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Ao crepúsculo

À luz dos últimos raios do sol, lia Honorina as páginas escritas do livro de amor do moço loiro: uma profunda melancolia, às vezes acerba, estava em quase todas elas derramada.

Julgava-se o moço loiro verdadeiramente infeliz? ou sua tristeza era ainda fingida, como a que afetara na noite do sarau de Tomásia?... exprimia naqueles papéis uma dor terrível e real, ou neles jogava sua derradeira carta para ver se ganhava a partida?...

Longo e afatigador fora acompanhar a filha de Hugo de Mendonça na leitura que começara; parece talvez melhor transcrever aqui apenas o que for suficiente para dar uma idéia dessa peça, que, em suma, é tão vã e inconseqüente, como qualquer outra do mesmo gênero, como qualquer carta de amor.

No entanto, por deferência a seu autor, conserva o título e a epígrafe, com que se orna.

Era pouco mais ou menos o seguinte:

Livro de minh'alma

[...] Je t'aime!
Et le dire ici, c'est le bonheur suprême!...

V. Hugo

I

Eu vi uma mulher verdadeiramente bela.

Seus cabelos são negros e luzidios como o azeviche; seus olhos grandes, pretos e ardentes dardejam vistas de fogo tão penetrantes como os raios do sol.

Sua fronte branca, elevada e lisa é o trono do mais nobre sossego; seu rosto pálido, melancólico e doce o assento da graça mais arrebatadora; seus lábios encarnados, virginais e puros a fonte das mais angélicas delícias.

E abaixo de seu colo garboso, como o da garça, há um mar de leite, que, quando ela suspira, se agita... se inquieta... e... então lutam aí de mistura pudor e desejos; inocência e amor; candideza e voluptuosidade!... e então quem a está olhando, sente... anela... arde.

Seus braços são alvos e torneados; e suas mãos delicadas e finas; seus dedos dir-se-iam brandas hastes de cristal, cada uma das quais fosse coroada por uma pétala de rubra rosa.

Seu pisar é subtil como o da pomba... o volver de seu vulto engraçado como o fugir da sombra... o seu falar meigo e harmonioso como a melodia de um anjo.

Ela tem a gentileza da aurora; a frescura do favônio; a suavidade e pureza do arroio do deserto.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Um olhar de amor de seus olhos, uma palavra de amor de seus lábios, e um suspiro de amor de seu seio deve ser o complemento de todas as felicidades que se podem dar cá na terra...

Porque enfim... ela é uma mulher verdadeiramente bela.

II

E antes de ver essa mulher, já eu a amava muito; porque já a tinha ouvido.

Era uma noite serena e fresca: eu passeava melancólico e abatido à borda do mar, quando de repente uma voz -ah! uma voz como outra igual nunca dantes havia soado!... suave, melíflua e tocante, que, entrando por meus ouvidos, ia até à medula de meus ossos, até ao âmago de meu coração, que se entranhava por minha alma!...- entoou um hino à inocência.

Debalde o canto acabou... debalde; porque eu o estava ouvindo sempre, e dentro de mim mesmo... e ali fiquei estático, entre o céu e a terra, entre a consciência do meu nada, de minha pobreza, de minha desgraça; e essa voz fascinadora, que pôde fazer-me crer que é possível a felicidade cá embaixo, quando se vive toda uma vida com os olhos embebidos nos olhos, com os ouvidos perto dos lábios desse anjo, que canta assim.

O sinal da meia-noite arrancou-me do meu encanto... lembrei-me, então, que sobre a minha cabeça, debaixo de meus pés, e em derredor de mim havia mundo e miséria; porque até essa hora eu tinha esquecido tudo... tudo... ocupado somente com duas idéias que eram a onipotência de Deus e a existência dessa mulher.

A lua estava clara e brilhante... vi, a curta distância, aberta a porta de um jardim, e no meio deste erguer-se uma frondosa mangueira debaixo da qual tinha saído a voz que me arrebatara. Entrei... um braço invisível e forte me arrastava para aí... eu queria, ao menos, beijar as pisadas dessa mulher.

Avancei alguns passos... a claridade da lua mostrou-me dois vultos de moças recostadas em uma janela; senti dentro de mim um desejo invencível de ouvir o que diziam as duas moças, de julgar de sua beleza se possível fosse...

Não as vi tão bem, como anelava...

Mas o que eu ouvi não me esquecerá mais nunca!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Meu Deus!... meu Deus!... vós não sentis que a sensibilidade é o maior dos tormentos do homem pobre?... não é bem verdade que os pobres deveriam poder viver sem coração?...

Pois o que há de fazer o homem pobre, quando ama?...

Abafar o seu amor?

Eis aí, portanto, um enorme tormento: esse fogo intenso que se sufoca, lança chamas devoradoras que fazem caminho rasgando... queimando o coração; esse amor, que se concentra, e se faz por afogar, é um raio da alma, que brilha no meio de horríveis ruínas... de calabouços medonhos! por que, pois, a luz, se a luz vem fazer sentir tão grande miséria?!...

Pretender o objeto amado?...

Como?... e para quê?... -Como, se essa mulher encantadora e bela, cercada sempre por uma multidão de galantes mancebos, ricos, espirituosos, alegres, lisonjeadores, que sabem dizer tão bonitas coisas e olhar com olhos tão ardentes, não poderá ver nunca o homem pobre, que só tem para lhe oferecer um coração cheio de lágrimas!... que não se animará nunca a balbuciar uma frase de amor!... que não ousará jamais levantar seus olhos uma só linha acima dos pés da mulher amada?!... -E para quê?... para ser correspondido?... para ganhar gratidão, e depois dar para comer a esse anjo, que se adora, um pedaço de pão amassado com o pranto de seus olhos?... para repartir com essa mulher a miséria que padece... a vida de tormentos que arrasta?!... para padecer o dobro, vendo-a padecer também?!...

Oh! não!... não, meu Deus!... o homem pobre não deve amar, não!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E, então, por que fui eu escrever aquele bilhete, e deixá-lo debaixo da vidraça de sua janela?... por que me atrevi a jurar-lhe um amor de poeta e de fogo?...

Oh! foi porque a voz dessa mulher prendeu para sempre meu destino a seus lábios!...

E, portanto, não me é possível duvidar mais da natureza de meus sentimentos... eu amo!...

Qual será o resultado desta paixão que me alucina?... que futuro me estará esperando?... por que novas provações terá de passar a minha alma?...

Meu Deus!... meu Deus!... vós não sentis que a sensibilidade é o maior dos tormentos do homem pobre?... não é bem verdade que os pobres deveriam poder viver sem coração?...

III

Enfim, graças ao céu!... eu pude, sem ser visto, vê-la de perto... observá-la... admirá-la!

Há no mundo só uma coisa que arrebata ainda mais do que a voz dessa moça; é o semblante dela mesma.

Já me não arrependo de tê-la ouvido e visto; já não sinto haver amado; sofrerei todos os tormentos possíveis com valor e serenidade... chegarei mesmo a bendizê-los; pois estou convencido de que por gratidão eu devia amar tão encantadora criatura.

Devia! porque ela fez desabrochar em minha alma, sempre tão árida e tão estéril, uma flor: a flor da crença na possibilidade de ventura cá na terra, flor bela como o rosto, suave como o canto, balsâmica como o hálito de Honorina!...

Devia! porque ela fez bruxulear no horizonte de minha vida sempre tão escuro, tão em trevas, tão tempestuoso, uma aurora... a jucunda aurora do amor, aurora brilhante como o olhar, bonançosa como o sorrir, fascinadora como o arfar dos seios de Honorina!...

E eu, pois, a amo! amo-a, qual ama o náufrago a derradeira tábua do navio despedaçado, a que se prende para escapar à morte!... amo-a, como o homem réprobo amaria o anjo de salvação, a cujas asas se pudesse ter agarrado!

Amo-a como a pomba a seus pombinhos inda implumes; como o heliotrópio ao astro do dia; como a mais extremosa mãe ao mais extremoso filho!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Mas é bem possível que essa mulher angélica não se lembre nunca deste homem que a adora tanto!

E isso que importa?... é a sorte do mundo. Todo o homem encontra sempre em sua vida um coração de mulher, que o não atende, e outro coração de mulher que por ele sofre: é a sorte do mundo.

Daqui a pouco verei chegar a jovem S... pobre menina!... creio que também é infeliz... suponho que me ama... e que se ressente de minha indiferença...

Se Honorina um dia me dissesse: «Senhor!... como pode maltratar assim uma mulher que lhe ama?...»

Eu acredito que me atreveria a responder-lhe: «É uma compensação, senhora! É preciso que uma mulher experimente os tormentos que outra mulher me faz sofrer!»

É a sorte do mundo.

IV

Esperança!... esperança!... esperança!...

Por que não posso eu ser amado por Honorina?... o que pede ela ao céu?... um amor de poeta e de fogo; pois bem: eu tenho mil vulcões no coração, desde que a amo; ame-me ela, e terei uma cabeça de poeta.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E onde deve despontar o almo sol da esperança, senão no sereno horizonte da juventude?... onde com tanto viço, com tão copiosa exalação de perfumes se ostentará a rosa da esperança, como no jardim fecundo da idade dos amores?

A luz da vida -o facho que o homem se guia na longa viagem deste mundo- a fonte inesgotável donde o pensamento tira as tintas cor de fogo para pintar formosos arabescos no painel do futuro -a balança encantada em que o homem se equilibra entre os males que experimenta, e os bens que almeja -eis a esperança!...

Ninguém, ninguém vive sem esperança: por que, pois, não a terei eu também?... oh!... ainda que seja uma ilusão... eu a quero!...

A esperança é o alimento do espírito... a alma do coração...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

V

Tenho sido tão ousado, como feliz! em meus sonos de mancebo jamais sonhei gozar tantas delícias, como as que me tem dado a realidade deste amor.

Escreverei aqui a história da minha vida, desde que me fiz cabeleireiro, até que fui velho pescador.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

[...] A minha sempre-viva caiu dentro de sua câmara... a seus pés!... sua mão ia talvez lançá-la fora, quando valeu-me o zéfiro da manhã... e, portanto, esse zéfiro será sempre para mim o sopro de Deus!

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Salvei-a!... salvei-a!... como me encho de orgulho! como me considero coberto de glória!... é um homem pobre... desvalido... sem amigos, só no mundo, que se entusiasma por ter arrancado das garras da morte a obra mais perfeita do Criador!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Eu receio estar cometendo um sacrilégio... eu tenho medo de que o céu me castigue... porque ouso pensar que sou amado!...

Meus Deus! se isso não é verdade, deixai-me ir gozando meus dias embalado por tão doce mentira...

Já agora viver sem essa deliciosa ilusão é um impossível; é o único sacrifício que eu não faria a Honorina.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VI

O que seria do homem sem o amor da mulher?

Ir até o fim dessa longa viagem da vida, que se começa chorando, e se acaba com um gemido; contar tantos anos, em que algumas horas de ventura são sufocadas pela corrente imensa desses dias de infortúnios, fora certamente impossível, se não houvesse desejos na alma, e esperança no coração do homem.

E a mulher é a fonte das mais doces esperanças, e o objeto dos mais ternos desejos.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Deus tinha previsto que a vida com tantas tempestades se tornaria desagradável, enfadonha ao homem; que o mundo tão semeado de abismos seria um perigo para a virtude; e assoprou na alma do mesmo homem uma chama sagrada, que alimenta a virtude: -é a esperança da eternidade-; e plantou-lhe no coração um sentimento generoso e nobre, que sabe prendê-lo à vida: é o amor da mulher.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E o homem deve ser para a mulher como o favônio da aurora ou o orvalho da noite são para a flor; porque também ela é para o homem, como a flor para o prado, a fragrância para o zéfiro, o sorriso para os lábios, e a ventura para o coração.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Seja, portanto, a alma do homem uma harpa harmoniosa; e converta ela seus pensamentos todos em hinos jamais interrompidos, e votados sempre à mulher!...

VII

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

VIII

A desgraça veio sobre mim imprevista, inesperada como o raio; furiosa, terrível, como o tigre.

Não há mais esperança para mim.

Estou outra vez no que era dantes; estou de novo nas trevas; e minha posição é agora dobradamente cruel; porque a luz já tocou meus olhos... e, portanto, posso avaliar o bem que tenho perdido!...

Ah!... o homem que nasce cego é menos infeliz do que aquele que cega depois de ter visto; o primeiro não goza nada... mas também não conhece o valor daquilo que não goza!...

Para que ouvi eu a voz, vi o rosto, e compreendi a alma dessa mulher-anjo, que nunca poderá derramar vistas de amor sobre meu rosto?

Pobre de minha ilusão!... foi como o sonho da noite que se esvai ao romper da aurora!... desfez-se ante a força da realidade, semelhante a esses lagos encantados de orvalho, que se vêem nas invernosas manhãs de junho e que pouco depois se derretem sob a influência dos raios do sol!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Impossível!... impossível!... impossível!...

Maldito seja o homem que primeiro inventou essa palavra infernal, que exprime uma blasfêmia!...

E, todavia, eu a estou ouvindo a todo o instante dentro do coração!... oh! é horrível!... ver o homem perto de si uma mulher bela... amá-la, e supor que é também amado... não conceber sem ela felicidade nesta vida, e sentir o homem, o homem que tem direito de procurar ser feliz, sentir que o destino vai levantando entre ela e ele uma barreira insuperável!... que a desgraça vai murmurando aos ouvidos dele e dela nunca!... nunca!... impossível!... impossível!... oh!... é muito horrível, meu Deus!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E o que poderá fazer essa interessante moça, que vê as lágrimas de seu pai, e pressente sua miséria?... e que se não ceder às inspirações da virtude?...

Portanto, também a mesma virtude se opõe ao amor que me abrasa!... e eu que me achava com forças de disputar a posse de Honorina ao mundo inteiro, devo e hei de abaixar a cabeça à filha do céu!...

Não há nada, não; não há meio nenhum!... em minha própria imaginação eu não encontro um único remédio!...

Um só... talvez... se eu fosse rico!...

Oh!... tenho-me lembrado de sair por essas ruas, gritando: -quem quer comprar um homem de honra?... mas ninguém daria por mim tanto quanto é preciso para salvar o pai de Honorina!... e, contudo, existe no meu coração um amor generoso e nobre que vale mil vezes mais do que todos os tesouros do universo...

Meu Deus!... meu Deus!... como há de ser a minha vida de agora por diante?!...

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

No primeiro instante turvou-me o espírito a idéia do suicídio... mas logo depois a imagem de Honorina veio apagar o sinistro pensamento; foi ela o anjo de minha guarda que arrojou para longe a tentação do demônio... foi como um vento benigno e saudável que desfez a nuvem negra prenhe de tempestade e de horrores...

Agora só me ficou o coração cheio de agonia profunda... incurável... que não há de acabar, nem diminuir nunca; se eu vivesse ainda cem anos, no dia que completasse um século teria aí a mesma agonia, com a mesma intensidade, profunda... incurável sempre, como há cem anos antes...

Mas por que desejar a morte?... o mimoso sentimento que fez a minha ventura de alguns dias, nem sofreu a injúria de um desprezo, nem a injustiça de uma ingratidão; cedeu ao império de um dever... duro, porém sublime. O sacrifício deste amor é a demonstração de sua pureza e santidade!...

Minha alma repassada de dores aparece no meio de suas angústias, inocente e cândida, como o formoso e angélico semblante de uma virgem cristã, que morre pela fé, brilha com os raios da divina graça por entre as chamas da fogueira do martírio...

Há também orgulho na desgraça não merecida... e esse orgulho deve ser capaz de animar-me nos dias de torturas, por que vou passar, como a esperança da eternidade infunde coragem no homem injustamente condenado, que de cima do patíbulo diz o adeus derradeiro ao mundo...

Sim! devo viver, para que minha alma provada na abnegação e nos tormentos se ostente com seu amor mais que nunca puro, imenso e radioso, semelhante ao pirilampo que tanto mais brilha quanto mais negra e obumbrada é a noite; semelhante às plantas aromáticas, que tanto mais recendem quanto mais as pisam e maceram...

Devo viver, porque pobre... desgraçado... miserável e rude, o único objeto que eu tenho para oferecer e votar a Honorina é a minha vida; e quem sabe se um dia o triste presente não poderá ser apreciado?... neste mundo desleal e insano, a mulher, que enquanto menina é sempre um anjo que se sorri; e quando chega a senhora é às vezes uma vítima que chora; tem tantos perigos a correr, tantas borrascas a assoberbar, que lhe deve ser grato contar com um homem pronto a morrer por ela.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Possa a dedicação de minha vida ser tão bem-aceita por Honorina, como deve tê-lo sido pela virtude o sacrifício do mais ardente amor!...

E o lugar, que no meu coração era ocupado pela esperança do amor de Honorina, seja hoje consagrado a uma nova esperança... a de morrer por ela.

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Arrastemos os dias pois...

Até que enfim, se no caminho da vida de Honorina estiver aberto um abismo, e além dele lhe seja preciso ir, passe-o ela segura e salva por cima do meu cadáver, como sobre a tábua de uma ponte.

Mas se ainda a derradeira esperança tem de ser também a minha última ilusão; se a vida deve, finalmente, deixar-me, evaporando-se pouco a pouco no esquecimento de alguma cabana solitária; então, na hora da extrema agonia, farei com que o arranco doloroso do pensamento se transforme em um hino de saudade votado à mulher que adorei com tanta paixão.

E, como o cisne que canta assentado na beira do sepulcro em que vai cair, eu pisarei no umbral da eternidade, e saudarei o espectro da morte, entoando um canto de amor!...

FIM

Quando Honorina terminou a leitura das páginas de amor, apertou-as fortemente contra o coração; e depois, reclinando-se sobre a cadeira de braços em que se achava sentada, fechou os olhos...

Parecia querer assim cerrar as portas de sua alma a todos os objetos, para embeber-se exclusivamente numa única idéia, em um único sentimento -naquele amor ardente e sublime que lhe votava o moço loiro.

Nos longos cílios de suas pálpebras cerradas viam-se pendendo lágrimas brilhantes... no arfar veemente de seus seios adivinhava-se uma luta de nobres afetos travada em seu coração...

Tão enlevada ficou no seu meditar, que talvez fosse uma corrente de ternos pensamentos a que se estava deslizando por diante de seu espírito.

Era já começo da noite: a brisa meigamente brincava com os anéis das madeixas de Honorina, que, vestida com um simples roupão branco, cujo corpinho folgado deixava em perigosa liberdade insinuarem-se as mais encantadoras formas, e sentada perto e defronte de uma janela, por onde vinham alguns raios da lua clara e luzente derramar-se sobre ela, mostrava-se pálida... fantástica... e mais que nunca formosa...

Alguns minutos se passaram... depois as lágrimas caíram dos cílios de Honorina, e não foram novas dependurar-se neles... serenou a tempestade que agitava o seio da virgem... e ela sempre em silêncio... imóvel... respirava apenas.

Tinha involuntariamente adormecido.

Alguns momentos mais... e na porta de um corredor, mercê da qual se comunicavam as duas saletas pelo lado do jardim, deixou-se ver a figura de um mancebo loiro... engraçado e alegre...

Era ele.

O moço loiro foi pé por pé, cuidadoso, e de manso ajoelhar-se junto de Honorina; e ficou breves minutos em encantada contemplação com os olhos embebidos no rosto da virgem, como um pecador aos pés de uma santa.

Depois curvou-se até o chão... beijou com apaixonado gesto a barra do vestido da idolatrada moça, e, olhando-a ainda uma vez radioso de ternura e felicidade, retirou-se tão de manso como viera; e sumiu-se pelo corredor...

Quase ao mesmo tempo Lúcia apareceu na porta da entrada da saleta, e despertou a Honorina.

Imposição

Honorina não pôde dormir um só instante durante toda a noite.

O bilhete e ainda mais o livro da alma do moço loiro tinham vindo aumentar os sofrimentos da infeliz jovem; porque, além da expressão viva e terna de um amor ardente e nobre, como o que ela pedira noutro tempo ao céu, amor de poeta e de fogo, aí aparecia uma idéia melancólica, amarga, arrancada talvez da íntima e dolorosa convicção de quem a enunciava: era o profundo sentimento da miséria do pobre.

E essa idéia despótica, terrível, apoderou-se da imaginação de Honorina, pô-la em torturas longas horas de uma noite, desenhou-se com mil formas diante de seus olhos, e pesou sobre seu coração de um modo cruel.

Estimulada por seu amor, levada da nobreza de sua alma, escrava de sua imaginação fervente, Honorina corou, acreditou-se muito abaixo de si própria, não achou uma desculpa para suas hesitações do dia que acabara; e, uma vez desassossegada, possuída de convulso tremor, sentou-se no leito, e com os olhos luzentes, ela um pouco febril e superexcitada, lançou para trás com as mãos as soltas madeixas e, sacudindo a cabeça como se delirasse, exclamou:

-Nada de máscara!... não!... nada de máscara!... sinceridade ao menos. É preciso confessar que eu sou do vulgo, e cativa do meu século!... seria uma vergonha aceitar a defesa que me oferece aquele que eu me ufanava de amar, quando diz que a minha generosidade me sacrifica, quando pensa que eu sou uma mártir. Não!... nada de ilusões! o caso é simples: ponhamo-lo bem transparente. Eu disse a mim mesma que amava a um homem, e esse homem é pobre; meu pai sente estremecer sua casa, está a ponto de perder tudo, e meu primo, que é rico, se oferece para salvar-nos a preço de minha mão, isto é, temos de um lado um homem pobre, e do outro um rico; temos numa das conchas da balança -amor, e na outra -ouro!... temos ali um mancebo que me ama, e que me salvou a vida; acolá, um outro que não pode amar-me e que quer comprar a minha mão por alguns contos de réis; e aqui, enfim, temos uma mulher que diz que ama, e hesita na escolha; que diz que despreza o ouro e tem pensado em se deixar vender por ele!... Não!... ainda uma vez nada de máscara!... nada de falsas interpretações!... o que quer dizer aquele que escreve a um pai estas palavras -toma esse dinheiro; mas dá-me tua filha- o que quer dizer?... falemos claro: é exatamente o seguinte -queres vender-me tua filha?... eu dou-te tanto.

Copioso suor banhou a fronte de Honorina, que prosseguiu com dobrado fogo.

-Isso quer dizer que se negoceia com o coração de uma mulher!... que a alma, que ama, a alma, que é dom do céu, a alma que é espírito, a alma, que é de Deus, pode comprar-se com o ouro dos homens!... oh!... e quando se tem um pai, como eu tenho, que não é tirano, que é amigo extremoso, que é, enfim, digno do sagrado nome de pai; quando ele me está dizendo -filha!... respeita a flor de teu coração! filha, não te sacrifiques!... filha, não cases com quem não amas!... filha, decide-te com toda a liberdade!- pensar eu, um instante só, em sacrificar-me!... o que é a desgraça, que para não ser pobre se liga para sempre ao homem que mal conhece, traindo um outro, que tem domínio sobre seus pensamentos, que é o objeto do mais puro amor?... o que é?... é uma mulher que se vende! não é uma mulher, não: é uma escrava, ou, ainda melhor, a alfaia delicada que um homem regateia e compra!...

Honorina estava realmente bela nesse monólogo febril, em que ela deixava fugir-lhe dentre os lábios as proposições atrevidas de seu exagerado raciocinar, como centelhas brilhantes de um vivo fogo, em que internamente estivesse ardendo. Mas arrastada por sua imaginação, continuou ainda:

-E como me desculpo eu!... digo que hesito, porque me lembro do quanto sofrerão meu pai e minha avó nas garras da pobreza que os ameaça!... sinto isto no coração; porém, meu Deus, a pobreza e a miséria poderão causar maior dor a meus pais do que o aspecto da minha desgraça?!... não será enormíssima crueldade, que uma moça se faça infeliz por suas mãos, casando-se com um homem a quem não ama, quando sabe que sua desdita, sua vida de martírio, vai ser um tormento incessante, eterno, despedaçador do coração de seu pai?... E, demais, o que faz a mulher que abafa suas ternas afeições para sacrificar-se a um noivo que não poderá amar nunca?... de duas uma: ou é má, e suspira por um véu de viúva, ou é vítima, e com o rosto em lágrimas com o padecimento na face faz o tormento do marido, que a infelicita, e, finalmente, o atraiçoa na alma; porque, mesmo contra a vontade, pensa no seu primeiro amor.

