importância destes privilégios, todos (os moradores) faziam muito empenho em alcançá-los, e nesta matéria, como em tudo o mais, se introduziram pouco a pouco graves abusos. Soldados, criados de servir, mercadores degradados, cristãos novos; uns simplesmente inábeis, outros até infames pela lei, achavam maneiras de introduzir os seus nomes nos pelouros, obtendo assim por uma parte as qualificações de nobreza e o exercício dos cargos da governança, e por outro a isenção do serviço militar na infantaria paga, e nas ordenanças». Desde os seus começos, foi o Maranhão país agrícola, de cultura de gêneros da terra e mais de algodão. Nesta cultura, também desde os seus princípios, empregou numerosa escravaria negra e indígena. A grande propriedade agrícola, mormente quando baseada no trabalho escravo, sempre e por toda a parte criou presunções ou fumos de fidalguia, vida ou aparências de grandeza. Excetuado talvez Pernambuco, foi o Maranhão, em todo o Norte do Brasil, o lugar de mais numerosa escravatura negra, e pela mesma situação de trabalhadores agrícolas onde esta mais maltratada e desprezível se achou. Por motivo ainda daquela real ou supositiva prosápia, foi ali mais vivo do que soía ser no resto do país o preconceito de cor. Mais porventura do que em outra parte do Brasil se conservou estreme acolá a branca, predominando na sua capital até a Independência, e querendo predominar ainda depois dela, o elemento português. Talvez sejam estes os motivos do sotaque maranhense aproximar-se mais do que nenhum outro brasileiro do português, o que explicaria também, sabida a influência da fonética na sintaxe, que ali se tenha falado e escrito melhor do que algures. Por que são os escritores maranhenses os que menos praticam a colocação brasileira dos pronomes pessoais oblíquos, senão porque a sua pronúncia se avizinha mais da de Portugal? Não se pode mais duvidar que este fato lingüístico é em suma produzido por um fenômeno prosódico.

O Maranhão foi no Brasil um dos bons centros da cultura jesuítica, toda ela particularmente literária. Ali viveu alguns anos da sua vida, pregou vários dos seus sermões, escreveu muitas de suas cartas, participou das suas lutas e contendas o padre Antônio Vieira. Que desde o século XVII havia em S. Luís poetas, embora nenhum nome tenha chegado até nós, mostra-o o fato da existência de devassas contra os homens versistas, autores de sátiras contra os governantes. Bequimão, o cabeça dos motins de 1684, possuía e lia livros de histórias de revoluções. Mais de um dos fidalgos portugueses que governaram o Maranhão, além de Berredo, o autor dos seus Anais, era homem culto e ainda de letras; e de outros funcionários coloniais portugueses como Guedes Aranha, Henriarte, há documentos preciosos do que chamo neste livro literatura de informação. Fosse qual fosse a constituição da sociedade maranhense nos tempos coloniais, tivesse ela no extremo norte a primazia da prosápia, da riqueza ou da cultura, e demais um sentimento cívico mais apurado pelas suas lutas com o estrangeiro invasor, ou brigas intestinas que muitas foram e que, bem como aquelas, poderiam concorrer para lhes aguçar o entendimento, o certo é que nesse período não concorreu o Maranhão sequer com um nome para engrossar o nosso cabedal literário. Não há com efeito um só maranhense entre os escritores brasileiros do período colonial.

Entretanto, mal acabado este, estréiam os maranhenses em a nossa literatura e da maneira mais brilhante. Efeito demorado daqueles antecedentes ou simples acaso, isto é, evento, fortuito, cujas causas não podemos deslindar? Antes de ter imprensa, teve o Maranhão, em 1821, um jornal manuscrito, como os faziam os rapazes nos internatos, o qual, em cópias tão numerosas quanto possível, corria a capital. Ainda nesse ano passou a folha manuscrita a impressa, sob o mesmo título de Conciliador maranhense, que revê o generoso intuito de empecer as demasias da agitação nacionalista, já bem começada, contra os reinóis. A partir daí multiplicam-se os jornais na província. Desde 1825 aparecem como publicistas, à frente de jornais, dois daquele grupo de intelectuais, Odorico Mendes e Sotero dos Reis. Outro, quiçá o maior dos quatro, João Francisco Lisboa, é jornalista desde 1832 e o será, com intermitências e sem fazer disso estado, pelo resto da vida. Desde o princípio foi escritor mais zeloso do seu estilo do que costumam ou podem ser jornalistas. Com a Revista aparecida em 1840, inicia Sotero dos Reis o jornalismo literário na sua Província. Era uma «folha política e literária» não só pela declaração do seu subtítulo, mas pela sua matéria e linguagem. «Quando se lhe deparava ensejo, não deixava passar uma obra literária de cunho sem dar dela notícia, assinalando-lhe as belezas e reproduzindo trechos de originais brasileiros ou portugueses ou traduzindo-os que eram em língua estranha». O jornalismo destes homens de letras, talvez nele deslocados, era doutrinal, de alto tom e boa língua.

Quaisquer que tenham sido as suas determinantes, existia já na época da Independência o gosto literário no Maranhão. Prova-o o apuro com que ali se estudava e escrevia a língua nacional em contraste com o desleixo com que era tratada no resto do Brasil e a parte que ali se dava no mesmo jornalismo político à literatura. Provam-no mais outros fatos. Em 1845, uma sociedade literária, composta de nomes não de todo obscuros nas nossas letras, funda um Jornal de instrução e recreio, que, além de versar assuntos didáticos e pedagógicos, «era revista de literatura amena». Outro grupo de homens de estudo e letras, no qual se encontram alguns do primeiro, fundou no ano seguinte uma Sociedade filomática, a qual também publicou uma Revista e iniciou, antes de ninguém mais no Brasil, as conferências literárias. Caso talvez mais notável, desde 1847 tinha o Maranhão uma imprensa capaz de imprimir com decência que lhe podia invejar a Corte, obras volumosas como os Anais de Berredo. Nessa oficina aprendeu Belarmino de Matos, talvez o melhor impressor que já teve o Brasil, e dela saiu para montar uma própria, onde nitidamente imprimiu bom número de obras, com acabamento então único e ainda hoje raro excedido. Não é menor testemunho deste pendor maranhense a possibilidade ali de livros como os de Sotero dos Reis e de publicações como o Jornal de Timon.

Neste ambiente, por qualquer motivo que nos escapa, literário, apareceu a bela progênie de jornalistas, poetas, historiadores, críticos, eruditos, sabedores que desde o momento da Independência até os anos de 1860, isto é, durante cerca de quarenta, ilustraram o Maranhão e lhe mereceram a alcunha gloriosa de Atenas brasileira. Beneméritos de mais demorada atenção e maior apreço pela sua importância literária e parte em a nossa literatura, são os já mencionados.

Manoel Odorico Mendes, nascido em S. Luís em 1799 e falecido em Londres em 1864, é porventura o mais acabado humanista que já tivemos. À ciência das línguas clássicas, e da sua filologia e literatura, de que deixou prova cabal e duas versões fidelíssimas, embora de custosa leitura, de Virgílio e de Homero, juntava estro poético original, se bem que escasso. Foi também um erudito de cousas literárias castiças e exóticas. Coube-lhe reivindicar definitivamente para Portugal a composição original do Palmeirim de Inglaterra, pretendida pela Espanha, já com assentimento de erudição portuguesa. Mas sobretudo foi um tradutor insigne, se não pela eloqüência e fluência, pela fidelidade e concisão verdadeiramente assombrosa, dada a diferente índole das línguas, com que trasladou para o português os dous máximos poetas da antigüidade clássica, não raras vezes aliás emulando-os em beleza e vigor de expressão. Também traduziu Mérope (1831) e o Tancredo (1839), de Voltaire. Assevera o clássico D. Francisco Manuel de Melo que «no pecado de traduções não costumam cair senão homens de pouco engenho». Que não era grande o de Odorico Mendes parece mostrá-lo o fato de não nos haver ele deixado, benemérito de citação e leitura, mais que um poema original, ele que tanto trabalhou e produziu em traduções. Esse poema é o Hino à tarde. Escrito em Portugal e publicado pela primeira vez na Minerva Brasiliense, em 1844, mesclam-se nesta composição o clássico e o romântico, uma inspiração ainda arcádica e européia e sentimentos brasileiros e estilo moderno. É, nada obstante, um dos melhores produtos poéticos do tempo e merece ainda estimado. Já porventura prenuncia Gonçalves Dias pelo tom sentimental do seu lirismo mais subjetivo que o de Magalhães.

Francisco Sotero dos Reis, um ano mais moço que Odorico Mendes, mas seu condiscípulo de humanidades, sem ter tão completa cultura clássica deste, o sobrelevou pela maior amplitude e originalidade de sua obra. Principiou como Odorico Mendes e João Lisboa por jornalista político, conforme era necessário em época em que todo o brasileiro de alguma instrução e capacidade de expressão era solicitado, se não constrangido pelas circunstâncias, a dizer da cousa pública e a tomar parte na refrega política. Jornalista com letras e professor delas, foi-lhe fácil a transição para autor de livros, principalmente didáticos, Postilas de gramática geral aplicada à língua portuguesa pela análise dos clássicos (1862), Gramática portuguesa (1866), tradução dos Comentários de César (1863), e finalmente o Curso de literatura portuguesa e brasileira (1866-1868, 8.º gr., 4 vols.). Não obstante ainda didático e composto para uso dos seus discípulos do Instituto de humanidades, onde lecionava a matéria, é por este livro que Sotero dos Reis pertence à literatura e particularmente à história da nossa.

À crítica de Sotero dos Reis, não obstante informadíssima e alumiada por uma boa cultura literária clássica e moderna, falta porventura, com um mais justo critério filosófico ou estético, a necessária isenção de preconceitos escolásticos e patrióticos. Deriva por muito ainda das regras e processos quintilianescos e da crítica portuguesa de origem acadêmica. Não esconde ou sequer disfarça o seu empenho em engrandecer o nosso valor literário, aumentando o dos autores por eles estudado, muito além da medida permitida. Equiparar, por exemplo, o marquês de Maricá a La Rochefoucauld é um despropósito que por si só bastaria para desqualificar a capacidade crítica e a inteligência literária de Sotero dos Reis, se a sua obra não desmentisse este conceito. Como quer que seja, o Curso de literatura, de Sotero dos Reis, é, no seu gênero, com a História do Brasil, de Varnhagen, e o Jornal de Timon, de João Lisboa, uma das obras capitais da fase romântica.

João Francisco Lisboa, nascido no Itapicurumirim, no Maranhão, em 1812, e falecido em Lisboa, em 1863, é das mais singulares figuras da nossa literatura. Com grande aproveitamento estudou as poucas letras que era possível aprender na capital de sua Província, tendo por mestre de latim e latinidade o seu futuro êmulo e rival Sotero dos Reis, treze anos mais velho do que ele. Fez-se homem quando os acontecimentos do 7 de abril de 1831, alvorotando o país, provocaram em todo ele as lutas e conflitos, não raro mais que de opiniões e de imprensa, entre brasileiros e portugueses ou caramurus, conforme a alcunha que lhes davam os nossos. Estreou nas letras como jornalista político com o Brasileiro, título que na época era um programa, em meados de 1832. Já havia então na capital da Província quatro jornais, «todos quatro muito exagerados e descomedidos na linguagem e desarrazoados nas doutrinas».

Os trechos desse jornal, reproduzidos na biografia de Lisboa pelo autor do Panteon maranhense, testemunham já no novel jornalista de vinte anos o reflexivo pensador, e diserto e vernáculo escritor do futuro Jornal de Timon. Como aos homens de verdadeiros talento literário e alta compostura moral, a política em que entrara como jornalista e com legítimas ambições de repúblico, não quis a João Lisboa. Ele despicou-se-lhe da recusa auspiciosa consagrando-se às letras. Mas no literato sentir-se-á sempre o repúblico malogrado que, sem amesquinhar-se em recriminações, se desforra com humor e ironia do desdém ou da boçalidade do povo soberano e dos seus dignos diretores. Na política e no jornalismo fora sempre um liberal, no mais alto e melhor sentido da palavra, mais adiantado e desabusado até que o comum dos liberais do seu tempo. Também o foi em literatura romanticamente, apesar da gravidade do seu feitio mental, sem temor do sentimentalismo, como quem sabia que, razoado, é ainda o sentimento o melhor estímulo da inteligência e da ação humana. Antes de conhecer pessoalmente a Herculano, e do seu comércio com o maior dos portugueses contemporâneos, já tinha João Lisboa no pensamento e na escrita o estilo em que se tem querido enxergar a influência do grande escritor português. O feitio e isenção do seu caráter deu-lhe a forma tersa, límpida, em que juntou com discernimento e garbo o casticismo português aos naturais influxos do brasileirismo. É menos purista do que Sotero dos Reis e Odorico Mendes, que aliás também, em rigor, não o são. Põe muitas vezes os pronomes à brasileira, porque lhe soariam melhor e ainda se não havia inventado a cerebrina teoria de fazer de um uso geral a constante de doutos e indoutos da nossa terra, erro crasso da língua. Não refoge de todo ao neologismo pertinente nem recua ao estrangeirismo expressivo e necessário. Encontra-se-lhe por acaso uma ou outra impropriedade ou sacrifício ao uso comum. Estes senões, se é certo que o sejam, e em todo caso raros, não lhe chegam a macular a escrita ou sequer a lhe empanarem a geral formosura. Tais e maiores se nos deparam nos melhores dos chamados clássicos da língua. Esta é nele portuguesa de lei pela correção gramatical e mais pelo torneio da frase, índole, número e propriedades do vocabulário, sem indiscretas escavações arcaicas e apenas com uma ou outra afetação impertinente de classicismo. Com alumiado entendimento leu e meditou os clássicos, o que não era costume aqui, e se lhes apropriou da língua, com exata inteligência da sua evolução e fino tato de escritor de raça.

