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No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e, em vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa. Mal tocou no que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dis-sesse que ele estava incomodado e ficava de descanso aquele dia.

-Que tens tu, Jeromo?...

-Morrinhento, filha... Vai, anda!

-Mas sentes-te mal?

-Ó mulher! vai fazer o que te disse e ao depois então darás à língua!

-Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!

E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse, punha-a doida. «Pois um homem rijo, que nunca caia doente? Seria a febre amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!»

A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.

-Foi da friage da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo à casa do trabalhador para receitar.

O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um entrar e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência e ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita se aproximava também.

-Ah!

E desfranziu-se-lhe o rosto.

-Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha chegada? Se tal soubera não vinha!

Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a véspera

A mulata aproximou-se da cama.

Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela.

Jerônimo apertou-lhe a mão.

-Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado.

-Já tomou algum remédio?...

-A mulher falou ai em chá preto...

-Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra! Espera ai!

E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela.

Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco.

-Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim m'assustas... Que tens, diz'-lo!

-Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa...

-Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus!

-Já te disse que tomo outra mezinha. Oh!

Piedade não insistiu.

-Queres tu um escalda-pés?...

-Toma-lo tu!

Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão áspero e seco, mas receou importuná-lo. «Era naturalmente a moléstia que o punha rezinguento.»

Jerônimo fechara os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado por dentro, para a não sentir. Ela, porém, coitada! fora assentar-se à beira da cama, humilde e solicita, a suspirar, vivendo naquele instante, para e exclusivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade própria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.

-'Stá bem, filha, não vais tratar do teu serviço?...

-Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi à Leocádia que me esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e...

-Andaste mal...

-Ora! Não há três dias que fiz outro tanto por ela... E demais, não foi que tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal!

-Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia! Melhor seria que estivesses à tua tina em vez de ficar ai a murmurar do próximo... Anda! vai tomar conta das tuas obrigações.

-Mas estou-te a dizer que não há transtorno!...

-Transtorno já é estar eu parado; e o pior será pararem os dois!

-Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!

-E eu acho que isso é tolice! Vai! anda!

Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.

-Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.

E deixou-se ficar.

Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a vasilha sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor.

-Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E ai, ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!

Ele riu-se assentando-se na cama.

-Pois não é assim mesmo? perguntou ela a Piedade, apontando para o carão barbado de Jerônimo. Olhe só pr'aquela cara e diga-me se não está a pedir que o enterrem!

A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no intimo, ressentida contra aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto, o faro sutil e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu ninho exposto.

-Está-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu descontentamento.

-Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente. Beba, ande! beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontrá-lo pronto, ouviu? -E acrescentou, falando à Piedade, em tom mais baixo e pousando-lhe a mão no ombro carnudo: -Ele daqui a nada deve estar ensopado de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de parati, logo que peça água. Cuidado com o vento!

E saiu expedida, agitando as saias, de onde se evolavam eflúvios de manjerona.

Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre as pernas o cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela à boca, resmungou:

-Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca tomas café, nem gostas!...

-Isto não é por gosto, filha, é remédio!

Ele com efeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça; mas engoliu de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o cobertor até às ventas.

A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um xale para lhe cobrir a cabeça.

-Trata de sossegar! Não te mexas!

E dispôs-se a ficar junto da cama, a vigiá-lo, só andando na ponta dos pés, abafando a respiração, correndo a cada instante à porta de casa para pedir que não fizessem tanta bulha lá fora; toda ela desassossegada, numa aflição quase supersticiosa por aquele incômodo de seu homem. Mas Jerônimo não levou muito que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o.

-Ainda bem! exclamou ela, radiante.

E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e meter um punhado de roupa suja numa fresta que havia numa das paredes, sacou-lhe fora a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida tirou-lhe as ceroulas e começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo o corpo, principiando pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos, descendo logo às nádegas, ao ventre e às pernas, e esfregando sempre com tamanho vigor de pulso, que era antes uma massagem que lhe dava; e tanto assim que o sangue do cavouqueiro se revolucionou.

E a mulher, a rir-se, lisonjeada, ralhava:

-Tem juízo! Acomoda-te! Não vês que estás doente?...

Ele não insistiu. Agasalhou-se de novo e pediu água. Piedade foi buscar o parati.

-Bebe isto, não bebas a água agora.

-Isto é cachaça!

-Foi a Rita que disse para te dar...

Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois dedos de restilo que havia no copo.

Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool produziu-lhe logo de pronto o efeito voluptuoso e agradável da embriaguez nos que não são bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma coisa do longo espreguiçamento que antecede à satisfação dos sexos, quando a mulher, tendo feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se afinal de nós, numa avidez gulosa de beijos. Agora, no conforto da sua cama, na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca sobre a pele, Jerônimo sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente e do sol cáustico; ouvindo, de olhos fechados, o ronrom monótono da máquina de massas, arfando ao longe, e o zunzum das lavadeiras a trabalharem, e, mais distante, um interminável cantar de galos à porfia, enquanto um dobre de sinos rolava no ar, tristemente, anunciando um defunto da paróquia.

Quando Piedade chegou lá fora, dando parte do bom resultado do remédio, a Rita correu de novo ao quarto do doente.

-Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?

Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por única resposta, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão direita segurar a dela. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a mulata assim o entendeu, tanto que consentiu: mal, porém, a sua carne lhe tocou na carne, um desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desensofrida de senhorear-se no mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira, devorá-la num só hausto de luxúria, trincá-la como um caju.

Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras com um pulo.

-Olhe que peste! Faça-se de tolo, que digo à sua mulher, hein? Ora vamos lá!

Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acrescentando noutro tom:

-Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez Até logo!

E saiu.

Jerônimo ouviu as suas ultimas palavras já de olhos fechados e, quando Piedade entrou no quarto, parecia sucumbido de fraqueza. A lavadeira aproximou-se da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol mais para cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. À porta da entrada a Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe por este com um gesto interrogativo; Piedade respondeu sem falar, pondo a mão no rosto e vergando desse lado a cabeça, para exprimir que ele agora estava dormindo.

As duas saíram para falar à vontade; mas, nessa ocasião, lá fora no pátio da estalagem, acabava de armar-se um escândalo medonho. Era o caso que o Henriquinho da casa do Miranda ficava às vezes à janela do sobrado, nas horas de preguiça, entre o almoço e o jantar, entretido a ver a Leocádia lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular das redondas tetas à larga dentro do cabeção de chita. E, quando a pilhava sozinha, fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe o olho, batendo com a mão direita aberta sobre a mão esquerda fechada. Ela respondia, indicando com o polegar o interior do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher do dono da casa.

Naquele dia, porém, o estudante apareceu à janela, trazendo nos braços um coelhinho todo branco, que ele na véspera arrematara num leilão de festa. Leocádia cobiçou o bichinho e, correndo para o depósito de garrafas vazias, que ficava por debaixo do sobrado, pediu com muito empenho ao Henrique que lho desse. Este, sempre com seu sistema de conversar por mímica, declarou com um gesto qual era a condição da dádiva.

Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o esperasse por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos.

A família do Miranda havia saído. Henrique, mesmo com a roupa de andar em casa e sem chapéu, desceu à rua, ganhou um terreno que existia à esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o capinzal. Leocádia esperava por ele debaixo das mangueiras.

-Aqui não! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem dar com a gente!...

-Então onde?

-Vem cá!

E tomou à sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as plantas. Henrique seguiu-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobraçado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martelar dos ferreiros e dos trabalhadores da pedreira.

Depois de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruínas.

-Aqui!

E Leocádia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós. Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve:

-Espera! preciso tirar a saia; está encharcada!

-Não faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo.

-Pode-me vir um corrimento!

E sacou fora a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa a custo só cobria até o joelho, grossas, maciças, de uma brancura levemente rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos.

-Avia-te! Anda! apressou ela, lançando-se de costas ao chão e arregaçando a fralda até a cintura; as coxas abertas.

O estudante atirou-se sôfrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho.

Passou-se um instante de silêncio entre os dois, em que as folhas secas do chão rangeram e farfalharam.

-Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno ai na casa de uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!... É muito bom passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho dou-te outra vez o coelho!

E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a queixar-se dos repelões que recebia cada vez mais acelerados.

-Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim com ele! mas não o soltes, hein!

Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou os olhos e pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando os dentes.

Nisto, passos rápidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direção em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa distancia a insociável figura do Bruno.

Não lhe deu tempo a que se aproximasse; de um salto galgou por detrás das bananeiras e desapareceu por entre o matagal de bambus, tão rápido como o coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda o caminho do capinzal.

Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda não tinha acabado de vestir a saia molhada.

-Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes pela boca.

E, antes que ela respondesse, já uma formidável punhada a fazia rolar por terra.

Leocádia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas e pontapés que acabou de amarrar a roupa.

-Agora eu vi! sabes! Nega se fores capaz!

-Vá à pata que o pôs! exclamou ela, com a cara que era um tomate. Já lhe disse que não quero saber de você pra nada, seu bêbedo!

E, vendo que ele ia recomeçar a dança, abaixou-se depressa, segurou com ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e gritou, erguendo-o sobre a cabeça:

-Chega-te pra cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco!

O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou lívido e ofegante.

-Arme a trouxa e rua! sabe?

-Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma ocasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo!

E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:

-Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama! Ou pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve, diabo do sem-préstimo?

-Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu biraia!

-Ah, descanse! que não levarei nada do que é seu, nem preciso!

-Põe essa pedra no chão!

-Um corno! Eu arrumo-ta na cabeça se te chegas pra cá!

-Sim, sim, sim, contanto que te musques por uma vez!

-Pois então despache o beco!

Ele virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano desprezo pelo que se passava.

Só então foi que ela se lembrou do coelho.

-Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direção contrária à do marido.

Este fora ai direito ao cortiço narrar, a quem quisesse ouvir, o que se acabava de dar. O escândalo assanhou a estalagem inteira, como um jato de água quente sobre um formigueiro. «Ora, aquilo tinha de acontecer mais hoje mais amanhã! -Um belo dia a casa vinha abaixo! -A Leocádia parecia não desejar senão isso mesmo!» Mas ninguém atinava com quem diabo pilhara o Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hipóteses; lembrando-se nomes e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfatório. O Albino tentou logo arranjar a reconciliação do casal, jurando que o Bruno estava enganado com certeza e que vira mal. «Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz de tamanha safadagem!» O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e ninguém mais se meteu a congraçá-los.

Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janela cá para fora tudo o que ia encontrando pertencente à mulher. Uma cadeira fez-se pedaços contra as pedras, depois veio um candeeiro de querosene, uma trouxa de roupas, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéus cheias de trapos, uma gaiola de pássaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com fúria ao meio da área, entre o silêncio comovido dos que assistiam ao despejo. Um chim, que entrara para vender camarões e parara distraído perto da janela do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava como criança que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir ninguém gritar mais alto do que ela, caiu-lhe em cima aos murros e o pôs fora do portão com tremenda descompostura. «Era o que faltava que viesse também aquele salamaleque do inferno para azoinar uma criatura mais do que já estava!» Dona Isabel, com as mãos cruzadas sobre o ventre, tinha para aquela destruição um profundo olhar de lástima. Augusta meneava a cabeça tristemente sem conceber como havia mulheres que procuravam homem, tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente, não interrompera sequer o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos nas cadeiras, a sala pelo meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora.

-Sempre os mesmos pedaços de asno!... comentava franzindo o nariz. Se a tola da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam enjoados, e, se ela não toma a sério a borracheira do casamento, dão por paus e por pedras, como esta besta! Uma súcia, todos eles!

Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhe respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasião justamente, um saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se logo um alarido entre as lavadeiras. «Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!... Sebo! que os mais não estavam dispostos a suportar as fúrias de cada um! Quem parira Mateus que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocádia se fosse espojar no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar daquele modo o trabalho da gente, ninguém mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!» Pombinha chegara à porta do número 15, dando fé do barulho, com uma costura na mão, e Nenen, toda afogueada do ferro de engomar, perguntava, com um frouxo riso, se o Bruno ia reformar a mobília da casa. A Rita fingia não ligar importância ao fato e continuava a lavar à sua tina. «Não faziam tanta festa ao tal casamento? Pois que agüentassem! Ela estava bem livre de sofrer uma daquelas!» O velho Libório chegara-se para ver se, no meio da confusão, apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava:

-Sai daí, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pele do rabo!