Depois de um instante de silêncio, a filha de Hugo de Mendonça prosseguiu:

-E eu então que outrora bradava: é um horrível sacrilégio ir um homem ajoelhar-se aos pés do altar, receber a bênção do sacerdote, estender a mão para uma triste mulher, com os olhos em seu rosto e o pensamento no seu dinheiro!... Eu, então, como devo bradar agora?... oh!... pela última vez, nada de máscara!... não!... sinceridade ao menos!... esse ente, que tenho ouvido dizer que é muito belo, e que começo a experimentar que é muito desgraçado; a mulher, que esquece o amor pelo ouro, que entrega sua mão a um homem com as vistas em suas riquezas, procede dobradamente pior! sim, porque a mulher vale muito, vale tudo pelo amor; e sem ele perde seu brilho, todo o seu merecimento; sim, porque o amor é o perfume, o encanto da mulher; sim, finalmente, porque a mulher, que vai junto aos altares jurar amor eterno a um homem que não ama, jurar por Deus, o que não pode cumprir, é mil vezes sacrílega!... fecha com suas próprias mãos as portas da salvação!... pois bem, não serei sacrílega!... não serei sacrílega!... e, quando meu pai me perguntar -o que decides?...- eu lhe direi bem alto -não!...

Mas, no meio do ardor e da veemência de seus pensamentos, mesmo quando acabava de pronunciar a palavra -não!-, parece que uma idéia sinistra surgiu na alma da virgem; pois que ela, soltando um gemido, exclamou com a expressão da mais dolorosa angústia:

-E meu pai!... e meu desgraçado pai!...

E deixou-se cair no leito, como quem tivesse esgotado todas as suas forças.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Pelo correr das dez horas do dia o curso de sua reflexões foi interrompido por Lúcia, que entrou no quarto.

Honorina, ao senti-la chegar, ergueu-se para atirar-se nos seus braços, mas recuou espantada, vendo alegre sorrir derramado nos lábios de Lúcia.

Oh!... é mais que impiedade; é talvez um insulto, que aquele a quem estimamos venha rir-se no rosto de nossa dor!...

-Estás bem alegre, mãe Lúcia! disse a moça em tom de amarga queixa.

-Eu pensava que a senhora também o estaria!

-É por que eu sou bem venturosa, não é assim, mãe Lúcia?!

-Ah! eu vejo, pois, que me enganei; ouvi a Sr.ª D. Ema repetir-me o conteúdo da carta que ontem se recebeu do meu querido filho, e vinha alegrar-me com a outra minha filha... é que eu tinha para mim que a maior felicidade que me podia ainda vir no mundo, era ver unidos os dois entes que alimentei com meu leite...

-Também tu, mãe Lúcia! exclamou a moça chorando amargamente.

-Mas eu não entendo por que a senhora está chorando assim...

-Ainda bem!... ainda bem que o não entendes!...

-Devo crer que é por não desejar casar-se com seu primo; pois por ele respondo eu: o senhor Lauro não é capaz de abusar de sua posição...

-Mãe Lúcia!

-Parece-me, porém, que, se a senhora chegar a vê-lo, há de mudar de opinião... olhe, menina, não se parece nada com o outro...

-Com o outro?... que outro?... perguntou estremecendo Honorina, que tinha sempre o pensamento no moço loiro.

-O outro que cá veio, há poucos dias, pedi-la em casamento, que foi pela senhora mal-aceito, e que, apesar disso, não sei por que teima em voltar ainda...

-Pois ele tem voltado?...

-Está aí agora a praticar com o Sr. Hugo de Mendonça e com a senhora sua avó.

-Mãe Lúcia, disse Honorina levantando-se e enxugando os olhos, eu quero ouvi-los.

-Nada é mais fácil: a porta, que dá para o gabinete de seu pai, está aberta.

-Pois vem comigo.

Um momento depois Honorina e Lúcia, apertadas contra a porta do gabinete de Hugo de Mendonça, ouviam tudo o que se passava na sala.

Ainda uma vez tratava-se de Honorina.

Estavam aí três pessoas: Ema, Hugo de Mendonça e Otávio.

Otávio não tinha tido a paciência precisa para esperar pelo dia do vencimento da primeira letra; com toda a sofreguidão de um homem apaixonado, sob o pretexto de vir antecipar a Hugo de Mendonça aquilo mesmo de que nenhum negociante honrado se pode esquecer, apresentou-se na casa dele.

Travou-se em breve entre os três uma polêmica forte e animada. Otávio mostrou-se sabido do estado dos negócios de Hugo, e imprudente, sem dúvida, ofereceu-se para salvá-lo à custa da mão de Honorina, aceitando como dote da moça a dívida de Hugo de Mendonça: em suma, Otávio impôs.

Ema, que já tinha defendido as pretensões de Otávio, e que agora temia ver sua neta casada com o moço que detestava, sustentou na presença daquele a conveniência do casamento que lhes vinha propor; e, exasperada pela oposição de seu filho, declarou a Otávio que contasse com a sua aprovação.

Hugo de Mendonça, enfim, em quem a desgraça parecia haver criado resolução e força, respondeu com dignidade à imposição de Otávio e ao empenho de sua mãe.

-Senhor, exclamou o negociante olhando para Otávio, não chegou ainda nenhum dos dias em que se vencem as letras, que lhe devo pagar e lhe pagarei; só então, se eu faltar aos meus deveres, lhe será lícito vir impor-me condições!

-Senhora, continuou dirigindo-se à sua mãe, eu me espanto da parte animada que minha mãe toma em favor das pretensões do Sr. Otávio; mas minha mãe sabe que primeiro arrastarei a miséria, do que consentirei que minha filha sacrifique seu coração à minha fortuna!

-Senhor! disse ele ainda uma vez a Otávio: dentro em dois dias eu conto que estarão terminados todos os negócios que entre nós se acham pendentes; no entanto, espero que se convença, de uma vez para sempre, que eu não considero minha filha uma letra de câmbio, nem uma mercadoria com que possa negociar; que eu não vendo minha filha por nenhum preço; que jamais consentirei em vê-la sacrificada ao homem que não pode amar!

Escutando semelhante conclusão, Otávio despediu-se vivamente agitado; e foi com acento de concentrado despeito que ele disse sem apertar a mão de Hugo:

-Até depois de amanhã!

-Sem dúvida, respondeu o negociante vendo-o sair; até depois de amanhã!

Honorina apenas viu a sós seu pai e sua avó, ia de novo recolher-se à sua câmara, quando se suspendeu a voz de Hugo que se dirigia a Ema.

-Minha mãe, disse o filho; parece que me não deve ser oculta a razão por que tanto se mostra empenhada a favor do homem que acaba de sair daqui.

-Há duas razões, disse a velha com rispidez.

-Posso eu sabê-las?...

-Sim; eu vejo prestes a cair a casa que tanto trabalhamos para levantar; essa queda trará a vergonha de todos nós; e o casamento que se propõe é um meio de preveni-la tão fácil como decoroso.

-Mas minha mãe devia lembrar-se que Honorina já disse uma vez que não são iguais as proposições deste mesmo homem.

-Honorina há de dizer que sim, quando pensar que é esse o único meio de salvar sua família.

-Mas o pai de Honorina não há de consentir semelhante sacrifício! eu sei que, se ela ouvir a minha mãe, responderá chorando -sim; fique, porém, minha mãe sabendo que o pai de Honorina dirá por sua vez -não!

A velha fez um movimento de cólera, que não escapou aos olhos de Hugo de Mendonça.

-Sossegue, minha mãe; bem vê que se está tratando de minha filha. Vamos à segunda razão.

-A segunda razão, disse Ema com despeito, é que este casamento impediria que se concluísse o outro que projetas; faria com que tu não fosses entregar a única pessoa que me prende ao mundo a um homem miserável e infame!

-Minha mãe, Lauro pediu a mão de Honorina para quando provasse que essa infâmia não tem sido mais que uma calúnia!

A velha soltou uma risada sarcástica.

-E quem já assegurou, continuou Hugo de Mendonça, que minha filha se casará com Lauro?...

Ema olhou espantada para seu filho.

-Porventura Honorina já nos disse que sim?...

-E se ela o não disser, que esperança te restará, Hugo?...

-Minha mãe, a mesma que me restava ontem de manhã.

-A desonra.

-Não: a miséria.

-Sim... tudo sacrificado...

-Tudo, respondeu friamente Hugo de Mendonça.

-E depois darás à tua filha a vida das lágrimas e das privações; rir-te-ás diante de seu pranto; e dirás triunfante: -ao menos não é esposa de Otávio!

Nas palavras de Ema estava derramado todo o fel da mais acerba ironia.

-Não, minha mãe, respondeu o filho; trabalharei noite e dia por minha filha; irei ser um humilde caixeiro, um simples escrevente de cartório, o que primeiro puder ser, enfim; mas trabalharei sempre, e muito... dormirei menos duas horas... vestir-me-ei mal... serei capaz de pedir uma esmola; mas, quando trouxer a Honorina o pão comprado com o suor do meu rosto, eu exultarei, minha mãe; porque no meu coração estarei dizendo a mim mesmo -ao menos não sacrifiquei-a!

-Sim! sim! sim! exclamou a velha despeitada; e quando daqui a um ano, a dois ou três, pagares o tributo de tua vida, tu a deixarás no mundo só, nua, faminta, com um pé na miséria e o outro na desonra; mas do fundo do sepulcro teus ossos estarão dizendo: -ao menos não sacrifiquei-a!...

-Minha mãe! é uma impiedade estar assim redobrando meus tormentos!...

-É que tu estás cavando um abismo debaixo dos pés de tua filha!

-Eu... nós já lhe demos a educação e os exemplos da virtude...

-Mas aí está o mundo...

-E sobre o mundo, minha mãe, está Deus...

A velha entendeu que era tempo de calar-se; e Hugo de Mendonça, que já se achava vestido e pronto para sair, tomou o chapéu.

-Minha mãe, devo sair, disse ele; tenho ainda papéis a ver, passos a dar, e talvez fatos a averiguar. Eu lhe peço que não diga uma única palavra a Honorina a respeito do que se tem passado: devemos querer, quero, que ela tome uma resolução definitiva, sim; mas quero também que o faça livremente; trata-se da felicidade ou da desgraça de toda a sua vida; e já que a seu pai não é dado ler no futuro, faça-se ela feliz ou desgraçada por suas próprias mãos.

Um instante depois Ema ficou só na sala; e Honorina foi de novo abrigar-se no silêncio de seu quarto.

Lucrécia

A causa que pleiteavam no coração de Honorina a natureza e o amor, continuava indecisa; porque a sentença tinha sempre de ser um martírio para o juiz. Os litigantes combatiam-se mutuamente com as armas da generosidade; e, talvez a próprio despeito, quando queriam ceder o campo, ainda mais avançavam.

O pai dizia à filha: -não te sacrifiques!

O amante dizia à amada: -salva a teu pai, e esquece-me!

E, se ao morrer de um dia uma carta do moço loiro, na qual ele parecia renunciar a esperança de felicidade, era justamente o que mais em seu favor argumentava, e plantava na alma de Honorina novos direitos a essa esperança; na manhã do outro a prática havida entre Hugo e sua mãe; o voto solene, que fez o extremoso pai de não só não querer, como também de não consentir o menor sacrifício do coração de sua filha, apesar da pobreza e da desgraça que o esperavam, dava dobrada força, enchia de interesse e de ardor a causa da natureza.

E, pois, Honorina, hesitando sempre, lembrou-se, como tantas vezes, da sua fiel amiga; e, acreditando que seus conselhos lhe eram mais que nunca necessários, escreveu-lhe depressa estas poucas palavras:

«Raquel: eu preciso de ti ao pé de mim, como um pecador moribundo precisa ter junto de si um padre compassivo e sábio; faze por ver-me quanto antes; dize a teu pai que eu estou muito doente, ou dize o que melhor te parecer; eu quero pedir-te conselhos, contar-te muitas coisas tristes, e falar-te a respeito... dele.»

Honorina tinha errado; porque não compreendia o que também se estava passando no coração da sua amiga; se Honorina não tivesse concluído o seu bilhete com as palavras -falar-te a respeito... dele- abraçaria sem dúvida a Raquel muito depressa; porém, para ouvir falar a respeito... dele, é duvidoso que Raquel se apresse.

No fim de duas horas, Lúcia foi entregar a Honorina a resposta que tinha chegado de Raquel.

A moça abriu o papel e leu tristemente: «Honorina: eu estou muito doente; é-me impossível ir ver-te agora; verei se o posso fazer à noite.»

-Pobre Raquel! disse Honorina; mãe Lúcia, é porque ela está na verdade doente.

-Mas, enfim, como promete vir à noite...

-Contudo, esperar até à noite é muito para quem se vê no meu estado!

-Eu pensei que a primeira carta da Sr.ª D. Raquel havia-lhe consolado um pouco...

-A primeira carta?...

-Sim; aquela que ontem lhe entreguei na saleta do terrado.

-Ah! sim... é verdade: a primeira carta... pois exatamente por causa dela precisava eu ter junto a mim uma amiga que me aconselhasse...

-Então... eu...

-Mãe Lúcia... tú és um pouco suspeita; quando em qualquer questão aparece o nome de meu primo...

-Paciência, Sr.ª D. Honorina.

-Oh! paciência?... de paciência careço eu, e de muita, porque, com efeito, é terrível a minha posição!... eu sinto andar-me a cabeça à roda... tenho no coração uma ansiedade inexplicável... eu preciso falar... dizer o que sofro a alguém que me estime, e que me aconselhe... oh!... como é bom ter uma amiga ao pé de si!... neste momento Raquel... uma amiga seria a meu lado como um anjo!...

-Mas eu creio que batem palmas na escada...

-Se fosse Raquel!... mãe Lúcia, vê quem é...

Uma escrava bateu de manso na porta do quarto de Honorina e anunciou a Sr.ª D. Lucrécia.

-D. Lucrécia!... exclamou a moça.

-Que a vem visitar, disse Lúcia.

-Quando eu pedia ao céu uma amiga!...

-A senhora não quer ir recebê-la?...

-Não, mãe Lúcia, Lucrécia não é de cerimônia; faze-a entrar para aqui.

A bela viúva chegava a propósito: Brás-mimoso, que viera cumprimentar pouco antes as senhoras, voltara assustado com o aspecto melancólico de Ema, e para logo fora dar conta do que observara à sua interessante protetora.

Lucrécia correu imediatamente ao posto que lhe convinha: as lágrimas de uma rival agradam muito ao paladar da mulher ciumenta; e de mais, quem sabe se a despeitada viúva não poderá tirar partido da posição de Honorina?...

Lucrécia não hesita, e se apressa a descobrir campo.

Apenas entrada no quarto, ela aperta Honorina em seu braços e exclama:

-Meu Deus!... tu tens chorado, D. Honorina!

-Muito! muito, D. Lucrécia; porque eu sou bem desgraçada!

-Oh! mas tu me devias ter feito chamar para consolar-te... por ventura não te tenho eu pela minha melhor amiga?... aposto que mandaste buscar D. Raquel?...

-É verdade... mas perdoa.

-Perdôo-te de todo o meu coração, pois que sois amigas da infância: é tão doce uma amizade dos primeiros anos!... eu também amo muito a D. Raquel, porém onde está ela?...

-Não pôde vir... desgraçadamente se acha doente...

-Oh! jamais se está doente para acudir a uma amiga que chora!...

-D. Lucrécia, Raquel não mente!

-Esqueçamos isso, continuou a viúva; não veio ela, mas aqui estou eu; vamos, D. Honorina, que querem dizer essas lágrimas?

Honorina estremeceu; como sempre, apareceu no espírito da moça a desconfiança que lhe inspirava Lucrécia; havia no coração de Honorina talvez um pressentimento de que aquela mulher lhe seria falsa; mas ao mesmo tempo esse coração estava tão cheio de mágoas, esse espírito tão repleto de temores, de dúvidas, de amor e de piedade, que por força tinham ambos de esvaziar-se no seio de alguém.

Portanto, depois de muito tempo de hesitação e de vivas instâncias da viúva, Honorina, abaixando os olhos, disse:

-Antes de tudo, tu me deves perdoar uma falta, D. Lucrécia.

-Uma falta? perguntou a viúva fixando na moça vistas perscrutadoras, e qual é?...

-Eu não te tenho dado toda a minha confiança... até agora te ocultei o meu único segredo.

-Eu o sabia... eu o adivinhava...

-D. Lucrécia... eu amo... há muito tempo...

-Sim... bem... e então?

Honorina derramou toda a relação de sua inocente paixão no seio da viúva, como um licor doce e cristalino, que gota a gota se deixa cair em um vaso impuro.

Lucrécia escutava atentamente a história daquele amor já tão adiantado, e tão terno, e que ela mal tinha suspeitado na noite do canto à sombra da mangueira e na seguinte tão tempestuosa e terrível. Oh! a vaidosa viúva teve inveja desse amor de homem misterioso e devotado, que se metamorfoseava em tantas figuras, que aparecia inopinado em tantos lugares, que velava tantas noites, que assoberbava a mesma morte por uma mulher; ela sentiu que esse homem valia mil vezes mais do que Otávio; e ouviu, com inveja ainda, essas doces e imutáveis palavras de seus singulares escritos; palavras que semelhavam um mote guerreiro inscrito no escudo de amoroso cavaleiro de prisca idade.

Honorina não esqueceu nada; tudo quanto com ela se passara e se estava passando confiou à falsa amiga: as pretensões de Otávio, a sua resposta, os desejos de sua avó, o propósito de seu pai, as cartas de seu primo, tudo foi revelado.

E, quando terminou sua tão longa narração, Honorina respirou mais livremente, e, como esperando um conselho, levantou os olhos e os fitou no rosto de Lucrécia, que, pensativa, tinha os seus esquecidos sobre o tapete, que se achava estendido aos pés do leito da moça.

Em que pensava ela?... já uma vez o dissemos: a mulher não detesta a sua rival pelo amor que pode ter ao seu amado, mas antes pelo amor que lhe vota ele; merecer mais que ela é o crime; e embora não deseje, não faça por merecer, o suposto crime existe e o castigo se forja.

Também já uma vez o dissemos: -vençamo-la!- é o grito de guerra de uma rival.

Lucrécia não tinha, mesmo ouvindo na confissão de Honorina o quanto esta desprezava Otávio, esquecido seus desejos de vencê-la rebaixando-a... pondo-a, se possível lhe fosse, ainda abaixo de seus pés diante do homem que dela se esquecera por Honorina.

Estudando a relação que acabara de ouvir, Lucrécia tinha ante seu espírito três pretendentes à mão de Honorina; nada disto, nenhum deles lhe agradava: a mulher que se casa nunca se rebaixa; o casamento é sempre um triunfo da mulher; portanto, era preciso afastar a moça de todos eles.

A miséria de Hugo de Mendonça já era alguma coisa; mas não tudo. Honorina podia ficar nobre e virtuosa, mesmo nas garras da miséria, e Lucrécia compreendia perfeitamente que uma moça bela e sempre virtuosa no meio das privações da pobreza é como uma flor do céu caída na terra, como um pensamento de Deus perdido entre os homens... é a verdadeira angélica virtude.

Depois de muito refletir o costumado e doce sorriso de seus lábios, apareceu; dir-se-ia que a viúva tinha achado uma tábua de salvação para Honorina; e ela havia somente entrevisto um caminho que a podia levar a profundo abismo.

-E então, D. Lucrécia!... pensas que já não há esperança de felicidade para mim?...

-Oh!... não; eu estava pensando em outra coisa: lembrava-me de uma cena que se passou comigo, quando trataram de casar-me, e que se parece muito com o que sucede contigo; queres ouvi-la?...

-Se o julgas conveniente...

-Quando quiseram casar-me, eu tinha dezesseis anos... era, pois, da tua idade; não contava como tu pai e avó, mas em compensação tinha mãe e tio; amava em segredo a um moço, como tu amas; pois bem, a minha mãe e meu tio descobriram o meu amor, não o aprovaram, e, para melhor combatê-lo, fingiram ignorar sua existência; quem sabe, D. Honorina, se te sucede o mesmo?...

-Não... não.

-Também eu não digo que sim: mas escuta. Um dia, veio um senhor pedir-me em casamento... compreendes que eu fiz como fizeste, disse que não; vês como se têm assemelhado nossos destinos?...

-Sim... prossegue.

-Passado algum tempo, minha mãe se me apresentou aflita e chorosa... leu-me a sentença de um tribunal que lhe fazia perder metade ou quase todos os seus bens em favor de um primo meu... esse primo amava-me também e exigiu ou a minha mão, ou o que lhe pertencia... ora, não vês como continuam a parecer-se nossas histórias?... há apenas uma troca de papéis; porque contigo é teu primo, que aparece como salvador, e comigo sucedeu que foi o meu primeiro pretendente quem escreveu à minha mãe, oferecendo-se para salvar-nos...

-E depois?...

-Estava o tal meu primo disputando na sala com minha mãe e meu tio, e uma escrava disso me avisou. Fui escutá-los: meu tio defendia as pretensões de seu sobrinho, e minha mãe jurava que antes queria ver-se reduzida à miséria do que obrigar-me a casar com esse meu primo, a quem eu também já havia rejeitado; esta é uma pequena dessemelhança entre nossas histórias...

-E finalmente?...

-Lembrou-se o meu primeiro pretendente... meu tio gritou contra ele, minha mãe falou a seu favor, mas jurou que nem com esse me obrigaria a casar; depois pintaram a miséria com horríveis cores... minha mãe, D. Honorina, falou como teu pai... estava chorando; quando eu caí em seus braços, e para salvá-la da pobreza, esqueci meu amado e casei-me com o homem, de quem hoje sou viúva.

-E portanto...

-Espera, disse Lucrécia interrompendo a moça, ainda não acabei a minha história: três dias depois do meu casamento conheci que tinha sido vítima de uma traição; não havia sentença contra nós; meu primo se tinha conciliado amigavelmente com minha mãe em obséquio a meu marido, de quem era amigo; para servi-lo, ajudara a tramar a intriga, fingindo querer casar comigo; e três dias depois veio à nossa casa beber um copo de vinho à saúde dos noivos.

-E tua mãe, D. Lucrécia?...

-Minha mãe queria tornar impossível assim o meu casamento com o homem que amava em segredo.

-Oh! D. Lucrécia, também nisso diferem nossas histórias, porque meu pai nada suspeita do meu amor; e ainda que tudo soubesse, tal não era capaz de fazer, porque meu pai é meu pai.

-D. Honorina, também minha mãe era minha mãe.

-Mas o que tu pareces querer fazer-me pensar é uma injúria que eu não sofrerei que se faça a meu bom pai e a minha avó!...

-Meu Deus! D. Honorina, eu não te quero fazer pensar coisa alguma contra teu bom pai e tua avó! eu não fiz mais do que contar-te a história do meu casamento.

-Que tanto assemelhaste à minha, D. Lucrécia!

-Isso não partiu de mim: é filho do acaso.

-Mas eu te pedia conselhos... e tu me contaste uma história.

-Donde podias tirar bons conselhos, D. Honorina.

-Outra vez!...

-Eu não sei dizer às minhas amigas senão a verdade, embora cruel: eu vejo que te pretendem fazer vítima de uma intriga...

-D. Lucrécia!

-Não compreendo como se possa ser na praça um rico e feliz comerciante, e em casa um negociante falido!...

-Basta!... eu não devo, eu não quero ouvir o que a senhora diz!...

-Pois bem! eu cumpro meus deveres de amiga; tu, D. Honorina, sacrifica-te! escuta tudo o que te fazem ouvir detrás de uma porta... entrega-te ao homem que te indicarem... a esse Sr. Otávio, ou ao outro, que de longe te requesta, e te persegue sem te ver, sem te amar... e, no entanto, esquece aquele que tanto te idolatra...

-Oh! basta!... basta pelo amor de Deus!...

-Esquece aquele que por ti vive e vela sempre... aquele que te ama com um amor tão novo, tão singular e tão belo... que por ti expôs sua própria vida...

-D. Lucrécia... compaixão para mim!...