A sua obra principal, começada a publicar em 1852, é o Jornal de Timon, obra sem precedentes na nossa língua e uma das mais originais da nossa literatura. No pensamento do autor devia o Jornal de Timon ser uma espécie de revista dos «costumes do tempo» vistos através do seu temperamento, cuja austeridade lhe valia dos seus concidadãos o apodo de misantropo ou mais vulgarmente casmurro, e descritos e comentados com o seu natural humor e veia literária. Dá-se antes como «amigo contristado e abatido» do que presenciava, que como «inimigo cheio de fel e desabrimento». O «seu fim primário», porém, ficaria «sendo sempre a pintura dos costumes políticos». Mas como na nossa terra, segundo observa perspicazmente, «a vida e atividade dos partidos se concentram principalmente nas eleições, transformando assim um simples meio, em princípio e fim, de todos os seus atos, as cenas eleitorais descritas sob todas as suas relações e pontos de vista imagináveis» lhe ocuparam grande parte do Jornal. De fato este se veio a dividir em três partes, a primeira sobre as eleições nos tempos anteriores ao nosso, a segunda sobre partidos e eleições no Maranhão, e a terceira e última relativa à história desta Província e por extensão à do Brasil. Sem muita regularidade apareceu o Jornal de Timon de 1852 a 1858, sendo recebido no país, não obstante o seu tom praguento, com merecida estimação e grandes louvores. Chegou esse apreço à negação epigramática de que fosse obra de brasileiro.

A primeira parte é um bom estudo histórico, em estilo ameno e humorístico, feito não sobre expositores de segunda mão, mas das mesmas fontes originais, das eleições nos tempos antigos, médios e modernos, não só com a ciência dos documentos, mas com a intuição e sentimento da vida pública dessas épocas. O estilo é o mais adequado ao gênero de que era o autor o criador aqui, natural, prazenteiro, bem-humorado e irônico. São as mesmas, com maior personalidade, mais ironia, até mais acrimônia que às vezes chega ao sarcasmo, as qualidades de estilo da segunda parte. Esta modificação de tom lha impunha o próprio assunto, por mais de perto lhe importar. Vibram-lhe na pena por mais que o contenha o seu bom gosto e natural compostura, e lhas disfarce a ironia, as paixões que lhe agitaram a mocidade e não estavam de todo extintas nem na sua alma, nem na sociedade que lha formara. Por isso é talvez essa parte a sua obra não só mais original, porém, do puro aspecto literário, mais curiosa e mais viva. Conquanto aplicada no Maranhão, fez João Lisboa nela um comentário perpétuo do que é entre nós a vida política, cifrada como ele argutamente reconheceu, nas lutas dos partidos e nas brigas eleitorais. Tem o seu opúsculo o sinal das obras que por virtudes de pensamento e de forma não envelhecem e ficam contemporâneas de todas as eras. Refere o seu citado minudencioso e fidedigno biógrafo que, horrorizado da escravidão (a qual na sua terra, justamente mais do que em outras do Norte, apresentava mais execrando aspecto), começou João Lisboa a escrever um livro, meio história, meio romance, da escravidão no Brasil, como propaganda contra ela. Foi isto nas vésperas de 1850 ou à entrada desse decênio. Em todo caso antes do Jornal de Timon. O aparecimento da Senzala do Pai Tomé, como castiçamente vertia o Uncle Tom's Cabin, de Beecher Stowe, onde parece achou semelhanças com o seu principiado trabalho, fizeram-no desistir de continuá-lo. Havia, entretanto, em João Lisboa um romancista, e esta intenção prova que ele próprio o sentia. Provam-no, porém, melhor As eleições e os partidos no Maranhão, ruim título de uma excelente porção do Jornal de Timon, onde há cenas, diálogos, invenções, descrições, criações de tipos, figuras e situações fartamente reveladores de que não carecia João Lisboa, antes as tinha em grau relevante, das qualidades de imaginação, sem falar nas de expressão, de um bom romancista. As duas primeiras partes do mesmo Jornal, revelam em João Lisboa um pensador político e um moralista, no sentido literário dado hoje a este vocábulo, como não temos talvez outro. Os seus Apontamentos, notícias e observações para servirem à história do Maranhão, que constituem a terceira porção da obra, confirmando-lhe as qualidades literárias, descobrem-lhe peregrinos dotes de investigador, de erudito e de crítico, e fazem lastimar que como historiador não nos deixasse mais que essa curta obra fragmentária e a Vida do padre Antônio Vieira. À história do Brasil, como ela vinha sendo feita aqui, até, se não mormente, pelo mesmo Varnhagen, história burocrática e oficial, ainda com o feitio de crônicas ou anais, sem imaginação, filosofia ou estilo, desanimada e tediosa, dava João Lisboa nova feição com a sua arte de fazer viver as personagens e os sucessos, aproveitando algum rasgo mais saliente deles com que os caracterizasse, descobrindo-lhes algum aspecto mais pitoresco ou lhos engenhando com bom gosto e justo senso das cousas históricas. Mas sobretudo com um sentimento brasileiro mais íntimo e perfeito que o de Varnhagen, muito maior sensibilidade artística e capacidade literária de expressão, e, também, compreendendo melhor do que nenhum dos seus predecessores os aspectos sociais e psicológicos da História e a importância do povo nela. Certos rasgos ou questões da nossa, como o respeitante aos índios, processos de colonização portuguesa, feições e caracteres diversos da vida colonial, ninguém aqui ainda os encarara com igual compreensão da sua importância, com tanta sagacidade e inteligência como João Lisboa. Com alumiado entendimento viu a questão dos índios sem as aberrações realistas de Varnhagen, nem o sentimentalismo romântico da época, sendo muito para notar em favor da sua inteligência a isenção com que apreciou o indianismo, em seu tempo tão vigoroso, e lhe viu a falácia: «Esse falso patriotismo caboclo, espécie de mania mais ou menos dominante, escreveu ele, leva-nos a formular quanto ao passado acusações injustas contra os nossos genuínos maiores; desperta no presente antipatias e animosidades, que a sã razão e uma política ilustrada aconselham pelo contrário a apartar e adormecer; e ao passo que faz conceber esperanças infundadas e quiméricas sobre uma reabilitação que seria perigosa, se não fora impossível, embaraça, retarda e empece os progressos da nossa pátria, em grande parte dependente da imigração da raça empreendedora dos brancos, e da transfusão de um sangue mais ativo e generoso, único meio possível já agora de reabilitação». Brasileiro de origem e nascimento, brasileiro pelas mais íntimas fibras de sua alma e pelo mais profundo do seu sentimento, João Lisboa é um dos nossos primeiros europeus, pelas lúcidas qualidades do seu claro gênio, tento da civilização e desdém dos nossos parvoinhos preconceitos nativistas e ainda patrióticos.

Não obstante carecer-lhe da última demão, é a Vida do padre Antônio Vieira ainda o que de melhor se escreveu sobre o famoso jesuíta, com mais exata inteligência do homem e da sua obra de missionário e de político, e de sua época. Não fora algum exagero de liberalismo, é uma obra que se poderia dizer atual.

Nada adiantaria considerar João Lisboa sob outros aspectos do seu variado engenho. Em nenhum desmereceu, quer pela força ou destreza do pensamento, quer pelo vigor ou beleza da expressão. Mesmo como orador, que dizem fora notável, deixou no seu discurso sobre a anistia magnífico testemunho de uma viril eloqüência e da mais bela, sóbria e comovida linguagem oratória. É incontestavelmente um dos escritores que mais ilustram a nossa literatura, dos poucos que hão de viver quando, na seleção que o tempo vai naturalmente fazendo, houverem desaparecido grande parte de nomes ontem e hoje mais celebrados que o seu.

Outros nomes, menos ilustres, mas ainda estimáveis conta o grupo maranhense. São quase todos, se não todos, produto manifesto da influência destes, geração criada na sua admiração e pelo seu estímulo. Dos que têm o seu medalhão no pedestal da estátua de Gonçalves Dias, é Gomes de Sousa o único sem jus à história da literatura. Gomes de Souza (Joaquim) é de 1829 a 1863. Os seus contemporâneos tiveram-no em conta de gênio. Aos dezenove anos, já formado em medicina, foi nomeado, após brilhante concurso, professor da Escola mais tarde denominada Politécnica, e, parece, deu outras provas da sua extraordinária inteligência, rara capacidade de estudo e variedade de aptidões. Morrendo aos 34, não deixou mais que uma pequena obra fragmentária de matemática e uma antologia de poemas líricos das principais línguas cultas. Foi apenas uma bela e porventura legítima esperança malograda, mas de fato sem importância literária.

Lisboa Serra (João Duarte, 1818-1855). Contemporâneo em Coimbra de Gonçalves Dias e seu amigo dedicadíssimo, a quem este deveu amparo quando se achou isolado e sem recursos em Portugal. Poetou com longos intervalos e parcamente, mas com bastante sentimento e correção. Galvão de Carvalho (Trajano, 1830-1864). Andou sucessivamente a estudar por Portugal, S. Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, onde afinal se formou e ficou. Havia nele a massa de um bom, talvez excelente poeta, com muita sensibilidade e facilidade de expressão. Foi um dos primeiros que aqui cantou compassivamente o escravo. Cantou igualmente a paisagem, a vida campesina e cousas brasileiras, com sentimento e graça. Franco de Sá (Antônio Joaquim, 1836-1856). É poeta de grande sensibilidade e sinceridade de emoção e rara facilidade e singeleza de expressão, qualidades que a morte, colhendo-o aos vinte anos, lhe não deu tempo de cultivar.

Desvanece-se ainda o Maranhão com os nomes de Almeida Braga (Flávio Reimar), Celso de Magalhães, Marques Rodrigues, Dias Carneiro, Augusto Colin, Frederico Correia, Frei Custódio Ferrão, Vieira da Silva, Sousa Andrade, Antônio Henriques Leal, homens de letras ou de saber, todos que com obras de vários gêneros e mérito continuaram até perto de nós o movimento literário da sua província pelo grupo primitivo iniciado.

Este grupo é contemporâneo da primeira geração romântica toda ela de nascimento ou residência fluminense. O que o situa e distingue na nossa literatura e o sobreleva a essa mesma geração, é a sua mais clara inteligência literária, a sua maior largueza espiritual. Os maranhenses não têm os biocos devotos, a ostentação patriótica, a afetação moralizante do grupo fluminense, e geralmente escrevem melhor que estes.

Capítulo XII

A segunda geração romântica. Os prosadores

Na prosa, um nome principalmente domina a fase literária que das últimas manifestações do primeiro Romantismo vai às primeiras do que, à falta de melhor nome, chamarei de naturalismo: José de Alencar. O seu aferro ao indianismo quando este já começava a ser anacrônico, os estímulos e propósitos nacionalistas da sua atividade literária, a despeito da cronologia o poriam espiritualmente na primeira geração romântica se, por outro lado, as qualidades peculiares do seu engenho, estro e estilo não o separassem dela. É uma das principais figuras da nossa literatura e, com Magalhães e Gonçalves Dias, um dos seus fundadores. Mais talvez, porém, que pelo valor intrínseco de sua obra, em todo o caso grande, serviu-a com a sua vontade decisiva de fazê-la de todo independente da portuguesa. Este propósito o arrastou, aliás, além do racional e do justo, com as suas desarrazoadas opiniões e, o que é pior, a sua desavisada prática, da língua que devíamos escrever e do nosso direito de alterar a que nos herdaram os nossos fundadores. Apesar da obstinação que pôs neste conceito, sobretudo depois que os escritores portugueses lhe malsinaram o propósito nacionalista, e sem embargo de incorreções manifestas, algumas aliás voluntárias, foi José de Alencar o primeiro dos nossos romancistas a mostrar real talento literário e a escrever com elegância. Afora os prosadores maranhenses, escritores entretanto de outros gêneros, é ele cronologicamente o primeiro que por virtudes de ideação e dons de expressão mereça plenamente o nome de escritor.