Um irmão do santíssimo entrara na estalagem, com a sua capa encarnada, a sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro, e parara em meio do pátio, suplicando muito fanhoso: «Uma esmola para a cera do Sacramento!» As mulheres abandonaram por um instante as tinas e foram beijar devotamente a colombina imagem do Espírito Santo. Pingaram na salva moedinhas de vintém.

Todavia, o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saia de novo de casa, dando uma volta feroz à fechadura. Atravessou por entre o murmurante grupo dos curiosos que permaneciam defronte de sua porta, mudo, com a cara fechada, jogando os braços, como quem, apesar de ter feito muito, não satisfizera ainda completamente a sua cólera.

Leocádia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu, partido e inutilizado, apoderou-se de fúria e avançou sobre a porta, que o marido acabava de fechar, arremetendo com as nádegas contra as duas folhas, que cederam logo, indo ela cair lá dentro de barriga para cima.

Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fora e, escancarando a janela com arremesso, começou por sua vez a arrasar e a destruir tudo que ainda encontrara em casa.

Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objeto que ela varria para o pátio, gritava sempre: «Upa! Toma, diabo!»

-Aí vai o relógio! Upa! Toma, diabo!

E o relógio espatifou-se na calçada.

-Aí vai o alguidar!

-Aí vai o jarro!

-Aí vão os copos!

-O cabide!

-O garrafão!

-O bacio!

Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o baralho da louça quebrando-se contra as pedras. E Leocádia já não precisava acompanhar os objetos com a sua frase de imprecação, porque cada um deles era recebido cá fora com um coro que berrava:

-Upa! Toma, diabo!

E a limpeza prosseguia. João Romão acudiu de carreira, mas ninguém se incomodou com a presença dele. Já defronte da porta do Bruno havia uma montanha de cacos acumulados; e o destroço continuava ainda, quando o ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com um raio de roda de carro na mão direita.

Os circunstantes o seguiram, atropeladamente, num clamor.

-Não dá!

-Não pode!

-Prende!

-Não deixa bater!

-Larga o pau!

-Segura!

-Agüenta!

-Cerca!

-Toma o porrete!

E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu desarmara num fecha-fecha.

-Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aproveitando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detrás.

O Alexandre, que vinha chegando do serviço nesse momento, apressou-se a correr para o lugar do conflito e cheio de autoridade intimou o Bruno a que se contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir para a estação no mesmo instante.

-Pois você não vê esta galinha, que apanhei hoje com a boca na botija, não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno, espumando de raiva e quase sem fôlego para falar.

-Porque você pôs em cacos o que é meu! gritou Leocádia.

-Está bom! está bom! disse o polícia, procurando dar à voz inflexões autoritárias e reconciliadoras. Fale cada um por sua vez! Seu marido... acrescentou ele, voltando-se para a acusada, diz que a senhora...

-É mentira! interrompeu ela.

-Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima!

-Quem era? -Quem foi? -Quem era o homem? interrogaram todos a um só tempo.

-Quem era ele, no fim de contas? inquiriu também Alexandre.

-Não lhe pude ver as fuças!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho, arrancava-lhe o sangue pelas costas!

Houve um coro de gargalhadas.

-E mentira! repetiu Leocádia, agora sucumbida por uma reação de lágrimas. Há muito tempo que este malvado anda caçando pretexto para romper comigo e, como eu não lho dou...

Uma explosão de soluços a interrompeu.

Desta vez não riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno do seu pranto.

-Agora... continuou ela, enxugando os olhos na costa da mão; não sei o que será de mim, porque este homem, além de tudo, escangalhou-me até o que eu trouxe quando me casei com ele!...

-Não disseste que já tinhas ai dentro com que ganhar a vida?... É andar!

-É falso! soluçou Leocádia.

-Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle; está tudo terminado! Seu marido vai recebê-la em boa paz...

-Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece!

-Nem eu queria! retorquiu a mulher. Prefiro meter-me com um cavalo de tílburi a ter de aturar este bruto!

E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitável, fez de tudo uma grande trouxa e foi chamar um carregador.

A Rita saiu-lhe ao encontro.

-Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa.

-Não sei, filha, por ai!... Hei de encontrar um furo!... Os cães não vivem?...

-Espere um instante... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa ai para dentro do meu cômodo. -E correndo ao Albino, que lavava: -Passa-me no sabão aquela roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei ir a rua.

Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos ombros o seu xale de crochê e, batendo nas costas da companheira, segredou-lhe:

-Anda cá comigo! não ficarás à toa!

E as duas saíram, ambas sacudidas, deixando atrás de si suspensa a curiosidade do cortiço inteiro.

Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma xícara de café bem grosso, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati «prà cortar a friagem».

Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num trabalho misterioso e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição; para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros.

E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal foi completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de mandioca sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca, pelo vatapá e pelo caruru; a couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão de fubá ao pão de rala, e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos.

E o curioso é que, quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de tornar à terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço, surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias refulgentes e as nuvens tocam de alvos turbantes de cambraia, num luxo oriental de arábicos príncipes voluptuosos.

Ao passo que com a mulher, a S'ora Piedade de Jesus, o caso mudava muito de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta, inteiriça e tapada, recebia a influência do meio só por fora, na maneira de viver, conservando-se inalterável quanto ao moral, sem conseguir, à semelhança do esposo, afinar a sua alma pela alma da nova pátria que adotaram. Cedia passivamente nos hábitos de existência, mas no íntimo continuava a ser a mesma colona saudosa e desconsolada, tão fiel às suas tradições como a seu marido. Agora estava até mais triste; triste porque Jerônimo fazia-se outro; triste porque não se passava um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste, porque chegava a estranhá-lo, a desconhecê-lo, afigurando-se-lhe até que cometia um adultério, quando à noite acordava assustada ao lado daquele homem que não parecia o dela, aquele homem que se lavava todos os dias, aquele homem que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabelos e tinha a boca cheirando a fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o coração a primeira vez em que o cavouqueiro, repelindo o caldo que ela lhe apresentava ao jantar, disse-lhe:

-Ó filha! por que não experimentas tu fazer uns pitéus à moda de cá?...

-Mas é que não sei... balbuciou a pobre mulher.

-Pede então à Rita que to ensine... Aquilo não terá muito que aprender! Vê se me fazes por arranjar uns camarões, como ela preparou aqueles doutro dia. Souberam-me tão bem!

Este resvalamento do Jerônimo para as coisas do Brasil penalizava profundamente a infeliz criatura. Era ainda o instinto feminil que lhe fazia prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a queria para mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa.

Jerônimo, com efeito, pertencia-lhe muito menos agora do que dantes. Mal se chegava para ela; os seus carinhos eram frios e distraídos, dados como por condescendência; já lhe não afagava os rins, quando os dois ficavam a sós, malucando na sua vida comum; agora nunca era ele que a procurava para o matrimônio, nunca; se ela sentia necessidade do marido, tinha de provocá-lo. E, uma noite, Piedade ficou com o coração ainda mais apertado, porque ele, a pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde esse dia não dormiram mais ao lado um do outro. O cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta de entrada, tal qual como havia em casa da Rita.

Uma outra noite a coisa ainda foi pior. Piedade, certa de que o marido não se chegava, foi ter com ele; Jerônimo fingiu-se indisposto, negou-se, e terminou por dizer-lhe, repelindo-a brandamente:

-Não te queria falar, mas... sabes? deves tomar banho todos os dias e... mudar de roupa... Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso trazer o corpo sempre lavado, que senão, cheira-se mel!... Tem paciência!

Ela desatou a soluçar. Foi uma explosão de ressentimentos e desgostos que se tinham acumulado no seu coração. Todas as suas mágoas rebentaram naquele momento.

-Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso!

Ela continuou a soluçar, sem fôlego, dando arfadas com todo o corpo.

O cavouqueiro acrescentou no fim de um intervalo:

-Então, que é isto, mulher? Pões-te agora a fazer tamanho escarcéu, nem que se cuidasse de coisa séria!

Piedade desabafou:

-É que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! Dantes não me achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal!

E os soluços recrudesciam.

-Não digas asnices, filha!

-Ah! eu bem sei o que isto é!...

-E bobagem tua, é o que é!

-Maldita hora em que viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me tivera caldo um calhau na cabeça!

-Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue.

Esta rezinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiudando. Ah! já não havia dúvida que mestre Jerônimo andava meio caldo para o lado da Rita Baiana; não passava pelo número 9, sempre que vinha à estalagem durante o dia, que não parasse à porta um instante, para perguntar-lhe pela «saudinha». O fato de haver a mulata lhe oferecido o remédio, quando ele esteve incomodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amáveis; pôr os seus préstimos à disposição dela e obsequiá-la em extremo todas as vezes que a visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca, a respeito da Leocádia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em protetora da mulher do ferreiro, Jerônimo afetava grande interesse pela «pobrezinha de Cristo».

-Fez bem, Nhá Rita, fez bem!... A se'ora mostrou com isso que tem bom coração...

-Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanha por ti!...

Rita havia aboletado a amiga, a principio em casa de umas engomadeiras do Catete, muito suas camaradas, depois passou-a para uma família, a quem Leocádia se alagou como ama-seca; e agora sabia que ela acabava de descobrir um bom arranjo num colégio de meninas.

-Muito bem! muito bem! aplaudia Jerônimo.

-Ora, o quê! O mundo é largo! sentenciou a baiana. Há lugar pro gordo e há lugar pro magro! Bem tolo é quem se mata!

Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de costume, pela pobrezinha de Cristo, a mulata disse que Leocádia estava grávida.

-Grávida? mas então não é do marido!...

-Pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses...

-Ah! mas ela não foi há mais tempo do que isso?...

-Não. Vai fazer agora pelo São João quatro meses justamente.

Jerônimo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a chegar-se e o último a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo, a ver dançar a mulata, abstrato, pateta, esquecido de tudo; babão. E ela, consciente do feitiço, que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia, dando-lhe embigadas ou fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a barra da saia.

E riam-se.

Não! definitivamente estava caído!

Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remédio que lhe restituísse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ela no quarto, acendeu velas de cera, queimou ervas aromáticas e tirou sorte nas cartas.

E depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ela dispunha sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que saia do baralho uma frase cabalística, declarou convicta, muito calma, sem tirar os olhos das suas cartas:

-Ele tem a cabeça virada por uma mulher trigueira.

-É o diacho da Rita Baiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por dentro! Ai, o meu rico homem!

E a chorar, limpando, aflita, as lágrimas no avental de cânhamo, suplicou à Bruxa, pelas alminhas do purgatório, que lhe remediasse tamanha desgraça.

-Ai, se perco aquela criatura, S'ora Paula, lamuriou a infeliz entre soluços; nem sei que virá a ser de mim neste mundo de Cristo!... Ensine-me alguma coisa que me puxe o Jeromo!

A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e desse a beber ao seu homem, no café pela manhã, algumas gotas das águas da lavagem; e, se no fim de algum tempo, este regime não produzisse o desejado efeito, então cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e lhos ministrasse depois na comida.

Piedade ouviu a receita com um silêncio respeitoso e atento, o ar compungido de quem recebe do médico uma sentença dolorosa para um doente que estimamos. Em seguida, meteu na mão da feiticeira uma moeda de prata, prometendo dar-lhe coisa melhor se o remédio tivesse bons resultados.

Mas não era só a portuguesa quem se mordia com o descaimento do Jerônimo para a mulata, era também o Firmo. Havia muito já que este andava com a pulga atrás da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro, olhava-o atravessado.

O capadócio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava na estalagem; tinha o seu cômodo na oficina em que trabalhava. Só pelos domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu jantar de pândega. Uma vez em que ele gazeara o serviço, o que não era raro, foi vê-la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto à tina com o português. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao número 9, onde ela foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito das suas apreensões, mas também não escondeu o seu mau humor; esteve impertinente e rezingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante o parati, depois do café, só falou em rolos, em dar cabeçadas e navalhadas, pintando-se terrível, recordando façanhas de capoeiragem, nas quais sangrara tais e tais tipos de fama; «não contando dois galegos que mandara pras minhocas, porque isso para ele não era gente -Com um par de cocadas boas ficavam de pés unidos para sempre!» Rita percebeu os ciúmes do amigo e fez que não dera por coisa alguma.