-Não! não!... compaixão para ele!... para ele, pobre moço, que tudo devia confiar de tua constância, e que em breve terá de marcar o teu nome, como ainda um novo exemplo da volubilidade do nosso sexo!...

-Mas quando eu digo que o amo, que o adoro!...

-E que amor é esse, D. Honorina, que não é capaz de nenhum extremo, de nenhum sacrifício pelo objeto amado?... que chama é essa que cede a tão fraco sopro?...

-Que cede a tão fraco sopro?... D. Lucrécia, sabes o que é ser ou foste o anjo querido de teu pai?...

-Nossos pais?... nós lhe devemos tudo certamente; mas talvez que, cegos por seu amor, temerosos por nosso futuro, todos eles nos julgam muito imbecis para escolhermos um esposo; e quase sempre supõem indigno de nós o objeto de nosso amor; queres exemplo?... aí tens a vida, o destino da totalidade das mulheres aqui me tens a mim; e, finalmente, aí te tens a ti.

Honorina viu o rosto de Lucrécia animado e cheio de fogo; e ingênua que era, não compreendeu que há também entusiasmo no crime.

E Lucrécia, hábil e astuta, soubera ferir a corda sensível do coração da moça que atraiçoava: tocando no seu amor, mostrando-se inflamada e viva na defesa do moço loiro, tinha roubado a atenção e prendido o espírito de Honorina. Com a eloqüência e finura que lhe haviam dado o trato e a vida cortesã, foi levando a inocente moça passo a passo até o ponto onde queria dar-lhe o último golpe; encheu até as bordas um copo de horrível veneno, que lhe deveria deixar para beber; só quando tinha esgotado os mais capciosos argumentos, os mais detestáveis e perigosos sofismas, foi que, fingindo-se fatigada, calou-se, e respirou arquejando.

-Mas em conclusão, perguntou Honorina, que devo eu fazer?... o que me aconselhas?...

-E para que um conselho, se não estás disposta a segui-lo?... se ainda há pouco me mandaste calar?...

-Perdoa; porém eu não podia ouvir falar contra meu pai.

-Pois então obedece-lhe em tudo.

-Oh!... mas isso é uma impiedade!... quando eu te peço um auxílio de amizade.

-Pois bem... eu acho um meio.

-Dize-o.

-Ouve-o; das duas uma: ou tu és vítima de infernal trama, ou não; há um recurso, mercê do qual podes escapar à intriga, e não perder a estima pública.

-E qual?...

-O seio de Deus.

-Eu não compreendo...

-Julga-se sempre mal de uma mulher que foge de seu pai para entregar-se aos cuidados de outro homem; mas ninguém pode maldizer a que se arranca da casa de seus pais para abrigar-se à sombra dos altares do Salvador do mundo.

-E então... eu tremo!...

-Cumpre fugir e entrar em um convento.

-Fugir de meu pai?...

-Deus está acima dos pais...

-Fugir de meu pai?...

-Sim; mas para entrar logo em um convento.

-O que tu me aconselhas, D. Lucrécia, se assemelha muito a um crime!...

-Crime, buscar a casa do Senhor?! D. Honorina, tu desarrazoas. Ouve-me: saindo da casa de teu pai, tu lhe deixas uma carta em que declaras a resolução que tomaste, e o lugar onde foste procurar um abrigo; aí, se foi uma cilada, que contra ti forjaram, e teu pai te ama, esperas o seu perdão e sais depois nobre, cândida e pura, como entraste, para ser esposa do teu interessante e misterioso amado; e se é uma realidade o que se passa aqui, tu ficas no convento, e nem te sacrificas, nem te tornas pesada a teu pai.

-Não, D. Lucrécia, fugir de meu pai, não, não!...

-Oh! pensa bem no que vais fazer, minha querida amiga; lembra-te que, com a inconstância deste mundo, podem em pouco tempo estar mudadas todas as cenas que hoje tão tristes se apresentam; é possível, é mesmo provável que o Sr. Hugo de Mendonça se reabilite no comércio; não seria nenhum milagre vermos esse moço loiro aparecer inopinadamente rico, feliz e alegre; a fortuna é assim, inesperada, imprevista sempre!... vê, pois, o que te cumpre, D. Honorina: pensa que para esperar a fortuna se faz preciso fugir desta casa; aqui há perigo... aqui tu não terás força para resistir às lágrimas de teu pai!

O veneno ia pouco a pouco escoando pelos ouvidos de Honorina; a pobre moça escondeu o rosto entre as mãos, e, derramando torrentes de lágrimas, exclamou por entre soluços:

-Não! D. Lucrécia; fugir de meu pai, não!... não!...

-Pois bem, faze o que te convier, D. Honorina; sacrifica-te... com teu sacrifício imola... mata esse pobre moço que te salvou; porque é preciso dizer que um homem que ama como ele, não sobrevive à morte de seu amor!

-Oh!... D. Lucrécia!...

-No entretanto, eu cumprirei o dever de amiga: se te resolveres a seguir os meus conselhos, escreve-me esta simples palavra -sim!- eu farei o resto; às dez horas da noite em ponto esperar-te-ei em uma carruagem a vinte passos do portão desta casa, e do lado da minha; conduzir-te-ei ao convento, para cuja entrada darei com o maior segredo todos os passos, esta tarde; se me não responderes até às duas horas, voltarei a ver-te. Adeus!... pensa e resolve-te!

Lucrécia levantou-se e despediu-se de Honorina, que, ao vê-la sair do quarto, exclamou ainda:

-Não!... D. Lucrécia, fugir de meu pai, não!... não!...

Às duas horas da tarde uma escrava de Lucrécia entregou-lhe um pequeno bilhete, que fora trazido por um pajem, que para logo se retirara sem cuidado de resposta.

A viúva abriu com impaciência o bilhete, e sem poder ocultar infernal prazer que lhe transluzia no semblante, murmurou arrastando-se por cada uma sílaba das frases:

-Vingo-me!... venci!...

No bilhete estava escrita uma única palavra:

-Sim.

Félix

Enquanto aflita e gemebunda a inocência lá se achava exposta aos laços da perfídia e chorava sobre seu amor e sua piedade, o crime não espremia essas lágrimas impunemente.

É falso! não há impunidade para o crime. Deus, sábio e providente, preveniu a ignorância e a fraqueza dos homens; quando estes não condenam, aí está a consciência do criminoso que o tortura. A consciência é a voz de Deus, que brada dentro do homem: o eco de seus brados vai soar na eternidade.

O malvado que se avezou ao crime, que o perpetra como por hábito, não passa ainda assim impune: isso que vós chamais hábito, é já o desespero da salvação; é a prévia condenação eterna, que o punge, que o dilacera tanto, que o faz desafiar a cada instante a cólera do Juiz Supremo, desejoso de ir sofrer a pena terrível, não podendo mais esperar por ela; porque se esperar o bem é um prazer que se frui de longe; esperar o inferno é já estar no inferno. A consciência nunca se caleja; no celerado, o que às vezes se apaga é a esperança de salvação; a nímia malvadeza é como uma loucura, pela qual o homem chega a julgar mais elevada a enormidade de seus crimes do que a misericórdia de Deus.

E aquele, cuja alma se ressente ainda de sua origem celeste, aquele que cometeu pela vez primeira um delito, recua, cora diante de sua consciência, como o mancebo enamorado aos olhos de sua bela, por quem foi convencido de um momento de infidelidade. É cruel estar o homem convicto de que praticou uma ação torpe; desde o instante da convicção, nunca ele está só, nem no solitário leito; aí mesmo, e em toda a parte tem diante de seus olhos, dentro de seu crânio, e sobre seu coração... a consciência do crime.

Esta pena terrível e sublime, que é conhecida do menino e do velho, a estava sofrendo Félix. Ele tinha sido condenado diante do tribunal infalível: seu processo, seu juiz, seu castigo, e o executor desse castigo, era somente a voz de Deus, que falava dentro dele. Não havia aí dizer -sou inocente!- a convicção estava com ele: a convicção era a pena.

Félix havia, pois, cometido um crime, que ainda não está para nós bem patente; mas que o estava para Otávio, que dele se serviu a fim de levá-lo à perpetração de outro.

O guarda-livros se transia, portanto, com a consciência de que era um falsário, um infame, um ladrão! -E não é tudo ainda: o homem, a quem ele tinha deixado roubar, era um de seus benfeitores; por conseqüência, havia um outro crime: a ingratidão.

E os resultados?... se Otávio levar a efeito seu indigno plano, quem sacrifica o coração da pobre moça?... quem reduz à miséria e é a causa dos horrores que ela fará sofrer a Hugo de Mendonça?...

Semelhantes idéias, pungidoras certamente, tinham torturado a Félix durante duas noites; o segundo dia correra tão cruel para ele como o primeiro, e ao chegar o fim dessa tarde, em que Lucrécia recebera o sim por que suspirava, o guarda-livros de Hugo de Mendonça despediu-se dos caixeiros, e o contra, antigo costume, subiu antes da noite para seu quarto.

Apenas entrado fechou-se por dentro, e estirou-se sobre o leito, onde passou meia hora arquejando ansiado; depois ele ergueu-se de repente, correu à sua carteira, tirou dela a carta que Otávio há três dias lhe lançara por debaixo da porta, e, apertando-a na mão, exclamou como em delírio:

-É a minha salvaguarda!... somos dois infames que nos daremos o braço mutuamente! o mundo cuspirá no rosto de ambos; não o fará somente no meu!

Nesse momento bateram na porta do quarto; Félix guardou rapidamente a carta no seio, e com voz alterada perguntou:

-Quem está aí?...

E conheceu a voz de um servente que lhe respondeu:

-Um homem já velho e doente quer falar-lhe; e diz que tem importante negócio a tratar, e recomenda que deve fazê-lo neste mesmo quarto, em segredo.

Félix estremeceu todo inteiro.

-E que homem é esse?...

-Ninguém o conhece lá embaixo.

-Donde, e de quem vem?...

-Não o disse.

-Como se chama?...

-Respondeu que não tem nome.

-Pois que se vá embora: não quero vê-lo.

-Já o despedimos dez vezes.

-E então?...

-Diz que quer falar-lhe por força, e em segredo; por que Vossa Mercê não desejará que ele fale muito alto.

-Pode fazê-lo entrar.

E pálido e temeroso ficou o guarda-livros com a cabeça fora da porta e o ouvido atento: ao ruído das pisadas do servente, que se retirava, sucedeu o ruído das do homem que vinha. Félix o viu aproximar-se vagarosamente de seu quarto e entrar sem dizer palavra.

Era um homem de estatura ordinária, magro, de cabelos que começavam a embranquecer, e que por longos cobriam-lhe as orelhas e uma parte da fronte e das faces: trazia dois parches, um sobre o olho esquerdo e outro que lhe escondia completamente o nariz; vinha com calças e coletes de pano preto já usado e vestia uma longa sobrecasaca verde-escura, que lhe tocava a curva das pernas; tendo entrado no quarto, tomou uma cadeira, e sentou-se defronte de Félix com a maior sem-cerimônia do mundo.

-O senhor queria falar-me... disse Félix.

-Sim... respondeu com voz áspera o homem.

Félix o encarou, e viu fito, pregado em seu rosto o olho direito do desconhecido; e sentiu que esse olhar era penetrante como um dardo, ardente como o raio, terrível como o do tigre.

O guarda-livros teve de abaixar a cabeça, e só então pôde dizer um pouco agitado:

-Pois eu estou pronto para ouvi-lo.

-Convém antes, disse o homem, que aquela porta seja fechada...

E, como para poupar a Félix uma resposta ou algumas passadas, ele mesmo ergueu-se e fechou a porta do quarto.

-Bem, disse Félix, que involuntariamente tremia, e agora?...

-Agora, tornou o homem, escute-me.

-Escute-me?... o senhor fala e pratica de um modo, que...

A personagem desconhecida interrompeu o moço, e começou a falar em voz baixa, mas terrível.

-Eu sei uma história, Sr. Félix, que Vossa Mercê vai ouvir, e há de corar, ouvindo-a, provavelmente, porque o seu melindre e a sua virtude se envergonharão do infame papel que representou o herói dela.

-Mas eu penso que o senhor me não veio incomodar para contar-me histórias...

-Ouça sempre. Em certa cidade... (não importa onde) havia um negociante honesto e honrado, cujos negócios não estavam no melhor pé possível. Obrigado por fatais circunstâncias a retirar-se por meses para o campo, deixou ele administrando sua casa um mancebo, que era o seu guarda-livros...

-Se o senhor quer falar de mim...

-Quando o negociante voltou, apareceu a seu lado uma filha sua, jovem e bela, que até então estivera oculta pelo véu dos cuidados de sua família, como uma violeta entre suas folhas; essa moça foi amada por grande número de mancebos, e no número desses houve um a quem eu darei o nome de Otávio, que a pediu em casamento, e foi repelido por ela.

-Mas... senhor...

-Sem generosidade e sem nobreza, Otávio quis tentar obtê-la à força. Para isso achou um meio: o moço, que servira de administrador da casa do negociante, tinha um segredo fatal, que o podia perder, e que era por ele sabido. Otávio abusou desse segredo, e foi vendê-lo ao antigo administrador a preço de mais de quarenta contos de réis em letras passadas contra a casa do negociante. O antigo administrador cedeu!... vendeu seu patrão.

-É falso! balbuciou Félix, caindo aterrado sobre o leito; é falso! é falso!...

-Em uma noite os dois trocaram infâmia por infâmia, as letras pelo segredo. Otávio deixou o jovem guarda-livros, o antigo administrador, e com três importantes letras na mão foi impor ao negociante, ou o seu casamento com a bela moça, ou a miséria dela, e a queda da casa.

-Oh!...

-E o guarda-livros ficou só... e na mão com que tinha dado as falsas letras estava uma pequena caixa de veludo preto...

-Senhor!... senhor!...

-Daí a pouco abriu uma carteira, como esta, que eu vejo ali, Sr. Félix, e dentro dela... no fundo de um escaninho de segredo escondeu essa caixa de veludo negro, que devia também estar escondendo a prova de um crime ainda mais negro!...

E o desconhecido avançou para a mesa, onde estava a carteira de Félix; mas para logo teve de parar diante do moço, que, possuído de um violento tremor, pálido como um finado, lançando bolhas de espuma pelas comissuras dos lábios, colocou-se entre aquele e a sua carteira, e com voz sepulcral balbuciou:

-Nem mais um passo... ou grito... que me querem roubar... que...

-Não há de gritar, Sr. Félix; não há de mesmo abrir a boca; ou fá-lo-á somente para implorar-me piedade; nem se moverá daí, ou se der um passo, será para cair de joelhos a meus pés!...

-Senhor!... senhor!...

-Porque se quiser chamar alguém, eu bradarei bem alto -dentro daquela carteira existe a prova de um crime, uma caixa de veludo preto!- e então o senhor pedirá que me cale... que não diga nada...

-Silêncio!... silêncio!... balbuciou o guarda-livros.

-Porque se ainda quiser dar um passo, eu continuarei gritando -e dentro dessa caixa forrada de veludo preto está uma cruz cravada de brilhantes!- e então o senhor há de cair de joelhos a meus pés, implorando piedade...

Félix caiu com efeito de joelhos, e, abraçando-se com as pernas do desconhecido, exclamou:

-Compaixão... piedade!... não me perca pelo amor de Deus!...

O desconhecido, desprendendo-se das mãos de Félix, foi de novo sentar-se na cadeira que pouco antes ocupara; e, encarando o mísero guarda-livros, disse com um sorrir desdenhoso e terrível:

-Compaixão!... piedade!... não perdê-lo pelo amor de Deus!... oh! como é miserável e covarde o crime!...

-Perdão! perdão!... murmurou Félix.

-E posso eu perdoar-lhe?... não!... não!... é esse um direito que deve ser exercido por muita gente, já que muitos são os ofendidos: ouça-me! sabe quem eu sou?...

-Não... ou é o meu juiz...

-Eu sou um homem que deve tudo ao Sr. Lauro de Mendonça; que, conhecendo a desgraça do meu benfeitor, jurei demonstrar sua inocência, e demonstrá-la-ei! sou o braço do ofendido... eu sou a vingança!...

A voz deste velho desconhecido era como um trovão, e seu olhar cruelmente embebido no rosto de Félix, era como uma língua de fogo, que lhe ia até ao coração. Ele disse:

-Há sete anos, uma cruz cravada de brilhantes desapareceu da casa de Hugo de Mendonça; Lauro não tinha nem podia ter parte em semelhante acontecimento; o senhor o sabia; o senhor o denunciou como perpetrador do furto dessa cruz; primeiro crime -a calúnia. Só uma pessoa pode perdoar-lho: é Lauro de Mendonça.

Félix quis falar; porém, o desconhecido o não deixou fazer, e prosseguiu.

-Mas essa cruz cravada de brilhantes, que pertencia à filha de Hugo de Mendonça, havia com efeito desaparecido; e o senhor foi o miserável que a furtou: segundo crime -o furto. Uma outra pessoa há que só lho pode perdoar: é Honorina.

Félix fez de novo um movimento; e ainda o desconhecido o suspendeu, continuando:

-E a maldição que sobre Lauro lançaram seus avós e pai?... e os sofrimentos desse mancebo?... e a morte de sua extremosa mãe?... quem, Sr. Félix, quem há de perdoar tudo isso?... só ele, que foi o ofendido, só ele, que herdou a bondade do coração angélico de sua mãe; só Lauro.

O guarda-livros desabafou um surdo suspiro, e o velho disse ainda:

-Agora, Sr. Félix, o que é essa infernal trama, cujo resultado terá de ser a miséria de uma família inteira?... como se chama tão nefando crime?... basta-lhe, diz tudo o nome de ingratidão?... na palavra ingratidão poderá ser abrangida a falsidade, a traição, a infâmia de um homem, que com sua mão fere de morte o chefe de uma família a quem deve tudo?... de um guarda-livros, que vende com tamanha vileza o seu patrão?... E por qual chão tão escabroso arrastará o senhor o rosto para ir implorar perdão a todos esses que têm o nome de Mendonça?...

Félix estava sofrendo todos os tormentos do inferno.

-Oh!... exclamou o desconhecido; não era possível que, por mais tempo, continuasse a calúnia a manchar a virtude: é preciso convir de uma vez para sempre que não há véu suficientemente denso para esconder o crime. Deus castiga a maldade no próprio coração do mau com as torturas do remorso; mas não basta isso. Deus quer ainda que a inocência depois de perseguida e insultada pela aleivosia, apareça, enfim, bela e pura, como os raios do sol, passada a hora de um eclipse, brilham de novo luminosos e ardentes!... portanto, para o senhor houve desde sete anos uma pena justa e terrível, que lhe azedou talvez todos os seus dias, que o acompanhou nos seus prazeres, que fez o martírio de suas noites: havia o remorso!...

-Sim! sim!... disse Félix erguendo-se pálido e desfigurado; sim! eu tenho padecido horrivelmente!...

-E para Lauro abriu a fortuna os braços; e, enquanto sossegado dormia o sono da inocência, ela derramava sobre ele as riquezas e a felicidade. Era, porém, necessário ainda mais: era necessário que o filho repelido entrasse de novo na casa de seus pais puro e nobre, com a face descoberta, e dizendo -eis aqui a demonstração de minha inocência!... eu fui caluniado!- pois bem! esta demonstração, que hoje pode apresentar, deve-o também à sua virtude.

Félix em pé defronte do velho se conservava imóvel, estático como um epiléptico, com os olhos fitos no rosto desse homem terrível, que com sua voz áspera e grave continuou dizendo:

-Lauro de Mendonça, Sr. Félix, sentindo-se muito protegido pela fortuna nessa bela e generosa cidade da Bahia, criou para si uma família, de quem se fez protetor; uma família, cada membro da qual era um pobre, de quem ele se tornava pai; um mísero enfermo, a quem ele amparava e socorria. Entre muitos havia uma mulher, que a sorte tinha arrojado das riquezas na miséria; essa mulher, que era minha parenta... minha mãe... minha irmã... não importa o que; essa mulher, digo eu, morava a três léguas da cidade, a algumas braças de distância do mar, e perto da povoação de Itapoã; ela estava lázara... um único homem tinha verdadeira piedade de seus sofrimentos, ia mil vezes consolá-la... socorrê-la... sem cuspir junto dela: era Lauro. E a lázara foi escolhida pela Providência para rasgar o véu do crime!...

O desconhecido respirou um instante, depois prosseguiu:

-Há pouco menos de um ano, acabara um dia; alta ia uma noite de medonha tempestade; a morfética estava só; um filho que tinha, havia ido na manhã desse dia à cidade, e não pudera voltar com tão tormentoso tempo; à meia-noite batem à porta, e pouco depois um mancebo todo molhado e ferido, cai exausto de forças nos braços da morfética. Uma embarcação carregada de algumas centenas de míseros africanos soçobrara nesse dia; e o dono dela, esse mancebo, ele só, lutara vinte horas dentro de um pequenino batel contra a fúria dos ventos e do mar; finalmente, conseguindo chegar à praia de Itapoã, pudera ir bater na porta da lázara, e caíra nos braços dela, pedindo misericórdia.

Passada uma hora, o náufrago sentiu-se abrasado por terrível febre... houve um momento em que teve medo de morrer... pediu um padre, e não achou quem o fosse chamar; e então ele, jovem, belo, rico, caiu de joelhos aos pés de uma mulher morfética e arrasou um segredo infame!...

-E quem era esse mancebo?... perguntou Félix tremendo.

-Esse mancebo disse à lázara: «Senhora! eu tenho parte num crime, e quero salvar meu nome da desonra; sinto que vou morrer... eu deixei entre meus papéis uma carta que explica meu procedimento a respeito do que vou dizer, mas é possível que a carta desapareça; e, portanto, ouça-me, senhora: da casa de um negociante do Rio de Janeiro, de nome Hugo de Mendonça furtou-se, há seis anos, uma cruz cravada de preciosos brilhantes; imputou-se tal crime a um moço chamado Lauro... não foi ele; essa cruz existe em meu poder, mas o ladrão também não fui eu, não! não!... o ladrão chama-se Félix, é o guarda-livros do mesmo negociante; escreva, senhora, o que eu estou dizendo, e em todo o caso salve o meu nome da desonra...»

-Traidor!... traidor!... balbuciou Félix.

-No outro dia, Sr. Félix, Otávio achou-se inesperadamente melhor; e apenas pôde levantar-se, partiu para a cidade, rogando com fervor à lázara que não divulgasse o segredo que lhe confiara; mas esta, que ouvira espantada o nome de seu benfeitor envolvido naquela estranha confissão, guardou para todos o segredo, menos para ele. Foi a Providência, exclamou o velho, sim! foi a Providência que patenteou o crime, e o criminoso!...

-Basta! disse Félix.

-Lauro, prosseguiu o desconhecido, determinou para logo demonstrar sua inocência; não podendo, porém, deixar a cidade da Bahia tão cedo, pôs a sua causa nas mãos de um parente da lázara, nas mãos de um homem fiel e resoluto, nas minhas mãos, enfim!... Vim eu, Sr. Félix, e meus olhos o têm seguido em toda a parte, há dois meses; agora, graças ao céu, a prova de seu crime vai aparecer; e Lauro de Mendonça, que cedo chegará, há de entrar na casa de seus pais nobre e puro, como sempre foi, e com a cabeça levantada acima das de seus inimigos, e esmagando com seus pés a serpente da calúnia!...

Frio glacial se havia apoderado de Félix: a notícia da próxima chegada de Lauro o enchia de terror indizível.

E, portanto, vamos, Sr. Félix!... é preciso que a cruz de brilhantes apareça, e que o senhor se prepare a seguir-me com ela...

-Eu?... e para onde? perguntou automaticamente Félix.

-À casa de Hugo de Mendonça para confessar o seu crime e pedir o perdão dele.

-Oh!... nunca... morrer antes!

-Prefere, então, que o publique eu mesmo?... que eu vá daqui proclamar pelas ruas a sua vergonha?... perguntou o velho com voz terrível.

Uma chama infernal luziu nos olhos do guarda-livros; em seus lábios estremeceu um sorrir nervoso... satânico... feroz... sua mão trêmula abriu a carteira em que devia estar guardada a pequena caixa forrada de veludo preto; mas, em vez dela, brilhou na mão de Félix um punhal...

-Miserável!... exclamou o desconhecido recuando dois passos e engatilhando uma pistola que tirou do bolso da sobrecasaca; miserável!... eu preveni tudo!...