José Martiniano de Alencar, nascido no Ceará em 1 de maio de 1829 e falecido no Rio de Janeiro em 13 de dezembro de 1877, vinha de uma família antiga e notável pela comparticipação que naquela Província, seu berço, tivera nos movimentos da Independência, por amor da qual alguns dos seus sofreram perseguições, punições e até morte. Seu pai, o padre José Martiniano de Alencar, participou na Revolta Pernambucana de 1817, foi deputado às Cortes portuguesas e nelas se distinguiu pelo calor com que combateu pelo Brasil contra o pensamento português da sua recolonização. Ao diante membro da Constituinte brasileira, foi um dos deportados por motivos políticos. Havia, pois, no filho, o escritor, uma herança de revolta, de independência de Portugal e até de má vontade ao português. Ele também foi político, deputado da sua terra, ministro e conselheiro de Estado, figura conspícua num partido, o conservador. Pela natureza aristocrática do seu temperamento e do seu espírito, por tradição de família, que, a despeito dos seus antecendentes revolucionários, era, de partido, conservadora, foi José de Alencar, revolucionário em letras, conservador em política. Num país novo como o Brasil, onde nenhuma tradição existia, e todos os instintos políticos eram de ontem e de empréstimo, nada de importante havia a conservar. As diferentes alcunhas dos partidos apenas cobriam e disfarçavam sentimentos, interesses ou até paixões pessoais ou de grupos, sem alguma correspondência efetiva com princípios necessários e definidos. Como era um nervoso, um pessoal, esquivo à popularidade que, contradição muito humana, acaso no íntimo ambicionava, chegava às vezes, quiçá por influência literária dos escritores políticos ingleses, ao exagero do seu conservantismo. Assim foi adversário da emancipação dos escravos quando já não o era nenhum intelectual brasileiro. Político conservador, mostrou-se todavia indócil à disciplina partidária, pretendendo inconsideradamente manter a sua personalidade de encontro às exigências dessa disciplina. Fazendo-se um nome literário justamente glorioso, à sua nativa altivez, virtude dos tímidos, como ele, e que nele escorregava para a misantropia, juntou-se a incoercível vaidade do literato, tornando-o menos acomodativo na vida pública e mais distante na vida comum. Num meio como o nosso, mal-educado, fácil à camaradagem vulgar e avesso às relações cerimoniosas, a sua atitude reservada, esquiva à familiaridade corriqueira do nosso viver, impediu-lhe de ser pessoalmente popular, como foi, por exemplo, Macedo, seu êmulo e seu contraste. Desarrazoadamente doía-lhe, ao que parece, esta falta de popularidade, à qual aliás, honra lhe seja, nunca sacrificou a sua atitude. Tudo isto lhe serviu entretanto não só à formação da sua personalidade literária, mas de estímulo a um labor que foi um dos mais fecundos das nossas letras. Nascido e criado no sertão, ainda então pouco menos que bravio, do Ceará, onde se não haveriam de todo desvanecido as memórias do antigo íncola, tendo ainda sangue deste nas veias, sentindo portanto mais fortemente essa espécie de brasileirismo caboclo que o Romantismo acoroçoara, comparticipando da ojeriza de família ao conquistador, explica-se que José de Alencar haja serodiamente se rendido ao indianismo, rejuvenescendo na sua inspiração e instaurando-o na prosa brasileira, quando ele se morria na poesia. Certo, são justamente da década de 50 a 60 a Confederação dos Tamoios e os Timbiras, as duas manifestações mais consideráveis do indianismo. Mas, vindo após as «poesias americanas» de Gonçalves Dias, eram apenas um caso de movimento adquirido. Os Timbiras, desde meados de 1847, estavam planejados e o seu primeiro canto escrito. Havendo Gonçalves Dias e outros seus companheiros de geração composto ficções em prosa, nenhuma fizera em cujo assunto o elemento fosse o índio, pois não vale a pena lembrar o mesquinho Sumé, de Varnhagen.

É esta a primeira distinção de José de Alencar, introduzir no romance brasileiro o índio e os seus acessórios, aproveitando-o ou em plena selvageria ou em comércio com o branco. Como o quer representar no seu ambiente exato, ou que lhe parece exato, é levado a fazer também, se não antes de mais ninguém, com talento que lhe assegura a primazia, o romance da natureza brasileira. Protraindo-se nele, através de Chateaubriand, o sentimentalismo de Rousseau, exageradamente caroável ao homem selvagem, fez este romance do índio e do seu meio com todo o idealismo indispensável para o tornar simpático. E fá-lo de propósito por contrariar a imagem que dele nos deixam os cronistas e que os seus atuais remanescentes embrutecidos não desmentem. Nesse romance havia de ficar, pela sinceridade da inspiração e pela forma, a mais bela que até então se aqui escrevera, o mestre inexcedível.

Estreou em 1857 com uma obra-prima, que infelizmente não mais se repetiria em sua carreira literária, o Guarani. Na literatura brasileira dá-se freqüentemente o caso estranho de iniciarem-se os escritores com as suas melhores obras e estacionarem nelas, se delas não retrogradam. O fato passou-se com Alencar com o Guarani, com Macedo com a Moreninha, com Taunay com a Inocência, com Raul Pompéia com o Ateneu, com o Sr. Bilac com as suas primeiras Poesias, e se esta acaso passando com o Sr. Graça Aranha com o seu Canaã. As obras-primas, como já foi dito, fazem-nas também o tempo, e o tempo não faltou com esta sua virtude ao romance de Alencar. E legitimamente. Além da imaginação criadora da invenção do drama, da sua urdidura e desenvolvimento, da traça dos episódios, da variedade e bem tecido das cenas, da invenção das figuras, da vida insuflada numa ficção de raiz falsíssima, a ponto de no-la fazer verossímil e aceitável, levava o Guarani tal vantagem de composição, de língua e estilo a todos os romances até então aqui escritos que, sob este aspecto, pode dizer-se que criava o gênero em a nossa literatura. É para a nossa ficção em prosa o que foram os Primeiros cantos de Gonçalves Dias para a nossa poesia. E se em literatura a verdadeira e legítima prioridade não é a do tempo, senão a da qualidade e repercussão da obra, Alencar é o criador de um gênero em que Teixeira e Sousa e o mesmo Macedo haviam apenas sido os precursores, como quer que sejam ainda canhestros. A de todo falsa ou inverossímil fabulação, o desmedido idealismo, o demasiado romanesco, vícios da escola aqui, mas também efeitos de temperamento literário do autor, de tudo o salva o largo e belo sopro épico, que, casando-se perfeitamente com a inspiração lírica, quase faz do Guarani o romance brasileiro por excelência, o nosso epos. Como representação, por um idealista de raça, do choque em o nosso meio selvagem do conquistador e do indígena, da oposição dos dous e dos sentimentos que encarnavam, e mais da vitória da graça da civilização sobre a selvageria, como o romance brasileiro de intenção, de assunto, de cenário e mais que tudo de sentimento, ficaria o Guarani como um livro sem segundo na obra de Alencar e talvez em a nossa literatura.

A inclinação dos românticos aos estudos históricos foi uma, e talvez a melhor das manifestações do sentimento patriótico que aqui se gerou da Independência. Deu-lhe corpo, estimulou-a, favoreceu-a a criação do Instituto Histórico, onde se procurou assídua e zelosamente estudar a nossa história, menos talvez por curiosidade e amor de sabê-la que por, mediante ela, justificar e exaltar aquele sentimento. O melhor fruto desse bom trabalho de pesquisa das nossas origens e da nossa vida colonial foi a História geral do Brasil, de Varnhagen, de 1857. Nesta rebusca dos seus títulos históricos, da sua genealogia nacional e principalmente de quanto neles pudesse legitimar-lhe o orgulho ou as aspirações patrióticas, é natural que as imaginações se alvoroçassem na ambição de idealizar o nosso passado. Tanto mais que se estava em plena voga do romance histórico, de que a literatura da nossa língua possuía já alguns modelos então estimadíssimos. Criando o romance brasileiro, Teixeira e Sousa, sem lhe ser estorvo a pouquidade do seu engenho e da sua cultura, ensaiou também o romance histórico nas Fatalidades de dous jovens, «recordações dos tempos coloniais». Este mesmo subtítulo traziam as suas Tardes de um pintor. Macedo, que aliás se abonava de historiador, e fazia história pitoresca, só muito tarde, em 1870, escreveu romance histórico. O gênero abundou aqui depois dos anos de 40. Cultivaram-no Pereira da Silva, Moreira de Azevedo e vários outros autores somenos. Pode dizer-se que foi uma das feições do nacionalismo dominante no período romântico este gosto pelo chamado romance histórico.

Dele resultava também o Guarani, pois pela figura vagamente histórica de D. Antônio de Mariz e representação de um aspecto da vida colonial, se podia presumir de histórico. As minas de prata, sete anos posteriores ao Guarani, continuam-lhe, com mais acentuada intenção de romance histórico, o mesmo propósito de tomar o Brasil e aspectos brasileiros tradicionais, pitorescos ou sociais, como principal tema literário, acaso o único convinhável a uma literatura verdadeiramente nacional. Este conceito parece ter sido, com algum exclusivismo, o de Alencar, de seus discípulos e admiradores e até de antagonistas seus, o que é o maior documento da impressão que ele fez no seu meio. É, entretanto, errado. Certamente neste período de formação das nações americanas, carecedoras ainda de um real sentimento ou pensamento próprio, o que pode dar à sua literatura alguma diferença e sainete é a representação das feições pitorescas que lhes são peculiares. Nada obsta, porém, que também aquelas que lhes são comuns com outras sociedades mais antigas e já formadas, como as européias, possam ter o interesse literário, e que não haja na alma elementar destes povos primários aspectos dignos de atenção da literatura. Há sempre num povo alguma cousa de íntimo que lhe é próprio, como no indivíduo algo recôndito e importante que o distingue. Ao escritor cabe descobri-lo e revelá-lo e à literatura representá-lo em suas relações morais e sociais.

Sabemos as sugestões de Chateaubriand, de Walter Scott, de Cooper, a que Alencar, como todos os autores de romances americanos de intenção histórica, obedecia. A crítica que mais tarde procurou diminuir Alencar contrapondo-lhe este e outros predecessores, nomeadamente o primeiro, criador do indianismo na mais moderna ficção americana em prosa, foi de todo ininteligente, acaso por ser de todo malévola. Muito embora seguindo trilhas já por outros abertas, José de Alencar o fez com sentimento diferente e próprio, inspiração pessoal e individualidade e engenho bastantes para assegurar-lhe, do ponto de vista da história da nossa literatura, créditos de original. Iracema (1865), Ubirajara, chamados pelo autor de «lendas tupis» são dois romances poéticos; a mais de um respeito dous poemas em prosa. E só como tal aceitáveis, pois apesar da cândida presunção contrária do autor, não é possível maior contrafação da vida, costumes, índole e linguagem do índio brasileiro, nem mais extravagante sentimento do que é o selvagem em geral e do que era particularmente o nosso. Porfiam nestes dous romances as mais disparatadas imaginações com as mais flagrantes inveros- similhanças etnológicas, históricas e morais. Imitados por escritores somenos, que não tinham a sincera inspiração de Alencar nem o seu engenho, foram estes os únicos que dessa literatura ficaram. Mais que a intenção nacionalista ou o preconceito indianista, já periclitante à publicação do último, deixaram-se os leitores tocar pela falaciosa mas sedutora poesia que neles havia, e que ainda não passou de todo.

Como a da maioria dos literados brasileiros, a formação literária de Alencar era, sobre deficiente, defeituosa. Se a falta de uma educação literária sistemática houvesse de ser motivo de espontaneidade e originalidade, raras literaturas poderiam mais que a nossa mostrar estas qualidades. Confessa José de Alencar, aliás em páginas bem insignificantes, que após estudos clássicos malfeitos, como foram sempre os nossos dos chamados preparatórios, os livros que leu foram maus romances franceses, Amanda e Oscar, Saint-Clair das Ilhas, Celestina e quejandos em ruins traduções portuguesas. Leu-os e os releu e, reconhece ele próprio, foi essa leitura que lhe influiu a imaginação, cuja herança atribui à mãe, para se fazer romancista. Mais tarde, já estudante de um curso superior, mas ainda entendendo mal o francês, leu no original e desordenadamente Balzac, Vigny, Dumas, além de Chateaubriand e Victor Hugo. Daquelas primeiras leituras de romances romanescos traduzidos na intenção das damas sentimentais, lhe ficaria sempre o conceito -que foi aliás o de toda a nossa romântica até o naturalismo- que o romance é uma história puramente sentimental, cujos lances devem pela idealização e romanesco nos afastar das feias realidades da vida e servir de divertimento e ensino. É uma história principalmente escrita em vista das senhoras. O romanesco, freqüentemente de uma invenção pueril e de uma sentimentalidade que frisa à pieguice, foi com Alencar, com Macedo, com Bernardo Guimarães e ainda com Taunay, sem falar em menores, a feição predominante -feição que no-lo torna hoje geralmente despiciendo- do romance brasileiro até o Naturalismo ou melhor até Machado de Assis, que ainda em antes deste se libertara desse vezo. Um ou outra exceção, embora relevante, como a de Manoel de Almeida, e do mesmo Machado de Assis desde as suas primeiras novelas e contos, não foi bastante para alterar aquele tom muito no gosto do público. Foi nele, ora mais ora menos acentuado, que Alencar escreveu as novelas e romances com que desde 1860 iniciara, em Cinco minutos, o romance da nossa vida civilizada e mundana e ainda um vago esboço do que viria a chamar-se romance psicológico. Para este romance faltavam-lhe porém dons de aguda observação que o gênero presume e também acaso o gosto de as fazer, pelo que lhe deparariam de antipático e até molesto ao seu idealismo. Só isto impediu de ser aqui o criador dessa forma. Simultaneamente, sem descontinuar fazia -é bem a expressão tratando-se deste idealista da gema- o romance da vida mestiça brasileira, do nosso meio provinciano ou sertanejo, com a sua paisagem, os seus moradores, os seus costumes, as suas atividades peculiares. No Gaúcho (1870), no Tronco do ipê (1871), no Til (1875), no Sertanejo (1876), essa vida é recontada não conforme uma visão natural das cousas, mas segundo o conceito que já fora confessadamente o do Guarani, «um ideal que o escritor intenta poetizar» e cuja prática o arrasta, como em todos eles, a frioleiras ou a monstruosidade de imaginação e de estética. Não obsta que não haja também nesses livros a realidade superior que a mesma poesia cria.