No dia seguinte, às seis horas da manhã, quando ele saia da casa dela, encontrou-se com o português, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu em silêncio para o seu lado.

Rita deliberou prevenir Jerônimo de que se acautelasse. Conhecia bem o amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influência dos ciúmes; mas, na ocasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escândalo acabava de explodir, agora no número 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda.

Marciana andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal desta se desregrara havia três meses, quando, nesse dia, não tendo as duas acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para o quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio.

-Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar inquiridor.

-Não sei, mamãe...

-Que sentes tu?...

-Nada...

-Nada, e estás lançando?... Hein?!

-Não sinto nada, não senhora!...

A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido, levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tateando-lhe o ventre, já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligências, correu a chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla, sem se alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao número 12; tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe várias perguntas e mais à mãe, e depois disse friamente:

-Está de barriga.

E afastou-se, sem um gesto de surpresa, nem de censura.

Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no seio e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando escapar-lhe, berrava como uma louca.

Abandonaram-se logo todas as tinas do pátio e algumas das mesas do frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o número 12, batendo na porta e ameaçando entrar pela janela.

Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no chão, perguntava-lhe gritando e repetindo:

-Quem foi?! Quem foi?!

E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas.

-Quem foi?!

A pequena berrava, mas não respondia.

-Ah! não queres dizer por bem? Ora espera!

E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura no canto da sala.

Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a janela e caiu de um salto lá fora, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove palmos de altura.

As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendê-la da mãe, que surgiu logo à porta, ameaçando para o grupo, terrível e armada de pau.

Todos procuraram chamá-la à razão:

-Então que é isso, tia Marciana?! Então que é isso?!

-Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está ai o que é! Para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás dela se matando, como sucede sempre que há um pouco mais de serviço e é necessário puxar pelo corpo! Ora está ai o que é!

-Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você lhe dá cabo da pele!

-Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer quem foi ou quebro-lhe os ossos!

-Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das Dores.

Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido, cheio de curiosidade.

-Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não!

E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete, porque a velha queria crescer de novo para a filha.

Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam todos por saber quem a tinha emprenhado. «Quem foi?! Quem foi?!» esta frase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remédio:

-Foi seu Domingos... disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a fralda do vestido, rasgado na luta.

-O Domingos!...

-O caixeiro da venda!...

-Ah! foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem cá!

E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até à venda.

Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira.

A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorrência.

Ao balcão daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa roda-viva. Havia muitos negros e negras. O baralho era enorme. A Leonor lá estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mostrando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes de mãos de couro nas suas magras e escorridas nádegas de negrinha virgem Três marujos ingleses bebiam gengibirra, cantando, ébrios, na sua língua e mascando tabaco.

Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que a seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da venda, berrou:

-Ó seu João Romão!

-Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de serviço.

Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu à porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida, gritou para seu homem:

-Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!

Ele veio afinal.

Que diabo era aquilo?

-Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar conta dela!

João Romão ficou perplexo.

-Hein! Que é lá isso?!

-Foi o Domingos! disseram muitas vozes.

-Ó seu Domingos!

O caixeiro respondeu: «Senhor...» com uma voz de delinqüente.

-Chegue cá!

E o criminoso apresentou-se, lívido de morte.

-Que fez você com esta pequena?

-Não fiz nada, não senhor!...

-Foi ele, sim! desmentiu-o a Florinda. -O caixeiro desviou os olhos, para a não encarar. -Um dia de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal, debaixo das mangueiras...

O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de gargalhadas.

-Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o patrão, meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda e, como não gosto de caixeiros amigados, pode procurar arranjo noutra parte!...

Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se lentamente.

O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda, pelo portão da esta agem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em pequenos magotes que discutiam o fato. Principiaram os comentários, os juízos pró e contra o caixeiro; fizeram-se profecias.

Entretanto, Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa.

-Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?

Ele não deu resposta.

-Vamos! vamos! fale! desembuche!

Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera. Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é menor!

Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.

-Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!

E despejou da venda, gritando para todos:

-Sabe? O cara de nabo diz que não casa!

Esta frase produziu o efeito de um grito de guerra entre as lavadeiras, que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação.

-Como, não casa?!...

-Era só o que faltava!

-Tinha graça!

-Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha?

-Se não queria casar pra que fez mal?

-Quem não pode com o tempo não inventa modas!

-Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!

-Quem não quer ser loto não lhe vista a pele!

A mais empenhada naquela reparação era a Machona, e a mais indignada com o fato era a Dona Isabel. A primeira correra à frente da venda, disposta a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo não tardou que em cada porta, onde era possível uma escapula, se postassem as outras de sentinela, formando grupos de três e quatro. E, no meio de crescente algazarra, ouviam-se pragas ferozes e ameaças:

-Das Dores! toma cuidado, que o patife não espirre por ai!

-Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-no-lo pra cá! Temos ainda algumas pequenas que lhe convêm!

-Mas onde está esse ordinário?!

-Saia o canalha!

-Está fazendo a trouxa!

-Quer escapar!

-Não deixe sair!

-Chame a polícia!

-Onde está o Alexandre?

E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro foi ter com o Domingos.

-Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais lhe direi o que deve fazer.

E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:

-Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!

-Pois então o homem que case! responderam.

-Ou dê-nos pra cá o patife!

-Fugir é que não!

-Não foge! não deixa fugir!

-Ninguém se arrede!

E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o com o punho fechado, o taverneiro jurou que se ela insistisse com desaforos, a mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.

-Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não posso perder tempo!

-Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.

-Venha o homem! acompanhou o coro.

-É preciso dar-lhe uma lição!

-O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei... Está perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!

Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras afrouxou; João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não arredasse pé de casa antes de noite fechada.

-No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui. Estamos quites.

-Como? se o senhor ainda não me fez as contas?!...

-Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da rapariga!...

-Então eu tenho de pagar um dote?!...

-Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa dinheiro! Agora, se você quiser, vá queixar-se à policia... Está no seu direito! Eu me explicarei em juízo!...

-Com que, não recebo nada?...

-E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar às turras lá fora com esses danados! Você bem viu como estão todos a seu respeito! E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados, agradeça-o a mim! Foi preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! mas não é justo, nem eu admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto a pagar os caprichos de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros!

-Mas...

-Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar calado; ao contrário rua!

E afastou-se.

Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte «para ver só!» O que nesse ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la muitas vezes, como costumava, sempre que tinha lá as suas zangas.

O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só instante. Não se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite, Augusta e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Léonie, era ainda esse o principal assunto das conversas.

Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à francesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um salto de quatro dedos de altura; as suas lavas de vinte botões que lhe chegavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de velado escarlate, com um pássaro inteiro grudado à copa; as suas jóias caprichosas, cintilantes de pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que de todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Jujú, como vinha tão embonecada e catita, ficou com os dela arrasados de água.

Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos como os dela e dava-lhe jóias. Mas, naquele dia, a grande novidade que Jujú apresentava era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por natureza. Foi caso para uma revolução na estalagem; a noticia correu logo de número a número, e muitos moradores se abalaram do cômodo para ver a filhita da Augusta «com cabelos de francesa».

Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era o que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções do oficio. Prostituta de casa aberta, prezava todavia com admiração e respeito a honestidade vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obséquios de toda a espécie. Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus amigos simplórios, que a matariam de ridículo em qualquer outro lugar, nem ela parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não queria preferências: assentava-se no primeiro banco, bebia água pela caneca de folha, tomava ao colo o pequenito da comadre e, às vezes, descalçava os sapatos para enfiar os chinelos velhos que encontrasse debaixo da cama.

Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na. Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde reluziam dentes mais alvos que um marfim.

Jujú, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca, como um ídolo milagroso, que todos queriam beijar.

E os elogios não cessavam:

-Rica pequena!...

-É um enlevo olhar a gente pro demoninho!

-É mesmo uma lindeza de criança!

-Uma criaturinha dos anjos!

-Uma boneca francesa!

-Uma menina Jesus!

O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos, patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna, que Deus lhe dera à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.

E, enquanto Jujú percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discreteava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote, que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e coberta de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe pousou no ombro a mãozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ela, de admirá-la; chegavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as salas, apalpar-lhe as meias, levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de tanto luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida. Piedade declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa Senhora da Penha. E Nenen, no seu entusiasmo, disse que a invejava do fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque a achava deveras bonita. «Ora! era preciso ser bem esperta e valer muito para arrancar assim da pele dos homens ricos aquela porção de jóias e todo aquele luxo de roupa por dentro e por fora!»

-Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira; seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona das suas ações! livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!

-E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...

-Ah! esclareceu Augusta. Não está ai, foi à sociedade de dança com a mãe.

E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados, mediante dois mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do comércio aprendiam a dançar.

-Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.

-Que Costa?

-O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?

-Ah! sei...

E a cocote perguntou depois, abafando a voz:

-E aquilo?... Já veio afinal?...

-Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anunciação... mas não há meio!

Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie recusou por não poder beber. «Estava em uso de remédios...» Não disse, porém, quais eram estes, nem para que moléstia os tomava.

-Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.

E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de dez mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg.

A vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enternecido. A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos circunstantes, reservando um para si. Não chegavam. Quis mandar buscar mais; não lho permitiram, objetando que duas e três pessoas podiam beber juntas.

-Para que gastar tanto?... Que alma grande!

O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infinita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.

-Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie

-Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre tem precisão de alguma... pode-se aprontar com mais pressa...

-Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é verdade! também tenho poucas.

-Depois d'amanhã está tudo lá.

E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo rapaz que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no portão, à espera.

-É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...

-Não. É um mais alto. De cartola branca.

Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie ficou contrariada.

-Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por ai ou incomodar alguém que me acompanhe!

-Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser, arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre depressa!...

Não! não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte pela manhã iriam procurá-la muito cedo.

Nisto chegou Pombinha com Dona Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie estava em casa do Alexandre, e a menina deixou a mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali, radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.

-Então, minha flor, como está essa lindeza! perguntou-lhe, mirando-a toda.

-Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda pura.

E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se, isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha de prata que lhe trouxera; uma tetéia que valia só pela esquisitice, representando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de mão em mão, levantando espantos e gargalhadas.

-Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua conversa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu estaria longe. -E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: -Por que não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada... Já lá têm ido famílias!...

-Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.

-Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...

-Se mamãe deixar... Olha! ela ai vem. Peça.

Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina:

-Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?

Jujú dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.

Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:

-Não lhe caia o queixo!...

O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d'ombros.

-Aquela pra cá nem pintada!

E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e bateu com o tamanco na canela da mulata.

-Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lugar da pancada. Sempre há de mostrar que é galego!

No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no Jornal do Comércio que Sua Excelência fora agraciado pelo governo português com o titulo de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem prevenidos para ir cumprimentá-lo no domingo, o negociante dispunha-se a recebê-los condignamente.

Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, via-se nas janelas do sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Isaura, a sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau, os olhos fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pancada se levantava, como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos criados para aqueles dias. No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e na cozinha havia rebuliço. Dona Estela, de penteador de cambraia enfeitado de laços cor-de-rosa, era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro, a dar as suas ordens, abanando-se com um grande leque; ou aparecia no patamar da escada do fundo, preocupada em soerguer as saias contra as águas sujas da lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira também ia e vinha, com a sua palidez fria e úmida de menina sem sangue. Henrique, de paletó branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a instante, chegava à janela, para namoriscar Pombinha, que fingia não dar por isso, toda embebida na sua costura, à porta do número 15, numa cadeira de vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda azul e um sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo espaço, ela desviava os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a figura gorda e encanecida do novo Barão, sobre-casacado, com o chapéu alto derreado para trás na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava a sala de jantar, seguia até a despensa, diligente esbaforido, indagando se já tinha vindo isto e mais aquilo, provando dos vinhos que chegavam em garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda, dando ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair, sempre apressado, e metia-se no carro que o esperava à porta da rua.

-Toca! toca! Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!

E viam-se chegar, quase sem intermitência, homens carregados de gigos de champanha, caixas de Porto e Bordéus, barricas de cerveja, cestos e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus e leitões, canastras de ovos, quartos de carneiro e de porco. E as janelas do sobrado iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, saído do fogo, e travessões, de barro e de ferro, com grandes peças de carne em vinha de alhos, prontos para entrar no forno. À porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pele.

Todavia, cá embaixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos, o sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o substituía ao balcão.

O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido:

-Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...

-Mas você disse que respondia por ele! repontou Marciana, que parecia ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte e quatro horas.