Félix, que no primeiro instante tinha ousado avançar, sentiu escapar-lhe o punhal da convulsa mão; e ele mesmo caiu outra vez de joelhos aos pés do velho, balbuciando:

-Perdão!... não me mate... não me mate pelo amor de Deus!...

Com insolente movimento de desprezo, o desconhecido empurrou com a ponta do pé o punhal para baixo da cômoda, e disse:

-Desgraçado!... eu preciso da tua vida. Quero que a inocência seja proclamada pela boca do próprio caluniador. Vamos pois!... a cruz de brilhantes!...

Félix olhava espantado para o velho. No rosto do guarda-livros estava derramada essa expressão de estupidez do idiotismo; como que não compreendia o que se exigia dele. A fraqueza, a covardia do infeliz moço não eram só devidas à consciência do seu crime; havia também um poder desconhecido, uma força inexplicável no olhar ardente e penetrante daquele homem singular.

O estado em que se achava era tão horrível, sua fisionomia se mostrava tão dolorosamente decomposta, que o mesmo velho teve piedade dele, e disse com acento menos duro:

-Vamos, Sr. Félix, a minha missão é de paz e de piedade; desfeita a calúnia, que nodoa o meu amigo, deixarei o resto ao seu arrependimento; confio que não consentirá que caiam na miséria os seus benfeitores... e também nada tenho com Hugo de Mendonça... vamos pois!... a cruz de brilhantes, e saiamos; eu lhe obterei o perdão de Lauro, e lhe asseguro o de Honorina, e o do pai, e da avó desta.

-Perdão para mim?... perguntou o moço com uma alegria desregrada e delirante.

-E ainda mais: o esquecimento desse crime.

-O esquecimento...

-Sim; e tudo à custa de duas únicas palavras.

-E quais são?... quais são, senhor, essas duas palavras?...

O desconhecido ia, sem dúvida, responder, quando sentiu que batiam na porta do quarto; então, com extraordinária prontidão, com vivacidade própria do mais ágil mancebo, ele abriu o guarda-roupa de Félix, e, agachando-se dentro, disse antes de contra si fechar as portas dele:

-Pode receber a sua intempestiva visita; mas olhe, que se tentar atraiçoar-me... eu não terei mais piedade de seus tormentos...

O guarda-livros, movendo-se como uma máquina, foi abrir a porta, e achou-se cara a cara com um mocetão muito nosso conhecido, e que era, sem mais nem menos, o incomparável Manduca.

Manduca

O desconhecido, ao sentir que batiam na porta, pensando talvez que era Hugo de Mendonça ou alguma outra personagem para ele incômoda, quem vinha a tais horas procurar Félix, estremeu-se dentro do guarda-roupa deste, e aí se escondeu; bem semelhante ao D. Carlos do Hernani, de Victor Hugo, oculto no armário da casa de D. Sol; mas, vendo qual era a inesperada visita, e, lendo-lhe no físico a recomendação de seu juízo, mais por curiosidade do que por conveniência, deixou-se estar no guarda-roupa, apesar da penosa posição em que era obrigado a conservar-se.

Agora duas palavras sobre o recém-chegado.

A visita de Manduca era nada menos do que o fruto de longas lucubrações: todos nós sabemos que este homem pertencia à classe dos ultrapensadores.

Manduca, por ser dos tais que gastam meses inteiros em requestar uma moça sem que ela de tal se aperceba, nem por isso achava bom e justo que lhe fizessem por casa o que ele praticava por fora; e, pois, ouvindo de sua irmã, no dia da disputa conjugal, que tão mal acabou para ele, pensamentos que demonstraram o adiantamento das relações de Rosa com seu primo, e demais um pouco tocado da idéia da possibilidade de uma paixão de Félix por Honorina, fez para logo voto de pensar nisso com madureza.

Desgraçadamente teve tempo de sobra; porque, ficando derreado por amor de seu pai, não se pôde levantar da cama, senão depois de alguns dias. Tomásia pôs em campo a medicina a favor de seu filho; e, pelo sim, pelo não, vinha de manhã um médico alopata, que o sangrava geral e parcialmente, e de tarde um homeopata, que lhe embutia no estômago uma niilidade de qualquer coisa; depois de longos oito dias, as dores foram, enfim, diminuindo, e Manduca sentiu-se capaz de dar alguns passos sem gemer.

Mas, ao menos nesses oito dias, Manduca pensou, tornou a pensar, e, finalmente, concluiu que o melhor partido a seguir era procurar a Félix e pedir-lhe miúda conta das pretensões que nutria sobre sua irmã.

Assentado de pedra e cal neste propósito, no primeiro dia em que se conseguiu levantar-se, dispôs-se a esperar pelas horas de descanso de Félix, e apenas viu anoitecer, foi procurá-lo. Como era conhecido, os caixeiros da casa de Hugo deixaram-o entrar, e ele, um instante depois, bateu na porta do quarto de Félix.

Quando a porta se abriu, e Manduca entrou, os dois primos recuaram boquiabertos e ficaram espantados um do outro.

Havia seis dias que Félix não via Manduca; ora, a enfermidade e a medicina tinham-se dados as mãos para pôr o pobre rapaz com um físico de espantar crianças.

Pálido, descarnado, com os olhos encovados e sombreados por duas notáveis olheiras roxas, com o grande nariz que de seu pai tinha herdado, tão afilado como luzente, com enormes mãos caídas esquecidamente das mangas da casaca, com as pernas muito finas, em uma palavra com todo o corpo dançando largamente dentro da roupa que vestia, Manduca semelhava uma múmia.

Félix, no estado de exacerbação em que se achava, pouco sentiu faltar-lhe para crer-se na presença de uma alma do outro mundo; mas, em compensação, Manduca teve também de que espantar-se.

Félix estava ainda mais pálido que seu primo; seus olhos, possuídos de indizível expressão de terror, vagavam incertos e espantados em derredor dele; convulsivo tremor quase que o não deixava suster-se em pé, e, querendo encobrir sua perturbação, o moço espalhava à força em seus lábios um sorriso insípido e mal fingido, que estremecia terrivelmente, obedecendo à convulsão dos músculos labiais.

Depois de um momento de admiração silenciosa, Manduca rompeu o silêncio:

-O que é isto?... o que tens, primo?...

-Nada, balbuciou Félix, absolutamente nada... eu sofri... um ataque nervoso... minhas loucuras... tinha passado uma noite em claro... em orgia... depois... um dia inteiro a trabalhar...

-Então, por que não vem o médico?...

-Não!... nada de médicos: tudo está acabado; estou bom; perfeitamente bom...

-Sim... mas...

-Mas é que também estás muito abatido, primo, sofreste muito então?...

-Apenas hoje pude levantar-me.

-E vieste logo ver-me; obrigado... nós nos estimamos sempre muito...

-Porém, a minha visita de hoje não era puramente de amizade; eu vinha falar-te sobre objeto muito grave.

-Muito grave?... perguntou Félix estremecendo tão violentamente, que se agarrou à cadeira, onde se sentara; muito grave?... e para quem?...

-Para ti, e para...

-Para mim!!!

-Todavia, acho-te em estado tão cruel, que julgo melhor deixar para amanhã.

Félix pensou um instante; em sua vida só havia um crime; esse crime era absolutamente conhecido do homem que oculto os estava ouvindo; portanto, não teve receio de que Manduca falasse; o que o podia envergonhar já não era mistério para aquele; de nada mais se acusava Félix; além disso, se era de seu crime, que vinha seu primo ocupá-lo, fazia-se preciso conhecer quanto os outros sabiam desse segredo fatal, para mais acertadamente prevenir as conseqüências.

-Meu primo, disse, pois, Félix, convém não demorar, o que é importante; eu estou pronto para ouvir-te.

-E se o que eu vou dizer te fizesse mal?...

-Não; nada mais sofro; fala.

-Pois como insistes, lá vai.

Manduca dispôs-se a começar, mas esteve bons cinco minutos a preparar um exórdio para seu discurso. O pobre rapaz, que tinha suas vontades de ser orador, esquecia-se de que o gosto da época e do país, quanto a discursos, não se dá muito nem com forma, nem com matérias, nem regras; o que se quer é falar, e falar muito: a beleza do discurso está na razão direta do tempo que se gasta em pronunciá-lo, embora se diga muita coisa vã, fútil e intempestiva.

Graças à sua pouca habilidade, Manduca convenceu-se de que não arranjaria um exórdio capaz nem em quinze dias; e, pois, começou ex-abrupto, dizendo:

-Meu primo, tu sabes que eu sou irmão de minha mana Rosa...

Em outras circunstâncias Félix teria interrompido a seu primo com uma risada; mas, na triste posição em que se via, contentou-se com dizer:

-Eu sei.

-Pois que a mana Rosa é minha irmã, segue-se que eu devo ter todo o cuidado nela.

-Sem dúvida.

-Ora, acontece que anda-me ela de cabeça à roda por tua causa...

-Por minha causa?...

-Que tu a tens entretido com esperanças de casamento, sei eu muito bem.

-Está bom, primo, pensei que querias falar de outro objeto. Trataremos disso amanhã ou depois; temos muito tempo.

-Nada, agora já que principiei hei de acabar. Sim, senhor, como ia dizendo... com que... o que dizia eu?...

-Primo, falaremos disso em outra ocasião.

-Pior é essa, meu primo: já te disse que hei de acabar o que comecei. Estava eu dizendo que tu lhe tens dado esperanças de casamento...

-Sim... e depois?...

-É que aqui não temos depois: o que se há de fazer amanhã, faz-se hoje... o que se promete, cumpre-se.

-Manduca... está-me doendo a cabeça.

-O negócio também não é para tanto; acaba-se tudo com um sim, ou com um não; isto é, com o sim, ficamos arranjados.

-E com o não?...

-Hás de dizer-me o porquê.

-E se eu disser, pode ser?...

-Eu cá não me entendo com pode ser. A mana Rosa já está em idade de casar e é de crer que não tenha vontade de esperar muito tempo. Além disso...

-Além disso o quê?...

-Há um célebre noveleiro que anda espalhando boatos pouco agradáveis...

-Boatos?... perguntou Félix estremecendo de novo.

-Sim: um tal nosso amigo, o Sr. Brás-mimoso, a quem se meteu em cabeça requestar a filha do Sr. Hugo de Mendonça, e que para espantar do lado dela os homens de mérito, que a possam pretender, atreve-se a dizer que ela é uma namoradeira...

Manduca interrompeu-se, ouvindo certo ruído semelhante ao de uma porta que se abre devagar.

-Que é isto? parece que nos escutam... disse Manduca observando.

-Não... não há aqui ninguém... seria o vento... ou alguma outra coisa...

Isto dizendo, Félix olhou para o guarda-roupa e viu uma das portas meia aberta, e pela fresta o olho do homem desconhecido.

-Mas, como ia contando, continuou Manduca, o tal Sr. Brás-mimoso arrojou-se a dizer que tu és um dos apaixonados de D. Honorina...

-É falso... é uma calúnia!

-Ora, isso não fez muito bom cabelo, nem à mana Rosa, nem a mim mesmo; um dia... houve lá em casa o diabo a quatro...

-Meu primo...

-Qual, meu primo, se tu estivesses lá, verias como se pôs a mana Rosa; olha que quando se enfeza é uma víbora; também tirando disso é uma pomba sem fel.

-Está bem... está bem...

-Pois a mana Rosa acreditou tudo quanto lhe quis dizer o Brás-mimoso; pôs a boca no mundo contra a pobre D. Honorina, e te desandou uma descompostura de tirar couro e cabelo; eu, que vi o caso mal parado, protestei, que o negócio havia de acabar bem, e aqui vim hoje, por não ter podido vir há mais tempo.

-Mas... meu primo...

-Espera, primo Félix, devo confessar-te que também tenho interesse na questão: eu estou perdido de amores pela filha do Sr. Hugo de Mendonça, e concebo minhas esperanças de alcançar a posse de seu coração; ideei um plano vastíssimo; estou cabalando para ser deputado provincial, e apenas encartar-me na assembléia e tiver pronunciado o meu primeiro discurso, que há de durar sessão e meia, apresento-me à moça... e tu bem sabes que uma fisionomia de deputado é sempre simpática, por conseqüência... mas que diabo ia eu dizendo?...

-Tu ias dizendo... ias dizendo...

-Ah!... por conseqüência é preciso decidir-te; levarei o teu sim à mana Rosa, e então toda a nossa família trabalhará de acordo comum para o meu casamento.

-Pois bem, primo; fico ciente do que exiges de mim, e pensarei para responder-te.

-É que tudo já devia estar pensado há muito tempo.

-Como?...

-Digo que deverias ter pensado suficientemente, quando principiaste a fazer-te de engraçado com a mana Rosa...

-Manduca!

-Ora, vê lá se queres negar a mim mesmo: então a mim, que tantas vezes servi de pau de cabeleira!

-Contudo... quando se trata de um casamento, ninguém se resolve de repente...

-Mal vai o negócio, meu primo; e se eu te perguntar qual era, portanto, o teu propósito, quando te punhas a piscar os olhos para mana Rosa?...

-Eu nunca lhe pisquei os olhos.

-Piscavas... e fazias mais; pisavas-lhe no pé por baixo da mesa; e, quando jogavas o diabrete com ela, ficavas sempre burro sem vergonha nenhuma...

-Primo... está bom: já te disse que me decidirei.

-Pois vamos lá... resolve-te.

-Daqui a quinze dias.

-Não estou por isso.

-De hoje a oito dias...

-É muito; para esse tempo já a mana Rosa deverá estar casada.

-Isso é uma loucura!

-Loucura é andar desinquietando as filhas dos outros!

-Não posso responder agora; estou doente...

-Nada... já estás muito melhor, vamos ao caso.

-Tenho a cabeça em fogo.

-Não me importa isso; também em fogo anda a cabeça da mana Rosa. Vamos... vamos...

-Pois queres obrigar-me...

-Se tanto for necessário...

-Meu primo!...

-Anda... anda... vamos depressa, que mana Rosa me está esperando.

-Tu és um louco.

-Sim ou não?...

-Isto é insuportável!... exclamou Félix.

-Sim ou não?...

-Meu primo!... deixa-me!... deixa-me!...

-Sim ou não?...

-Meu primo!... isto chama-se abusar!...

-Sim ou não?... gritou Manduca.

-Não, não e não!

-Pois, então, disse Manduca com o maior sangue-frio, vamos ao morro de Santa Teresa pôr termo às nossas dúvidas.

-Um desafio?...

-Sem dúvida.

-Estarei às suas ordens amanhã todo o dia... agora é impossível... é noite.

-Nada: há de ser agora mesmo; eu não tenho medo de errar o tiro.

-Amanhã... amanhã somente.

Não senhor, nessa não caio eu; sei bem como se arranjam as coisas para chegar uma denúncia aos ouvidos do chefe da polícia...

-Senhor!...

-Agora, se está com medo... é outra coisa...

-Não! vamos!... já que o quer... saiamos!...

Félix, exasperado, dava um passo para sair, quando as portas do guarda-roupa se abriram, e o desconhecido saltou entre os dois.

-O Sr. Félix não pode sair, disse ele.

Félix tornou a cair sobre sua cadeira, enquanto Manduca, espantado, perguntou:

-Onde estava o senhor metido?...

-Dentro daquele guarda-roupa, respondeu ingenuamente o desconhecido.

-E, então, diz que meu primo não há de sair comigo?...

-Sim; e digo ainda mais, que ele o vai satisfazer prontamente.

-Como?...

O desconhecido voltou-se para Félix:

-Sr. Félix, a sua vida por hoje me pertence. Portanto, não a pode ir assim parar no jogo de um duelo: façamos, porém, por concluir isto amigavelmente... e tanto mais que o senhor seu primo tem que fazer comigo esta noite.

-Eu?...

-Sim, senhor; em breve falaremos. No entanto, o Sr. Félix vai responder-me sem dúvida: é certo que deu à senhora sua prima a esperança de com ela casar-se?...

Félix não respondeu; ele tremia mais que nunca; porque o riso do sarcasmo, o riso insultante da ironia estava nos lábios do desconhecido; Félix tremia de medo... e de raiva.

-É certo?... repetiu o desconhecido levantando a voz; verdade, Sr. Félix, verdade; é certo?...

-Sim... balbuciou o infeliz moço.

-Pois, senhor, disse o desconhecido voltando-se para Manduca; pode assegurar à sua irmã que seu primo está pronto para cumprir o que disse; não é assim, Sr. Félix?...

-Sim...

-Será possível!... exclamou Manduca espantado; porém, que diabo de homem é o senhor?...

-Um íntimo amigo de seu primo; não é assim, Sr. Félix?...

-Pois, senhor, fico-lhe muito agradecido pelo obséquio que acaba de fazer-me; e como desejo ir já levar a resposta à mana Rosa, espero que me diga qual é o negócio que tem comigo esta noite.

O desconhecido tirou o relógio, e depois de examinar as horas, disse:

-Às nove horas da noite esteja o senhor junto à igreja da Lapa do Desterro.

-Posso saber para quê?...

-Basta saber que é para salvar de um perigo iminente a Sr.ª D. Honorina... armam-lhe terrível laço.

-Quem?...

-Um homem chamado Brás...

-Por alcunha -o mimoso?...

-Exatamente.

-Estou pronto; lá estarei. Adeus, meu primo; senhor, até às nove horas da noite.

-Junto à igreja da Lapa do Desterro.

Manduca saiu. Apenas se viu só com Félix, o desconhecido o segurou pelo braço, e levantando-o da cadeira:

-Agora a cruz cravada de brilhantes!... disse ele.

Félix dirigiu-se à carteira, abriu-a... descobriu um escaninho de segredo, e daí tirou uma boceta forrada de veludo preto; abriu depois esta, e o desconhecido viu uma cruz cravada de brilhantes.

-O senhor acha-se vestido... tome a casaca, e saiamos.

-Para onde?... perguntou Félix.

-Para ir à casa de Hugo de Mendonça entregar a cruz de brilhantes a Honorina.

-Oh!... não!... senhor!... eu não posso!...

-Há de ir: eu lhe prometi que seria por eles perdoado; disse-lhe que bastariam duas únicas palavras.

-Será possível?...

-Eu lho prometo de novo pela minha honra.

-Mas a quem direi essas palavras?...

-A Honorina.

-E quais são essas palavras?...

-Peça-lhe de joelhos, que ela obtenha o perdão e o esquecimento de seu crime... diga-lhe que só uma pessoa no mundo foi capaz de obrigá-lo a ir restituir-lhe a cruz de brilhantes, e a provar assim a inocência de seu primo Lauro de Mendonça; mas que essa pessoa exige dela que lhe perdoe, e que faça com que sua família perdoe também e esqueça o seu delito... Honorina lhe perguntará quem pôde fazer tanto, e o senhor responderá que foi... note bem, senhor, aqui vão as duas palavras...

-Diga-as...

-O moço loiro.

Jorge e Raquel

Há uma dor aguda e profunda que punge como nenhuma outra; uma dor para a qual não há medicina possível -é o amor sem esperança.

Os que dizem que o tempo faz esquecer um amor não retribuído, não fazem mais do que repetir uma blasfêmia que ouviram; e o primeiro homem que o disse, o blasfemo, pensou ter amado sem que verdadeiramente amasse; e, quando procurou o amor, e achou vazio o coração, julgou que o tempo o tinha extinguido, semelhante àquele que, despertando de um sonho, buscasse a seu lado o objeto com que sonhava. Ama-se uma só vez na vida; e esse amor, o verdadeiro, é aroma do coração, que nunca se evapora de todo; é chama do espírito que nem se extingue, nem se abranda.

E, pois, o amor sem esperança é o martírio extremo da alma; é a dor terrível... inexplicável... incurável... eterna.

Aquele a quem morreu a formosa amada, sofre muito... muito; mas ainda sofre menos que o amante infeliz; porque na vida de lágrimas, que vive, tem a lembrança do amor que gozou; soam a seus ouvidos as doces palavras que ouviu; tem a saudade com sua agridoçura tão maviosa; tem o espírito repleto de imagens e de recordações; tem o coração cheio de vida de lágrimas...

Mas quem ama sem esperança, não tem nada no mundo... tudo é feio... estéril... negro; ontem... hoje... amanhã... sempre tudo feio... estéril... negro: ou então tem diante de seus olhos a beleza da mulher insensível, fazendo o seu cruel martírio; tem a felicidade dos outros risonha e galante defronte de sua desgraça carrancuda e feia; tem a vida dos outros desenhada em alegre painel ao pé de seu quadro de horrores; tem tudo belo fora... longe... alheio... dos outros; e tem em si somente a noite na alma... a morte no coração.

E ainda neste, como em todos os sofrimentos morais, experimenta a mulher dor mais desabrida que o homem; porque, principalmente no martírio de que falamos, além da dor, que é comum a ambos os sexos, e que provém do ardor desse desejo de ser amado e da impossibilidade de realizá-lo, da murchidão dessa esperança de amor, sem a qual não há felicidade possível, há demais, e em particular para a mulher, um golpe profundo em seu amor-próprio, há o sopro frio, glacial, saído da boca de um homem, apagando no rosto dela a luz de seu prazer e de sua glória... o anelo de agradar.

Mas é preciso ser mulher, ou ter ouvido falar a uma com a verdade com que se fala de joelhos aos pés de um padre, para conceber o penetrante segredo desse golpe!... é preciso, sim, para que se possa compreender o quanto sofre a mulher quando está vendo pisar... retalhar... moer... extinguir sua ambição de ser amada... sua interessante e perdoável vaidade!...

Havia, portanto, uma aflição ainda mais acerba do que aquela que consumia Honorina; porque a filha de Hugo de Mendonça não tinha sentido murchar a flor mais perfumada e bela de sua alma de mulher -a esperança de agradar ao homem amado.

E essa aflição desmedida... extrema... a estava provando uma moça cheia de encantos e de virtude... Raquel.

Honorina, pois, era, apesar da posição cruel em que se via, menos desgraçada do que a sua amiga; porque no rosto dela não, e no rosto desta sim, o sopro frio, glacial, saído da boca de um homem, apagara já a luz do prazer e da glória da mulher.

Como, porém, o amor de Raquel não é para nós um mistério; como a angélica alma dessa moça nos foi já uma vez patente, e aí lemos a relação de seu padecer e sua abnegação, a história do afeto que sentia pelo moço loiro, e da amizade que votava a Honorina, nós nos forramos do trabalho de desenvolver a mesma matéria.

Raquel continuava a viver em sua silenciosa agonia; suportava uma a uma todas as suas torturas sem soltar um único gemido; no entanto, fazendo sempre votos pela ventura de sua amiga, fugia de encontrar-se com ela, para não aumentar suas mágoas; e estava sempre só ou com seu pai.

Na corrente de suas intermináveis reflexões, levada da força de seu muito e tão longo padecer, Raquel pensava às vezes que era vítima de um castigo do céu por haver outrora desrespeitado o grande sentimento que vivifica a natureza; ela se recordava, então, quase horrorizada de si própria, daquele pensamento de gelo, que em uma noite ousara exprimir, dizendo: «amor é uma vã mentira! amor não é mais que uma das muitas quimeras com que a fantasia nos entretém na vida, como a boneca que se dá à criança para conservá-la quieta no berço... o amor não é mais que a flor de um só dia, que abre de manhã e antes da noite está murcha...»; e também, então, sorrindo-se com irônico e terrível sorrir, ela dizia a si mesma: pois bem!... eis aqui no meu coração a mentira... a quimera... a flor de poucas horas!...

Mas ao pé de Raquel, ao pé de sua angústia, vinha todos os dias sentar-se um ancião respeitável, que ficava horas inteiras triste... abatido... silencioso, olhando para ela. Era seu pai.

Antiga e mútua confiança de Jorge e Raquel; aquela transparência do coração da filha para os olhos do pai, parecia haver desaparecido. Dantes jamais Raquel sentia um simples dissabor, do qual Jorge não conhecesse para logo a causa; dantes nunca a filha experimentava uma afeição inocente, ou tinha no espírito uma dúvida qualquer, que o pai não fosse buscado para orientá-la em ambas com os conselhos de sua experiência. E agora Raquel geme, e não vai pedir a Jorge um remédio para sua dor; e agora o pai ouve gemer a filha, e não a interroga sobre a origem de seus gemidos.