A incapacidade de ficar na realidade média, que a ficção para nos interessar exige, e não só realidade de ação, mas de expressão e de emoção, empeceu Alencar de ser um melhor, mesmo um bom autor dramático. Como tal estreou em 1857, no mesmo ano do Guarani, com o Demônio familiar, que é porventura também a sua melhor obra de teatro. Realmente pouco falta a esta peça para ser, como comédia de costumes e representação de um dos percalços dos nossos de então, uma obra excelente e mal chega a ser uma peça de conta. Para o teatro, principalmente, levou Alencar as predisposições moralizantes que, sobre serem muito do gosto do nosso Romantismo, excetuados os poetas da segunda geração romântica, são da índole do gênero. Todo o seu teatro as revela. Acentua deliberadamente as preocupações morais e didáticas com que nascera o nosso teatro, apenas em Martins Pena atenuadas pelo caráter de farsa do seu e pelo que havia na sua veia de nativo e popular. O fito do teatro, segundo se lhe depreende da obra, deve ser a discussão dos problemas de ordem moral que interessam a sociedade contemporânea. Esta é aliás a concepção do teatro posterior ao Romantismo, desde a dramaturgia burguesa dos franceses, mestres do gênero, até a de Ibsen, Tolstói ou Sudermann. As Asas de um anjo, representadas em 1858, exageravam este propósito moralizador até exceder os limites necessários dos direitos da arte. Manifestamente inspirada das peças congêneres então no galarim A Dama das camélias e as Mulheres de mármore, com as quais o mesmo autor as compara, tem confrontadas com estas inferioridades e defeitos palmares. São os mais sainetes, a desconformidade com o meio, que certamente não comportava o drama (não sei por que o autor lhe chamou comédia) qual o concebeu e realizou o escritor, artificialidade dos processos, da composição, do estilo, tudo resultante daquela mesma desconformidade. Nem tem como aquelas peças, que evidentemente lhe serviram de estímulo e modelo, não só a arte consumada do dramaturgo, mas a, ainda mais relevante, do escritor. Custa a dizer, mas é a verdade: toda a filosofia teatral de Alencar, nesta como em suas outras peças, é uma coleção de lugares-comuns, não levantados infelizmente por excelências de expressão. Não pode ser outro, penso, o nosso juízo de hoje, mas no seu tempo a obra dramática de Alencar era aqui uma novidade de concepção e de estilo. Ao teatro de costumes de Pena e de Macedo traz José de Alencar o teatro de teses, de idéias, com propósitos não só de moralista vulgar, mas de pensador e em suma com melhor estilo que aqueles. Se não tem o engenho cômico dos dous e o dramático do segundo, o sobrelevava a ambos em qualidades propriamente literárias. Compreende a obra teatral de Alencar sete peças, cinco comédias e dous dramas, sem falar numa comédia lírica ou libreto de ópera, ao todo uns trinta atos que pelo menos provam nos autores do nosso teatro romântico maior imaginação e capacidade do gênero do que têm mostrado os que lhe sucederam.

Dessas peças, a última que escreveu e fez representar foi o Jesuíta, pelos anos de 70. Na sua obra dramática não será talvez a melhor, mas é porventura a mais forte, a mais trabalhada, aquela em que o autor deu mais de si, em que é mais evidente o seu esforço de fazer uma grande obra de teatro. Infelizmente assentou-a numa concepção do jesuíta, se não falsa, contrária ao conceito comum desse tipo, e faltou-lhe engenho para vencer a nossa prevenção. Há no entretanto no seu drama, mais talvez que em nenhuma outra das suas peças, qualidades estimáveis e ainda relevantes de simplicidade de meios, de expressão e de emoção. Afora as suas práticas sistemáticas no escrever a língua, tem a sua, nesta, qualidades que lhes suprem e escondem os defeitos neste particular. O drama é bem feito, se bem a sua inspiração paradoxal -um jesuíta precursor da Independência do Brasil- pareça de todo falsa. Ou ao autor faltou com que dar-lhe a verossimilhança que a ficção dramática exige.

José de Alencar foi ainda crítico, publicista, orador parlamentar e jurisconsulto. Da sua atividade como crítico, principalmente exercida em breves artigos de jornais, só ficaram em livro as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios (1856), mera censura impressionista, freqüentemente desarrazoada, de inspiração demasiado pessoal, dos defeitos do poema de Gonçalves de Magalhães. É como publicista principalmente que Alencar se assinalou fora do romance, e que mostrou, além de vigor dialético, brilho e elegância de forma não comum no gênero até ele. Estreou nele com as desde logo célebres Cartas de Erasmo, dirigidas anonimamente ao imperador, cuja primeira edição é de 1865. Outras com a mesma epígrafe, o mesmo endereço, ou também escritas a outros destinatários, como o povo e alguns próceres da política, saíram ainda em 1866 e 68. Da primeira série houve segunda edição, de Paris, no mesmo ano, e terceira do Rio de Janeiro, em 1866, o que indica a atenção e interesse que despertaram. Além de opúsculos de caráter político ou de discussão de teses constitucionais, deixou um livro, O sistema representativo, sobre este assunto. Para orador não tinha figura, nem voz, nem porte, mas compensava com grande vantagem estas falhas, pelas qualidades literárias dos seus discursos, ciência doutrinária e notáveis recursos de ataque e defesa, ironia mordente e até acerado sarcasmo de que na tribuna era pródigo. Com isto conseguiu no seu tempo renome de orador parlamentar notável, que os seus discursos publicados confirmam. A sua obra de jurisconsulto, que os competentes ainda estimam, são, afora alguns opúsculos de advocacia, A propriedade e esboços jurídicos, ambas publicações póstumas de 1883. Toda esta porção da sua atividade intelectual lhe verifica o engenho, poderoso e versátil, mas sob o puro aspecto literário, principalmente provado no romance, não teria bastado para lhe criar o nome que este lhe deu.

Como romancista, a sua produção oferece duas fases, das quais a segunda é, se não de declínio, de relativa inferioridade. Ele próprio parece o haver sentido quando, desde 1870, trocou o seu nome já ilustre pelo pseudônimo de Sênio, declarando-se velho da velhice não do corpo, feitura dos anos, mas da alma, gerada das desilusões. «Há duas velhices -escrevia tristemente à frente do Gaúcho, publicado aquele ano-: a do corpo, que trazem os anos, e a da alma, que deixam as desilusões. Aqui onde a opinião é terra sáfara e o mormaço da corrupção vai crestando todos os estímulos nobres, aqui a alma envelhece depressa. Ainda bem! A solidão moral dessa velhice precoce é um refúgio contra a idolatria de Moloch.» Tinha apenas quarenta e um anos quem estas desenganadas palavras escrevia. As desilusões lhas dera a política, criando-lhe ambições que lhe não deixou satisfazer. Artista nervoso e nimiamente suscetível, um sensitivo, alma de impressionabilidade doentia, não soube Alencar sofrer com isenção e superioridade o malogro das suas ambições políticas, mais quando vinha acompanhado da negação dos seus talentos literários e da sua obra, em arremetidas açuladas pelos mesmos com quem o seu temperamento irritadiço, quiçá vaidade de intelectual que se não dissimulava bastante, o tinham politicamente incompatibilizado. Com a recusa do imperador de o escolher senador na lista sêxtupla em que tinha o primeiro lugar, recusa inspirada num alto sentimento de moral pública, pois Alencar era ministro na ocasião do pleito, com a sua desavença com os seus correligionários, coincidia a guerra já aludida que ao literato fizeram Franklin Távora e José de Castilho e outros, seguindo-se-lhe os primeiros ataques da crítica (Joaquim Nabuco, Sílvio Romero), aos quais se mostrou mais que de razão sensível. E ele que em opúsculos políticos, nomeadamente nas Cartas de Erasmo, a sua principal obra de publicista, se mostrava um devotado imperialista e havia feito, com a apologia do imperador, a defesa do poder pessoal, que lhe argüiam, e até preconizado o uso deste poder, agora, por uma reviravolta vulgar nos nossos temperamentos de impulsivos, atribuindo ao monarca todos os seus dissabores, encheu-se de ódio contra ele, desdisse-se e contradisse-se, em demasia entregue a este abalo moral. Como quer que seja o melhor da sua obra literária, é justamente a anterior a este período, o Guarani, as Minas de prata, as novelas de 1860, Lucíola, Diva, Iracema. Há nas que vêm após aquela crise um gosto malsão do extravagante, mesmo do monstruoso, uma afetação do desengano e de desilusão, que lhe revê a chaga da alma malferida. O Gaúcho, Til, a Pata da gazela e ainda o Tronco do ipê são disso documento. E voltando ao romance histórico, de que dera em Minas de prata o nosso mais perfeito exemplar, descai na sátira propositada e, o que é pior, feita sem talento nem finura. A Guerra dos mascates (1871), onde, com o imperador, quase sem disfarce encarnado no governador de Pernambuco, figuram alguns magnates da política grossamente caracterizados e outros contemporâneos de algum destaque, é antes um panfleto que um romance histórico. E como obra d'arte é a todos os respeitos inferior, sem que a execução lhe desculpe a má sortida inspiração.

A obra propriamente literária de Alencar, romance e teatro, fundamento do seu renome, é, a despeito das restrições que se lhe possam fazer, valiosa. Mas só as suas virtudes estéticas não lhe assegurariam a proeminência que nas nossas letras ele tem, não fora a sua importância e significação na história da nossa literatura. A vontade persistente de promover a literatura nacional, o esforço que nisto empenhou, a mesma cópia e variedade desta obra, mais talvez que o seu valor propriamente literário, lhe asseguram e ao seu autor lugar eminente nesta história. A sua porção principal, onde se nos deparam três ou quatro livros porventura destinados a perdurar, são os romances e novelas de antes de Sênio, compreendida Senhora, não obstante a sua data (1857). Não possuindo a língua com seguro conhecimento, tinha Alencar, entretanto, com um fino sentimento dela, dons naturais de escritor que o distinguiram, desde que apareceu, entre todos os seus contemporâneos, antes que Machado de Assis, sob este aspecto ao menos, os excedesse a todos. Mas com essas qualidades nativas, alguma afetação e certos amaneirados de estilo, aumentados na fase de Sênio. As críticas geralmente justas feitas à sua linguagem não tiveram senão o efeito de lhe exacerbarem o orgulho ou vaidade literária. Pôs-se a estudar a língua mais com o propósito de encontrar nesse estudo antes justificativa do que emenda dos seus defeitos de escritor, nos quais desarrazoadamente e com dano da sua literatura perseverou do mesmo passo acoroçoando com o seu exemplo ilustre a funesta intrusão individual em o natural desenvolvimento da língua. Há no estilo de Alencar, colorido, sonoridade, mesmo música, eloqüência, emoção comunicativa, mas há também ênfase e mau gosto. Como escritor faltava-lhe, pode dizer-se inteiramente, espírito, que parece apenas revelou nas discussões parlamentares, onde aliás os seus ataques e réplicas são mais aceradas que espirituosas. Como Herculano, segundo lhe reprochou Camilo Castelo Branco, Alencar era de uma insulsez além do que se permite ao escritor público. Daí o malogro do seu romance caricatural da Guerra dos mascates, e a fraca vida das suas comédias. Foi-lhe acaso funesto o ter começado por uma obra-prima, muito admirada e celebrada e lhe haver faltado o bom espírito de se não embevecer do seu sucesso, aliás merecido.

Três anos antes do Guarani, com que José de Alencar retaurava nas nossas letras a inspiração pseudonacionalista do indianismo periclitante, aparecia o primeiro volume das Memórias de um sargento de milícias, por «Um Brasileiro». O pseudônimo está revendo a preocupação nacionalista que era ainda por muito a da literatura do tempo e da qual Alencar se vinha justamente fazer o arauto convencido. Também o era o das Memórias de um sargento de milícias, mas depurado do preconceito indianista. Assentava antes numa intuição mais justa do objeto da nossa ficção.

Como Macedo quando escreveu a sua Moreninha, o autor era um estudante de medicina, jornalista, redator do Correio Mercantil, então um dos mais literários do Rio de Janeiro, Manoel Antônio de Almeida, nesta cidade nascido em 1830. Formado em 1857, no ano do Guarani, dos Tamoios e dos Timbiras, pouco depois, em 1861, pereceu num naufrágio indo de viagem para Campos. Com ele, pode dizer-se, naufragou a talvez mais promissora esperança do romance brasileiro. Pouco falta, com efeito, às Memórias de um sargento de milícias para serem a obra-prima do gênero na fase romântica. É original como nenhum outro dos até então e ainda imediatamente posteriores, aparecidos, pois foi concebido e executado sem imitação ou influência de qualquer escola ou corrente literária que houvesse atuado a nossa literatura, e antes pelo contrário a despeito delas, como uma obra espontânea e pessoal. Em pleno Romantismo, aqui sobreexcessivamente idealista, romanesco e sentimental também em excesso, o romance do malogrado Manoel de Almeida é perfeitamente realista, ainda naturalista, muito antes do advento, mesmo na Europa, das doutrinas literárias que receberam estes nomes. Não pertence a nenhuma escola ou tendência da ficção sua contemporânea, antes destoa por completo do seu feitio geral. É uma obra inteiramente pessoal em relação no meio literário de então. Antes de ninguém, pratica no romance brasileiro e pode afirmar-se que a pratica com suficiente engenho, mais que a pintura ou notação superficial, a observação a que já é lícito chamar de psicológica do indivíduo e do meio, a descrição pontual, sem preocupações de embelezamento dos costumes e tipos característicos, a representação realista das cousas, sem refugir, o que haveria escandalizado a Macedo e Alencar, mesmo aos seus aspectos mais prosaicos e até mais repugnantes, mas evitando sempre tanto as cruezas que trinta anos depois haviam de macular o naturalismo indígena, no seu grosseiro arremedo do francês, como os fingimentos e afeites com que presumiam aformosear a nossa vida e a sua literatura os romancistas seus contemporâneos. A língua e o estilo deste romance, menos trabalhados que o de Alencar e menos desleixados que os de Teixeira e Sousa e Macedo, tem, se não maior correção (e a sua é certamente maior que a destes últimos), mais fluência e espontaneidade e mais personalidade.