-De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter paciência!

-Pois então ande com o dote!

-Que dote? Você está bêbeda?

-Bêbeda, hein? Ah, corja! tão bom é um como o outro! Mas eu hei de mostrar!

-Ora, não me amole!

E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se chegara.

-Deixa estar, malvado, que Deus é quem há de punir por mim e por minha filha! exclamou a desgraçada.

Mas o vendeiro afastou-se, indiferente às frases que uma ou outra lavadeira imprecava contra ele. Elas, porém, já se não mostravam tão indignadas como na véspera; uma só noite rolada por cima do escândalo bastava para tirar-lhe o mérito de novidade.

Marciana foi com a pequena à procura do subdelegado e voltou aborrecida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse o delinqüente. Mãe e filha passaram todo esse sábado na rua, numa roda-viva, da secretaria e das estações de polícia para o escritório de advogados que, um por um, lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo, despachando-as, sem mais considerações, logo que se inteiravam da escassez de recursos de ambas as partes.

Quando as duas, prostradas de cansaço, esbraseadas de calor, tornaram à tarde para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali moravam, recolhiam-se já com os balaios vazios ou com o resto da fruta que não conseguiram vender na cidade, Marciana vinha tão furiosa que, sem dar palavra à filha e com os braços moídos de esbordoá-la, abriu toda a casa e correu a buscar água para baldear o chão. Estava possessa.

Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto uma porcaria! Parece que nunca se limpa o diabo desta casa! É deixá-la fechada uma hora e morre-se de fedor! Apre! isto faz peste!

E notando que a pequena chorava:

-Agora deste para chorar; hein? mas na ocasião do relaxamento havias de estar bem disposta!

A filha soluçou.

-Cala-te, coisa-ruim! Não ouviste?

Florinda soluçou mais forte.

-Ah! choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com razão.

E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.

Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma só carreira o pátio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.

Ninguém teve tempo de apanhá-la, e um clamor de galinheiro assustado levantou-se entre as lavadeiras.

Marciana foi até o portão, como uma doida e, compreendendo que a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos, olhando para o espaço. As lágrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo, sem transição, disparou da cólera, que a convulsionava desde a manhã da véspera, para cair numa dor humilde e enternecida de mãe que perdeu o filho.

-Para onde iria ela, meu pai do céu?

-Pois você desd'ontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita. Fugiu-lhe, é bem feito! Que diabo! ela é de carne, não é de ferro!

-Minha filha!

-É bem feito! Agora chore na cama que é lugar quente!

-Minha filha! Minha filha! Minha filha!

Ninguém quis tomar o partido da infeliz, à exceção da cabocla velha, que foi colocar-se perto dela, fitando-a imóvel, com o seu desvairado olhar de bruxa feiticeira.

Marciana arrancou-se da abstração plangente em que caíra, para arvorar-se terrível defronte da venda, apostrofando com a mão no ar e a carapinha desgrenhada:

-Este galego e que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão! Se não me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa.

A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas últimas palavras.

O vendeiro chegou à porta e ordenou em tom seco à Marciana que despejasse o número 12.

-É andar! É andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um urbano! Dou-lhe uma noite! amanhã pela manhã -rua!

Ah! ele esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais de uma vez mandara Bertoleza à coisa mais imunda, apenas porque esta lhe fizera algumas perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinha visto assim, tão fora de si, tão cheio de repelões; nem parecia aquele mesmo homem inalterável, sempre calmo e metódico.

E ninguém seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o fato de ter sido o Miranda agraciado com o titulo de Barão.

Sim, senhor! aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão miserável; aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães, para pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos de homem; aquele desgraçado, que nunca jamais amara senão o dinheiro, invejava agora o Miranda, invejava-o deveras, com dobrada amargura do que sofrera o marido de Dona Estela, quando, por sua vez, o invejara a ele. Acompanhara-o desde que o Miranda viera habitar o sobrado com a família; vira-o nas felizes ocasiões da vida, cheio de importância, cercado de amigos e rodeado de aduladores; vira-o dar festas e receber em sua casa as figuras mais salientes da praça e da política; vira-o luzir, como um grosso pião de ouro, girando por entre damas da melhor e mais fina sociedade fluminense; vira-o meter-se em altas especulações comerciais e sair-se bem; vira seu nome figurar em várias corporações de gente escolhida e em subscrições, assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas de caridade e festas de regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e aclamado como homem de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim em todas as suas prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho deslumbramento! quando o vendeiro leu no Jornal do Comércio que o vizinho estava barão -Barão!- sentiu tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por um instante se lhe apagou dos olhos.

-Barão!

E durante todo o santo dia não pensou noutra coisa. «Barão!... Com esta é que ele não contava!...» E, defronte da sua preocupação, tudo se convertia em comendas e crachás; até os modestos dois vinténs de manteiga, que media sobre um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguês, transformava-se, de simples mancha amarela, em opulenta insígnia de ouro cravejada de brilhantes.

À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir, não pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas paredes imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebremente velados pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se iam transformando em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e espécie. E em volta do seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbilhão de grandezas, que ele mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, veludo e pérolas, colos e braços de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de vinhos cor de ouro. E nuvens de caudas de vestidos e abas de casaca lá iam, rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e à luz de candelabros de mil velas de todas as cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma coroa à portinhola, o cocheiro teso, de libré, sopeando parelhas de cavalos grandes. E intermináveis mesas estendiam-se, serpenteando a perder de vista, acumuladas de iguarias, numa encantadora confusão de flores, luzes, baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de convivas, de taça em punho, brindando o anfitrião.

E, porque nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo ruído namorador e fátuo, ficava deslumbrado com o seu próprio sonho. Tudo aquilo, que agora lhe deparava o delírio, até ai só lhe passara pelos olhos ou lhe chegara aos ouvidos como o eco e reflexo de um mundo inatingível e longínquo; um mundo habitado por seres superiores; um paraíso de gozos excelentes e delicados, que os seus grosseiros sentidos repeliam; um conjunto harmonioso e discreto de sons e cores mal definidas e vaporosas; um quadro de manchas pálidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem contornos, em que se não determinava o que era pétala de rosa ou asa de borboleta, murmúrio de brisa ou ciciar de beijos.

Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda, estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua e gordura podre.

Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo aquele voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra, chegando-se para o seu alcance, lentamente, acentuando-se. E as dúbias sombras tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em falas distintas, e as linhas desenhavam-se nítidas, e tudo se ia esclarecendo e tudo se aclarava, num reviver de natureza ao raiar do sol. Os tênues murmúrios suspirosos desdobravam-se em orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam política, artes, literatura e ciência. E uma vida inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos seus olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro; uma vida em palácio, entre mobílias preciosas e objetos esplêndidos, onde ele se via cercado de titulares milionários, e homens de farda bordada, a quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a mão no ombro. E ali ele não era, nunca fora, o dono de um cortiço, de tamancos e em mangas de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do ouro! o Barão das grandezas! o Barão dos milhões! Vendeiro? Qual! era o famoso, o enorme capitalista! o proprietário sem igual! o incomparável banqueiro, em cujos capitais se equilibrava a terra, como imenso globo em cima de colunas feitas de moedas de ouro. E viu-se logo montado a cavaleiras sobre o mundo, pretendendo abarcá-lo com as suas pernas curtas; na cabeça uma coroa de rei e na mão um cetro. E logo, de todos os cantos do quarto, começaram a jorrar cascatas de libras esterlinas, e a seus pés principiou a formar-se um formigueiro de pigmeus em grande movimento comercial; e navios descarregavam pilhas e pilhas de fardos e caixões marcados com as iniciais do seu nome; e telegramas faiscavam eletricamente em volta da sua cabeça; e paquêtes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente em torno do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem trégua; e rápidos comboios a vapor atravessam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com uma cadeia de vagões.

Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte frase:

-Acorda, seu João, para ir à praia. São horas!

Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manhãs, para ir buscar o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses. João Romão, com medo de ser iludido, não confiava nunca aos empregados a menor compra a dinheiro; nesse dia, porém, não se achou com ânimo de deixar a cama e disse à amiga que mandasse o Manuel.

Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo sono.

Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já. Içaram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas, armaram-se florões de murta à entrada e recamaram-se de folhas de mangueira o corredor e a calçada. Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar bombas ao romper da alvorada. Uma banda de música, em frente à porta do sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara com a família; todo de branco, com uma gravata de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava de vez em quando a uma das janelas, ao lado da mulher ou da filha, agradecendo para a rua; e limpava a testa com o lenço; acendia charutos, risonho, feliz, resplandecente.

João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas aborrecidas entravam-lhe agora a roer por dentro. Qual seria o melhor e o mais acertado: -ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas coisas e gozando à farta?... Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e desfrutar tratamento igual ao do vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para isso... Sim, de acordo! mas teria animo de gastá-lo assim, sem mais nem menos?... sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente acumulados, em troca de uma tetéia para o peito?... Teria animo de dividir o que era seu, tomando esposa, fazendo família; e cercando-se de amigos?... Teria animo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos outros, quando até ali fora tão pouco condescendente para com a própria?... E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e volver-se titular, estaria apto para o fazer?... Poderia dar conta do recado?... Dependeria tudo isso somente da sua vontade?... «Sem nunca ter vestido um paletó, como vestiria uma casaca?... Com aqueles pés, deformados pelo diabo dos tamancos, criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E suas mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro, como se ajeitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difícil seria o que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?...»

E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas. Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo o seu ouro.

Fora uma besta!... pensou de si próprio, amargurado: Uma grande besta!... Pois não! por que em tempo não tratara de habituar-se logo a certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de profissão?... Por que, como eles, não aprendera a dançar? e não freqüentar sociedades carnavalescas? e não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e aos teatros e bailes, e corridas e a passeios?... Por que se não habituara com as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com o charuto, e com o chapéu, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam naturalmente, sem precisar de privilégio para isso?... Maldita economia!»

-Teria gasto mais, é verdade!... Não estaria tão bem!... mas, ora adeus! estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!... Seria um homem civilizado!...

-Você deu hoje para conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distraído do serviço.

-Deixe! Não me amole você também. Não estou bom hoje!

-Ó gentes! não falei por mal!... Credo!

-'Stá bem! Basta!

E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar com tudo. Arranjou logo uma pêga, à entrada da venda, com o fiscal da rua: «Pois ele era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?... Se o bolas do fiscal esperava comê-lo por uma perna, como costumava fazer com os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que ele não gostava de cães à porta!... Era andar!» Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato desta, que, a semana passada, lhe fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava defronte das tinas vazias, encolerizado, procurando pretextos para ralhar. Mandava, com um berro, saírem as crianças de seu caminho: «Que praga de piolhos! Arre, demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam ratas!» Deu um encontrão no velho Libório.

-Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta pra nada!

Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os italianos, porque estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta da casa uma esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam tagarelando, assentados sobre a janela e a calçada.

-Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu!

Com a pobre velha Marciana, que não tratara de despejar o número 12, conforme a intimação da véspera, a sua fúria tocou ao delírio. A infeliz, desde que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando com persistência maníaca. Não pregou olho durante toda a noite; saíra e entrara na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma cadela a quem roubaram o cachorrinho.

Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam. João Romão falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o numero 12.

-Os tarecos fora! e já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca!

E tinha gestos inflexíveis de déspota.

Principiou o despejo.

-Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele, quando os carregadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão! Lá fora do portão!

E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo de curiosos. Mas ninguém entendia o que ela rosnava; era um rabujar confuso, interminável, acompanhado de um único gesto de cabeça, triste e automático. Alí perto, o colchão velho, já roto e destripado, os móveis desconjuntados e sem verniz, as trouxas de molambos úteis, as louças ordinárias e sujas do uso, tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco instrumentos, que, aos domingos, aparecia sempre; e fez-se o entra-e-sai dos mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os tabuleiros de roupa engomada, que saíam, cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que entravam; e Marciana não se movia do seu lugar, monologando. João Romão percorreu o número 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para fora, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que lá ficara abandonado; e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando, agora de novo compungidas, e faziam-lhe oferecimentos; Marciana não respondia. Quiseram obrigá-la a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção a coisa alguma, parecia não dar pela presença de ninguém. Chamaram-na pelo nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem tirar a vista de um ponto.

-Cruzes! parece que lhe deu alguma!

A Augusta chegara-se também.