Oh!... era porque ela sabia que seu pai não acharia um remédio para dar-lhe; e porque ele tinha compreendido que já era tarde; que o mal de sua filha já não podia ser curado pelo amor e conselhos paternais.

Entretanto, Jorge cercava Raquel de cuidados e desvelos; e, vendo desprezadas todas as festas, todas as distrações que lhe oferecia, ao menos para ver se nela despertava os adormecidos caprichos de moça, não deixava passar um dia em que lhe não trouxesse novos enfeites, jóias custosas, e magníficos brilhantes.

E, todavia, Raquel era sempre a mesma, padecendo em silêncio, não movendo uma só queixa e passando a maior parte do dia abrigada na solidão de sua câmara.

Jorge se havia determinado mil vezes a exigir de Raquel a relação completa de seus sofrimentos; para isso entrava todos os dias no quarto dela; mas, vendo-a pálida e imóvel, sentada desleixadamente em seu leito, como esquecida de si própria, o pai não tinha ânimo de quebrar o silêncio da filha, de sondar aquele segredo doloroso, temendo ver redobrar tantos tormentos à menor pergunta; como certos pólipos, que se ensangüentam logo que são tocados, ele supunha aquela mudez semelhante à camada de cinza que envolve a brasa ardente... e, portanto, Jorge ficava defronte de Raquel horas inteiras, pensativo... melancólico... silencioso como ela mesma.

O coração de Jorge devia, pois, estar também violentamente amargurado; um dia, enfim, ele se resolveu a penetrar a todo o custo o segredo de sua filha, e dirigiu-se para isso à câmara dela: foi na manhã em que Raquel tinha recebido o último bilhete de Honorina.

Jorge encontrou a triste moça na mesma posição e no mesmo estado em que constantemente a achava. Como receando perder o ânimo, se olhasse para seu rosto, o pai sentou-se, e, desviando os olhos do leito onde estava Raquel, disse:

-Minha filha, o que é isso?... o que tens?...

A moça levantou os olhos para seu pai; mas logo depois os abaixou, corando fortemente.

-Outrora tu depositavas todos os teus inocentes segredos no meu seio; tu me fazias confidente de tuas passageiras tristezas, e longas alegrias; tu me dizias o que sentias; tudo o que pensavas; por que, pois, não continuas a praticar o mesmo?... já te fiz arrepender da doce confiança que em mim tinhas?... não sou sempre o teu amigo?... Raquel!... minha Raquel!... já deixei eu de ser pai?...

A triste senhora, ouvindo esta última pergunta de seu pai, feita com voz pungente e quase desesperada, saltou do leito, e, sufocada em soluços, soltando um dilúvio de lágrimas que presas estavam há muito tempo, caiu de joelhos aos pés de seu bom velho e abraçou-se com ele ternamente.

-Raquel!... minha Raquel!... não chores assim!... tem piedade de teu pobre pai!...

-Meu pai!... balbuciou a infeliz levantando-se nos braços de Jorge.

E os dois ficaram aí docemente abraçados... chorando ambos... misturando seu pranto de pai e de filha, que se combinava tão bem, quando bastantes lágrimas tinham corrido, e eles sentiram menos pesados os corações... sem corar de seus soluços... desatando-os sem tentar comprimi-los, sentaram-se defronte um do outro.

-Raquel, disse Jorge; eu sei que tu amas...

-Sim, meu pai, eu amo.

Pelo modo com que lhe respondeu sua filha, Jorge conheceu que tudo lhe ia ser relatado; que a mútua e antiga confiança se restabelecera.

-Pois, então, minha filha, continuou Jorge, por que esconder-me tanto tempo esse doce sentimento?... quem pode furtar-se a essa mimosa lei da natureza?... a escolha de teus olhos deverá ser por força digna de teu coração...

-Eu creio que sim, meu pai; é um moço nobre e destemido...

-Sabe ele que tu o amas?...

-Não, meu pai, nem o saberá nunca.

-Como não o saberá nunca, minha filha?... se tu o amas, se ele é digno de ti, poderei eu querer que chores assim toda a vida, que não sejas venturosa ao lado dele?...

-É porque meu pai não sabe que há uma barreira enorme, que para sempre me separa desse homem!...

-Seria possível, perguntou Jorge confuso, que minha filha amasse um homem casado?...

-Eu penso, com razão, que ele é solteiro.

-Que te falta pois?...

-O amor dele, respondeu amargamente Raquel.

-Raquel... não te faltam encantos.

-Meu pai, há outras mais belas do que eu.

-És rica...

O rosto de Raquel tornou-se rubro de vergonha; ela, que já amava, compreendeu, então, facilmente a verdade que Honorina exprimira a semelhante respeito: «é torpe! é um horrível sacrilégio negociar um homem com a desgraçada simpatia que lhe tributa uma mulher!... é torpe, é um horrível sacrilégio ir um homem ajoelhar-se aos pés do altar, receber a bênção do sacerdote, estendendo a mão para uma triste mulher, com os olhos no seu rosto e o pensamento no seu dinheiro!...»

-Honorina tinha bem razão!... murmurou ela baixinho.

Depois voltou-se resoluta para seu pai e disse:

-Meu pai, eu vou dizer-lhe tudo; a verdadeira causa de meus tormentos não está no amor, está no desespero.

-No desespero?...

-Eu não posso esperar ser amada.

-E por quê?...

-Eu não devo trabalhar para sê-lo.

-Mas qual a razão?...

-Tenho um único partido a seguir... chorar em segredo.

-É que eu não compreendo...

-Meu pai vai saber tudo.

Então Raquel passou a referir a Jorge todas as circunstâncias de seu amor; sem esquecer uma só delas, disse tudo; a amizade e confiança que merecia de sua amiga; o amor do moço loiro por ela; a cena passada em casa de Sara... tudo enfim.

Jorge escutou atento e admirado a estranha revelação que lhe fazia a filha; no fim dela, deixou-se ficar mudo, pensando no mísero estado de sua pobre Raquel, e na misteriosa existência desse moço, que podia mover tanto amor e tantas lágrimas.

-E então, meu pai?... perguntou Raquel tristemente.

-Tu tens razão, minha filha, respondeu Jorge abatido e frio.

-Posso eu esperar ser amada?...

-Não.

-Devo eu trabalhar para sê-lo?...

-Não.

-Não é verdade que o só partido que me resta a seguir é chorar em segredo?...

-É derramar tuas lágrimas no meu seio, minha filha!...

-Oh!... e é bem terrível ter de chorar sempre!...

-E quem te disse que hás de chorar sempre?...

-Mas se eu não tenho esperança alguma, meu pai!...

-Um amor desgraçado, minha filha, pode ser curado com outro amor mais feliz.

Raquel, por única resposta, sacudiu a cabeça; ela tinha razão, um coração nobre não ama duas vezes.

-Raquel, continuou Jorge, é preciso amar a outro; desterra essa tristeza; vamos de novo aos saraus, às festas, às assembléias; na multidão dos mancebos, que lá se encontram, talvez um chegue a agradar-te. Qualquer que ele seja, contanto que a infâmia ou o desregramento o não manche, dize-mo... e rico ou pobre, pequeno ou grande, será teu esposo.

-Não haverá para mim outro como ele, meu pai. É melhor que eu fique como estou, chorando sem contrafazer-me a seus olhos, e derramando o meu pranto no seu seio, do que tenha de esconder minhas lágrimas de um marido que eu não ame, nem possa nunca amar.

-Raquel, disse Jorge, levantando-se para sair, eu te deixo; modera tua aflição ao menos por minha causa; e, quando tiveres necessidade de um companheiro para chorar e gemer contigo, vem para junto de teu pai!

Os dois se abraçaram de novo ternamente, e daí a um instante Raquel estava só.

Jorge tinha deixado sua filha senão menos desgraçada, todavia mais animada e capaz de resistir à crueza de seu destino; achar um companheiro para gemer conosco, para conosco falar do mal que sentimos, não é um remédio, mas é sempre uma consolação. Raquel tinha achado um companheiro em seu próprio pai.

Não que as últimas palavras que dele acabara de ouvir lhe desenhassem um fagueiro íris de esperança no horizonte de sua vida, não. Jorge havia dito que um amor desgraçado pode curar-se com outro amor mais feliz; porém Raquel, que, devendo responder sempre com respeito a seu pai, sacudiu apenas negativamente a cabeça, repelia dentro de si semelhante idéia, como ofensiva à pureza de seu coração.

A bela jovem, que nunca amara antes de ver o moço loiro, até então tinha sua alma livre dessas impressões ardentes, como um vaso virgem e delicado, onde jamais se lançara nenhum líquido; o primeiro, que aí se depositasse, devia por força entranhar-se nos poros dele, e deixar para sempre arraigado seu perfume. O moço loiro apareceu... sua imagem preencheu um vácuo, que havia no coração de Raquel, sem que ela o pressentisse... tomou parte na sua vida... ficou senhor de seus pensamentos... ganhou, enfim, o amor de Raquel... o primeiro amor... o único verdadeiro e eterno.

Raquel ergueu-se, e pela primeira vez, depois de quinze dias, dirigiu-se para seu toucador; enfim, ela era mulher... queria ver como se achava o seu rosto... o seu tesouro... ela viu e recuou!...

O fogo de seus olhos estava quase extinto... fora substituído pelo langor da melancolia: as rosas de suas faces haviam murchado... desaparecido e cedido o seu lugar aos brancos jasmins do sofrimento; seus lábios não se amoldavam mais ao gracioso sorrir dos dias de ventura; o belo anjo do prazer se trocara pela sombra graciosa da saudade! Raquel recuou espantada de si própria, dizendo:

-Como estou mudada! meu Deus!... eu causo medo!...

E, todavia, jamais Raquel poderia ter-se mostrado tão bela aos olhos de um jovem poeta!... ela tinha no seu rosto toda a sublime e interessante beleza da dor misteriosa.

Fugindo de seu toucador, Raquel foi de novo cair no leito, e outra vez entregou-se a seus tristes pensamentos; duas longas horas se haviam já passado assim nesse viver de eloqüente silêncio, apenas interrompido por suspiros, quando ela sentiu os apressados passos de alguém que para sua câmara se dirigia.

Raquel levantou-se prontamente e viu entrar seu pai, pálido e agitado.

-Meu pai, exclamou Raquel correndo para ele, o que sucede?...

-Uma desgraça, minha filha, um acontecimento fatal!

-Então o que é?...

-Amigos nossos que se acham perdidos!...

-Quem, meu pai, quem?

-Hugo de Mendonça... sua família inteira.

A desgraça de Hugo já era conhecida na praça; não se sabia quem espalhara a terrível notícia... fora talvez Otávio... ou talvez uma previsão, porque, assim como parece que às vezes o povo adivinha funestos acontecimentos políticos... ou se espalha em uma cidade a perda de uma batalha que longe se dá... sem se saber donde veio tal nova, ou quem a trouxe, assim também no comércio adivinham-se os apuros de um negociante, prevê-se uma quebra, conta-se com um infortúnio.

-Mas, meu pai, então o que há?... perguntou Raquel assustada.

-Uma quebra: a casa de Hugo vai cair; e sua família tombará na miséria.

-Oh! minha boa Honorina!... exclamou a moça com violenta expressão de sentimento.

Jorge encarou com prazer indizível aquela dor aguda que sentia a filha pela desgraça de sua rival.

-Meu pai, disse Raquel, então há enormes dívidas?...

-Que sobem talvez a mais de cem contos de réis!

-E o Sr. Hugo não achará nenhum meio de salvar-se?...

-Se no mês que corre, pudesse conseguir a terça parte dessa quantia, ainda poderia sustentar-se por algum tempo... para cair mais tarde...

-E então?...

-Não haverá, portanto, quem se atreva a expor a uma perda quase certa tão avultada soma, indo oferecê-la a Hugo; e Hugo mesmo rejeitaria, porque conhece que não poderá pagá-la.

-O que lhe resta pois?...

-Ir, como um homem honrado, entregar tudo o que possui aos credores.

-Oh, minha boa Honorina! exclamou outra vez Raquel.

E, correndo para seu toucador, abriu uma gaveta, tirou dela seu cofre de jóias, que despejou sobre o leito; devorou, então, com os olhos os antigos e os novos e numerosos presentes de seu pai; contou um por um seus braceletes, adereços, brincos, bandós e flores de brilhantes; contou um por um todos os seus anéis, todas as suas jóias, enfim, e, depois, apontando com o dedo para a riqueza de seu toucador:

-Meu pai, disse ela, o valor de tudo isto?...

-É grande, sem dúvida muito elevado.

-Poderia chegar para salvar o Sr. Hugo de Mendonça de suas primeiras dificuldades?...

-Seguramente!... respondeu o velho, admirado.

Raquel caiu de joelhos aos pés de Jorge, e com lágrimas nos olhos, com voz comovida exclamou:

-Meu pai!... meu pai!... se me tem amor, permita que eu faça alguma coisa pela minha amiga!...

Havia na ação que praticava Raquel para salvar a sua própria rival, aquela que era amada pelo homem que ela amava; havia na dor dessa moça, no oferecimento de suas jóias um não sei quê de tão nobre, de tão grande e generoso, que Jorge pretendeu debalde falar... e começou a soluçar, chorando abraçado com o seu querido anjo.

Porque Raquel tinha, na verdade, uma alma de anjo.

A cruz da família

O desconhecido e Félix saíram da casa de comércio de Hugo de Mendonça às sete horas e meia da noite, e, subindo ambos para uma sege, que esperava esse homem misterioso, que se nomeara simplesmente o moço loiro, foram caminho do bairro da Glória.

Segundo as ordens que recebeu, o boleeiro fez levar a sege a galope, e, deixando atrás de si diversas ruas tortuosas e feias da nossa cidade velha, e depois o Largo da Ajuda, o Passeio Público, o Largo da Lapa e o cais da Glória, entrou finalmente na rua diplomática, e foi parar exatamente defronte da casa de Hugo de Mendonça.

Toda a curta viagem se fizera em completo silêncio entre os dois; e só quando parou a sege, foi que o desconhecido, saltando para fora, e ajudando Félix a descer, disse-lhe, apontando para uma árvore frondosa, que ficava dentro do jardim, e a alguns passos da casa de Hugo:

-Ali vou eu esperá-lo; no meu rosto poderá o senhor ler o propósito em que estou de me não deixar iludir; vá pois... cumpra o que prometeu, e receba o perdão de que carece.

E, conduzindo a Félix pela mão, até o corredor de entrada da casa de Hugo de Mendonça, o desconhecido empurrou-o para dentro, e foi colocar-se debaixo da árvore como firme sentinela.

Félix, sempre trêmulo e irresoluto, arrastou-se até chegar à escada, e aí, apoiando-se sobre o corrimão... demorou-se por minutos.

Nesse instante os sinos das igrejas deram o sinal das oito horas da noite.

Havia luzes na casa de Hugo de Mendonça, porém todas as vidraças estavam cerradas.

E por detrás de uma das vidraças desenhou-se uma sombra de mulher, que se voltou para o lado da árvore, e que desapareceu imediatamente, percebendo ali um homem, que agitou no ar seu lenço branco.

Esse movimento teria sido feito por acaso, ou era um sinal de antes ajustado?...

Como o resto do dia tinha corrido para Honorina, é fácil de pensar; mas o que não é por demais explicável, depois daquele sim escrito à viúva, sim à primeira vista tão simples, como bem compreendido prenhe de terríveis conseqüências, era o sossego que a moça mostrava na sua dor.

Honorina suspirava, gemia sempre, porém em uma espécie de inércia; nem falava, nem mais lamentava o seu estado, como se de uma vez, certa de que não estava em sua mão remediar o mal que sofria, não quisesse também dar-se a inúteis reflexões, ela suspirava, gemia sempre, esperando a noite, que devia ser a de seu último julgamento; semelhante a um relógio, que vai em sua marcha, gastando o tempo que lhe foi marcado até à hora em que irrevogavelmente deve parar, se a mão de alguém não fizer andar de novo a mola de sua vida.

Hugo de Mendonça continuara frio e resoluto, como homem que havia tomado um partido, que julga o único possível... o único; se de seus olhos esperava alguma lágrima, pertencia ela toda inteira à filha de seu coração.

Ema não pronunciara mais uma só palavra em todo o resto do dia. Ela conhecia que sua influência já pouco podia no ânimo de seu filho, no estado em que se achavam os negócios da casa, e, sobretudo, lembrando-se da má vontade que sua neta mostrara a Otávio, temia cada vez dobradamente ver ultimado o projeto que a fazia corar, o casamento de Honorina com Lauro.

Ema, como Hugo de Mendonça, ignorava que Lauro tinha um rival poderoso nesse homem sem nome, que à sombra da noite ou do mistério velava por Honorina, e em troca disso fazia entranhar sua imagem pela alma dela.

E assim como Félix estremecera e se apoiara no corrimão da casa de Hugo, este, sua mãe, e sua filha estremeceram também, ouvindo que os sinos marcavam oito horas da noite.

Porque Hugo de Mendonça avisara a sua filha de que a essa hora lhe viria ela dar a resposta... a decisão... a sentença.

Honorina ergueu-se, deixando seu quarto, dirigiu-se e entrou para a sala, onde a esperavam seus maiores.

Honorina estava pálida e melancólica; mas em seu rosto lia-se a expressão da coragem: seu porte tinha tomado um não sei quê de majestoso e grande, que assombrou a Ema e a Hugo de Mendonça; ela trazia nos lábios triste e brando sorriso... dir-se-ia um sorrir de mártir, votado em despedida ao mundo.

Honorina, obedecendo a seu pai, sentou-se entre ele e sua avó.

-Minha filha, disse Hugo, pensaste bem?...

-Estou determinada, meu pai.

-E o que decides?... perguntou o pai com espantador sangue-frio.

-Decidi confessar-me a meu pai, respondeu a moça, dizer-lhe tudo o que comigo se tem passado e se está passando, e pedir-lhe que me aconselhe como amigo.

-A decisão deve partir de ti, minha filha.

-E o conselho de vós, meu pai.

-Fala pois...

No instante mesmo em que Honorina ia começar, ouviu-se bater na escada, e uma escrava anunciou o Sr. Félix.

-Que entre, disse Hugo.

-Uma nova desgraça!... exclamou Ema.

-Não, minha mãe, tornou o negociante, não há mais desgraça possível para nós, à exceção do martírio desta menina.

Félix entrou na sala. A fisionomia do moço demonstrava por quantas torturas lhe faziam passar a vergonha e os remorsos; a fisionomia de Félix espantava!... era um condenado, que se mostrava de cima do patíbulo, horrorizado... covarde... Hugo de Mendonça temeu vê-lo cair no assoalho, e correu para ele, levando-lhe uma cadeira...

-Que é isto, Félix?!

O moço, sem responder, deu alguns passos para a frente da sala, e, lançando os olhos para o jardim, através das vidraças viu o desconhecido, estático e firme, debaixo da árvore fronteira.

Ema, Hugo e Honorina estavam em derredor do infeliz mancebo.

-Que é isto, Sr. Félix?!

-Perdão!... perdão!... perdão!... exclamou ele, caindo aos pés da filha do negociante.

Hugo de Mendonça e as duas senhoras recuaram de surpresa e espanto; só depois de alguns minutos foi que o negociante fez assentar e sossegar o seu guarda-livros.

-Félix, disse-lhe enfim, tu nos estás assustando; deves explicar-nos o que é que se passa, e que tanto te perturba; ouvimos que pedias perdão à minha filha... fala; tens razão de sobra para contar com a bondade do coração de Honorina.

-Sr. Hugo de Mendonça, o que eu vou fazer é a relação de uma infâmia!... relação que os senhores me jurarão que não há de passar daqui...

-Mas uma infâmia de quem?...

-Minha! minha só.

E, dizendo isto, Félix trancou por dentro as portas, que davam entrada para a sala.

Os três continuavam estupefatos do que viam e ouviam. Félix parecia haver adquirido força admirável comparativamente com o estado de prostração que mostrara há pouco: era como o vigor e aspecto animado de um febrífugo no maior acesso.

-Os senhores me prometem inviolável segredo?...

-Sim, disseram os três.

-Pois bem, eu o vou dizer, e dito seja em castigo de meu crime; possa a minha vergonha lavar a mancha que me nodoa... quanto ao meu perdão... no fim, eu o conseguirei de joelhos!...

-Tu aumentas nosso espanto, Félix!

-Ouvi-me, senhores, disse Félix. Eu fui ainda bem criança recebido por vós, criado e educado como se fora vosso filho; tive para camarada de meus passatempos, para colega de meus estudos, para companheiro nos meus trabalhos um moço pouco mais ou menos de minha idade, que me estimou como seu melhor amigo: foi o Sr. Lauro de Mendonça. Esse moço, porém, era do vosso sangue, tinha pais, e, portanto, recebia mais desvelos que eu; ainda mais, a natureza lhe havia dado talento, espírito, imaginação, coragem e nobreza de ações; valia, pois, o dobro de mim. Semelhante certeza me torturava, e eu, que devia tudo à família desse mancebo, eu, que era por ele tratado como irmão, senhores, eu tinha inveja do Sr. Lauro de Mendonça!... eu o detestava!...

-Félix!...

-Oh!... se vós, senhores, soubésseis o que é a inveja!... se tivésseis sido invejosos uma só hora na vida!... mas não, não! vós não podeis compreender o que é sentir dentro do coração esse demônio, que agiganta o merecimento alheio e com isso nos tortura; que nos consome, nos rouba o sossego, o prazer, a saúde, e nos vai mirrando... nos vai enchendo a alma de amargor, de veneno, de raiva, de malvadeza!... que nos ensina a mentira e a calúnia... a intriga e a traição!... que nos promete a paz a troco de uma ação indigna, e nos ilude depois... e depois de nos tornar infames, nos aperta ainda com suas garras, e nos conserva tão desgraçados, tão miseráveis como dantes!... oh!... era esse demônio que eu tinha no coração!... cada triunfo do talento do Sr. Lauro era um golpe doloroso que eu recebia; cada raio de seu espírito me lançava o desespero na alma; os arroubos de sua imaginação, o ardor de sua coragem, a grandeza, a galhardia de suas nobres ações eram para mim um tormento cruel... doloroso... incessante!...

-Félix! Félix!...

-Uma consideração única me animava: eu conheci que os avós dele, que o falecido Sr. Raul de Mendonça, e que a respeitável viúva, diante de quem falo, pouco se interessavam por Lauro. A viveza e o talento do moço, acendidos nas chamas dos novos princípios, nas inspirações do século, desagradavam a seus avós, arraigados aos costumes e idéias das passadas eras; fingi-me, pois, inimigo das inovações e das novas instituições... ganhei, assim, a confiança dos chefes da família, ao mesmo tempo que o Sr. Lauro perdia tanto quanto eu lucrava. Todavia, isto não era tudo: eu sofria sempre os tormentos da inveja; porque o Sr. Lauro era feliz... tinha uma mãe, que o amava!... Um dia...

Félix interrompeu-se, estremecendo.

-Um dia... disse Hugo.

-Senhores; nos planos e nos desejos que me inspirava a inveja, eu esperava, eu contava achar um meio de perder para sempre na opinião de seus parentes ao Sr. Lauro de Mendonça; um dia...

O infeliz guarda-livros hesitou de novo.

-É preciso concluir, Félix!

Eu concluo, senhores, tornou o moço, animando-se. Um dia... foi há sete anos, pouco mais ou menos, a Sr.ª D. Honorina acabava de contar nove anos de idade. Houve um belo jantar de família, ao qual eu fui presente; findo ele a Sr.ª D. Ema de Mendonça chamou sua neta para junto de si, convidou-nos a ouvi-la, e contou uma história de uma cruz de família, cruz milagrosa, que por direito pertencia à Sr.ª D. Honorina, desde o dia em que fizesse nove anos de idade. Consequentemente, a cruz apareceu riquissimamente preparada, cravada de preciosos brilhantes...

-Aí esteve o meu primeiro erro... disse Ema.

-Deixe-o continuar, acudiu Hugo.