Acaso foram estas feições, que hoje revelam aos nossos olhos este romance, a causa dele não ter tido na nossa literatura a influência merecida. O gosto e a inteligência do público àquela data iam preferentemente às qualidades opostas às que agora nos parecem constituir o mérito. Habituado ao romance romanesco e moralizante qual era não só o nosso, mas o português nessa época, em rever-se embevecido nas concertadas criações dos seus romancistas, não se podia o público enfeitiçar com um romance que para o seu gosto tinha o defeito de ser demasiado real e desenfeitado. Este seria também o sentimento dos próceres do Romantismo, então com toda a autoridade na opinião literária nacional. Parece indicá-lo o fato do Brésil littéraire, de Wolf, sabidamente inspirado por Magalhães e Porto Alegre, não aludir sequer às Memórias de um sargento de milícias, e ao seu mal-aventurado autor, nem o representar na antologia, onde tanta cousa péssima vem, que adicionou ao seu livro. O desaparecimento de Manoel de Almeida, quase imediato à publicação do seu romance, o triunfo inconteste da romântica de Alencar, prejudicariam essa obra até então a mais original e a mais viva da nossa ficção e lhe impediriam de ter a influência que nela merecia ter tido e que porventura lhe daria outra e melhor feição. A sua reedição em 1862, por Quintino Bocaiúva, ainda todo devotado às nossas letras, embora provando que a certos espíritos não era o seu valor desconhecido, ainda encontrou a opinião pública a mesma em matéria literária. Só muito mais tarde, quando o naturalismo entrou a desbancar o Romantismo que aqui se procrastinava, se começaria a ver no romance de Manoel de Almeida e precursor indígena, mas sempre desconhecido, da romântica em voga.

Simultaneamente com Alencar, dous romancistas principalmente disputavam a atenção do nosso público, Joaquim Manoel de Macedo e Bernardo Joaquim da Silva Guimarães. Cronológica e literariamente, Macedo pertencia à primeira geração romântica. Era um genuíno produto daquele momento e meio literário, e foi na sua plena vigência que estreou nas letras, iniciando do mesmo passo com Teixeira e Sousa o romance, e com Martins Pena e Magalhães o teatro brasileiro. Escritor copiosíssimo como, excetuado presentemente o Sr. Coelho Neto, não tivemos outro, Macedo, aliás sem jamais progredir nem variar, ultrapassou a sua época e foi ainda o mais abundante dos prosistas da segunda geração. Sem falar dos seus livros de história ou de crônica e numerosos escritos políticos e literários dispersos em jornais e revistas, tudo geralmente insignificante, são da fase ocupada por esta geração (1850-1870) os Romances da semana, O culto do dever, A luneta mágica, As vítimas algozes, Nina, As mulheres de mantilha, A namoradeira, A baronesa do amor, para não citar senão os, aos menos pelo tomo, mais consideráveis. E no teatro, excetuado o Cego, que é de 1849, é desta mesma fase toda a sua abundante literatura dramática. Mas quer no romance, quer no teatro. Macedo não fez mais ainda na véspera ou já em pleno dia do naturalismo que continuar, por inércia, o movimento adquirido com a primeira geração romântica. Esta imobilidade, que não basta à inspiração social de Vítimas algozes, e de alguma sua peça de teatro, para desmentir, decididamente o fixa nesta geração, sem embargo dele ter vivido, e sempre escrevendo, até 1882. Nem a concepção do romance ou do teatro, nem o estilo de Macedo, variaram nunca do seu conceito primitivo de uma história inventada e recontada com muita poesia, ou, o que ele cria tal, para comover a sentimentalidade do leitor ou do ouvinte, com o fim de o edificar moralmente. Com este conceito, que foi o de todos os nossos românticos, sem exceção de Alencar, Macedo o realizou sem engenho que o relevasse, a sua obra é, do puro aspecto literário, de somenos valia. Há nela, porém, alguma cousa que a levanta e faz viver da vida mesquinha que ainda tem: primeiro a sua sinceridade, a sua ingenuidade na representação do primeiro meio século da nossa existência nacional, segundo a alegria que há nela, e que agradavelmente destoa da estranha tristeza de todos os seus companheiros de geração. Como quer que seja, ele tem, sem grande riqueza e força aliás, imaginação e facilidade. Como autor de teatro foi talvez o que melhor o soube fazer aqui. O desleixo com que geralmente escreveu, senão também pensou as suas obras, prejudicou-as consideravelmente em o nosso atual conceito. Mas os seus defeitos de concepção e de forma, a que somos hoje nimiamente sensível, não afrontavam os seus contemporâneos, dos quais foi um favorito. Ainda hoje é dos nossos romancistas mais lidos, se bem que às escondidas e em segredo. É o que tem sido mais repetidamente editado. E Taunay, que estreava já na terceira geração, dedicando-lhe o seu romance A mocidade de Trajano, como a um mestre, apenas exprimiu o sentimento de comum apreço pelo operoso e divertido escritor.

Bernardo Guimarães nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais, em 1827. Era filho de Joaquim da Silva Guimarães, um desses muitíssimos poetas merecidamente esquecidos de que o Brasil é abundante. Além de versejar, o pai escrevia prosa; era pequeno jornalista provinciano. Bernardo Guimarães encontrou, pois, uma tradição literária na família. Devia-lhe avultar a herança e comunhão da Sociedade Acadêmica de S. Paulo, cuja Faculdade de Direito, no tempo em que a freqüentou, era um foco de atividade intelectual. Ali teve por colegas e companheiros Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e outros jovens poetas e escritores. Segundo a tradição constante, ele, como aliás tantíssimos outros dos nossos doutores, tudo fez menos estudar. Depois de formado, foi sucessivamente magistrado em Goiás, professor de Retórica e Filosofia na sua terra e jornalista no Rio de Janeiro. Fixando-se mais tarde na sua Província, aí exerceu quase toda a sua atividade literária, que não foi pequena. Como prosador, Bernardo Guimarães começou, ao que parece, pela crítica, feita em jornais em que escrevia no Rio. Não sabemos o que vale a sua crítica. Como ele não perseverou nela e não deixasse como crítico obra por que o avaliemos, pouco nos importa sabê-lo, rebuscando jornais velhos.

Muito mais que Alencar e acaso mais até que Macedo, Bernardo Guimarães, como romancista é um espontâneo, sem alguma prevenção literária, propósito estético ou filiação consciente a nenhuma escola. É um contador de histórias no sentido popular da expressão, sem a ingenuidade, às vezes excelente, destes, porque em suma é um letrado, e as suas letras lhe viciam a naturalidade. Se o seu primeiro romance, O ermitão do Muquem, é um «romance brasileiro», segundo a classificação costumeira, com grandes laivos indianistas, é porque essa era a corrente do momento e também porque se lhe deparou, quando nos sertões goianos, um tema sobre muito próprio para impressionar a imaginação, extremamente favorável à idealização romanesca, consoante o conceito e gosto dela aqui vigentes. As datas da primeira publicação do Guarani em jornal e depois em livro, e da edição do Ermitão, autorizam a admitir a influência daquele na intenção deste. Não há nele, entretanto, influência formal do romance de Alencar, nem dos seus processos, tirante a excessiva sentimentalidade e o desmarcado romanesco, em suma a idealização descomedida, que era o achaque do tempo. Qualquer que seja a qualidade do engenho de Bernardo Guimarães, e como poeta ele é dos bons que tivemos -a verdade é que, sem literariamente ser o que chamamos um espírito original, não é um espírito imitativo e subordinado. Como poeta, não obstante ter vivido no foco da reação ultra-romântica e na intimidade espiritual do seu principal corifeu, ele conserva a sua individualidade distinta por feições que contrastam com as dos companheiros de geração; emoção e expressão mais sóbrias, sentimentalidade menos exuberante, alma e veia menos triste e ainda jovial, apenas algum alarde do ceticismo ou desesperação.

Os seus romances e novelas são todos natural e correntemente contados sem preocupação ou trabalho de escrita, mas também sem a peregrina virtude de a conseguir bela, independentemente deste esforço. Nele, como em Macedo e no geral dos nossos românticos, a espontaneidade não é a literária, e menos a que, sem grande trabalho, dá com a forma justa. Ainda menos é a que, ainda com trabalho, às vezes grande, logra, o que é o sumo da arte, iludir-nos dando-nos a impressão da facilidade. Bernardo Guimarães escreveu mal, quero dizer sem apuro de composição, nem beleza de estilo. O seu é o de todo o mundo que não cuida do que escreve, a sua língua é pobre, a sua adjetivação corriqueira, o seu pensamento trivial. São os defeitos de Macedo e ainda mais de Teixeira e Sousa, mas no escritor mineiro mais sensíveis por virem depois destes e quando a literatura nacional já tinha trinta anos de existência e de produção nunca descontinuada. Com uma justa intuição das exigências da composição literária, faltou aos nossos românticos uma crítica que os esclarecesse delas. A que aqui se começou então a fazer, provinha em linha reta da que tinha em Portugal por órgãos principais as Academias e Arcádias e os censores oficiais, uma crítica de hiperbólicos encômios, de campanudos elogios, em que os juízos tomavam por via de regra a forma de equiparações disparatadas com os autores célebres ou de assimilações antonomásticas não menos estapafúrdias. A crítica ali, aliás, oscilou sempre entre o panegírico e o vitupério, a louvaminha e a diatribe. Com a mesma índole passou ao Brasil, e os que a fizeram aqui, nos nossos primeiros jornais e revistas, como o Patriota, a Minerva, o Guanabara, Niterói, movidos do sentimento presumido patriótico de encarecer os nossos valores intelectuais, ainda lhe exageram aquela tendência atávica. A crê-los, esses nossos começos de literatura nacional seriam um acervo de obras-primas. Não fora essa crítica louvaminheira e puerilmente patriótica que teve Macedo por um gênio literário e cada uma das suas defeituosas produções por um primor, os seus seguidores e discípulos e ele próprio, que viveu mais que bastante para emendar-se, teriam necessariamente nos saído mais perfeitos. Essa crítica continuou para Bernardo Guimarães, havido no seu tempo (e ainda hoje pela opinião bairrista) por um grande romancista e escritor. O público parece aliás não lhe ter endossado o conceito, pois o Ermitão, publicado em 1859, não teve até agora mais que essa edição. E os seus outros romances não passaram igualmente da primeira, ao invés das suas poesias, que já atingiram a quarta, o que prova que o público é mais inteligente do que se nos afigura. É esta a lição da nossa história literária, que a crítica indiscretamente animadora não é só inútil, mas prejudicial. Apenas serve para produzir frutos pecos, desencaminhando atividades porventura melhor empregadas fora da literatura ou acoroçoando vaidades que se tomam por vocações. Sem embargo deste ensino, continua a ser este o conceito da crítica aqui, quando não é a diatribe ou a simples arrogância de indigesta erudição.

Na romântica brasileira, Teixeira e Sousa havia criado o gênero, iniciado o romance de costumes populares rurais ou urbanos, Macedo o continuara, mas romanceando principalmente a vida burguesa da capital, Manoel de Almeida ensaiara-se apenas, mas com engenho superior ao destes, no romance da vida carioca de um quarto de século antes, segundo o conceito tradicional, com evidente propensão e clara inteligência para a análise dos caracteres e sentimentos. Alencar, depois de se haver ensaiado na novela romanesca da vida social, iniciara o romance do «período da conquista» da «luta em que a raça invasora destrói a raça indígena» com o manifesto propósito de reabilitar o índio da má fama que lhe fizeram os cronistas, o que só idealizando-o extravagantemente podia conseguir14. Este propósito era aliás o mesmo de Magalhães, de Gonçalves Dias de outros indianistas, e o que de alguma sorte o legitimava é que a nação inteira o adotou.

Bernardo Guimarães é o criador do romance sertanejo e regional, sob o seu puro aspecto brasileiro. O meio cujo era, determinou esta tendência da sua romântica. Mas ao contrário do que se devia esperar de escritor tão familiar com o ambiente que lhe fornecia os temas, não se lhe apura nas obras a imagem exata, seja na sua representação objetiva, seja na sua idealização subjetiva. Em toda a obra romântica de Bernardo Guimarães será difícil escolher uma página que possamos citar como pintura ou expressão exemplar do meio sertanejo. Teve ele ambições mais altas que esta pintura de gênero, ensaiou-se também no romance histórico e no de intenções sociais, com o Seminarista, onde versou o caso celibato clerical, com a Escrava Isaura, em que dramatiza cenas da escravidão, com Maurício, em que tenta ressuscitar uma época histórica da vida colonial da sua província. Infelizmente os mesmos defeitos que lhe viciam os romances sertanejos lhe maculam estes, acrescidos da pobreza do seu pensamento e acaso maior insuficiência da sua expressão.

Capítulo XIII

A segunda geração romântica. Os poetas

As últimas manifestações do Romantismo com os rasgos que deram ao nosso a sua feição particular, nomeadamente o indianismo, a inspiração patriótica e o propósito nacionalista, o espiritualismo filosófico, o sentimentalismo, a religiosidade e a intenção moralizante, alcançam até meados dos anos de 60, com a publicação do Colombo, de Porto Alegre, em 1864. Ainda em antes do seu esgotamento como forma literária, surge uma nova geração de poetas e prosadores, na qual se contam alguns dos nossos principais escritores. Simultaneamente com a primeira geração romântica, mas depois desta bem estreada, isto é, após 1846, coexiste, como já relatamos, o grupo maranhense que por Gonçalves Dias, a sua mais eminente individualidade, se liga ao grupo formado no Rio de Janeiro por aquela geração. Gonçalves Dias estabelece também a transição entre essa e a seguinte. Esta apenas mui parcialmente lhe acompanhará a inspiração indianista. Sofrerá, porém, a influência da sua poética e ainda do seu sentimento poético.