-Teria ensandecido?... perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava para a infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada!

-Tia Marciana! dizia a mulata. Não fique assim!! Levante-se! Meta os seus trens pra dentro! Vá lá pra casa até encontrar arrumação!...

Nada! O monólogo continuava.

-Olhe que vai chover! Não tarda a cair água! Já senti dois pingos na cara.

Qual!

A Bruxa, a certa distancia, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel, como um efeito de sugestão.

Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores também veio. Deram três horas da tarde. A casa do Miranda continuava em festa animada, cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a música quase que não tomava fôlego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dançavam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar à despensa e à cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho, aparecia de quando em quando à janela, impaciente por não ver Pombinha, que estava esse dia de passeio com a mãe em casa de Léonie.

João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se de que tudo ali ia muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o próprio Jerônimo, cuja força física aliás o intimidara sempre. «Era um relaxamento aquela porcaria de serviço! Havia três semanas que estava com uma broca à-toa, sem atar, nem desatar; afinal aí chegara o domingo e não se havia ainda lascado fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes tão apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo! perdia noites no samba! não largava os rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela! Não tinha jeito!» Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem, saltou em defesa deste com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se, assanhando todos os ânimos. Felizmente, a chuva, caindo em cheio, veio dispersar o ajuntamento que se tornava sério. Cada um correu para o seu buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e vieram cá fora tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá defronte, no sobrado, ferviam brindes, enquanto a água jorrava copiosamente, alagando o pátio.

Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um caixeiro entregou-lhe um cartão de Miranda. Era um convite para lá ir à noite tomar uma chávena de chá.

O vendeiro, a principio, ficou lisonjeado com o obséquio, primeiro desse gênero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a cólera com mais ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um ultraje, uma provocação. «Por que o pulha o convidara, devendo saber que ele decerto lá não ia?... Para que, se não para o infrenesiar ainda mais do que já estava?!... Seu Miranda que fosse à tábua com a sua festa e com os seus títulos!»

-Não preciso dele para nada!... exclamou o vendeiro. Não preciso, nem dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu!

No entanto, começou a imaginar como seria, no caso que estivesse prevenido de roupa e aceitasse o convite: figurou-se bem vestido, de pano fino, com uma boa cadeia de relógio, uma gravata com alfinete de brilhantes; e viu-se lá em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados, prestando atenção a um, prestando atenção a outro, discretamente silencioso e afável, sentindo que o citavam dos lados em voz mortiça e respeitosa como um homem rico, cheio de independência. E adivinhava os olhares aprobativos das pessoas sérias; os óculos curiosos das velhas assestados sobre ele, procurando ver se estaria ali um bom arranjo para uma das filhas de menor cotação.

Nesse dia serviu mal e porcamente aos fregueses; tratou aos repelões a Bertoleza e, quando, já as cinco horas, deu com a Marciana, que, uns negros por compaixão haviam arrastado para dentro da venda, disparatou:

-Ora bolas! pra que diabo me metem em casa este estupor?! Gosto de ver tais caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é acoito de vagabundos!...

E, como um polícia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um gole de parati, João Romão voltou-se para ele e disse-lhe: Camarada, esta mulher é gira! não tem domicilio, e eu não hei de, quando fechar a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!

O soldado saiu e, daí a coisa de uma hora, Marciana era carregada para o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monólogo de demente. Os cacaréus foram recolhidos ao depósito público por ordem do inspetor do quarteirão. E a Bruxa era a única que parecia deveras impressionada com tudo aquilo.

Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reapareceu, como para despedir-se; andorinhas esgaivotaram no ar; e o cortiço palpitou inteiro na trêfega alegria do domingo. Nas salas do barão a festa engrossava, cada vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de lá uma taça quebrar-se no pátio da estalagem, levantando protestos e surriadas.

A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que começou ainda com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda.

Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia para a coisa; estava inspirada! divina! Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade!

Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano com línguas finíssimas de cobra.

Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana, ofegante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o português segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão:

-Meu bem! se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!

O mulato não ouviu, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a rondar disfarçadamente o rival.

O canto e a dança continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das Dores. Nenen, mais uma amiga sua, que fora passar o dia com ela, rodavam de mãos nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas cadenciadas, no acompanhamento do ritmo requebrado da musica.

Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho à Rita, Firmo precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabo.

Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo silêncio. Ninguém se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda, iluminados amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens, perfilados defronte um do outro, olhavam-se em desafio.

Jerônimo era alto, espadaúdo, construção de touro, pescoço de Hércules, punho de quebrar um coco com um murro: era a força tranqüila, o pulso de chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo que o português, pernas e braços secos, agilidade de maracajá: era a força nervosa; era o arrebatamento que tudo desbarata no sobressalto do primeiro instante. Um, sólido e resistente; o outro, ligeiro e destemido, mas ambos corajosos.

-Senta! Senta!

-Nada de rolo!

-Segue a dança, gritaram em volta.

Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.

O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima do mulato.

-Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!... rosnou ele.

-Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu Firmo, frente a frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bamboleando todo o corpo e meneando os braços, como preparado para agarrá-lo.

Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com um soco armado; o cabra, porém, deixou-se cair de costas, rapidamente, firmando-se nas mãos o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco passou por cima, varando o espaço, enquanto o português apanhava no ventre um pontapé inesperado.

-Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato, quando uma cabeçada o atirou no chão.

-Levanta-se, que não dou em defuntos! exclamou o Firmo, de pé, repetindo a sua dança de todo o corpo.

O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na orelha. Furioso, desferiu novo soco, mas o capoeira deu para trás um salto de gato e o português sentiu um pontapé nos queixos.

Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Então fez-se um clamor medonho. As mulheres quiseram meter-se de permeio, porém o cabra as emborcava com rasteiras rápidas, cujo movimento de pernas apenas se percebia. Um horrível sarilho se formava. João Romão fechou às pressas as portas da venda e trancou o portão da estalagem, correndo depois para o lugar da briga. O Bruno, os mascates, os trabalhadores da pedreira, e todos os outros que tentaram segurar o mulato, tinham rolado em torno dele, formando-se uma roda limpa, no meio da qual o terrível capoeira, fora de si, doido, reinava, saltando a um tempo para todos os lados, sem consentir que ninguém se aproximasse. O terror arrancava gritos agudos. Estavam já todos assustados, menos a Rita que, a certa distância, via, de braços cruzados, aqueles dois homens a se baterem por causa dela; um ligeiro sorriso encrespava-lhe os lábios. A lua escondera-se; mudara o tempo; o céu, de limpo que estava, fizera-se cor de lousa; sentia-se um vento úmido de chuva. Piedade berrava, reclamando polícia; tinha levado um troca-queixos do marido, porque insistia em tirá-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se de gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.

Nisto, ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo acabava de receber, sem esperar, uma formidável cacetada na cabeça. É que Jerônimo havia corrido à casa e armara-se com o seu varapau minhoto. E então o mulato, com o rosto banhado de sangue, refilando as presas e espumando de cólera, erguera o braço direito, onde se viu cintilar a lâmina de uma navalha.

Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa, cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por cima dos outros. Albino perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em soluços, que lhe iam matar o homem; a das Dores soltava censuras e maldições contra aquela estupidez de se destriparem por causa de entrepernas de mulher; a Machona, armada com um ferro de engomar, jurava abrir as fuças a quem lhe desse um segundo coice como acabava ela de receber um nas ancas; Augusta enfiara pela porta do fundo da estalagem, para atravessar o capinzal e ir à rua ver se descobria o marido, que talvez estivesse de serviço no quarteirão. Por esse lado acudiam curiosos e o pátio enchia-se de gente de fora. Dona Isabel e Pombinha, de volta da casa de Léonie, tiveram dificuldade em chegar ao número 15 onde, mal entraram, fecharam-se por dentro, praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se da sorte que as lançou naquele inferno. Entanto, no meio de uma nova roda, encintada pelo povo, o português e o brasileiro batiam-se.

Agora a luta era regular: havia igualdade de partidos, porque o cavouqueiro jogava o pau admiravelmente; jogava-o tão bem quanto o outro jogava a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcançá-lo; Jerônimo, sopesando ao meio a grossa vara na mão direita, girava-a com tal perícia e ligeireza em torno do corpo, que parecia embastilhado por uma teia impenetrável e sibilante. Não se lhe via a arma, só se ouvia um zunido do ar simultaneamente cortado em todas as direções.

E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha já recebido pauladas na testa, no pescoço, nos ombros, nos braços, no peito, nos rins e nas pernas. O sangue inundava-o inteiro; ele rugia e arfava, iroso e cansado, investindo ora com os pés, ora com a cabeça, e livrando-se daqui, livrando-se dali, aos pulos e às cambalhotas.

A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores aclamavam-no já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num relance, até as canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grupado nele, rasgando-lhe o ventre com uma navalhada.

Jerônimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os intestinos.

-Matou! Matou! Matou! exclamaram todos com assombro.

Os apitos esfuziaram mais assanhados.

Firmo varou pelos fundos do cortiço e desapareceu no capinzal.

-Pega! Pega!

-Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o corpo ensangüentado do marido. Rita viera também de carreira lançar-se ao chão junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos.

-É preciso o doutor! suplicou aquela, olhando para os lados à procura de uma alma caridosa que lhe valesse.

Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.

-Abre! Abre! reclamavam de fora.

João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a todos:

-Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta!

-Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro.

E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.

-Agüenta! Agüenta!

Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e da mulata.

-Agüenta! Agüenta!

De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha, varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! «Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher!» mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida.

-Não entra! Não entra!

E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam ferozes.

A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que penetrava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.

E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas, arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal, formando às pressas uma barricada.

As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás dela. Os que entravam de fora por curiosidade não puderam sair e viam-se metidos no surumbamba. As cercas das hortas voaram. A Machona terrível fungara as saias e empunhava na mão o seu ferro de engomar. A das Dores, que ninguém dava nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais empenhada na defesa.

Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas; e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.

Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar ninguém por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas praças abandonavam o campo, à falta de ar.

Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de desforço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam fogo. O único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob uma carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros. O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro, mestre na capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano.

-Fora os morcegos!

-Fora! Fora!

E, a cada exclamação, tome pedra! tome lenha! tome cal! tome fundo de garrafa!

Os apitos estridulavam mais e mais fortes.

Nessa ocasião, porém, Nenen gritou, correndo na direção da barricada.

-Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo fumaça!

-Fogo!

A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço. Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega um olho!

Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram com ímpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como quem destroça uma boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas as praças, loucas de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e quebrando tudo, sequiosas de vingança.

Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estridente e um grande pé-d'água desabou cerrado.

A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do juízo e tentou incendiar o cortiço.

Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as conseqüências foram do mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o providencial aguaceiro apagar também o outro incêndio ainda pior, que, de parte a parte, lavrava nos ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum preso. «A ir um iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? o que ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!»

Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho, depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do destroço. O tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da aurora já muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no pátio, avaliando e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo voltasse aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar novas tinas; fabricar novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a remendar o portão e a tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do subdelegado na secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos do cortiço o acompanharam, quer por espírito de camaradagem, quer por simples curiosidade.

Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria; algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguém tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça, comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola.

A sala da polícia encheu-se.

O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autoridade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam da polícia, exagerando as perdas recebidas na véspera.

A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taverneiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasião se achava ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as praças lhe invadiram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se aquilo lá fosse roupa de francês!

-Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!

Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resistência. «Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos, quando lhes não saia alguém pela frente! Esbodegavam até à última, só pelo gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?... Tinha lá jeito? Os rolos era sempre a polícia quem os levantava com as suas fúrias! Não se metesse ela na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e não seria tanto barulho!...» Como de costume, o espírito de coletividade, que unia aquela gente em circulo de ferro, impediu que transpirasse o menor vislumbre de denúncia. O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma alacridade mais quente ainda que a da ida.

Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que nenhum deles, e muito menos a vitima, seria capaz de apontar o criminoso; tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia, desceu da casa do Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar deste o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. «Não fora nada!... Não fora de propósito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a menor intenção de fazer-lhe mossa!...»

Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi ela quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao medico e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo se achou operado, não lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, não fazia senão chorar e arreliar-se.

A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se àquele homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele Hércules tranqüilo que mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-fé, se deixara navalhar pelo facínora. «E tudo por causa dela! só por ela!» Seu coração de mulher rendia-se cativo a semelhante dedicação ensangüentada e dolorosa. E ele, o mísero, interrompia as contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia gozar dos seus carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido, sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.

Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu, ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão feminil. E ali mesmo em presença da mulher dele só faltava beijá-lo com a boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.

Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato, enquanto o vendeiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia, e o resto do cortiço formigava, tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jerônimo, ao lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital.

As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda a estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para debaixo das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a campanha da véspera sem variar o assunto. Aqui era um que lembrava as suas proezas com os urbanos, descrevendo entusiasmado os pormenores da luta; ali, outro repetia, cheio de empáfia, os desaforos que dissera depois nas bochechas da autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recriminações; cada qual, mulheres e homens, sofrera o seu prejuízo ou a sua arranhadura, e mostravam entre si, numa febre de indignação, os objetos partidos ou a parte do corpo escoriada.

Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem. A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto dela, porem não conseguiu dormir: sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga, a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar com febre.

A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois de mudar-lhe a roupa, o viu pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao mercado; gargarejou um pouco da água à torneira da cozinha e foi fazer fogo para o café dos trabalhadores, riscando fósforos e acendendo cavacos num fogareiro, donde começaram a borbotar grossos novelos de fumo espesso.

Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o burburinho. Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom humor.

Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem animo de sair dos lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos travesseiros, escondendo o rosto.

-Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel, apalpando-lhe a testa. Febre não tens.

-Ainda sinto o corpo mole... mas não é nada... isto passa!...

-Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te dizia?... Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!...

-Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé!

Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho da cabeça, defronte do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças para a menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez cristalina de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso pálido a entreabrir-lhe as pétalas da boca, sem lhe alegrar os lábios, que pareciam ressequidos à mingua de beijos de amor; assim delicada planta murcha, languesce e morre, se carinhosa borboleta não vai sacudir sobre ela as asas prenhes de fecundo e dourado pólen.

O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões de íntimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida.

A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la junto de si, naqueles divãs fofos e traidores, entre todo aquele luxo extravagante e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à criada que não deixasse entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe uma infinidade de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo, de olhos fechados.

Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo: na sua parva compreensão do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles móveis casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recordações do bom tempo e avivavam a sua impaciência por melhor futuro.

Ai! assim Deus quisesse ajudá-la!...

Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um pequeno lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de champanha, gelo e água de Seltz; e, sem se descuidar um instante da rapariga, tinha para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.

Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar vinho, sentiu vontade de descansar o corpo; Léonie franqueou-lhe um bom quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta pelo lado de fora, para melhor ficar em liberdade com a pequena.

Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!

-Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!

E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.

A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.

-Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a alcova.

Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem animo de protestar, por acanhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe atenção e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como que distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.

-Não! Para quê!... Não quero despir-me...

-Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...

-Estou bem assim. Não quero!

-Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens medo?... Olha! Vou dar exemplo!

E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.

A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, vermelha de pudor.

-Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila trêmula.

E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz, arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.

-Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que enlouqueciam a prostituta.

-Que mal faz?... Estamos brincando...

-Não! Não! balbuciou a vitima, repelindo-a.

-Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.

Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o rogar vertiginoso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe a razão ao rebate dos sentidos.

Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria, irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando.

E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo dos ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse arrancá-lo aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e afinal desabou para o lado, exânime, inerte, os membros atirados num abandono de bêbedo, soltando de instante a instante um soluço estrangulado.

A menina voltara a si e torcera-se logo em sentido contrário à adversária, cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto, envergonhada e corrida.

A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos, procurou animá-la, ameigando-lhe a nuca e as espáduas. Mas Pombinha parecia inconsolável, e a outra teve de erguer-se a meio e puxá-la como uma criança para o seu colo, onde ela foi ocultando o rosto, a soluçar baixinho.

-Não chores assim, meu amor!...

Pombinha continuou a soluçar.

-Vamos! Não quero ver-te deste modo!... Estás zangada comigo?...

-Não volto mais aqui! nunca mais! exclamou por fim a donzela, desgalgando o leito para vestir-se.

-Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal com a tua negrinha!... Anda! Não me feches a cara!...

-Deixe-me!

-Vem cá, Pombinha!

-Não vou! Já disse!

E vestia-se com movimentos de raiva. Léonie saltara para junto dela e pôs-se a beijar-lhe, à força. os ouvidos e o pescoço, fazendo se muito humilde, adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava, e obedecer-lhe como um cachorrinho, contanto que aquela tirana não se fosse assim zangada.

-Faço tudo! tudo! mas não fiques mal comigo! Ah! se soubesse como eu te adoro!...

-Não sei! Largue-me!...

-Espera!

-Que amolação! Oh!

-Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus!

Pombinha acabava de encasar o último botão do corpinho, e repuxava o pescoço e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao corpo. Mas Léonie caíra-lhe aos pés, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias.

Olha!... Ouve!...

Deixa-me sair!

Não! Não hás de ir zangada, ou faço aqui um escândalo dos diabos!

E que mamãe já acordou com certeza!...

-Que acordasse!

Agora a meretriz defendia a porta da alcova.

-Oh! meu Deus! Deixe-me sair!

-Não deixo, sem fazermos as pazes...

-Que aborrecimento!

-Dá-me um beijo!

-Não dou!

-Pois então não sais!

-Eu grito!

-Pois grita! Que me importa!

-Arrede-se daí, por favor!...

-Faz as pazes...

-Não estou zangada, creia! Estou é indisposta... Não me sinto boa!

-Mas eu faço questão do beijo!

-Pois bem! Está ai!

E beijou-a.

-Não quero assim! Foi dado de má vontade!...

Pombinha deu-lhe outro.

-Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante!

Em três tempos, lavou-se ligeiramente no bidê, endireitou o penteado defronte do espelho, num movimento rápido de dedos, e empoou-se, perfumou-se, e enfiou camisa, anágua e penteador, tudo com uma expedição de quem está habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, pronta, correu uma vista de olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, consertou-lhe melhor os cabelos e, readquirindo o seu ar tranqüilo de mulher ajuizada, tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente até à sala de jantar, para tomarem vermute com gasosa.

O jantar foi às seis e meia. Correu frio, não tanto por parte de Pombinha, que aliás se mostrava bem incomodada, como porque Dona Isabel, dormindo até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o foie-gras. A dona da casa, todavia, não se forrou a desvelos e fez por alegrá-las rindo e contando anedotas burlescas. Ao café apareceu Jujú, que a criada levara a passear desde logo depois do almoço, e uma afetação de agrados levantou-se em torno da pequerrucha. Léonie pôs-se a conversar com ela, falando como criança, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel «o seu papatinho novo!»

Mais tarde, no terraço, enquanto fumava um cigarro, tomou a mão de Pombinha e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado de pérolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi preciso a intervenção da velha para que ela consentisse em aceitá-lo.

Às oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a estalagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e triste.

-Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes.

E de ambas a filha respondeu:

-Nada! Aborrecimento...

No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a polícia, teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com molezas de febre e dores no útero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do conflito. A noticia do defloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura da velha Marciana, produziu-lhe grande abalo nos nervos.

Na manhã imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dores uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve ânimo de pegar na costura, e um livro que ela tentou ler, foi por várias vezes repelido.

Às onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que, malgrado os protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras.

Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma aflição de conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufocante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da antevéspera; mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delicias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado, dentro dela balbuciavam desejos, até ai mudos e adormecidos; e mistérios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpresa e mergulhando-a em fundas concentrações de êxtase. Um inefável quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os músculos com uma embriaguez de flores traiçoeiras.

Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo em terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão.

Na doce tranqüilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir distante a picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancólico e sentido, como um coro religioso de penitentes.

O calor tirava do capim um cheiro sensual.

A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas.

Adormeceu.

Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa, a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam lentamente.

E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.

Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma só mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico.

Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas sangüíneas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre pétalas gigantescas, no regaço de uma rosa interminável, em que seu corpo se atufava como em ninho de veludo carmesim, bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno.

E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética.

Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas formas de menina.

Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e principiou a fremir, atraído e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflamassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados.

E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu sangue de moça.

E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções, ora fugindo rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antenas de brasa a pele delicada e pura da menina.

Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o colo. Mas a borboleta fugia.

Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um instante, um só instante, e a fechasse num rápido abraço dentro das suas asas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de volúpia.

-Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas!

E a rosa, que tinha ao colo, é que parecia falar e não ela. De cada vez que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e ávido daquele contato com a luz.

-Não fujas! Não fujas! Pousa um instante!

A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor, sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquele eflúvio luminoso e fecundante.

Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente.

A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.

Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa. No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de alvoroço pelo número 15. E aí, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e expôs a Dona Isabel as suas fraldas ensangüentadas.

-Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo da alma.

A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida.

As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.

-Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou ela, caindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as mãos trêmulas.

Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua comoção, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar também aquele sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.

Não se pôde conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu ela ao pátio, apregoando aos quatro ventos a linda noticia. E, se não fora a formal oposição da menina, teria passeado em triunfo a camisa ensangüentada, para que todos a vissem bem e para que todos a adorassem, entre hinos de amor, que nem a uma verônica sagrada de um Cristo.

-Minha filha é mulher! Minha filha é mulher!

O fato abalou o coração do cortiço, as duas receberam parabéns e felicitações. Dona Isabel acendeu velas de cera à frente do seu oratório, e nesse dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a entrar e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto da filha dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo recomendava-lhe todo o cuidado. «Que não apanhasse umidade! que não bebesse coisas frias! Que se agasalhasse o melhor possível e, no caso de sentir o corpo mole, que se metesse logo na cama! Qualquer imprudência poderia ser fatal!...» O seu empenho era pôr o João da Costa, no mesmo instante, ao corrente da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento; a menina entendia que não, que era feio, mas a mãe arranjou um portador e mandou chamar o rapaz com urgência. Ele apareceu à tarde. A velha convidara gente para jantar; matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e, à noite, serviu, às nove horas, um chá com biscoitos. Nenen e a das Dores apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita cerimônia; conversou-se em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha uma solícita cadeia de agrados, uma respeitosa preocupação de bons desejos, a que ela respondia sorrindo comovida, como que exalando da frescura da sua virgindade um vitorioso aroma de flor que desabrocha.

E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manhã, enquanto varria a casa e espanava os móveis.

Não obstante, depois do tremendo conflito que acabou em navalhada, uma tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. Já se não faziam as quentes noitadas de violão e dança ao relento. A Rita andava aborrecida e concentrada, desde que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo fora intimado pelo vendeiro a que lhe não pusesse, nunca mais, os pés em casa, sob pena de ser entregue à polícia; Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a ausência do. marido, ainda ficou mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hospital; encontrou-o frio e sem uma palavra de ternura para ela, deixando até perceber a sua impaciência para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata dos diabos, que, no fim de contas, era a única culpada de tudo aquilo e havia de ser a sua perdição e mais do seu homem! Quando voltou de lá atirou-se à cama, a soluçar sem alívio, e nessa noite não pôde pregar olho, senão já pela madrugada. Um negro desgosto comia-a por dentro, como tubérculos de tísica, e tirava-lhe a vontade para tudo que não fosse chorar.

Outro que também, coitado! arrastava a vida muito triste, era o Bruno. A mulher, que a princípio não lhe fizera grande falta, agora o torturava com a sua distância; um mês depois da separação, o desgraçado já não podia esconder o seu sofrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a pedido dele, tirou a sorte nas cartas e disse-lhe misteriosamente que Leocádia ainda o amava.

Só Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas sim! nunca tinham tido uma época tão boa e tão esperançosa. Pombinha abandonara o curso de dança; o noivo ia agora visitá-la, invariavelmente, todas as noites; chegava sempre às sete horas e demorava-se até às dez; davam-lhe café numa xícara especial, de porcelana; às vezes jogavam a bisca, e ele mandava buscar, de sua algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e ficavam a conversar os três, cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felicidade comum; outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom rapaz, acendia o seu charuto da Bahia e deixava-se cair numa pasmaceira, a olhar para a moça, todo embebido nela. Pombinha punha alegrias naqueles serões com as suas garrulices de pomba que prepara o ninho. Depois do seu idílio com o sol fazia-se muito amiga da existência, sorvendo a vida em haustos largos, como quem acaba de sair de uma prisão e saboreia o ar livre. Volvia-se carnuda e cheia, sazonava que nem uma fruta que nos provoca o apetite de morder. Dona Isabel, ao lado deles, toscanejava do meio para o fim da visita, traçando cruzes na boca e afugentando os bocejos com voluptuosas pitadas da sua insigne tabaqueira.