-A Sr.ª D. Honorina, criança como era naquele tempo, demonstrou com todas as graças infantis o prazer que sentia por possuir a bela cruz. Então, o Sr. Lauro, que amava e muito a sua prima, e que gostava de mover suas respostas, com ela gracejando, disse-lhe -eis uma bela cruz para ser furtada... tem ricos brilhantes, que se podem vender...- e foi a Sr.ª D. Ema quem lhe respondeu, dizendo: -Lauro, tu és um louco; não se graceja sobre um objeto sagrado.

-Foi assim, disse Ema; eu me lembro de tudo isso.

-Nós nos demoramos até à noite; uma salva contendo a cruz foi deposta sobre um aparador no quarto da Sr.ª D. Honorina; às dez horas da noite a jovenzinha dormia; então, o Sr. Lauro foi pé por pé... entrou no quarto... e quis acordar sua prima... depois, vendo-a nos braços do mais sossegado sono, arrependeu-se do que ia fazer... e retirou-se sem acordá-la, e depois de beijá-la nos lábios...

Honorina corou até à raiz dos cabelos.

-E a cruz de brilhantes?! perguntou Ema.

-A cruz de brilhantes?! exclamou Félix; a cruz de brilhantes?!... ouvi-me até o fim, senhores. Um homem, que ouvira a história dessa cruz, e o gracejo do Sr. Lauro, introduziu-se furtivamente no quarto da menina; já estava aí, quando este entrou, querendo acordá-la; esse homem escondeu-se; e depois, tendo saído o Sr. Lauro, ele apoderou-se da cruz... e saiu cuidadosamente. O Sr. Lauro entrara nesse quarto, como homem honrado que era, e, pois, mais de dois olhos o viram também sair; o outro entrou como um ladrão... e, com as precauções de um ladrão, retirou-se sem ser percebido.

-Meu Deus!... exclamou Ema levantando as mãos.

Hugo e Honorina estavam tão silenciosos como estupefatos.

-Quando se procurou a cruz... ela tinha desaparecido; a princípio julgaram todos que o Sr. Lauro a havia escondido por zombaria... ele jurou que não, mas algumas pessoas asseguraram tê-lo visto entrar no quarto... ele o confessou também... finalmente, os senhores o sabem: o Sr. Lauro de Mendonça foi expulso desta casa como um homem infame!...

-Tu o denunciaste!... bradou Ema exasperada.

-Eu fui um miserável caluniador!...

-E o ladrão?

-O ladrão?!... o ladrão?!... o ladrão?!... exclamou Félix com voz lúgubre; o ladrão fui eu!

-Maldito!... gritou Ema levantando a mão como querendo amaldiçoá-lo.

-Miserável!... bradou Hugo.

-Desgraçado!... disse Honorina.

Terríveis tormentos deviam estar dilacerando o coração do infeliz guarda-livros.

-Tudo isso!... maldito!... miserável!... desgraçado!... maldito, sim: porque fui capaz de ceder a essa influência satânica do demônio da inveja! maldito porque manchei a minha vida! maldito porque cometi um crime infame, e denunciei a um inocente como perpetrador dele!... miserável, porque, sofrendo torturas indizíveis, remorsos despedaçadores, nunca tive ânimo em sete anos que são passados, de vir aqui ajoelhar-me, confessar o meu crime, e obter o meu perdão!... desgraçado, sim, oh! muito desgraçado!... porque as penas que tenho sofrido, que sofro, e que sofrerei, são ainda maiores do que meu próprio delito!...

No entanto, Ema arquejava exasperada!... seu semblante deixava adivinhar que havia no fundo da sua alma uma dor cruel; Hugo o percebeu, e cuidadoso lhe falou:

-Que tem, minha mãe?

-Arrependimento também!... ele era inocente!...

-Eu o pensava, minha avó!... disse Honorina.

-E a cruz?... e a cruz?... exclamou a velha voltando-se de repente para Félix.

O guarda-livros arrancou do seio a caixa forrada de veludo preto, e de joelhos aos pés de Honorina:

-Só a ela!... disse, só a ela, que me há de perdoar!...

-Nunca!... nunca!... bradou Ema arrancando a caixa da mão da neta.

-Perdão!... perdão!... perdão!...

-É ela!... é a mesma!... a cruz sagrada!... a cruz da família!... exclamou a velha beijando a santa relíquia com entusiasmo.

-Perdão!... perdão!... perdão!...

-Possa meu primo perdoar-lhe, disse Honorina, como eu de todo o meu coração o perdôo...

-Nunca!... nunca!... sai desta casa!... disse Ema.

-Minha mãe! acudiu Hugo; ele deve estar bem arrependido!...

-Nunca!... nunca!... bradou a velha afastando-se até o fundo da sala, como horrorizada.

Era tal a comoção que experimentava Ema, que Hugo a seguiu ao sofá, onde ela acabava de cair sufocada.

Félix aproveitou esse momento, e falando a Honorina:

-O meu perdão!... disse ele.

-Eu já lhe perdoei de todo o meu coração, respondeu ela.

-Oh! mas é preciso conseguir para mim o perdão de sua avó e de seu pai! eu podia esconder para sempre o meu crime; uma pessoa, porém, por amor da senhora talvez, uma única pessoa no mundo me arrastou a face pela vergonha, e me obrigou a vir aqui! não há, pois, virtude no que fiz!... confesso-o; eu estava arrependido; mas o medo... o medo só de um homem pôde fazer tanto; e é em nome desse homem que eu exijo também da senhora o meu perdão! e que faça com que sua família me perdoe e esqueça o meu delito!... não sou eu... é ele quem lhe restitui a sua cruz, quem prova a inocência de seu primo, quem exige que eu seja por todos perdoado!... é ele!... ele só!...

-E quem é ele?... perguntou Honorina admirada.

-O moço loiro!...

Honorina não pôde esconder o prazer imenso que sentia; sorrir belo e divino espraiou-se em seus lábios... abriu a boca para exalar um longo suspiro... e soltou um grito...

Hugo e Ema acudiram, medrosos.

-Minha avó!... meu pai!... exclamou a virgem fora de si, o perdão!... o perdão deste homem pelo amor de Deus!...

Minutos depois Félix descia as escadas de Hugo de Mendonça, perdoado por toda aquela família.

Antes que o guarda-livros acabasse de descer a escada, outra vez desenhou-se atrás de uma das vidraças uma sombra de mulher, que se voltou para o lado da árvore, debaixo da qual ainda estava o desconhecido; mas desta vez não foi ele, mas, sim, a mulher quem agitou no ar um lenço branco.

Portanto, não era acaso, era um sinal de antes ajustado.

Quando Félix chegou à rua, o desconhecido aproximou-se dele e disse:

-Sei tudo: o senhor cumpriu a sua palavra, e foi perdoado. Adeus!

Um momento depois, Félix caminhava apressadamente para o lado da casa de comércio, onde morava, e um pouco atrás dele o desconhecido descia pelo cais da Glória.

Às nove horas da noite dois vultos se aproximaram um do outro junto à igreja da Lapa do Desterro.

Carlos

Félix entrou em seu quarto, nesse quarto em que pouco antes se haviam passado cenas para ele acerbas, e atirou-se sobre o leito, vestido como estava, sem lhe importar mais trancar a porta por dentro.

Eram pouco mais de nove horas da noite, e posto que já estivesse o armazém fechado, ainda nenhum dos caixeiros e serventes deveria dormir.

Aflito ainda com o que tinha ocorrido, porém, sentindo-se livre desse peso enorme que por sete anos lhe esmagara o sossego, Félix pôde, enfim, ordenar suas idéias e pensar no vôo desses acontecimentos inesperados, na representação improvisada desse drama vergonhoso em que lhe coubera o mais triste papel.

Havia um ponto em que Félix não podia explicar sem acusar a Otávio como traidor; de que meio se valera esse desconhecido para saber até o lugar onde ele tinha escondido a cruz de brilhantes?...

Estava, pois, entregue a tais pensamentos, quando, ao voltar uma vez os olhos, viu em pé, com os braços cruzados defronte de seu leito, um jovem de dezesseis anos, caixeiro da casa.

Esse menino era belo, alegre e esperto, e mostrava-se, então, abatido e melancólico.

-Que fazes aí, Carlos?... perguntou Félix sem mostrar-se enfadado.

-Eu o estava observando, Sr. Félix, estava colhendo no seu rosto os pensamentos que o ocupam.

-Tu és um importuno, por aqui teres vindo sem motivo algum, e és um tolo pelo que acabas de dizer.

-Eu não sou importuno, Sr. Félix, porque foi uma forte razão quem aqui me trouxe, e não sou tolo, porque, em verdade, sei a respeito de que estava o senhor pensando.

-Então, a respeito de quê?... perguntou Félix ensaiando um sorriso.

-O senhor estava pensando, disse o menino sem hesitar, como é que um homem desconhecido e estranho pôde ter inteiro conhecimento de um contrato criminoso, efetuado em alta noite e sem testemunhas, entre o senhor e Otávio.

-Carlos!...

-Estava pensando em quem poderia ter confiado a esse desconhecido as menores circunstâncias dessa cena criminosa. Quem poderia ter dito que o objeto que Otávio lhe deixou em troca dos que levou, fora escondido no segredo de sua carteira.

-Meu Deus!... meu Deus!... exclamou Félix escondendo o rosto.

-Estava, enfim, pensando que fora o seu próprio amigo quem atraiçoara o seu segredo.

-Sim!... é isso mesmo!... disse Félix erguendo-se e encarando o rosto do menino; é isso mesmo!... e então?..

-Não foi Otávio quem o traiu.

-E, portanto, quem foi?...

-Para o dizer, Sr. Félix, é que me acho aqui a esta hora.

-Bem... bem...

-O Sr. Félix vai ouvir a minha história.

-Carlos! que me importa isso?

-Mais do que pensa.

-E o nome?... o nome do traidor antes de tudo!...

-Mas é preciso ouvir a minha história.

-É longa?...

-Fá-la-ei breve.

-Pois conta-a, disse Félix sentando-se no leito.

-Sr. Félix, perguntou o menino, conhece, sabe quem é o desconhecido que aqui veio esta noite?...

-Diz-se um amigo de Lauro de Mendonça.

-Bem, tornou o menino, depois de pensar um instante; bem, é isso mesmo; agora vou começar a minha história.

Félix esperou um momento, mas, notando que o menino não falava, olhou para ele e disse:

-Anda, fala.

Ora, Carlos era eminentemente sangüíneo, e alguma coisa que o devia fazer corar, obrou sobre ele, de forma que seu rosto se tornou de repente cor de escarlate.

-Há, Sr. Félix, um velho costume de que a sociedade não se emenda, e que, todavia, é uma injustiça... uma infâmia. Quando uma mulher é iludida e ultrajada no que tem de mais nobre, a sociedade não fecha suas portas ao homem que a iludiu e ultrajou; cospe, porém, no rosto da mulher que se deixou perder em um instante de desvario, ou que foi, a pesar seu, brutalmente ultrajada.

-E o que vem isso ao caso, Carlos?...

-Perdoe-me, Sr. Félix, eu começo imediatamente. A algumas léguas de distância da cidade da Bahia, vivia há seis anos um abastado fazendeiro, tão honrado como altivo, e que parecia concentrar todas as suas afeições numa filha que tinha: chamava-se esta Paulina. Bela e virtuosam, Paulina tocava os seus trinta anos ainda solteira, e, tendo já rejeitado grande número de pretendentes, ela passava seus dias ao lado de seu velho pai, e, naturalmente melancólica e acanhada, raras vezes se deixava ver; alguém havia, contudo, que merecia de seu coração a mais extremosa amizade; era um pobre menino de dez anos, que fora na sua casa enjeitado, era eu.

Travesso, talvez engraçado com as minhas meiguices infantis, era eu a única pessoa que ganhava um sorriso de Paulina. Para todos os mais ela se mostrava a mesma: triste... muito triste; dir-se-ia que no fundo de sua alma existia um agudo espinho, que a feria de contínuo.

Na opinião de seu pai, no entender de todos, um único remédio podia dar-se para curá-la daquele eterno abatimento, que se parecia bastante com o que se chama desamor do mundo: era fazê-la amar.

Pois Paulina amou. Um estrangeiro, que para perto veio morar, ganhou o que por tantos havia sido debalde pedido; ganhou seu coração; foi esse um amor, Sr. Félix, ligeiro e ardente como a chama... eu tinha tão pouca idade, que não me lembro de nenhuma de suas circunstâncias; sei, porém, que quase milagrosa deveu ter sido a impressão produzida por esse mancebo em Paulina; e recordo-me bem que muitas vezes ela me abraçava, me beijava, dizendo-me: «eu vou casar-me, meu Carlos!» e orvalhava-se o rosto com suas lágrimas.

E, com efeito, eles iam casar-se; o moço a pedira a seu pai, e, como fosse rico e estrangeiro, a tinha sem dificuldade obtido. O dia do casamento estava marcado; esperava-se um negociante da Bahia, que deveria ser o padrinho; só três dias faltavam para chegar o dia da celebração das núpcias; e Paulina chorava sempre, abraçando-me.

O negociante que se esperava não pôde vir; mas em seu lugar mandou o seu primeiro caixeiro munido de competente procuração; este primeiro caixeiro, Sr. Félix, chamava-se Lauro.

Além de Lauro, uma outra personagem tinha também vindo da cidade, que deveria perturbar os prazeres que antecipadamente se gozavam na casa: essa personagem era uma moça. Viera só, sem pai, nem irmão, nem marido, nem criada; e era bela, chamava-se, oh!... lembro-me bem de seu nome, chamava-se Hipólita.

Hipólita pediu uma conferência particular a Paulina: esteve com ela duas horas, e retirou-se. Paulina apareceu mais pálida do que nunca; todo o seu corpo tremia convulsivamente, e, dirigindo-se a seu pai, disse que não queria mais casar-se.

Mas o pai era altivo e arrogante, e o noivo miserável e ambicioso; apesar dos gemidos da vítima e das súplicas do Sr. Lauro, Paulina ia sendo arrastada da sala para o oratório, quando na porta apareceu Hipólita.

-Parai! gritou ela.

Todos pararam; eu estava presente e chorava; mas pude ver no rosto dessa mulher todo o fogo infernal do ciúme em delírio.

-Parai! e ouvi-me!

Todos se voltaram para ela, à exceção de Paulina que acabava de desmaiar nos braços do Sr. Lauro.

-Esse homem que caminhava para o altar, disse ela, amou-me, prometeu desposar-me e enganou-me: eu quero saber se se consentirá depois do que acabo de expor que ele se case com aquela senhora.

-É uma louca... uma mulher perdida... disse o noivo.

-Lancem fora daqui aquela mulher! gritou o pai de Paulina aos escravos que o acompanhavam.

-Suspendei! exclamou Hipólita; ainda um instante, e eu parto. Senhores, eu sou filha de uma parteira!...

-É louca ou não?... acudiu o noivo.

-Há dez anos passados, continuou a mulher sem se dar com o que acabava de ouvir; há dez anos passados, essa moça, que vai ser levada ao altar, foi passar alguns meses na cidade da Bahia em companhia de uma senhora, parenta sua.

-E o que tem isso?... perguntou o velho pai.

-Poucos dias depois de voltar ela a esta fazenda, um menino, um enjeitado, aqui foi depositado...

-E a que vem semelhante história?... tornou o velho elevando a voz.

-Senhores!... exclamou a mulher, eu já disse que minha mãe era parteira...

-Insolente!... gritaram algumas vozes.

-Eu digo que esse menino é filho daquela senhora!... eu o denuncio!... e agora, senhor, pode casar-se com ela!

E a mulher infernal deixou para sempre a casa a que viera, como o gênio do mal, semear desgraças.

O longo silêncio que se seguiu à cena precedente foi interrompido por um grito de Paulina, que exclamou:

-Eu sou inocente!... eu não sou culpada!...

-O senhor a está ouvindo: que ela jura que é falso, que é calúnia o que disse aquela mulher! falou o velho ao noivo.

-Mas esse menino... balbuciou este.

-O menino de que se trata é aquele, tornou o velho apontando para mim: é um enjeitado...

-Que um dia pode inventar direitos...

-Senhor!...

-Eu o tenho visto sempre tão cercado de cuidados...

-Pois ele irá para longe, disse o velho; já tem idade...

Paulina levantou a cabeça e animou-se a dar dois passos para meu lado.

-Depois do que acaba de passar-se, continuou o velho, é preciso fazê-lo sair... nós faremos...

-Meu pai! um pobre inocente!... murmurou a moça.

O velho franziu os sobrolhos, ouvindo sua filha defender-me; e prosseguiu:

-É ágil, vivo e esperto... será um belo marinheiro...

-Não!... jamais!... exclamou Paulina.

-Paulina!...

A moça atirou-se sobre mim, e abraçou-me apertadamente.

-Tirem dali aquele brejeiro! gritou o velho; tirem-no!... eu lhe darei o competente destino...

Os escravos avançaram para mim, porém Paulina colocou-se diante deles, e, furiosa, bradou:

-Eu o criei!... eu o criei!...

O velho avançou por sua vez... agarrou-me com tanta força, que me fez gritar, e empurrou-me para fora; eu, sem pensar no que fazia, corri para Paulina; mas, sendo por ele de novo seguro, tal arremesso recebi que fui cair sobre uma cadeira, e vi correr uma onda de sangue de minha cabeça.

Ouvi, então, um grito desesperado:

-Meu filho!...

Senti um corpo de mulher cair sobre o meu, e uma maldição de pai cair também sobre minha mãe.

Por ordem dele fomos ambos arrastados para fora de casa; mil vezes minha pobre mãe jurou que tinha sido vítima de um infame; ela não foi ouvida, nem nesse dia, nem no outro, nem em todos os mais que foram passando.

Minha mãe esperou debalde que o único homem, a quem ela tinha amado no mundo, fizesse alguma coisa em seu favor; enganou-se: o miserável, desde que a viu expulsa da casa paterna, não cuidou mais dela, nem para consolá-la; oh! todos fugiam de minha mãe! seus antigos amigos, seus protegidos, aqueles a quem ela havia enchido de benefícios, seus próprios escravos, enfim, zombavam e escarneciam dela!... dias horríveis passamos nós em uma pobre choupana, jejuando ou comendo frutos agrestes!... no entanto, um único homem se lembrava de nós: era o Sr. Lauro. Depois de querer em vão reconciliar meu avô com minha mãe, ele, exasperado contra seu rigor, deixou-o, procurou-nos, e tendo-nos encontrado, levou-nos consigo para a cidade, capital da Bahia.

Ali, de tudo lhe fomos devedores: esta educação que eu tenho; este quase nada que eu sei e que muito me tem servido; o pão que minha mãe comia; os vestidos que ambos vestíamos, tudo era ele que nos dava! oh!... o Sr. Lauro foi a Providência de Deus, que veio em nosso socorro!

Ainda mais, Sr. Félix, e aqui vai o que eu nunca poderei esquecer, mesmo quando de tudo me esqueça. Um mês depois de estarmos na cidade da Bahia, minha mãe foi vítima de seus desgostos; vítima do maior mal que pode cair sobre o homem; vítima da maldição da carne!... eu vi surgirem no seu rosto manchas, ora de uma, ora de outra cor, vi intumescerem-lhe os lábios e as orelhas, vi... oh!... minha pobre mãe ficou lázara!... eu acompanhei, Sr. Félix, eu acompanhei passo a passo os progressos da horrível enfermidade! eu li letra por letra todo esse livro de miséria escrito no semblante de minha mãe! oh! e, então, quando sua voz rouca e terrível parecia espantar aos que a ouviam, quando, fugindo horrorizados de seu aspecto, cem homens demônios cuspiam para um lado, mesmo aos olhos dela; o Sr. Lauro... só ele..., só ele vinha sentar-se junto da mísera... derramar consolações em seu seio, enxugar-lhe as lágrimas com o seu próprio lenço, e chamá-la, como eu a chamava, minha mãe!... oh!... Sr. Félix, isto não se esquece e não se paga nunca, nem com o sacrifício da vida!...

Sentindo que minha mãe sofria muito, vivendo no centro de uma populosa cidade, em estado tão lamentável, o Sr. Lauro facilitou-nos uma pequena e retirada casa na vizinhança da povoação de Itapoã. Foi aí, senhor, que se passou a cena que lhe foi contada, entre minha mãe e Otávio.

Deus talvez a conservava para ser o instrumento pelo qual se chegasse a provar a inocência do Sr. Lauro; porque, poucos dias depois da noite que em nossa casa passara Otávio, minha mãe expirou nos nossos braços.

Poucos instantes, porém, antes de morrer, ela ficou a sós comigo, e disse: «Meu filho! se Lauro te pedir a tua vida, dá-lha; crê que minha alma estará sempre sobre tua cabeça para te amaldiçoar, se fores ingrato... e para te abençoar se até à tua morte te dedicares a ele, como o mais fiel dos escravos!»

Depois o Sr. Lauro entrou, e ela falou assim: «Sr. Lauro, não se mente na hora da morte: mereci os seus benefícios, porque nunca fui culpada; o meu crime esteve no meu sono... sono talvez efeito de um narcótico... não sei... nunca pude compreender... não sei quem seja o pai deste menino; seja-o o senhor.» E expirou.

Carlos suspendeu aqui a sua narração para enxugar as lágrimas, que em bagas lhe caíam.

Passando um momento, continuou:

-Foi meses depois da morte de minha mãe, Sr. Félix, que um parente afastado nosso, que finalmente também tinha piedade de nós, apesar de ser tão pobre como éramos, teve de partir por ordem do Sr. Lauro... para descobrir as provas do crime e provar a inocência do jovem repelido.

Pedi licença para vir em companhia dele, e me foi negada; eu queria a todo o custo servir ao Sr. Lauro, e determinei-me: preparei às ocultas os meus despachos, e, quando o navio em que veio este homem, para o senhor desconhecido, deu à vela, eu lhe apareci na tolda sorrindo-me, e disse: «Foi um pequeno ensaio que fiz para provar que posso servir para alguma coisa.»

Aqui chegamos, Sr. Félix, e para logo o seu desconhecido cuidou do que convinha fazer: era preciso observar dois homens... ele tinha dinheiro, dinheiro de sobra à sua disposição; um espião velou sobre Otávio; faltava outro para o Sr. Félix; eu me ofereci.

-Tu, Carlos?...

-Eu mesmo, Sr. Félix.

-Espião!...

-É verdade: espião; meu oferecimento foi de novo rejeitado; o seu desconhecido não queria consentir que eu representasse semelhante papel; mostrou-me o quanto era vergonhoso, e eu respondi: «Quero servir ao Sr. Lauro!»

-E ele?...

-Ele disse que não, que não absolutamente; mas eu sentia sobre a minha cabeça a alma de minha mãe, que parecia animar-me; usei de uma nova astúcia; eu sabia que em casa do Sr. Hugo de Mendonça havia uma mulher que amava extremosamente o Sr. Lauro; procurei falar-lhe a sós, consegui-o, contei-lhe a minha história, disse-lhe o que queria, e no dia seguinte fui recebido como caixeiro na casa do Sr. Hugo de Mendonça, e tratado com a predileção que merecia um sobrinho da mãe Lúcia.

-E portanto...

-E, portanto, o desconhecido não teve mais que opor-se; eu tinha feito tudo por minhas mãos: deram-me um quarto que fica sobre este... pode ver... levante a cabeça... ali está o meu posto de todas as noites... perdi muitas inutilmente; mas, enfim, eu soube, eu vi tudo!...

-E me traíste!...

-Sim, Sr. Félix, para servir ao Sr. Lauro, que tinha sido o anjo da guarda de minha mãe!...

Félix soltou um suspiro:

-Tiveste razão, Carlos!... ao menos tu és grato.

-Oh! mas agora, Sr. Félix, agora eu preciso alguma coisa do senhor; não desci, não vim aqui, não falo há tanto tempo sem um fim!

-E o que queres então?...

-É que eu me lembro que lhe fiz mal, que lhe ofendi, e preciso que me perdoe!...

-Carlos, tu és bom; eu te perdôo.

O menino caiu, chorando nos braços do moço.

Havia em tudo isto uma coisa pouco natural: era a frieza com que Félix ouvira a confissão de Carlos; mas a consciência daquele, acusando-o de seu crime, tinha podido justificar a falta do menino.