Desde 1853, com as Obras Poéticas de Álvares de Azevedo, seguidas das Trovas de Laurindo Rabelo (1854), das Inspirações do Claustro de Junqueira Freire 91855), das Primaveras de Casimiro de Abreu (1859), revela-se uma nova progênie de poetas. Juntam-se-lhe os prosadores, alguns também poetas, José de Alencar, que estréia em 1857; Macedo, que vinha da primeira, mas como romancista ocupa nesta um grande lugar e como escritor dramático quase totalmente lhe pertence; Manoel de Almeida, porventura a mais promissora e infelizmente malograda esperança da novelística brasileira; Bernardo Guimarães, Agrário de Meneses se menores ou menos importantes.

Como epígonos da primeira geração de iniciadores, continuam-lhe a tradição e o labor, influídos ou não por novas idéias e conceitos literários, Pereira da Silva, Varnhagen, Macedo, Norberto Silva, além de outros somenos, contemporâneos e companheiros seus.

Principalmente distingue esta geração da precedente a sua maior liberdade espiritual, e conseqüente mais largo conceito estético, quer no seu pensamento geral, quer na sua aplicação à literatura. Aquele não é mais o estreme idealismo católico dos primeiros românticos. Ressente-se ao contrário o seu do influxo do ceticismo literário, do «satanismo», para falar com De Maistre, de Byroin, Musset e outros românticos europeus de feição menos religiosa que a do primeiro movimento na Europa e aqui. O Brasil também progredira política, econômica e mentalmente. Ao cabo da primeira metade do século, asseguradas da independência, a monarquia e a ordem, não havia mais motivo e lugar para os ardores patrióticos e as paixões nacionalistas de antes. Na geração literária que surge por esta época, e que será talvez a mais brilhante de toda a nossa literatura, entra a desvanecer-se a miragem do indianismo, que justamente por esse tempo João Lisboa, no seu Jornal de Timon, metia pela primeira vez à bulha. Apesar do grande exemplo e durável sucesso de Gonçalves Dias, e da Confederação do Tamoios, de Magalhães, publicada em 1856, nenhum poeta caiu mais nesse engano, ao menos com a convicção ou sentimento dos seus criadores na nossa literatura. Restaurou-o, ou melhor instaurou-o, no romance José de Alencar, publicando, um ano depois dos Tamoios e no mesmo dos Timbiras, o Guarani.

O pensamento de uma literatura brasileira, que fora expressamente o de Magalhães e seus companheiros, que a obra de Gonçalves Dias principalmente avigorara, o reassumira José de Alencar com mais clara consciência e mais firme propósito de o executar. Pensou servi-lo criando o romance da vida indígena selvagem ou misturada com a vida civilizada dos colonizadores, como no Guarani, ou pura ou quase pura na Iracema e depois, serodiamente, no Ubirajara. Mas não obstante o real talento de escritor que neste propósito pôs, e daquelas duas primeiras obras de mérito verdadeiro com que procurou realizá-lo, ele lhe ficou infecundo. Não conseguiu empecer a decadência do indianismo, nem assentar definitivamente o senso nacionalista da literatura brasileira, como o quisera. Não ficou, entretanto, de todo sem repercussão ou influência. Os próprios portugueses Mendes Leal e Pinheiro Chagas se meteram a fazer com O calabar (1863), Os bandeirantes (1867), A virgem guaraciaba (1868), literatura nacionalista brasileira. O estímulo puramente industrial dessas obras insinua-lhes claramente o malogro. Os jovens poetas que desde 1850, ainda em antes de publicados em livros, vinham versejando, não curam mais de índios nem do que lhes concerne. Não são sequer patriotas no sentido em que o foram Magalhães e os do seu grupo. Nem os preocupa ao menos a formação de uma literatura nacional. O seu brasileirismo de todo estreme dos preconceitos nacionalistas, vem-lhe mais do íntimo e é em suma mais racional. São mais subjetivos, mais pessoais, mais ocupados de si, dos seus amores, das suas paixões, dos seus sofrimentos e dissabores, que de literatura ou de política. É menor neles do que fora nos seus antecessores a influência de Chateaubriand, avoengo do nosso segundo indianismo. Pratica-o também pela mesma época um outro romancista, Bernardo Guimarães, mas pratica-o antes por imitação, sem a espontaneidade e menos o talento de Alencar. E sendo melhor poeta que romancista e tendo poetado copiosamente, jamais poetou do índio.

Os poetas da segunda geração romântica possuíram em grau notável a primeira virtude de quem nos quer comover, a sinceridade. Circunstâncias fortuitas de sua vida fizeram com que todos eles de fato vivessem a sua poesia ou sentissem realmente o que com ela exprimiram. Talvez por isso não são artistas mas poetas, com o mínimo de artifício e o máximo de emoção, em mais de um deles ingênua, conforme convém à boa arte. O que se lhes pode descobrir de nacional, o seu brasileirismo mais íntimo que de mostra, como o era o dos da geração anterior, é já a revelação da nossa alma do povo diferente, como se ela viera formando e afeiçoando em três séculos de vida histórica e em trinta anos de existência autônoma, a expressão inconsciente do seu sentir ou do seu pensar, indefinidos sim, mas já inconfundíveis. Não são brasileiros porque cantem o bronco silvícola destas terras, ou porque celebram-nas a estas. Não rebuscam temas, nem forçam a inspiração ao feitio indígena. Com exceção de Gonçalves Dias, que é mais da primeira geração que desta, nenhum destes poetas é, ainda parcialmente, indianista, ou tem sequer o propósito nacionalista. Protraem-se estas feições apenas nalgum mais medíocre ou em um ou outro prosador, cujo provincianismo sertanejo os sujeitava mais à influência do ambiente nacional, onde mais vivazes eram ainda as tradições da terra brava e do seu primitivo habitador. Tais são José de Alencar, que confessa a influência do sertão brasileiro na germinação do Guarani, e Bernardo Guimarães, que diretamente dos nossos sertões meio selvagens recebe mais que a inspiração os assuntos de suas novelas.

Criados e educados já de todo fora da influência mental portuguesa, são os escritores desta geração menos portugueses de pensamento e expressão do que os da primeira. O seu brasileirismo, menos político do que o destes, é mais emotivo, mais de raiz, e por isso mesmo, está mais nos seus defeitos e qualidades de inspiração e de estilo, que nas inferioridades da sua manifestação. Conservando muito do sentimento poético português, do senso da saudade e da nostalgia, da melancolia amorosa que tanto o distingue, e que em Gonçalves Dias, embora ardente e voluptuosa, não atinge ainda a luxúria, o lirismo destes poetas tem já desenganadamente o tom que separa o lirismo brasileiro do português. Nada o prova melhor que a comparação destes poetas com os seus contemporâneos portugueses João de Lemos, Soares de Passos, Mendes Leal, Serpa Pimentel, aos quais pode afirmar-se que ficaram de todo estranhos os nossos.

Afora em alguns poetas da Renascença portuguesa como Camões, o lirismo português não foi jamais casto, antes sempre mais luxurioso que voluptuoso. O lirismo brasileiro, porém, exagera e piora esta feição. Desde a segunda geração romântica -o da primeira pecara mesmo por demasiado continente- entra a ser desenfreadamente erótico, como o de um povo onde o amor nasceu entre raças desiguais e inimigas e portanto entre violências e brutezas de apetites e carnalidades, e um povo onde a fácil e franca mistura de uma gente européia em decadência com raças inferiores e bárbaras devia produzir um mestiço excessivamente sensual, em todas as acepções do termo. A influência particular portuguesa que acaso se descobre nesta geração é a de Garrett. Mas o tom popular que Garrett restituíra à poesia portuguesa e que há na destes poetas, apenas porventura lhes revê o íntimo brasileirismo, feito sob a influência do meio ainda matuto, simples e desartificioso. Nessa influência concorreria a da poesia que andava tradicionalmente na boca das mucamas negras, crioulas, mamelucas e mulatas que haveriam sido as primeiras educadoras desses poetas e suas iniciadoras sentimentais, como o foram de gerações de brasileiros.

A riqueza relativa do seu estro, se o compararmos ao dos românticos da primeira hora, e ainda aos dos nossos poetas que imediatamente lhes sucederam, a naturalidade e viveza da sua expressão, além dos já notados atributos de espontaneidade, sinceridade e candura, sempre raro na poesia da nossa língua, impuseram estes poetas, mais que à admiração, à afeição dos seus patrícios. Efetivamente são porventura os melhores que jamais teve o Brasil, e é incontestável que são ainda hoje os mais estimados da nação, os mais repetidamente publicados, os mais constantemente lidos. E a sua influência, que foi grande, ainda não desapareceu. Queira-o ou não, mais de um poeta atual e não dos somenos, é discípulo dos desta geração. Não obstante o aumento da cultura, o presumido aperfeiçoamento do gosto e o desenvolvimento exagerado do reclamo, nenhum poeta nosso depois deles, com exceção talvez de Castro Alves, que deles aliás procede, teve um número de reimpressões parciais ou totais e de leitores que estes tiveram.

Com os poetas da segunda geração romântica, nomeadamente com Álvares de Azevedo, entra um novo motivo na poesia brasileira, a morte. Cantores da terra, das damas, de magnates, de temas abstratos, da natureza, de indivíduos, do amor, da pátria, de sentimentos personificados e até do sofrimento e da dor, nenhum cantara entretanto a morte, ou a morte, a despeito de ser um dos grandes temas líricos, não fora para nenhum, estímulo de inspiração. Estes poetas são todos tristes. A todos eles contagiou a melancolia de Gonçalves Dias, o primeiro dos nossos poetas com quem andou a idéia da morte.

Além das heranças ancestrais e das influências deprimentes do ambiente e de poetas estrangeiros nimiamente admirados e seguidos, contribuiu para a sua tristeza e desalento a sua fraqueza física congênita ou sobrevinda, atestada pela existência enfermiça e morte prematura de todos eles. O que mais velho morreu, Gonçalves Dias, tinha apenas quarenta e um anos; dos outros nenhum alcançou os quarenta, e os mais deles nem aos trinta chegaram. Álvares de Azevedo finou-se aos vinte. À natureza débil e doentia destes poetas juntaram-se em todos eles circunstâncias pessoais de desacordo com o seu ambiente doméstico ou meio social que lhes agravaram o triste estado d'alma para o qual já os predispunha a sua astenia. Também passara a época dos grandes entusiasmos e vastas esperanças criada pelos sucessos conseqüentes à Independência e ao 7 de abril. A nação entrava na sua existência sossegada e pouco estimulante de quaisquer energias.

I. Álvares de Azevedo

A Lira dos vinte anos e as Poesias diversas, que compunham o primeiro tomo das Obras poéticas de Álvares de Azevedo, eram uma novidade na poesia brasileira, quase igual ao que haviam sido os Suspiros poéticos, de Magalhães, em 1836, e os Primeiros cantos, de Gonçalves Dias, em 1846.

Manoel Antônio Álvares de Azevedo nascera em S. Paulo em 1831. A infância passou-lhe no Rio de Janeiro. De menino revelou grande inteligência e curiosidade mental, estudando e tanto e tão bem que aos dezesseis anos completara com aproveitamento e brilho o curso do Colégio de Pedro II e recebia a carta de bacharel em letras. Mais que assíduo leitor, era um devorador de livros, ainda na idade em que a tal apetite não pode corresponder igual capacidade de assimilação. Em S. Paulo, para onde passou a estudar Direito, distinguiu-se pelo talento com que acaso supria a aplicação e pelo seu precoce engenho poético. A liberdade que lhe outorgava a vida de «acadêmico», numa pequena cidade escolar onde os estudantes tinham graças de estado de que usavam e abusavam, a ausência do constrangimento familiar e as mesmas isenções que lhe conferia o renome de menino prodígio que levara do Rio, influíram-no a viver a vida romântica, realizando as idealizações dos poetas de que se achava saturado, Musset, Byron, Espronceda, George Sand, ou imitando a existência e vezos que lhes atribuía a eles ou tinham as suas criaturas. E pela imaginação ao menos, começou a viver tal vida na qual, com as suas nativas inclinações, entrou muita literatura. Como, porém, o arremedo se lhe fundia perfeitamente com o temperamento e correspondia em suma aos seus mais íntimos instintos poéticos, não resultou em disparate conforme com mais de um tem acontecido. Da combinação das próprias tendências com a imitação literária, criou-se uma vida factícia. Presumiu transplantar para a mesquinha vida de S. Paulo de meados do século passado, costumes e práticas do Romantismo europeu. Quis praticar as façanhas sentimentais dos heróis de Musset e Byron. A candura com que o fez não só o salvou de um ridículo naufrágio, mas até o engrandeceu, criando-lhe a feição que o distinguiria na poesia brasileira e o faria um dos seus dominadores. Daquele seu teor da vida romântica, a expressão literária é a Noite na taverna, composição singular, extravagante, mas acaso na mais vigorosa, colorida e nervosa prosa que aqui se escreveu nesse tempo.

Mostrava-se Álvares de Azevedo poeta pessoal e subjetivo, como não fora talvez nenhum dos nossos antes dele e raros o seriam depois. Impressões da natureza ou de arte não lograva nunca objetivá-las. Transfundiam-se-lhe naturalmente em íntimas sensações, por via de regra dolorosas. É, neste período, o primeiro que quase unicamente canta de amor, que fica alheio à natureza que o cerca ou à nação a que pertence. Só lhe interessa a mulher, «o eterno feminino» de que foi talvez o primeiro a ter aqui o sentimento à maneira goetiana, e que o absorve e alucina. Não é fácil distinguir o que é nele inspiração e sensibilidade poética do que são instintos e impulsos sensuais de moço brasileiro, superexcitado pela tísica que o minava. Eram raros nele os temas objetivos vulgares em Magalhães, Porto Alegre e Gonçalves Dias e menos os temas retóricos ou adequados às amplificações poéticas, tão ao gosto destes, inclusive o último. Quando casualmente os tratava, ou incidentemente lhe acudiam, envolvia-os com o seu sentimentalismo romântico, preocupações femininas ou amorosas, em imagens, pensamentos e sensações. Malsinando dos políticos traidores de seus ideais e que tudo sotopõem aos seus baixos interesses, a imagem de que se socorre é ainda de poeta amoroso:

Almas descridas de um sonhar primeiro

venderiam o beijo derradeiro

da virgem que os amou.