Fixado o dia do casamento, o assunto inalterável da conversa era o enxoval da noiva e a casinha que o Costa preparava para a lua-de-mel. Iriam todos três morar juntos; teriam cozinheiro e uma criada que lavasse e engomasse. O rapaz trouxera peças de linho e de algodão, e ali, à luz amarela do velho candeeiro de querosene, enquanto a mãe talhava camisas e lençóis, a filha cosia valentemente numa máquina que lhe oferecera o noivo.

Uma vez, eram duas da tarde, ela pregava rendas numa fronha de almofada, quando o Bruno, cheio de hesitações, a coçar os cabelos da nuca, pálido e mal asseado, disse-lhe, encostando-se à ombreira da porta:

-Ora, nham Pombinha... tinha-lhe um servicinho a pedir... mas vosmecezinha anda agora tão tomada com o seu enxoval e não há de querer dar-se a maços...

-Que queres tu, Bruno?

-N'é nada, é que precisava que vosmecezinha me fizesse uma carta pr' aquele diabo... mas já se vê que não tem cabimento... Fica pr'ao depois!

-Uma carta para tua mulher, não é?

-Coitada! É mais doida do que ruim! Pois se a gente até dos brutos tem pena!...

-Pois estás servido. Queres para já?

-Não vale estorvar! Continue seu servicinho! Eu volto pr'outra vez!...

-Não! anda cá, entra! O que se tem de fazer, faz-se logo!

-Deus lhe pague! Vosmecezinha é mesmo um anjo! Não sei a quem se chegue a gente ao depois que já lhe não tivermos cá!...

E continuou a louvar a bondade da rapariga, enquanto esta, toda serviçal, preparava numa mesinha redonda os seus apetrechos de escrita.

-Vamos lá, Bruno! que queres tu mandar dizer à Leocádia?

-Diga-lhe, antes de mais nada, que aquilo que quebrei dela, que dou outro! Que ela fez mal em quebrar também o que era meu, mas que fecho os olhos! Águas passadas não movem moinho! Que sei que ela agora está desempregada e aos paus; que está a dever para mais de mês na estalagem; mas que não precisa dar cabeçadas: que me mande cá o senhorio, que me entendo com ele. Que acho bom que ela deixe a casa da crioula onde come, porque a mulher já se queixou e já disse, a quem quis ouvir, que aquilo lá não era ponto de vadios e mulheres de má vida! Que ela, se tivesse um pouco de tino, nem precisava estar às migalhas dos outros, que eu na forja fazia para a trazer de barriga cheia e mais aos filhos que Deus mandasse... -Principiava a tomar calor. -Que a culpada de tudo isto é só ela e mais ninguém! tivesse um bocado de juízo e não precisava envergonhar a cara por ai...

-Isso já está dito, Bruno!

-Pois arrume-lhe outra vez a ver se ela toma brio!

-E que mais?

-Que lhe não quero mal, nem lhe rogo pragas, mas que é bem feito que ela amargue um pouco do pão do diabo, pra ficar sabendo que uma mulher direita não deve olhar se não pra seu marido; e que, se ela não fosse tão maluca...

-Já aí vai você repetir inda uma vez a mesma cantiga!...

-Mas diga-lhe sempre, tenha paciência, nham Pombinha!... Que ainda estaria aqui, comigo, como dantes, sem agüentar repelões de estranhos!...

-Adiante, Bruno!

-Diga-lhe...

E interrompeu-se.

Ora, que mais ele tinha a dizer?...

Coçou a cabeça.

-Veja, Bruno, você é quem sabe o que precisa escrever a sua mulher...

-Diga-lhe...

Não se animava.

-Que...

-Diga-lhe... Não! não lhe diga mais nada!...

-Posso então fechar a carta?...

-Está bom... resmungou o ferreiro, decidindo-se. Vá lá! Diga-lhe que...

-Que...

Houve um silêncio, no qual o desgraçado parecia arrancar de dentro uma frase que, no entanto, era a única idéia que o levava a dirigir-se à mulher. Afinal, depois de coçar mais vivamente a cabeça, gaguejou com a voz estrangulada de soluços:

-Diga-lhe que... se ela quiser tornar pra minha companhia... que pode vir... Eu esqueço tudo!

Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou o rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a três, pela cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha, ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço, sobressaltava-se agora com os desalentados soluços do ferreiro.

Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperadamente, atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a deliciava e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como que naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclarecida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmagadoras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana e delicada mão da fêmea.

Aquela pobre flor de cortiço, escapando à estupidez do meio em que desabotoou, tinha de ser fatalmente vitima da própria inteligência. À mingua de educação, seu espírito trabalhou à revelia, e atraiçoou-a, obrigando-a a tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça ignorante e viva a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir.

Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na mesa e tulipou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens.

Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...

E surgiu-lhe então uma idéia bem clara da sua própria força e do seu próprio valor.

Sorriu.

E no seu sorriso já havia garras.

Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até ai jaziam esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cujas fotografias Léonie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão com a honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranqüilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.

-Ah! homens! homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro.

E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse à solta, enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as rendas naquela almofada, em que a sua cabeça teria de repousar para receber o primeiro beijo genital.

Num só lance de vista, como quem apanha uma esfera entre as pontas de um compasso, mediu com as antenas da sua perspicácia mulheril toda aquela esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por muito tempo como larva, um belo dia acordou borboleta à luz do sol. E sentiu diante dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerônimo atassalharem-se, como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu o Miranda, lá defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres; e viu o Domingos, que fora da venda, furtando horas ao sono, depois de um trabalho de burro, e perdendo o seu emprego e as economias ajuntadas com sacrifício, só para ter um instante de luxúria entre as pernas de uma desgraçadinha irresponsável e tola; e tornou a ver o Bruno a soluçar pela mulher; e outros ferreiros e hortelões, e cavouqueiros, e trabalhadores de toda a espécie, um exército de bestas sensuais, cujos segredos ela possuía, cujas íntimas correspondências escrevera dia a dia, cujos corações conhecia como as palmas das mãos, porque a sua escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a salsugem e todas as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas espumantes de dor e aljofradas de lágrimas.

E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espírito rebelde de flor mimosa e peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume forte demais para ela atrofiara, a moça pressentiu bem claro que nunca daria de si ao marido que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada; pressentiu que nunca o respeitaria sinceramente como a um ser superior por quem damos a vida; que nunca lhe votaria entusiasmo, e por conseguinte nunca lhe teria amor; desse de que ela se sentia capaz de amar alguém, se na terra houvera homens dignos disso. Ah! não o amaria decerto, porque o Costa era como os outros, passivo e resignado, aceitando a existência que lhe impunham as circunstâncias, sem ideais próprios, sem temeridades de revolta, sem atrevimentos de ambição, sem vícios trágicos, sem capacidade para grandes crimes; era mais um animal que viera ao mundo para propagar a espécie; um pobre diabo enfim que já a adorava cegamente e que mais tarde, com ou sem razão, derramaria aquelas mesmas lágrimas, ridículas e vergonhosas, que ela vira decorrendo em quentes camarinhas pelas ásperas e maltratadas barbas do marido de Leocádia.

E não obstante, até então, aquele matrimônio era o seu sonho dourado. Pois agora, nas vésperas de obtê-lo, sentia repugnância em dar-se ao noivo, e, se não fora a mãe, seria muito capaz de dissolver o ajuste.

Mas, daí a uma semana, a estalagem era toda em rebuliço desde logo pela manhã. Só se falava em casamento; havia em cada olhar um sangüíneo reflexo de noites nupciais. Desfolharam-se rosas à porta da Pombinha. Às onze horas parou um carro à entrada do cortiço com uma senhora gorda, vestida de seda cor de pérola. Era a madrinha que vinha buscar a noiva para a igreja de São João Batista. A cerimônia estava marcada para o meio-dia. Toda esta formalidade embatucava os circunstantes, que se alinhavam imóveis defronte do número 15, com as mãos cruzadas atrás, o rosto paralisado por uma comoção respeitosa; alguns sorriam enternecidos; quase todos tinham os olhos ressumbrados de água.

Pombinha surgiu à porta de casa, já pronta para desferir o grande vôo; de véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia comovida; despedia-se dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artificiais. Dona Isabel chorava como criança, abraçando as amigas, uma por uma.

-Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que lhe dê um bom parto, quando vier a primeira barriga.

A noiva sorria, de olhos baixos. Uma fímbria de desdém toldava-lhe a rosada candura de seus lábios. Encaminhou-se para o portão, cercada pela bênção de toda aquela gente, cujas lágrimas rebentaram afinal, feliz cada um por vê-la feliz e em caminho da posição que lhe competia na sociedade.

-Não! aquela não nascera para isto!... sentenciou o Alexandre, retorcendo o reluzente bigode. Seria lástima se a deixassem ficar aqui!

O velho Libório, cascalhando uma risada decrépita, queixou-se de que o maganão do Costa lhe passara a perna roubando-lhe a namorada.

Ingrata! Ele que estava disposto a fazer uma asneira!

Nenen deu uma corrida até à noiva, na ocasião em que esta chegava à carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca, pediu-lhe com empenho que se não esquecesse de mandar-lhe um botão da sua grinalda de flores de laranjeira.

-Diz que é muito bom para quem deseja casar!... e eu tenho tanto medo de ficar solteira!... É todo o meu susto!

À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos pretendentes surgiam disputando os cômodos desalugados. Delporto e Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram em risco de vida. O número dos hóspedes crescia, os casulos subdividiam-se em cubículos do tamanho de sepulturas, e as mulheres iam despejando crianças com uma regularidade de gado procriador. Uma família, composta de mãe viúva e cinco filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha trinta anos e a mais moça quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esvaziou poucos dias depois do casamento de Pombinha.

Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o «Cabeça-de-Gato». Figurava como seu dono um português que também tinha venda, mas o legitimo proprietário era um abastado conselheiro, homem de gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em semelhante gênero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, viu que aquela nova república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe à sua, perigosa concorrência. Pôs-se logo em campo, disposto à luta, e começou a perseguir o rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas municipais, para que o não deixassem respirar um instante com multas e exigências vexatórias; enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus inquilinos um verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a gente do «Cabeça-de-Gato». Aquele que não estivesse disposto a isso ia direitinho para a rua, «que ali se não admitiam meias medidas a tal respeito! Ah! ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!» É inútil dizer que a parte contrária lançou mão igualmente de todos os meios para guerrear o inimigo, não tardando que entre os moradores da duas estalagens rebentasse uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas brigas e rezingas, em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de freguesia de roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já perfeitamente determinados; os habitantes do «Cabeça-de-Gato» tomaram por alcunha o titulo do seu cortiço, e os de «São Romão», tirando o nome do peixe que a Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por «Carapicus». Quem se desse com um Carapicus não podia entreter a mais ligeira amizade com um cabeça-de-gato; mudar-se alguém de uma estalagem para outra era renegar idéias e princípios e ficava apontado a dedo; denunciar a um contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do circulo oposto, era cometer traição tamanha, que os companheiros a puniam a pau. Um vendedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça-de-gato a respeito de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase morto perto do cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não cochilava com os adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o nome de um deles pelo menos, mas entre os próprios polícias havia adeptos de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda do João Romão tinha escrúpulo de tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio do pátio do «Cabeça-de-Gato» arvorara-se uma bandeira amarela; os Carapicus responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de guerra.

A batalha era inevitável. Questão de tempo.

Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto na oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita, que mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de cortiço. Daí nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa alguma desta vida, poria os pés no «Cabeça-de-Gato» e o Firmo achava-se, como nunca, incompatibilizado com os Carapicus. Para estarem juntos tinham encontros misteriosos num calojio de uma velha miserável da Rua de São João Batista, que lhe cedia a casa mediante esmolas. O capoeira fazia questão de ficar no «Cabeça-de-Gato», porque ai se sentia resguardado contra qualquer perseguição que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto e, uma vez bem curado, podia vir sobre ele com gana. No «Cabeça-de-Gato», o Firmo conquistara rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era querido e venerado; os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza e pela sua coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias. O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primazia, e estes dois, só por si, impunham respeito aos Carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito boa gente para o que desse e viesse.