Além disso, no meio da relação de Carlos, tinha por acaso vindo uma idéia à mente de Félix, que lhe sorria, que tinha um não sei quê de lisonjeira para seu coração; foi por tal que ele não sentiu forte abalo, ouvindo a acusação que a si próprio acabava de fazer o jovem caixeiro; foi por tal, enfim, que ele o desviou de seus braços, e disse:

-Está bem, Carlos, vai-te; eu preciso sair; há um negócio muito grave que devo concluir esta noite.

Aventura noturna

Às nove horas da noite, dois vultos tinham-se aproximado um do outro, junto à igreja da Lapa do Desterro.

-Eis-me aqui, senhor, disse Manduca à misteriosa personagem, com quem de plano se aí encontrava.

-Bem, venha o senhor comigo, respondeu-lhe o desconhecido.

-Mas de que se trata?...

-Não há tempo a perder, tornou-lhe o homem; entremos naquela sege que ali nos espera, e, enquanto ela rodar, eu lhe explicarei tudo.

Manduca, que automaticamente se tinha deixado levar pela mão, logo que ouviu o rodar da sege, começou de novo o interrogatório.

-Para onde vamos?...

-Para minha casa.

-E a que fim?...

-O senhor vai vestir-se de mulher.

-Eu?! exclamou Manduca; então, que diabo quer isto dizer?... Não; não convenho em semelhante asneira...

-Há de convir, quando souber das críticas circunstâncias em que nos achamos.

-Pois então fale, fale, ande...

-Saiba, pois, que a jovem viúva D. Lucrécia detesta furiosamente a bela filha de Hugo de Mendonça.

-Homem, ainda não reparei nisso; mas hei de pensar a tal respeito.

-Detestando-a, como fica dito, determinou perdê-la; e achou que o melhor meio para isso era sacrificá-la a Brás-mimoso.

-E o mais é que foi bem pensado! deve ser um sacrifício casar-se uma mulher com aquele composto de postiços...

-Ora pois; sabendo Lucrécia que apuros comerciais ameaçam a Hugo, o qual para salvar-se deles tratava de um casamento entre Otávio e D. Honorina, que aborrece... quero dizer, que estima a este homem ainda menos que a Brás-mimoso, a atilada viúva, que se finge amiga de D. Honorina, foi à casa desta, e com sua conhecida habilidade convenceu-a de que devia fugir para um convento, a fim de não se casar com Otávio.

-E foi um conselho muito bem dado.

-O caso terá de passar-se pelo modo seguinte; uma sege estará postada na primeira esquina distante da casa de Hugo e do lado da cidade; D. Honorina, quando ouvir dar dez horas, sairá da casa, e entrará na sege, logo depois entrará D. Lucrécia; ambas as moças estarão mascaradas... e a sege partirá!

-Bravo! bravo!... tomara eu saber quantas semanas levarão a arranjar um plano tão intrincado!... essas moças são capazes de fazer uma revolução política no mundo!

-Mas em lugar de ir parar à porta e abrigar-se no seio de um convento, D. Honorina será por sua falsa amiga sacrificada a Brás-mimoso.

-Que mixórdia!... que mixórdia!...

-Ora, eu que amo ardentemente a D. Honorina, e que por ela velo sempre, pude penetrar esse pérfido segredo, e fiz também o meu plano; ainda não o conhecia, e, pois, não contava com o senhor. Comprei vestidos de mulher, e uma máscara para mim, disposto a ir às dez horas sentar-me na sege ao lado de D. Honorina, antes que D. Lucrécia o fizesse.

-Essa é que é uma dos diabos!

-Encontrando-o, porém, ouvindo a confissão do seu amor, e simpatizando logo muito com a sua fisionomia nobre, distinta e luminosa... determinei propor-lhe fugir com D. Honorina, ir pô-la no convento... salvá-la de Brás-mimoso; porque, enfim, eu não sou egoísta; se se descobrir isso, o senhor pode casar-se com ela, e lavar-lhe a mancha, e eu não posso... sou casado.

-Homem, não é melhor irmos declarar tudo ao chefe da polícia?...

-Como? publicar a fraqueza de uma pobre moça?...

-Então, dirijamo-nos a seu pai...

-Para fazê-la vítima de seus justos furores?...

-Antecipemos, do que ocorre, à mesma D. Honorina.

-Ela se não recolherá ao convento, e casar-se-á com Otávio...

-Decerto... o caso é grave!... se me dessem ao menos três dias para meditar sobre a matéria...

-Chegamos... senhor; apeie-se... venha vestir-se...

-Homem, escute...

-Estou quase crendo que o senhor tem medo de encontrar-se amanhã com Brás-mimoso.

-Que é lá isso?... ora, eu lho mostro: entremos... e vista-me de mulher.

-Venha!... a sua missão é sagrada... o Sr. Manduca já tem ares de cavaleiro andante.

O desconhecido acabava de lembrar-se de D. Quixote.

Logo depois, Manduca estava em um pequeno sótão, onde achou tudo quanto era necessário para vestir-se de mulher.

Confundam-se todas as senhoras, pois lhe asseguramos que, em menos de um quarto de hora, o rapaz estava completamente vestido de mulher; era um gosto vê-lo! Um vestido de seda verde, que oito meses antes estivera muito na moda, por ser em demasia curto, lhe deixava à mostra um bom palmo de finíssimas pernas, e dois imensos pés terrivelmente apertados em sapatos de lã; o desconhecido pendurou-lhe, como melhor pôde, dois cachos postiços aos lados da fronte, e depois escondeu-lhe os cabelos com uma touca cheia de rendas brancas e encarnadas; mas com tanta inabilidade o fez, que a touca mostrou-se na posição inversa da que deveria ficar, isto é, a frente ficou para trás. Finalmente, um longo xale de seda já usado embrulhou desarranjadamente o corpo de Manduca.

-Bem... disse o desconhecido, está lindíssimo, está mais belo do que o amor, esbelto como uma palmeira... é uma virgem... uma vestal completa... vamos...

-Vamos! exclamou o pobre Manduca entusiasmado com o elogio pomposo que lhe fazia o desconhecido.

E desceu a escada, ele, jovem senhora improvisada, com esse andar asselvajado e rude, próprio das pessoas afeitas às botas.

Os dois tornaram a subir para a sege que partiu; poucos momentos antes das dez horas parou; o desconhecido e Manduca apearam-se.

Uma outra sege estava parada na esquina, que do lado da cidade mais próxima ficava da casa de Hugo; o desconhecido mostrava-a a Manduca, quando soaram as dez horas.

-Senhor, disse ele, apresentando uma máscara a Manduca, deixe agora arranjar-lhe a máscara no rosto, e parta; durante a viagem não diga palavra... olhe... lá sobe Honorina para a sege... ainda bem que o senhor está pronto... ande... corra... vá...

-Mas o boleeiro para onde nos levará?...

-Para o convento da Ajuda; o boleeiro está peitado por mim...

-Bom... adeus... vou salvar a beleza! disse Manduca partindo.

-Sim! vá imortalizar-se!... seja feliz!

Logo depois duas seges rodavam para a cidade: iam na primeira dois vultos de mulher; e mais atrás o desconhecido, na segunda, ria-se desabaladamente.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Um gênio benfazejo velava, portanto, a favor de Honorina: o moço loiro, pois não pode restar dúvida de que este desconhecido é ele, o moço loiro tinha em poucas horas prestado à sua bela amada os mais valiosos serviços.

Ainda com uma nova cabeleira, ainda trajando estranhas vestes, ele aparece, confunde a Félix, e, nós o sabemos, a cruz de brilhantes torna às mãos de sua herdeira, e a inocência de Lauro é demonstrada.

Sem que se saiba como, compreende ou adivinha o que se passa entre Lucrécia e Honorina, e protesta castigar a viúva.

É ele que escreve a Lucrécia a palavra do ajuste, o sim, simples termo que simboliza a vingança de uma mulher e a perda de outra.

Na tarde desse dia, a viúva tinha ainda escrito a Honorina, recomendando-lhe que, se pudesse, fugisse mascarada para não ser conhecida ao sair de casa, e que durante a viagem se abstivesse de falar, para não ser ouvida pelo boleeiro que as devia conduzir.

O moço loiro intercepta essa carta, também ignoramos por que meio, e, senhor do plano de Lucrécia, forja então o seu. Tão bom como travesso, tão nobre como extravagante, o projeto que concebe é uma extravagância, e sua execução deverá ser uma travessura. Ele dispõe-se a tornar vestido de mulher e ir dar, embora mascarado, um passeio noturno com Lucrécia; mas, escondido dentro do guarda-roupa de Félix, ouve o que diz Manduca, sabe que é também seu rival, abre um pouco a porta do guarda-roupa para ver a cara do homem que ama Honorina; vê-se a ponto de soltar uma risada... contém-se... pensa, e modifica seu projeto de vingança contra Lucrécia... fá-lo uma travessura completa; e, enfim, nós o sabemos, vê seu plano coroado pelos mais felizes resultados.

Provavelmente importantes negócios o obrigam a não seguir por muito tempo a sege em que vão os dois vultos de mulher; pois que ele volta a seu sótão, despe os falsos vestidos, arranca a mentirosa cabeleira, começa a vestir-se com todo o zelo e afã de um namorado, e defronte de seu toucador fala consigo mesmo, sorrindo-se:

-Estou fatigado; mas pouco falta... muito bem! muito bem! fingi-me pobre e desgraçado... abatido e melancólico... escrevi um livro de amor, todo molhado de lágrimas, sondei o coração de Honorina, e conheço que, pobre ou não, feliz ou desditoso, sou por ela amado... agora sim... posso e quero consagrar-lhe a minha vida...

O tal Sr. Lauro de Mendonça não deve também desejar mais nada... continuou sorrindo-se com malícia; está tudo feito: a vaidosinha D. Lucrécia lá se vai com Manduca, passeando pelas ruas da nossa boa cidade... ora pois: acabemos com isto... vamos depressa fazer as últimas visitas.

E, como já se achasse vestido com toda, elegância, e com seus longos e crespos cabelos loiros cuidadosamente penteados, embuçou-se com uma longa capa negra, cuja gola lhe escondia quase todo o rosto, desceu, embarcou de novo na sege e partiu.

Pouco faltava para dez horas e meia da noite.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

E agora voltemos a acompanhar com o leitor a outra sege, onde iam os dois vultos de mulher.

Rodava ela, e nenhuma das duas senhoras dizia palavra; Manduca guardava silêncio, porque assim seguia os conselhos de seu mentor, e também com medo de ser antes do tempo reconhecido pela sua voz; e aquela que ele supunha ser Honorina, e que era, sem dúvida, Lucrécia, porque de plano ou por pejo não se queria deixar ouvir.

Mais uma vez os pés das moças se tocaram; a companheira de Manduca estremeceu toda. Que bom sinal!... que delicioso estremecer!... era, sem dúvida, o efeito do pejo; e daí a pouco, oh, glória!... Manduca recebe um beliscão na perna... não houve dúvida, pagou-lhe com outro; vem um segundo mais forte, Manduca não hesita, não quer ficar devendo nada, e desta vez o aplica um pouco menos brando; recebe um terceiro tão terrível, que quase o obriga a gritar; Manduca paga-o imediatamente com uma unhada de mestre; ouve um surdo gemido, e temendo ter ofendido a bela companheira, toma-lhe a mão, e beija... oh!... como achou tão macia aquela mãozinha de querubim!...

Já estavam as duas a beijar mutuamente as mãos... já uma vez por outra tinha havido seu abraço respeitoso, quando a sege parou; era o momento decisivo: ambas as viajadoras estremeceram.

Ora, a viúva tinha tomado bem suas disposições para que a vergonha fosse completa: Honorina não devia lavar-se mais nunca daquela nódoa, aliás todo o seu trabalho estava perdido. Lucrécia entendeu que havia necessidade de testemunhas, e se propôs a tê-las; para isso um escravo seu foi à casa de Venâncio e entregou a Tomásia um bilhete dela, que dizia assim:

«Minha comadre. A amizade que lhe tenho não me deixa gozar com satisfação um prazer em que Vossa Mercê não tome também parte. Quero que venha apreciar comigo uma bela cena: o nosso amigo Brás-mimoso trata de casar-se, e pelo sim pelo não a noiva chega-lhe hoje às dez horas da noite; vamos causar-lhe uma surpresa, e recebê-la; havemos de rir-se muitíssimo; às dez horas, pois, esteja com seu marido, sua filha e seu filho em casa de Brás-mimoso, e, se eu me demorar, esperem-me, que não tardarei.

Sua comadre do coração - Lucrécia.»

Esse bilhete foi recebido às nove horas da noite, e deu vivíssimas contestações; porque Venâncio sustentava que não devia levar sua família à casa de um homem solteiro; mas, como sempre, a vontade de ferro de Tomásia triunfou dos pudicos receios de seu marido.

Conseqüentemente, às dez horas da noite Venâncio, Tomásia e Rosa achavam-se em casa de Brás-mimoso, que parecia ornada com estudo, e muito de fresco.

Manduca não acompanhou sua família, porque desde as oito horas da noite se achava fora de casa: melhor do que os próprios pais, sabem os nossos leitores o que era feito dele.

Lucrécia não havia ainda chegado; isso, porém, não admirava a comadre, pois pelo bilhete da viúva conhecia-se que ela contava demorar-se. Brás-mimoso era esperado a todos os instantes.

Estavam, pois, os três pensando se a noiva seria bonita ou feia; quando ouviram o rodar de uma sege, que parava à porta: era a noiva!...

Lembrando-se da palavra surpresa escrita no bilhete da viúva, Tomásia fez entrar seu marido e sua filha, e entrou ela também para a alcova, fechando de novo a porta, porque já ouviam os passos de duas pessoas, que subiam a escada.

Manduca, a princípio espantado, viu que sua companheira abria sem-cerimônia a sege, tomava-lhe a mão, e o fazia apear-se em uma rua muito diferente daquela em que existe o convento da Ajuda; semelhante passo, uma tal ação praticada por Honorina, a fazia perder muito no seu conceito; mas tarde para recuar, e, enfim, forte e valente como era o moço, não temeu nada e foi-se deixando levar.

A moça deu o braço a Manduca, e entrou em um corredor... subiram sem bater palmas... e, enfim, chegaram à sala.

Houve um momento de hesitação em que Manduca e sua companheira ficaram olhando um para o outro... depois, e a um só tempo, arrancaram suas máscaras...

Duas exclamações de espanto se deixaram ouvir então... e ambos aqueles vultos de mulher recuaram espantados...

A companheira de Manduca era nada menos que Brás-mimoso vestido também de mulher!

Para perder Honorina, Lucrécia tinha tido pouco mais ou menos o mesmo pensamento que tivera o moço loiro para salvá-la e vingá-la.

Brás-mimoso soltou de novo um grito de espanto e de medo.

-Que traição! exclamou ele.

Manduca ficou um momento embasbacado; logo depois bradou:

-É agora, jagodes de uma figa!

E atirou-se sobre o seu rival, dando-lhe socos, como o churinado depois da lição de seu mestre.

Venâncio, Tomásia e Rosa acudiram aos gritos que soltava o velho gamenho.

Foi um triunfo importante arrancar Manduca de cima de Brás-mimoso, sobre quem estava agarrado como uma sanguessuga.

O resto da cena tornou-se completamente ridícula.

Manduca tinha a sua touca enfiada no pescoço; só lhe restava um dos cachos; o vestido estava roto de cima a baixo; e já havia neste uma manga de menos; espumando de raiva, dizia:

-Eu!... eu beijar a mão deste tratante!...

Brás-mimoso estava sem touca e sem cabeleira... tinha os beiços rebentados pelos socos que apanhara, e sua figura se tornava absolutamente risível, quando se olhava para seus vestidos de mulher, e depois para sua cabeça absolutamente calva.

-Nesta, dizia ele, só me podia meter a Sr.ª D. Lucrécia!

Uma gargalhada de Rosa rematou a cena.

O novo administrador

Sentado numa bela cadeira de braços, em seu gabinete de trabalho, estava Otávio entregue a mil diversas reflexões, das quais apenas por instantes se arrancava para examinar o ponteiro do relógio de parede, que em frente dele se via pendurado.

A cabeça desse mancebo ardia como seu próprio coração. Honrado e nobre, Otávio tinha encontrado no caminho de sua vida uma mulher por extremo formosa para enfeitiçá-lo; amou-a com todo o amor de sua alma; mas, quando foi pedir-lhe a paga de sua ternura, escutou em resposta um não; e esse não teve o poder de desatiná-lo a tal ponto, que se perdeu da bela estrada que seguia, emaranhando-se nos desvios do vício.

Otávio amava Honorina com uma dessas paixões veementes, que cegam o homem, e o podem precipitar; possuir o objeto de seus anelos era pois para ele, no raciocinar de seus transportes, um fim, onde importava chegar por quaisquer meios que fossem; pareceu-lhe que lavar uma mancha não era um impossível neste mundo severo, em que quase é regra não se dar regeneração moral possível.

Levado do ímpeto de sua paixão, ele não hesitou em ir propor a Félix uma transação infame, não trepidou diante de Hugo de Mendonça, quando estava representando em sua consciência o mais miserável dos papéis; porque, enfim, esse era o seu sonho, o sonho lisonjeiro que lhe prometia a posse de Honorina; mas quando sentiu que o pai da bela requestada se erguia orgulhoso sobre sua própria miséria, quando viu que seu derradeiro esforço ia ser baldado, o sonho começou a esvaecer-se, e ele, despertando, achou-se só, isolado, longe de Honorina, e identificado com a infâmia. Otávio caiu, então, debaixo do peso de suas reflexões. Era o período da febre que tinha passado, e cedido seu lugar à prostração.

Com efeito, livre por um instante do alarido das paixões, a alma de Otávio começou para logo a ouvir a voz pausada, grave e monótona da consciência, voz que é sempre a mesma, com o mesmo timbre, e que jamais se cala, incessante e monótona, como as vagas do mar, ou como o tique-taque da pêndula do relógio, que defronte estava.

Tão poderosa era essa voz, que já por dez vezes tinha podido volver à força os olhos de Otávio para a gaveta, onde se achavam guardadas as três letras falsas, que eram as provas palpitantes de seu crime; apesar do quanto sofria com tal recordação, a despeito do firme propósito que fizera de esquecer-se disso... Otávio olhava sempre.

Tão vingativa era essa consciência que falava, que tinha apagado a derradeira luz de esperança que Otávio poderia descobrir no correr do dia do vencimento das letras; indigno de felicidade a seus próprios olhos, Otávio gemia, adivinhando que a posse de Honorina era para ele um impossível.

Tão formidável, enfim, era essa voz, que aquele que de contínuo a estava ouvindo, temia que ao passar pelas ruas uma boca lhe gritasse -falsário!... oh! ele tinha medo de Félix, tinha medo do mundo, e corava diante do seu espelho!

Finalmente, ouvindo dar dez horas, disse:

No correr da mesma noite em que se passaram com Félix, Manduca e o desconhecido as cenas de que demos conta, estava, pois, Otávio, triste e pensativo, sentado no seu gabinete de trabalho, e olhando de momento a momento para o relógio.

Finalmente, ouvindo dar dez horas, disse:

-Ainda me falta meia hora!

Depois tirou de seu bolso um pequeno bilhete, que leu ainda uma vez; pois que já o tinha feito por muitas vezes. O bilhete dizia assim:

«Negócio importante que cumpre ser decidido hoje mesmo com o Sr. Otávio me obriga a pedir-lhe licença para procurá-lo às dez horas e meia da noite em ponto.»

Ou por descuido, ou de propósito, o bilhete carecia de assinatura.

Bilhete tão estranhamente concebido, hora de encontro tão mal escolhida, a ignorância em que se achava Otávio a respeito do negócio, que tão urgente se dizia, e, enfim, o receio que ele começava a ter de tudo quanto lhe parecia pouco comum, faziam com que Otávio esperasse ansioso pela hora determinada.

Recolhendo-se a seu gabinete, ordenara a um de seus escravos que ali fosse conduzida uma pessoa, que se apresentaria pouco depois das dez horas da noite.

Faltavam ainda vinte minutos para essa hora, quando o escravo anunciou e fez entrar o Sr. Félix.

Ao ver aquele que conhecia a mancha que nodoava sua reputação, Otávio corou, involuntariamente, e, apontando para uma cadeira, disse:

-Senta-te.

-Não, Otávio, eu não me sentarei.

-Pois conversaremos de pé; mas nunca me passou pela cabeça que fosses tu quem me escreveu aquele bilhete singular.

-Eu não te escrevi bilhete algum.

-É que a tua visita a estas horas...

-A minha visita a estas horas, Otávio, quer dizer que entre nós tem de decidir-se uma questão bem grave.

-E então...

-Eu venho dizer-te que tive uma hora de loucura, da qual me acho felizmente curado, e que por conseqüência posso desfazer tudo quanto havia feito desarrazoadamente.

-Peço que te expliques... e depressa: vês que eu espero alguém.

-Pensei que me tinhas compreendido, Otávio; porque a minha hora de loucura se passou entre nós dois.

-E portanto...

-E, portanto, eu te declaro que já não me acho disposto a consentir que seja reduzida à miséria uma família inteira, para obrigá-la a sacrificar-te uma bela moça.

-Félix!...

-Passou o tempo, Otávio, em que tua voz me fazia calar, e os teus olhos me obrigavam a abaixar a cabeça; duas paixões nos atiraram para um abismo... estamos hoje na mesma linha.

Otávio, vermelho de vergonha e de despeito, olhou para Félix como se não acreditasse que era aquele mesmo homem que lhe estava falando; porém, o guarda-livros, forte e decidido, por sua vez, prosseguiu:

-Eu venho, Otávio, receber as letras falsas que tive a fraqueza de te passar; venho declarar-te que o contrato da infâmia está roto.

-Oh!... isto é admirável!... exclamou Otávio; é admirável, que tu, Félix, levantes a cabeça diante de mim!...

-Sim, eu a abaixei diante de outros, e era preciso que a levantasse diante de alguém; Otávio, eu te estou devendo horas inteiras de vergonha, de miserável submissão, horas de torturas que te venho pagar agora.

-Insensato!...

-Oh!... pois bem. Compreende que diante de mim se apresentou um homem que me disse: miserável! tu roubaste uma cruz de brilhantes... quem te denunciou foi aquele mesmo a quem a confiaste!...

-É falso!...

-Foi Otávio... há alguns meses passados, em momentos de horrível padecer, foi ele quem te denunciou a uma mulher morfética!...

Otávio não teve uma palavra para dizer. Félix prosseguiu:

-Portanto, vês bem, Otávio, que tu faltaste à principal condição de nosso contrato de infâmia; e, neste caso, está nulo: eu quero, pois, as letras que me arrancaste.

-É tarde, Félix.

-Tarde?... tu não podes dizer-me que é tarde. Agora, Otávio, é tempo oportuno sempre para mim; sofri quanto sofrer podia; esgotou-se-me a paciência. Vamos!

-Félix!...

-Otávio, as letras falsas!...

-Miserável!...

É um nome que nos cabe a ambos; enfim, as letras!...

-Oh!... e não te lembras que eu tenho a vingança nas minhas mãos?... que nossas infâmias estão casadas?... que somos solidários na vergonha?...

-Sim; e porque eu já esgotei o meu cálice até às fezes, justo é que esgotes também o teu: as letras!...

-Pois bem: a cruz de brilhantes!...

-Era o teu escudo, não é assim, Otávio?... tu tinhas feito do teu amigo a miserável carta com que jogavas; que importava pouco que fosse perdida ou não, contanto que em resultado a partida do teu jogo de infâmia fosse por ti ganha: não é isto assim?... não é verdade o que eu estou dizendo?... oh! Otávio!... Otávio!... o teu escudo está quebrado!...

Otávio encarava Félix sem compreendê-lo.

-As letras!... as letras!... disse este levantando a voz.

-A cruz de brilhantes!...

-Vai pedi-la à filha do Sr. Hugo de Mendonça.

-Quê!... exclamou Otávio admirado.

-Sim! a minha vergonha está passada: tu me traíste... a morfética revelou por sua vez o que lhe confiaste, e esse homem, que me veio dizer: -roubaste uma cruz de brilhantes!- esse homem arrastou-me pelas ruas, varreu com meu rosto as escadas da casa do Sr. Hugo de Mendonça e me obrigou a ir lá com o meu crime nas mãos, com as lágrimas nos olhos, e com o grito de misericórdia na boca!