Mesmo quando o desespero romântico, a sua sensibilidade doentia o reverte às crenças tradicionais como nos Hinos do profeta, declamação poética muito à moda romântica, se bem mais eloqüente que similares de Magalhães, ainda nesses momentos se lhes insinua na inspiração o eterno feminino, um eterno feminino qual o podia conceber um poeta brasileiro, jovem, sensual e ardoroso. Como aliás nenhum dos poetas da sua geração, Álvares de Azevedo não é um poeta descritivo, um paisagista, conforme mais ou menos serão quase todos os nossos depois dela. Quando, porém, acerta de ter uma inspiração da natureza, à sua emoção mistura-se infalivelmente a mulher e o amor, reagindo sobre a materialidade da impressão e idealizando-a. Vejam Tarde de verão, Tarde de outono, em que ao descritivo inculcado pelo título se substituem puras sensações subjetivas.

Segundo era já consuetudinário na nossa poesia, a sua terra também lhe inspira um canto de amor em que não falta o confronto preferencial com terras estrangeiras:

No italiano céu nem mais suaves

são da noute os amores

não tem mais fogo os cânticos das aves

nem tem mais flores!



Onde sentimos reminiscências da Canção do exílio, de Gonçalves Dias. Mas o que lhe aformoseia a terra natal e lha faz amada é ainda a mulher querida que nela vive. Ao descante de sua terra mistura os seus transportes amorosos.

Aos homens doentes e desconsolados pela idéia da morte, máxime se são poetas, acontece recolherem-se em si mesmos e viverem de uma vida interior. Álvares de Azevedo, valetudinário precoce, foi levado a viver essa vida, apesar das alegrias da idade que lhe resumam em mais de um poema faceto ou humorístico. Alegrias e tristezas chocam-se-lhe na alma jovem, ardente e ambiciosa, produzindo a ironia por vezes amarga de alguns dos seus poemas (O poema do Frade, Um cadáver de poeta, Idéias íntimas, Boêmios, Spleen e charutos) os gritos de descrença e desesperança desses e de outros e de prosas como a Noite na taverna. Dessa ironia é ele o único exemplar na nossa poesia, como seria o instituidor nela dessa desesperação e descrença. De tal estado d'alma lhe veio, com o nímio subjetivismo, o sentimento ora acerbo, ora zombeteiro, da vida, e a carência ou a pobreza de impressões da natureza ou da sociedade na sua poesia. Destas últimas apenas se lhe achará um exemplo claro no único poema objetivo que deixou, Pedro Ivo, aliás um dos mais admiráveis da nossa poesia, dos raros em que o motivo político ou social da inspiração não sufoca ou amesquinha os elementos propriamente poéticos, antes lhes serve excelentemente à expressão. É que no poema de Álvares de Azevedo predominou o mesmo objeto da sua inspiração, a sua íntima emoção mais de poeta que de repúblico.

Entre estes poetas foi Álvares de Azevedo um dos espíritos literariamente mais cultos. Conheceu as obras-primas das melhores literaturas na sua língua original, e tinha boa lição das letras-mães da nossa. Havia atilamento e bom gosto no seu espírito crítico, apenas iludido pelo seu entusiasmo juvenil. Conhecia e amava os portugueses, e foi um dos que sofreu a influência de Garrett, a quem tinha alta e merecida estima. Do influxo do lirismo e da forma garretiana há talvez sinais em seus poemas Ai Jesus!, o poeta, amor e poucos mais. É porém uma influência toda lateral, digamos assim, em que o poeta brasileiro, ainda sofrendo-a, conserva a sua personalidade. Nem ela obrou então aqui com a mesma generalidade ou força, com que atuava a literatura portuguesa antes do Romantismo.

A idéia da morte é uma obsessão em Álvares de Azevedo. Direta ou indiretamente, intencional ou inconscientemente, aparece ou insinua-se-lhe nos versos como a que, com a do amor, lhe é mais familiar. Lembranças de morrer, um dos seus mais belos poemas, como Se eu morresse amanhã, de igual sentimento e beleza, não são mais que manifestações explícitas da íntima angústia de sua alma de que, como verdadeiro poeta, ele fez deliciosas canções. E apenas haverá algumas das suas que a não reveja.

II. Laurindo Rabelo

Laurindo José da Silva Rabelo, fluminense ou antes carioca, viveu de 8 de junho de 1826 a 28 de setembro de 1864. Menos a educação e a cultura, que, não obstante a sua formatura em Medicina, parece não terem sido apuradas, havia nele feições de Álvares de Azevedo. Foi igualmente, talvez desde a puberdade, doente e fraco. De origem e condição humilde, mulato de raça, a consciência da sua situação, sem a força de caráter necessária para a contrastar, amargurou-lhe desde cedo a existência que levou à boêmia, obrigado da necessidade, se não também pelo natural relaxamento a angariar amizades e proteções da benevolência social, ornando e animando partidas e festas com o seu estro e as suas facécias, improvisos, glosas, poesias recitadas ou cantadas à viola, como um aedo ou trovador primitivo, e mais os ditos que se lhe atribuem. Foi, como nenhum outro, o poeta popular, mais conhecido em seu tempo pela alcunha de Poeta lagartixa, tirada de seu corpo escanifrado, que pelo seu nome. Não o roçou a descrença romântica, como a Álvares de Azevedo e a Junqueira Freire. Não lhe fugiu, ou sequer se lhe desvaneceu notavelmente a ingênua crença doméstica, conservada, como é tão comum, por hábito, e nele, poeta de nascença, por necessidade sentimental. A desventura, o sofrimento, aumentou-lhe, porém, a tristeza dos da sua geração e exacerbou-lhe a sensibilidade, e como àqueles criou-lhe a angústia da morte, que atormentava o poeta da Lira dos vinte anos, afligia a Junqueira Freire, a Casimiro de Abreu e a outros da mesma família literária. Do Rio Grande do Sul, aonde o levara o seu emprego de médico do exército, escrevia nos formosos tercetos endereçados ao seu amigo Paula Brito, o bondoso e ingênuo mecenas, tão mesquinho como os poetas que patrocinava:

Tenho n'alma um cruel pressentimento

(Talvez não mui remota profecia

Que não posso apagar do pensamento!)

Espero cedo o meu extremo dia

E a morte, da pátria tão distante,

É quadro que me abate de agonia!



Das humilhações que ao seu talento e brio impunha a sua mofina condição, defendia-se com o orgulho com que se lhe fingia indiferente, mas que às vezes lhe irrompiam ou em gestos desabridos ou em gritos poéticos verdadeiramente dolorosos e comoventes, porque vindos d'alma. Tais são: Meu segredo, Minha vida, A linguagem dos tristes, Não posso mais, Último canto do cisne:

Eu me finjo ante vós, porque venero

O sublime das lágrimas; conheço-as

São modestas vestais, vivem no ermo

Aborrecem festins [...]

[...]

Bem fechadas no claustro de meus olhos

Dentro em meu coração hei de contê-las

Guardá-las bem de vós, contentes, hei de

Porque a dor me não traia neste empenho

Zelosa e vigilante sentinela

Em meus lábios trazer constante um riso.



Pungia-o esse tão comum mal secreto, de que um dos nossos poetas devia, duas gerações depois, dizer num soneto modelar. Serviu-lhe grandemente o estro esse mal. Na sua desgraça, de que a sua índole de boêmio e a sua doentia sensibilidade de poeta fizera um real sofrimento, achou motivos de inspiração cuja sinceridade se traduz numa forma comovida e tocante, se não excelente. Esta mesma lucrou da sua existência de poeta popular a simplicidade do sentimento e a singeleza da expressão que lhe dão à poesia um cunho particular e não raro delicioso. O título de Trovas que lhe pôs calha admiravelmente aos seus poemas em que a espontaneidade da inspiração e a ingenuidade do sentimento se não embaraçam de dificuldades e caprichos de expressão. Laurindo Rabelo é um poeta no sentido profundo que o povo dá a este nome. Também nenhum outro dos nossos teve a alma tão perto do povo.

III. Junqueira Freire

Luís José Junqueira Freire nasceu na Bahia em 1832 e ali mesmo faleceu, sem nunca ter saído da terra natal, em 1855. Os seus estudos exclusivamente literários, fizera-os com pouco sistema nas aulas primárias e avulsas secundárias da sua terra e em seguida no Liceu Provincial. Completou-os ou os aperfeiçoou depois com a leitura copiosa e variada, principalmente dos poetas latinos e modernos. As suas tentativas críticas não lhe desmerecem essa capacidade e são escritas numa língua em que porventura havia um bom embrião de prosador.

Uma temporã paixão amorosa mal-aventurada levou Junqueira Freire, por desespero romântico, a fazer-se frade. Não tinha nenhuma vocação ou sequer vivo sentimento religioso. Ao revés, dos fragmentos autobiográficos dele restantes verifica-se que era antes um espírito crítico, já meio desabusado, que metia à bulha devoções e crendices acatadas pela Igreja. Ao desespero amoroso a que a vida monástica não dera remédio, ajuntou-se lhe logo o desespero da vida, para a qual não nascera, e com ele a revolta contra o seu estado de frade e até contra o estado monástico em geral. Foram os dois sentimentos conjugados que o fizeram poeta e lhe deram a originalidade de ser na nossa literatura, senão também em toda a poesia da nossa língua, o único francamente rebelde a uma das feições mais particulares do catolicismo, e que de o ser tirou inspiração. Ao livro de seus primeiros poemas publicados na Bahia em 1855, pouco antes de sua morte, chamou de Inspirações do claustro. O título é impróprio, pois faz erroneamente supor que lhos inspirou a religião do claustro, quando motivaram-nos o desespero e a revolta contra ele. Sob a estamenha do monge continuou a palpitar o seu coração enamorado, e no claustro mesmo o seu amor, numa ardência de desejos insatisfeitos e agora irrealizáveis sem crime, irrompia em poemas que, no seu estado, frisavam ao sacrilégio. Dessa coleção justamente os poemas mais fracos são os de inspiração presumida de religiosa, O apóstolo entre as gentes, A flor murcha do altar, O incenso do altar, Os claustros e quejandos, em que idéia, emoção, estilo são de lamentável frouxidão. A todos falta a unção que só dá menos uma fé confessada que um íntimo sentimento religioso. Nenhum parece vindo tão do fundo d'alma como as suas imprecações de frade desiludido ou os seus lamentos de amoroso desesperado. A mesma observação cabe aos seus poemas intencionalmente brasileiros. Destes poetas é Junqueira Freire o único a ainda sacrificar ao indianismo e a propósitos patrióticos, embora escassamente e sem convicção nem entusiasmo. Ressentem-se destas falhas os seus poemas (O hino da cabocla, Dertinoa) dessa inspiração, que estão em tudo e por tudo bem longe do modelo evidentemente mirado, Gonçalves Dias, com quem Junqueira Freire teve relações pessoais e a quem dedicou um dos seus poemas. Não aprendeu, aliás, dele a ciência do verso branco, que ao seu falta harmonia e relevo. Os melhores versos de Junqueira Freire são talvez os de contextura popular, sem preocupações de métrica. Afetava demasiado o verso de onze sílabas, geralmente desagradável pelo seu soar agalopado.

Punge-o também a idéia da morte, como era natural de uma alma de raiz romântica, afligida pelo ódio da sua profissão monástica, pelo desespero de um mal-aventurado amor e ainda pela miséria de um organismo doentio. Entrevê-se-lhe aquela idéia em vários passos dos seus poemas, e claramente e numa bela frase poética mostra-se no intitulado Morte:

Pensamento gentil de paz eterna

amiga morte, vem.



Punge-o porém, sem a expressão angustiosa de Álvares de Azevedo ou Casimiro de Abreu, se não mais conformada e serena. Os seus poemas característicos, a manifestações mais significativas do seu sentimento e estro e do seu feitio poético, são Meu filho no claustro, A órfã na costura, Frei Bastos, A profissão de Frei Ramos, A freira, Ela, Saudade, Desejo, Morte, Temor. Estes sobretudo lhe dão a feição que o distingue no grupo da segunda geração romântica. Nenhum deles tem a perfeição relativa que se pode exigir de quem poetava em época em que se não era tão pontilhoso nas exigências da forma poética, mas reunidos desenham uma não vulgar fisionomia de poeta.

IV. Casimiro de Abreu

Tem-na também própria e notável Casimiro de Abreu. Poetando desde 1855, havendo mesmo publicado em Portugal desde 1856, na Ilustração Luso-Brasileira, alguns poemas, só em 1859 deu à luz as suas Primaveras, porventura o mais lido dos nossos livros de versos.

Casimiro José Marques de Abreu era natural da Barra de São João, na província do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1837 e morreu em 1860. Seu pai, português como o de Gonçalves Dias, como esse o destinava ao comércio. Menos tratável, porém, que aquele, quis obrigar o filho a ficar numa profissão a que este era de todo avesso.