Mas ao cabo de três meses, João Romão, notando que os seus interesses nada sofriam com a existência da nova estalagem e, até pelo contrário, lucravam com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro, retornou à sua primitiva preocupação com o Miranda, única rivalidade que verdadeiramente o estimulava.

Desde que o vizinho surgiu com o baronato, o vendeiro transformava-se por dentro e por fora a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos domingos refestelava-se de casaco branco e de meias, assentado defronte da venda, a ler jornais. Depois deu para sair a passeio, vestido de casimira, calçado e de gravata. Deixou de tosquiar o cabelo à escovinha; pôs a barba abaixo, conservando apenas o bigode, que ele agora tratava com brilhantina todas as vezes que ia ao barbeiro. Já não era o mesmo lambuzão! E não parou aí: fez-se sócio de um clube de dança e, duas noites por semana, ia aprender a dançar; começou a usar relógio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu quarto de dormir, mandou soalhá-lo, forrou-o e pintou-o; comprou alguns móveis em segunda mão; arranjou um chuveiro ao lado da retrete; principiou a comer com guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar vinho, não do ordinário que vendia aos trabalhadores, mas de um especial que guardava para seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o Passeio Público depois do jantar ou ia ao teatro São Pedro de Alcântara assistir aos espetáculos da tarde; do Jornal do Comércio, que era o único que ele assinava havia já três anos e tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar fascículos de romances franceses traduzidos, que o ambicioso lia de cabo a rabo, com uma paciência de santo, na doce convicção de que se instruía.

Admitiu mais três caixeiros; já não se prestava muito a servir pessoalmente à negralhada da vizinhança, agora até mal chegava ao balcão. E em breve o seu tipo começou a ser visto com freqüência na Rua Direita, na praça do comércio e nos bancos, o chapéu alto derreado para a nuca e o guarda-chuva debaixo do braço. Principiava a meter-se em altas especulações, aceitava ações de companhias de títulos ingleses e só emprestava dinheiro com garantias de boas hipotecas.

O Miranda tratava-o já de outro modo, tirava-lhe o chapéu, parava risonho para lhe falar quando se encontravam na rua, e às vezes trocava com ele dois dedos de palestra à porta da venda. Acabou por oferecer-lhe a casa e convidá-lo para o dia de anos da mulher, que era daí a pouco tempo. João Romão agradeceu o obséquio, desfazendo-se em demonstrações de reconhecimento, mas não foi lá.

Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá embaixo, abandonada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem. Começou a cair em tristeza.

O velho Botelho chegava-se também para o vendeiro, e ainda mais do que o próprio Miranda. O parasita não saia agora depois do almoço para a sua prosa na charutaria, nem voltava à tarde para o jantar, sem deter-se um instante à porta do vizinho ou, pelo menos, sem lhe gritar lá de dentro: «Então, seu João, isso vai ou não vai?...» E tinha sempre uma frase amigável para lhe atirar cá de fora. Em geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a mão, de cara alegre, e propunha-lhe que bebesse alguma coisa.

Sim, João Romão já convidava para beber alguma coisa. Mas não era à toa que o fazia, que aquele mesmo não metia prego sem estopa! Tanto assim que uma vez, em que os dois saíram à tardinha para dar um giro até à praia, Botelho, depois de falar com o costumado entusiasmo do seu belo amigo Barão e da virtuosíssima família deste, acrescentou com o olhar fito:

-Aquela pequena é que lhe estava a calhar, seu João!...

-Como? Que pequena?

-Ora morda aqui! Pensa que já não dei pelo namoro?... Maganão! O vendeiro quis negar, mas o outro atalhou:

-É um bom partido, é! Excelente menina... tem um gênio de pomba... uma educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem ouvido... canta o seu bocado... aprendeu desenho... muito boa mão de agulha!... e...

Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor:

-Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!...

-Você tem certeza disso? Já viu?

-Já! Palavra d'honra!

Calaram-se um instante.

Botelho continuou depois:

-O Miranda é bom homem, coitado! tem lá as suas fumaças de grandeza, mas não o podemos criminar... são coisas pegadas da mulher; no entanto acho-o com boas disposições a seu respeito... e, se você souber levá-lo, apanha-lhe a filha...

-Ela talvez não queira...

-Qual o quê! Pois uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais, sabe lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a família; que de dentro empurre o negócio e verá se consegue ou não! Eu, por exemplo!

-Ah! se você se metesse nisso, que dúvida! Dizem que o Miranda só faz o que você quer...

-Dizem com razão.

-E você está resolvido a...?

-A protegê-lo?... Sim, decerto: neste mundo estamos nós para servir uns aos outros!... apenas, como não sou rico...

-Ah! Isso é dos livros! Arranje-me você o negócio e não se arrependerá...

-Conforme, conforme...

-Creio que não me supõe um velhaco!...

-Pelo amor de Deus! Sou incapaz de semelhante sacrilégio!

-Então!...

-Sim, sim... em todo o caso falaremos depois, com mais vagar... Não é sangria desatada!

E desde então, com efeito, sempre que os dois se pilhavam a sós discutiam o seu plano de ataque à filha do Miranda. Botelho queria vinte contos de réis, e com papel passado a prazo de casamento; o outro oferecia dez.

-Bom! então não temos nada feito... resumiu o velho. Trate você do negócio só por si; mas já lhe vou prevenindo de que não conte comigo absolutamente... Compreende?

-Quer dizer que me fará guerra...

-Valha-me Deus, criatura! não faço guerra a ninguém! guerra está você a fazer-me, que não me quer deixar comer uma migalha da bela fatia que lhe vou meter no papo!... O Miranda hoje tem para mais de mil contos de réis! Agora, fique sabendo que a coisa não é assim também tão fácil, como lhe parece talvez...

-Paciência!

-O Barão há de sonhar com um genro de certa ordem!... Ai algum deputado... algum homem que faça figura na política aqui da terra!

-Não! melhor seria um príncipe!...

-E mesmo a pequena tem um doutorzinho de boa família, que lhe ronda muito a porta... E ela, ao que parece, não lhe faz má cara...

-Ah! nesse caso é deixá-los lá arranjar a vida!

-É melhor, é! Creio até que com ele será mais fácil qualquer transação...

-Então não falemos mais nisso! Está acabado!

-Pois não falemos!

Mas no dia seguinte voltaram à questão:

-Homem! disse o vendeiro; para decidir, dou-lhe quinze!

-Vinte!

-Vinte, não!

-Por menos não me serve!

-E eu vinte não dou!

-Nem ninguém o obriga... Adeuzinho!

-Até mais ver.

Quando se encontraram de novo, João Romão riu-se para o outro, sem dizer palavra. O Botelho, em resposta, fez um gesto de quem não quer intrometer-se com o que não é da sua conta.

-Você é o diabo!... faceteou aquele, dando-lhe no ombro uma palmada amigável. Então não há meio de chegarmos a um acordo?...

-Vinte!

-E, caso esteja eu pelos vinte, posso contar que...?

-Caso o meu nobre amigo se decida pelos vinte, receberá do Barão um chamado para lá ir jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e encontrará o terreno preparado.

-Pois seja lá como você quer! mais vale um gosto do que quatro vinténs!

O Botelho não faltou ao prometido: dias depois do contrato selado e assinado, João Romão recebeu uma carta do vizinho, solicitando-lhe a fineza de ir jantar com ele mais a família.

Ah! que revolução não se feriu no espírito do vendeiro! passou dias a estudar aquela visita; ensaiou o que tinha que dizer, conversando sozinho defronte do espelho do seu lavatório; afinal, no dia marcado, banhou-se em varias águas, areou os dentes até fazê-los bem limpos, perfumou-se todo dos pés à cabeça, escanhoou-se com esmero, aparou e bruniu as unhas, vestiu-se de roupa nova em folha, e às quatro e meia da tarde apresentou-se, risonho e cheio de timidez, no espelhado e pretensioso salão de Sua Excelência.

Aos primeiros passos que dera sobre o tapete, onde seus grandes pés, afeitos por toda vida à independência do chinelo e do tamanco, se destacavam como um par de tartarugas, sentiu logo o suor dos grandes apuros inundar-lhe o corpo e correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pescoço, nem que se o desgraçado acabasse de vencer naquele instante uma légua de carreira ao sol. As suas mãos vermelhas e redondas gotejavam, e ele não sabia o que fazer delas, depois que o Barão, muito solicito, lhe tomou o chapéu e o guarda-chuva.

Arrependia-se já de ter lá ido.

-Fique a gosto, homem! bradou-lhe o dono da casa. Se tem calor venha antes aqui para a janela. Não faça cerimônia! Ó Leonor! traz o vermute! Ou o amigo prefere tomar um copinho de cerveja?

João Romão aceitava tudo, com sorrisos de acanhamento, sem animo de arriscar palavra. A cerveja fê-lo suar ainda mais e, quando apareceram na sala Dona Estela e a filha, o pobre-diabo chegava a causar dó de tão atrapalhado que se via. Por duas vezes escorregou, e numa delas foi apoiar-se a uma cadeira que tinha rodízios; a cadeira afastou-se e ele quase vai ao chão.

Zulmira riu-se, mas disfarçou logo a sua hilaridade pondo-se a conversar com a mãe em voz baixa. Agora, refeita nos seus dezessete anos, não parecia tão anêmica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossara-lhe o quadril. Estava melhor assim. Dona Estela, coitada! é que se precipitava, a passos de granadeiro, para a velhice, a despeito da resistência com que se rendia; tinha já dois dentes postiços, pintava o cabelo, e dos cantos da boca duas rugas serpenteavam-lhe pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primitiva graça maliciosa dos lábios; ainda assim, porém, conservava o pescoço branco, liso e grosso, e os seus braços não desmereciam dos antigos créditos.

À mesa, a visita comeu tão pouco e tão pouco bebeu, que os donos da casa a censuraram jovialmente, fingindo aceitar o fato como prova segura de que o jantar não prestava; o obsequiado pedia por amor de Deus que não acreditassem em tal e jurava sob palavra de honra que se sentia satisfeito e que nunca outra comida lhe soubera tão bem. Botelho lá estava, ao lado de um velhote fazendeiro, que por essa ocasião hospedava-se com o Miranda. Henrique, aprovado no seu primeiro ano de Medicina, fora visitar a família; em Minas. Isaura e Leonor serviam aos comensais, rindo ambas à socapa por verem ali o João da venda engravatado e com piegas de visita.

Depois do jantar apareceu uma família; conhecida, trazendo um rancho de moças; vieram também alguns rapazes; formaram-se jogos de prendas, e João Romão, pela primeira vez em sua vida, viu-se metido em tais funduras. Não se saiu mal todavia.

O chá das dez e meia correu sem novidade; e, quando enfim o neófito se pilhou na rua, respirou com independência, remexendo o pescoço dentro do colarinho engomado e soprando com alívio. Uma alegria de vitória transbordava-lhe do coração e fazia-o feliz nesse momento. Bebeu o ar fresco da noite com uma volúpia nova para ele e, muito satisfeito consigo mesmo, entrou em casa e recolheu-se, rejubilando com a idéia de que ia descalçar aquelas botas, desfazer-se de toda aquela roupa e atirar-se à cama, para pensar mais à vontade no seu futuro, cujos horizontes se rasgavam agora iluminados de esperança.

Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo à vista de Bertoleza que, estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a camisa soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas e lustrosas.

E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e bodum de peixe! Pois, tão cheiroso e radiante como se sentia, havia de pôr a cabeça naquele mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda carapinha da crioula?...

-Ai! ai! gemeu o vendeiro, resignando-se.

E despiu-se.

Uma vez deitado, sem animo de afastar-se da beira da cama, para não se encostar com a amiga, surgiu-lhe nítida ao espírito a compreensão do estorvo que o diabo daquela negra seria para o seu casamento.

E ele que até aí não pensara nisso!... Ora o demo!

Não pôde dormir; pôs-se a malucar:

Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se veria livre daquele trambolho? E não se ter lembrado disso há mais tempo!... parecia incrível!

João Romão, com efeito, tão ligado vivera com a crioula e tanto se habituara a vê-la ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição pensou em tudo, menos nela.

E agora?

E malucou no caso até às duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia seguinte, a contemplá-la de cócoras à porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por associação de idéias, lhe acudiu esta hipótese:

-E se ela morresse?...