Dos poetas da sua geração é Casimiro de Abreu, talvez mais que outro qualquer, o poeta do amor e da saudade. Os dois sentimentos são a alma da sua poesia. Este pobre rapaz fraco e enfermiço nascera poeta, com a sensação viva, dolorosa do que o grande poeta latino chamara as lágrimas das cousas, cujo mortal encanto lhe penetrou cedo a alma melancólica. O drama íntimo da sua vida, o desconhecimento do seu talento, a contrariedade oposta à sua vocação e, acaso, as imperfeições do lar paterno, tudo teria sido exagerado até ao trágico pela sua sensibilidade doentia. É grande a mágoa que de tudo lhe vem; grande, real e sincera. Da sua vida amorosa nada de certo sabemos. Os seus biógrafos, mesmo aqueles que mais intimamente, parece, o conheceram e trataram, como Reinaldo Montoro e Teixeira de Melo, divagam e amplificam, segundo tem sido aqui o mau vezo dos biógrafos, em vez de lhe investigarem a vida e de a contarem sem impertinentes recatos. Nos seus versos, porém, há a impressão pungente de um amor infeliz que lhe deixou a alma malferida e para sempre dolorosa. O afastamento, a ausência da terra natal, o exílio, como, imitando a Gonçalves Dias, lhe chamou, completaria a exacerbação da sua sensibilidade orgânica e lhe daria ao estro o tom nostálgico que, sem igualar a simplicidade genial do seu inspirador, não lhe ficará somenos em emoção.

É sob a influência da nostalgia e do amor, ambos de fato nele uma doença, que se põe a cantar o Brasil. Mas o Brasil, que canta em seus sentidos versos, a pátria por quem chora e que celebra, é principalmente a terra em que lhe ficaram as cousas amadas e mormente a desconhecida a quem dedicou o seu livro e que, segundo a meia confidência de um daqueles biógrafos, teria encontrado morta quando voltou à terra natal. A saudade desta com os encantos que a saudade empresta aos seus motivos é que o faz patriota, se mesmo com esta restrição se lhe pode aplicar o epíteto, que não vai aqui como elogio. A sua nostalgia é sobretudo o amor, não só à mulher querida, mas a quanto este amoroso amava, o torrão natal, a casa paterna, a vida campestre, que para as almas sensíveis como a sua se enche de prestígio ignorados do vulgo.

Lá de longe cantou a sua terra, os sítios da sua infância, as suas recordações de toda a ordem, avivadas pela saudade, com sentida e comovedora emoção. As penas de amor e de saudade fizeram-no o poeta que foi. Toda a sua curta vida, ainda depois de restituído à sua terra, uma saudade incerta, uma indefinida nostalgia ficar-lhe-ia na alma como um ferrete daquelas penas. E o nosso povo, que do português herdou o senso desses dois sentimentos, em a nossa raça irmanados na mesma emoção, achou porventura em Casimiro de Abreu o mais fiel intérprete das suas próprias comoções elementares, primárias, do amor do torrão e da mulher querida. Pelo que é Casimiro de Abreu o poeta brasileiro que o nosso povo mais entende e a quem mais quer. Ama-o, recita-o, canta-o, fazendo-o um poeta popular, em certos meios quase anônimo. Comprova este asserto o fato de ser Casimiro de Abreu, de todos os nossos poetas, excetuando Gonzaga, certamente o que tem sido mais vezes reimpresso, total ou parcialmente. As suas Primaveras têm, pelo menos, oito edições.

Voltando doente e abatido à terra natal, a vista daquelas cousas tão choradas no exílio põe-lhe na alma dolente acentos raros atingidos pela nossa poesia. E dele se haviam de inspirar Luís Guimarães Júnior, Lúcio de Mendonça e outros que cantaram iguais estados d'alma:

Eis meu lar, minha casa, meus amores,

a terra onde nasci, meu teto amigo,

a gruta, a sombra, a solidão, o rio

onde o amor me nasceu, cresceu comigo.

Os mesmos campos que eu deixei criança,

árvores novas, tanta flor no prado!...

Oh! Como és linda, minha terra d'alma,

-Noiva enfeitada para o seu noivado.

Foi aqui, foi ali, além... mais longe,

que eu sentei-me a chorar no fim do dia,

-Lá vejo o atalho que vai dar na várzea...

Lá o barranco por onde eu subia!...

Acho agora mais seca a cachoeira

onde banhei meu infantil cansaço,

-Como está velho o laranjal tamanho

onde eu caçava o sanhaçu a laço!...

Como eu me lembro dos meus dias puros!

Nada me esquece!... Esquecer quem há de?

-Cada pedra que eu palpo ou tronco ou folha

fala-me ainda dessa doce idade.

E a casa?... As salas, estes móveis, tudo,

o crucifixo pendurado ao muro...

O quarto do oratório, a sala grande

onde eu temia penetrar no escuro!...



É da melhor, da mais alta, da mais profunda poesia. Como poeta do amor, não é demais dizer que Casimiro de Abreu deu à nossa língua, tão rica sob este aspecto, algum dos seus mais comovidos senão mais formosos cantos. A uns destes os prejudicou, no conceito da geração imediata ao poeta, a mesma popularidade que os vulgarizou nos recitativos de salão, como foram de moda. Não obsta que poemas como Amor e medo e Minha alma é triste sejam, sem encarecimento, apesar da sua toada que nos é hoje menos agradável, dos mais belos da nossa poesia.

Com incorreções de forma poética, a que somos depois do parnasianismo demasiadamente sensíveis, têm eles em alto grau, sentimento, idealização, emoção da melhor espécie poética, e até, em mais de um passo, peregrinas excelências de expressão. Há em Amor e medo notadamente um ardor de volúpia ao mesmo tempo contida e exuberante, que lhe realça sobremodo a beleza, e formosuras de sensação e de expressão que não teriam o direito de desdenhar os mais reputados sequazes de Baudelaire. É forte a sua tradução das tentações amorosas da carne, como o diriam estes poetas, e, mais, de todo nova na nossa poesia, senão também na da língua portuguesa:

Ai! Se eu te visse no calor da sesta,

a mão tremente no calor das tuas,

amarrotado o teu vestido branco,

solto o cabelo nas espáduas nuas...

Ai! Se eu te visse, Madalena pura,

sobre o veludo reclinada a meio,

olhos cerrados na volúpia doce,

os braços frouxos, palpitante o seio!...

Ai! Se eu te visse em languidez sublime,

na face as rosas virginais do pejo,

trêmula a fala, a protestar baixinho,

vermelha a boca soluçando um beijo!...



Desprezados, como necessariamente sucederá dentro em pouco, os preconceitos que a vulgarização de tais versos contra eles criou, eles nos aparecerão em toda a sua novidade e beleza de sensação e expressão. Ver-se-a o seu realismo de idéias e estilo, nem sequer suspeitado então como fórmula ou processo de escola, do mesmo passo que se lhes sentirá o ardor e a intensidade que desafia quanto a paixão à cola daquele poeta francês e dos seus discípulos pôs nos versos dos nossos ulteriores poetas. Em que lhes pese ao estúpido desdém pelo verdadeiro e notável poeta que é Casimiro de Abreu, facilmente se verifica que eles lhe sofreram a influência e freqüentemente o imitaram, raro o igualando e nunca o excedendo na realidade da emoção nem no sublime da expressão. Pela profundeza e sinceridade do seu sentimento poético, tem ele mais razão de viver do que estes; já vive de fato mais do que eles viverão, e o futuro, não duvido vaticinar, o desforrará cabalmente dos seus tolos desdéns.

Tristeza ingênita, melancolia amorosa, acerba nostalgia, angustioso sofrimento de uma alma rica de ingênuas e ardentes aspirações de glória e de amor, tudo deu a este delicioso poeta a feição dolorosa que ainda no meio dos poetas dolentes da sua geração o distingue. Tinha também, como os outros, o pressentimento da morte prematura. Mais de um poema seu o declara ou o revê.

A um amigo recém-morto dizia:

Dorme tranqüilo à sombra do cipreste...

-Não tarda a minha vez;



Com efeito, dois anos depois, finava-se com vinte e três de idade, na sua fazenda ou sítio de Indaiaçu, no torrão natal, às cinco horas e vinte e cinco minutos da tarde do dia 18 de outubro de 1860.

V. Poetas menores

Tais são estes poetas, os principais da geração que, estreando pelos anos de 1850, viveu literariamente até o fim da seguinte década e ainda além. Afora estes, poetaram, por esse tempo, com ou sem livros publicados, Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889), José Bonifácio de Andrada e Silva (1827-1886), Aureliano José Lessa (1828-1861), Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1827-1884), José Alexandre Teixeira de Melo (1833-1907), José Joaquim Cândido de Macedo Júnior (1842-1860) e outros de menor merecimento e reputação.

Francisco Otaviano e José Bonifácio, chamado o Moço, para distingui-lo do seu tio do mesmo nome, o patriarca da Independência, foram dous brilhantes poetas amadores, dous insignes diletantes da poesia, e também, dous brilhantes espíritos, porventura dous talentos de primeira ordem. Mas a sua vocação, se a vocação não é «senão a incapacidade de falharmos às inclinações naturais do nosso espírito», não eram as letras ou ao menos as letras praticadas com a assiduidade de uma profissão. Com encantador e não vulgar estro poético, ambos, apenas esporádica e ocasionalmente, poetaram. Esse dom, o exerceram antes como uma prenda de sociedade, mais uma distinção a juntar às muitas que possuíam como políticos, jornalistas, parlamentares, juristas, do que por necessidade do seu temperamento literário. José Bonifácio, cuja obra poética esparsa contém algumas obras-primas (O redivivo, Um pé, Primus inter pares, A margem da corrente), publicou apenas, ainda em antes que começasse esta geração, com a qual principalmente cantou, um pequeno folheto de versos Rosas e goivos, em 1848. Francisco Otaviano versificou copiosa e elegantemente em jornais, revistas e álbuns mulheris, fez primorosas traduções de Byron, deixou admiráveis versos proverbiais, mas ao cabo nenhum volume por onde possamos cabalmente apreciá-lo. Nem um, nem outro tiveram na nossa poesia a importância a que os seus talentos lhes dariam direito incontestável e até os obrigavam; ambos, porém, exerceram nela, ao menos no círculo dos poetas que puderam conhecê-los e a sua dispersa produção, inegável influência. São antes dous grandes nomes literários, algo lendários, que dous escritos notáveis.

Está exatamente nas mesmas condições Pedro Luís Pereira de Souza (1839-1884). Também ele foi um poeta brilhante, o precursor da inspiração política e social e do que depois se chamou condoreirismo, na nossa poesia, político de relevo, jornalista, conversador agradabilíssimo, segundo quantos o trataram, e homem do mundo de rara sedução. Deixou meia dúzia de poemas, os melhores no tom épico (Os voluntários da morte, Terribilis Dea) que todo o Brasil conheceu, recitou e admirou. Mas a sua obra dispersa de mero diletante, se lhe criou um nome meio lendário como o de José Bonifácio e Francisco Otaviano, não basta a assegurar-lhe um posto de primeira ordem na nossa poesia.

Sem lhes ter a fama, valem acaso mais para a história da nossa literatura Teixeira de Melo, Aureliano Lessa e principalmente Bernardo Guimarães. Teixeira de Melo, cujas Sombras e sonhos precederam as Primaveras de Casimiro de Abreu, e que era um quase conterrâneo do poeta da alma triste, era também, como ele, de seu natural melancólico. A sua tristeza nativa e o seu estro sofreram a influência de Gonçalves Dias, mas por sua vez o seu lirismo não deixou de influir no de Casimiro de Abreu, em que se encontram imagens e expressões de poemas das Sombras e sonhos, e que epigrafou com versos destes poemas as suas Primaveras. Mas Teixeira de Melo, com desenganados queixumes métricos da vida, cedo abandonou a poesia e burocraticamente, fazendo bibliografia e erudição, viveu septuagenário. Como poeta, além de ser um legítimo e estimável representante da poética da sua geração, foi um dos mais corretos versificadores dela, devendo-lhe a arte do verso aqui as melhorias de um alexandrino mais perfeito do que antes dele se fizera e de nas estrofes de quatro versos rimá-los sempre alternadamente, o que antes só excepcionalmente se fazia.

Aureliano Lessa, ligeiramente mais objetivo que Álvares de Azevedo, e de um sentimento menos profundo que qualquer dos poetas desta geração, nem assim lhe escapa aos estigmas característicos. Ao contrário, pertence-lhe por todas as feições da sua poesia, sem que tenha nenhuma que particularmente o distinga. Destes poetas secundários desta progênie, o maior, pela sua mais distinta fisionomia, pela cópia da sua produção e ainda pelos quilates destas, é, sem dúvida, Bernardo Guimarães. Este, aliás, pertence-lhe antes cronológica que literariamente, antes por ser do mesmo tempo, ter vivido a vida de alguns deles, poetado conjuntamente com eles, do que por paridade de sentimento ou estro com eles. Não há nos seus poemas -e a sua produção foi uma das mais copiosas do tempo- nem o excessivo subjetivismo, nem o mórbido sentimentalismo, nem a tristeza e dolência dos seus companheiros de geração, e menos ainda a sua ardente voluptuosidade. É mesmo o único deles que não é triste ou que sabe disfarçar a tristeza e mágoa, que às vezes declara galhofando dos seus mesmos pesares ou expondo-os mais a sorrir que a chorar, como preferiam fazer aqueles. É em todo o nosso romantismo o único poeta alegre, o que versejou de cousas alegres e com inspiração e intenção jovial. E versejou geralmente bem, se não com mais arte, com arte diferente da dos seus companheiros e mais variada inspiração. É ele quem reintegra o descritivo na poesia desta geração, que dela o tinha quase abolido. O seu temperamento poético, principalmente considerado em relação à época em que poetou (1858-1864), é mais clássico ou antes mais arcádico, que romântico; não há ao menos nas suas manifestações as exuberâncias e menos os excessos de emoção do Romantismo. Mas também não há o melhor da sua sensibilidade. Bernardo Guimarães teve em seu tempo, e não sei se continuará a ter, mais nome como romancista que como poeta. Não me parece de todo acertado este modo de ver.