-E esse homem?...

-Esse homem é um demônio que nada ignora do que lhe convém saber; esse homem sabe do nosso contrato... não ignora que tu tens as letras falsas... sabe tudo!

-Mentira!...

-Oh!... não! desgraçada ou felizmente verdade!...

-Nós estávamos sós, e fechados no teu quarto...

-E por cima das nossas cabeças, a Providência, que não dorme, nos observava pelos olhos de um menino.

-E então...

-Um dos caixeiros da casa do Sr. Hugo me espreitava... e testemunhou o crime de nós ambos!

-Oh!... gritou Otávio deixando-se cair na cadeira.

Passaram-se alguns momentos em silêncio, durante os quais a cabeça de Otávio se não ergueu dentre as mãos, onde tinha tombado.

Terrível anúncio era esse que ele acabava de ouvir, e seu espírito lutava com a verdade para achar um meio de dizer -é mentira; trabalhava, perdido nesse pélago de vergonha, para deparar com uma tábua de socorro, em que se agarrando dissesse -ainda me não perdi!

Enfim, Otávio viu brilhar uma tênue e leve nuvenzinha de esperança. Era o que por então bastava; atirou-se para ela dizendo:

-É falso! é falso!... eu te compreendo! queres arrancar-me as letras, mercê dessa miserável astúcia!... não, não as terás...

-Tu me hás de entregar, Otávio!

-É impossível... é tarde, muito tarde! pensa que eu já as apresentei a Hugo de Mendonça, que já lhe disse -o senhor tem de pagar-me esta quantia!- e agora, Félix, agora...

-Otávio, para tudo se acha um remédio; lembra-te que me dizias: -o contrabando em que se achava empenhada a casa de Hugo enriquece e empobrece com a rapidez do raio.

-É uma desculpa miserável...

-Sim; mas uma desculpa que me ensinaste.

-Porque, quando se perdem embarcações... não há contrabando que receber, nem vender, não há contas que dar: diz-se -perdeu-se- e tudo está dito.

-Pois, então, Otávio, inventa uma desculpa; já que de qualquer modo que seja, as letras deverão sair daqui comigo.

-Félix!...

-Otávio!...

-Eu já disse que não acredito no que inventaste para assustar-me; tenho um fiador na cruz de brilhantes.

-A cruz de brilhantes aparecerá nas mãos da filha de Hugo de Mendonça...

-É falso!...

-Otávio... as letras!

-Não!

-Oh!... mas tu me estás desafiando!

-Sim!...

-E quando eu amanhã estiver gritando diante de todos, no meio de uma rua, ou na praça do comércio -o Sr. Otávio é um falsário!...

-Eu responderei que mentes!

Félix, com um terrível e vingativo sorriso estremecendo-lhe nos lábios, arrancou um papel do bolso:

-E esta carta?... exclamou ele, e esta carta?...

-Esta carta?...

-Sim! a carta que me lançaste por baixo da porta, a carta em que me convidas para perpetrar o crime! -Oh!...

-Como é que tu hás de responder -ele mente!-, sabendo que para logo eu mostraria a todos a tua assinatura, o corpo de delito de nosso mútuo crime?...

-Miserável!...

-As letras! as letras, Otávio!...

-Miserável! disse outra vez Otávio, fazendo um movimento para erguer-se.

-Otávio, nem um só passo para mim que não seja para entregar-me as letras falsas; eu aprendi com o homem que me fez ir de joelhos entregar a cruz de brilhantes àquela a quem pertencia, a prevenir-me contra tudo; então, eu avancei para ele, como tu queres avançar para mim, e vi brilhar na sua mão uma arma mortífera, como tu verás brilhar na minha instrumento semelhante, se tanto for necessário.

Otávio, pálido de cólera, olhou de um modo terrível para Félix, em cujo peito viu luzir o cabo de um punhal.

-Porque, enfim, Otávio, as circunstâncias nos têm levado a extremos tais.

-Mas isto é uma infâmia!... disse com voz abafada Otávio, voltando a cabeça para o lado da porta, como quem ia chamar alguém.

-A primeira pessoa que aqui entrar, disse Félix, ficará para logo sabendo que tu exiges de Hugo de Mendonça o pagamento de três letras falsas. Chama agora os teus caixeiros, chama os teus escravos, Otávio.

-Maldito!... maldito!...

Nesse instante o relógio fez ouvir o sinal de meia hora depois das dez.

-Dez horas e meia!... exclamou Otávio; é a hora marcada pelo bilhete!...

Um escravo anunciou que ia entrar um homem embuçado em longa capa preta.

-As letras?!... disse Félix.

-Félix!... Félix!...

-As letras!...

Ouviam-se já muito próximas as pisadas da pessoa anunciada.

-As letras!... repetiu Félix com tom decidido e firme.

-Félix, disse Otávio com voz trêmula e fraca, peço-te meia hora para determinar-me; entra nesta alcova, enquanto falo ao homem que vai entrar.

-Seja, respondeu Félix entrando; mas só meia hora.

Quando a porta da alcova acabava de cerrar-se, o homem entrou no gabinete.

Esse homem vinha, como dissera o escravo de Otávio, embuçado em uma longa capa preta, cuja gola estava tão levantada que lhe escondia quase todo o rosto, e até os cabelos, de modo que apenas se lhe descobria parte média da testa e olhos, o nariz e o alto da cabeça: -era ele.

-Perdão, se me apresento assim, disse, tendo os olhos fitos na porta da alcova, como se examinasse alguma coisa; perdão, mas estou doente... constipado...

Otávio, sem dizer palavra, arrastou-lhe uma cadeira; a voz desse homem tinha produzido cruel abalo em Félix, que acabava de reconhecer nele o seu desconhecido.

-Não me sentarei, disse este; o negócio de que venho tratar conclui-se em poucas palavras.

-Estou às suas ordens, respondeu Otávio.

-Senhor, acho-me encarregado da administração da casa do Sr. Hugo de Mendonça, e como tal venho receber três letras na importância de quarenta e seis contos de réis, as quais existem na sua mão, e que, segundo creio, deverão já estar sobejamente pagas pelo Sr. Félix, guarda-livros da nossa casa.

Essas palavras foram pronunciadas com tal acento de ironia, e acompanhadas por um sorriso tão cheio de cruel zombaria, que pareciam estar dizendo -sabe-se de tudo.

Otávio empalideceu de maneira a causar piedade; como querendo achar uma resposta, e força para poder dá-la, guardou silêncio por alguns instantes; mas o olhar terrível e penetrante desse homem estava fito nele, como um dardo que se lhe ia enterrando até o coração; para escapar à sua influência, Otávio voltara os olhos, porém o sorriso do desconhecido se foi tornando em uma verdadeira risada insolente... sarcástica... ameaçadora...

Houve um momento de cruel angústia para Otávio, em que ele pensou, tremendo no desconhecido de Félix, e em que esse homem que aí estava em pé, defronte dele, continuou a rir-se, a rir-se sempre, e alto, insultuosa e desafiadoramente...

Enfim, Otávio pareceu haver tomado uma resolução: foi à porta da alcova, abriu-a e fez sair Félix.

-Sr. Félix, disse ele, este senhor está atualmente encarregado da administração da casa do Sr. Hugo de Mendonça?...

-Responda, Sr. Félix! disse com sua voz áspera o desconhecido.

Félix levantou os olhos, e viu embebidos em seu rosto os desse homem cheios de fogo e de audácia.

-Sim... balbuciou o guarda-livros.

-Segue-se, portanto, continuou Otávio, que devo-lhe entregar as letras que o senhor acaba de pagar-me?...

-Não, disse Félix; é a mim, que as vim pagar, que o Sr. Otávio deve fazer entrega delas.

-Contanto que as entregue, interrompeu o desconhecido, é-me indiferente que seja a mim ou ao Sr. Félix.

Otávio no mais alto grau de perturbação e terror abriu uma gaveta, donde tirou as letras, que entregou a Félix; depois, voltando-se para o desconhecido, abaixou os olhos, e, com voz submissa e implorante, disse:

-Seria possível esperar que isto acabasse de uma maneira decorosa para todos?...

-Seja, respondeu o desconhecido; eu me quero julgar satisfeito; porque ambos vós tereis de corar sempre diante de mim.

E, travando do braço de Félix, obrigou-o a acompanhá-lo e saiu, sem ao menos cortejar a Otávio.

O moço loiro

Triunfante em toda a parte, contando cada hora por uma nova vitória, a causa do moço loiro perigava, todavia, corria sérios riscos de completamente perder-se no grande campo de guerra, onde cumpria vencer a batalha decisiva.

O aparecimento inesperado da cruz da família tinha mudado a face das discussões travadas na casa de Hugo de Mendonça; semelhante fato, que era ainda mais uma prova do amor e dedicação do moço loiro por Honorina, havia somente servido de forte argumento a favor de seu temível rival, do primo Lauro. Também aquele não devia ignorar que estava servindo de instrumento para a fortuna desse, por quem parece que fora enviado para demonstrar a sua inocência.

Com efeito, a família inteira de Hugo se empenhava agora com indizível força para obter o sim de Honorina a favor de seu primo. Ema, como querendo compensar seu neto das injustiças que lhe havia feito, era quem mais se extremava em oferecê-lo à bela neta, como o modelo dos noivos. A mãe Lúcia trabalhava no mesmo sentido, quanto podia: o único que se conservava no mesmo posto que dantes era Hugo, a quem apenas se ouvia dizer:

-Minha filha, consulta primeiro o teu coração; mas não te sacrifiques.

A crise terrível e assustadora que ameaçava Hugo, já também não espantava a velha Ema; feliz com sua fé, feliz com sua religiosa esperança, ela exclamava a miúdo:

-Não há mais desgraça possível para nós: a cruz da família apareceu; o nosso talismã vai salvar-nos.

Mas, entretanto, o moço loiro estava mais que nunca presente ao coração de Honorina: cada palavra, cada idéia, cada lembrança que ouvia lhe faziam recordar a imagem daquele que, oculto sempre a todos os olhos, desaparecendo, a despeito das suas indagações, aparecia, contudo, quando era preciso demonstrar o amor que tinha por ela; quando se fazia necessário prestar-lhe um pequeno ou grande serviço; quando, enfim, ela pedia ao céu um anjo que a salvasse de algum perigo.

Oh! um amor tão profundo, uma dedicação tão generosa era bela, nobre e santa como a beneficência, que de improviso se apresenta para o bem, e de improviso se esconde, fugindo dos agradecimentos.

E Honorina, ruminando seus dias passados, largando todos os panos à sua imaginação fértil e brilhante, viu de novo o seu querido moço loiro escoando-se pela sombra, ou adorando-a de joelhos ao clarão de cheio luar; ouviu-a ainda sua voz sonora; e, enfim, repetindo a si mesma os melancólicos pensamentos de seu livro de amor, e recordando-se a todo o instante do último serviço que acabava de prestar-lhe, e também generosamente a seu rival, revoltava-se contra esse pensamento frio e desabrido, contra esse esqueleto horrível, que como uma barreira a queria separar de seu romanesco amante... revoltava-se contra a idéia da miséria do pobre.

Desde o grito de surpresa que soltara, ouvindo Félix pronunciar o nome de moço loiro, Honorina se arrancara do estado de inércia em que se achava; e seu rosto, até então comprimido pela mais acerba tristeza, dilatou-se com não sei quê magnética e entusiástica alegria; brilhavam-lhe os olhos cheios de ardor e fogo; branda nuvem cor-de-rosa lhe assomava as faces; feiticeiro sorrir de confiada esperança brincava-lhe descuidadoso nos lábios; seu semblante exprimia valor e decisão; batia-lhe o coração rápido e forte; e seu pulso agitado e irregular faria crer que ela estava em uma hora de febre.

Apesar de sua avó, talvez mesmo que apesar de seu pai, a filha de Hugo de Mendonça dará a sentença a favor do moço loiro.

Honorina vai deixar falar seu coração; há nela todo esse encanto inexplicável, toda essa bravura feminil, que se adora em algumas nobres senhoras, que tem a alma ao pé dos lábios; em quem a sinceridade e a franqueza são sempre viçosas flores; senhoras verdadeiramente belas, que com seu caráter firme, independente e angélico, quando amam dizem sem temer -eu amo!

Hugo acabava de lembrar a questão que havia sido interrompida pela chegada de Félix; Honorina ergueu orgulhosa a cabeça... ia falar... mas nesse momento Jorge e Raquel apareciam na porta da sala.

As duas amigas correram a encontrar-se, e prenderam-se nos braços uma da outra.

-Minha boa Honorina! disse Raquel.

-Raquel!... Raquel!... eu precisava ver-te para te dizer que sou muito feliz!... respondeu em voz baixa Honorina.

Raquel recuou dois passos, e sentindo na sua mão a mão ardente da moça, e vendo no seu rosto o rubor e alegria anormal que o enfeitavam, tremeu, pensando que a sua amiga delirava.

-Tu feliz?!...

-Mais baixo: isto é só para nós duas.

-Porém, tu dizes que és feliz?...

-Oh!... muito, Raquel! vem, eu te vou dizer.

Honorina levou Raquel pela mão até uma janela, que abriu, e, recostando-se com a sua amiga sobre a grade, começou a referir-lhe em voz baixa quanto devia ao moço loiro; se Honorina não estivesse fora de seu natural estado, se sua mão não ardesse, teria certamente compreendido que sua relação fazia mal a Raquel, e que a mão desta se tornava fria como o gelo.

Havia um não sei quê de grande e solene no que se estava passando então na casa de Hugo de Mendonça.

Jorge, cedendo, sem dúvida, aos conselhos da amizade e às generosas inspirações de sua filha, vinha sondar o infortúnio de seu amigo, e oferecer-lhe a mão para arrancá-lo do abismo; por isso, tendo pedido a Hugo que lhe confiasse o estado de seus negócios, se retirou com ele para o gabinete, e aí examinavam ambos os papéis e livros pertencentes a casa.

Ema, sentada no canapé, conversava animada com Lúcia, que a ouvia de um lado, em pé, mostrando-se talvez alegre.

Honorina e Raquel estavam, como deixamos dito, praticando em voz baixa, recostadas à grade de uma janela.

A sala, apesar de longa e espaçosa, achava-se suficientemente iluminada; viam-se nas paredes, e ocupando cada um o seu lado da sala, quatro grandes retratos, o de Raul de Mendonça -avô- o de Raul de Mendonça e o de Clemência de Mendonça -pai e mãe de Lauro; e, finalmente, o de Clara de Mendonça -mãe de Honorina.

Aqueles retratos, nos quais refletiam os raios das luzes, pareciam animar-se, encher-se de vida, observando a maneira por que era tratada uma questão de vida ou de morte de sua antiga casa.

Pouco antes das onze horas, Lúcia dirigiu-se para a janela, onde conversavam Honorina e Raquel; as moças calaram-se imediatamente.

-As senhoras acabam de calar-se, vendo-me chegar, de modo que eu devo pensar que as importuno...

-Não, mãe Lúcia, não...

-Sim; e calaram-se porque pensam que conversavam em objeto que é, e deve continuar a ser um segredo para mim...

-Ora, mãe Lúcia...

-E, todavia, eu sei perfeitamente a respeito de que as senhoras estavam conversando...

-Sim... como era sobre coisas muito naturais...

-Por exemplo, sobre...

Lúcia abaixou a voz.

-Sobre o quê, mãe Lúcia?...

-Sobre o moço loiro.

-Ah!...

-Não grite assim, menina; do contrário não lhe contarei muitas coisas que estimará ouvir.

-E, então, o que é?...

-A história do moço loiro.

-Tu vês, Raquel, como ela está zombando de nós ambas?

-Não, Honorina, a Sr.ª Lúcia parece querer contar-te alguma coisa de interesse.

-Pois então...

-Querem ouvir-me?

-Certamente.

-Bem, senhoras; mas há de ser contado em voz baixa, em segredo, e só para as senhoras.

As duas moças fizeram com que Lúcia se chegasse para bem perto delas, e prestaram curiosa atenção ao que lhes ia ser referido.

A ama de Honorina começou:

-Lembra-se, Sr.ª D. Honorina, que, tratando-se da volta do Sr. Hugo de Mendonça e das senhoras para a corte, eu as preveni, aqui, e vim chegar três dias antes para preparar a casa, que as devia receber?...

-Lembro-me, sim.

-Pois no dia que seguiu ao da minha chegada, quando eu já fazia aprontar a bela casa de campo que tivemos em Niterói, eram oito para nove horas da noite, e um pajem me veio dizer que alguém esperava-me no jardim para falar-me em negócio de interesse; fui, e achei-me diante de um interessante moço de olhos ardentes e cabelos loiros...

-Era ele!... balbuciou Honorina sem poder suster-se.

-Era ele!... respondeu dentro do coração, Raquel.

-Perguntei-lhe quem era, continuou Lúcia rindo-se, e me não quis dizer seu nome; contou-me tão fielmente a história de meu querido Lauro de Mendonça, e disse-me com tal acento de verdade que vinha por ele enviado para provar sua inocência e descobrir o verdadeiro autor do furto da cruz de brilhantes, que eu não pude deixar de crê-lo, nem de prometer ajudá-lo no generoso empenho em que ia achar-se. Pediu-me depois que lhe dissesse que pessoas compunham a família do Sr. Hugo de Mendonça, e devendo eu responder-lhe, e chegando ao nome da Sr.ª D. Honorina, fiz com toda a verdade o elogio de suas virtudes, talento e beleza; e, posto que não dissesse tudo quanto podia, conheci que o pouco que havia dito tinha bastado para produzir curiosa impressão naquele jovem.

-Adiante, mãe Lúcia.

-O moço pediu-me uma nova conferência, e eu lhe marquei uma noite, à meia-noite em ponto, no jardim. A Sr.ª D. Raquel para visitá-la veio da corte no dia que precedeu a essa noite; à hora do nosso encontro, as senhoras estavam conversando na janela do seu quarto, e a nossa entrevista deveria ser debaixo dessa janela; se tive receio de ir, porém o moço lá esteve, e ouviu toda a conversação das senhoras; ao fazer um movimento... a janela de seu quarto se fechou, e então ele tirou um pedaço de papel de sua carteira, escreveu nele algumas palavras, mercê do clarão da lua, e, tendo dobrado o papel, trepou-se pela parede, e o deitou debaixo da vidraça da janela do seu quarto.

Quando o moço saltou no chão, eu estava junto dele, e lhe disse em tom sério:

-Que foi o senhor fazer?...

O moço respondeu-me com sua voz doce, e, rindo-se, maliciosamente:

-Fui pôr uma declaração de amor debaixo daquela vidraça.

-Como, senhor?...

-Senhora Lúcia, eu amo a D. Honorina.

-Mas o senhor atreve-se?... exclamei eu.

-Atrevo-me, respondeu-me sem hesitar; olhe: primeiro atrevi-me a olhá-la muito, e a admirá-la ainda mais, quando ela na tarde do dia 6 de agosto atravessou certo largo da cidade do Rio de Janeiro, montada em seu lindo cavalo branco, que ardido e insofrido se deixava, todavia, domar pela mão formosa da encantadora cavaleira; atrevi-me também ainda há pouco a ouvir suas doces palavras, seus generosos sentimentos; atrevo-me, enfim, a dizer que a amo; atrevo-me a jurar que o farei em toda a minha vida.

Finalmente, senhoras, esse moço é um pouco feiticeiro; teve a habilidade de convencer-me de que eu mesma devia ajudá-lo no seu amor; lembrei-me que era o defensor de meu pobre Lauro; confesso que deixei-me enfeitiçar por suas palavras, e sabe o que fiz?... prometi o que ele queria.

-Mãe Lúcia!...

-Portanto, eu sabia quem tinha posto o papel debaixo da vidraça; e fiz mais ainda: em todas as noites nós nos encontrávamos no jardim, e eu lhe dava parte de todos os passos da senhora.

-Oh! que traição!... disse Honorina querendo debalde mostrar-se enfadada.

-E assim, ele soube que a senhora ia receber um cabeleireiro na tarde que precedeu ao sarau; soube que a senhora voltava no fim dele; soube que a sempre-viva havia sido guardada; soube de seu belo pensamento, que exprimiu dizendo: foi um sopro de Deus; soube que se daria um passeio no mar; soube tudo.

-E pela minha parte eu sabia, que um falso cabeleireiro teria de roubar-lhe um anel de madeixas; que a senhora teria de encontrar um jovem desconhecido no sarau; que um falso bateleiro a traria a Niterói; e que um mentiroso velho pescador iria escutar o seu canto na noite do passeio do mar.

-E que mais?

-Sabendo, também por mim, do infortúnio de seu pai, ele, que, segundo há muito dizia, desejava fazer experiências sobre o seu coração, aproveitou o ensejo: mandou-lhe um célebre livro da alma, em cuja composição se entretinha desde alguns dias, já de plano, e no qual chorava, lastimava-se, e... perdoe-me a expressão, e mentia.

-Pois ele mente? perguntou com ingenuidade Honorina.

-Mente muito às moças.

-Meu Deus! isso é tão feio!...

-Por exemplo, diz ele no seu livro que a amou só por tê-la ouvido.

-E então?...

-Antes de ouvi-la já a tinha visto uma vez a cavalo na tarde de 6 de agosto, e no dia seguinte também de tarde, à borda do mar. Também chora muito a pobreza...

-Pois não é pobre?...

-Ao contrário, é rico.

-Mas para que assim zombar de mim?

-Já não disse que ele queria fazer experiências sobre o seu coração? e era eu encarregada de observá-la; felizmente as conseqüências da leitura do livro da alma do moço loiro provaram cada vez mais a reconhecida nobreza de seu caráter.

-E depois, mãe Lúcia?...

-Depois ele descobriu a cruz da família; e, ao mesmo tempo que trabalhava por fora a favor de Lauro e da senhora, eu velava em prol das mesmas pessoas cá dentro: ambos nós desconfiávamos da amizade que lhe mostrava a Sr.ª D. Lucrécia.

-É possível, mãe Lúcia?... pois não era eu só?...

-Quando esta manhã ela veio e com a senhora conversou muito tempo no seu quarto, eu a escutava cuidadosa; ouvi a traidora proposição de fuga para um convento... era uma cilada, senhora, ou pelo menos um conselho indigno!...

-Oh!... mas eu o rejeitei!

-Sim; e o moço loiro soube tudo.

-Meu Deus!... obrigada, mãe Lúcia.

-A Sr.ª D. Lucrécia recebeu às duas horas da tarde um bilhete, no qual estava escrita esta simples palavra -sim.

-Mas... esse foi o sinal dado por ela...

-Eu o sabia, senhora.

-E portanto...

-O moço loiro quis vingar-se dela no seu próprio crime, porque era um crime, era uma traição, o que a D. Lucrécia tentava!... a estas horas a senhora deveria estar perdida... longe da casa de seus pais, e desacreditada na opinião pública.

-Oh!

-Na tarde de hoje uma carta da Sr.ª D. Lucrécia lhe avisara de que tudo estava pronto, e que às dez horas da noite fosse, como ficara convencionado, embarcar-se na sege, aconselhando-lhe, enfim, que tratasse de prevenir-se de uma máscara.

-E o que sucedeu?...

-Às dez horas da noite, senhora, a sege se achava parada no lugar determinado; uma mulher entrou para ela...

-E depois?

-Um homem vestido de mulher foi sentar-se a seu lado: a sege partiu; e essa mulher, que ia junto de um homem, pensava que tinha em suas redes a filha do Sr. Hugo de Mendonça.

-Meu Deus!

Nesse momento bateram na escada, e pouco depois um pajem entrou e disse:

-A Sr.ª D. Lucrécia manda pedir notícias da Sr.ª D. Honorina, e informar-se de sua saúde.

-E então, senhora?... perguntou Lúcia.

Honorina tornou-se rubra de despeito:

-Segue-se, disse ela, que D. Lucrécia mandou espiar-me por um de seus escravos!

Depois voltou-se para o escravo, que trouxera o recado, e disse:

-Faz entrar o pajem da Sr.ª D. Lucrécia.

O pajem entrou.

-Diz à tua senhora que me viste, pronunciou com voz animada Honorina; e que eu lhe mando dizer que passo bem... perfeitamente bem, principalmente desde as dez horas da noite.

O pajem retirou-se, e Honorina, dirigindo-se de novo a Lúcia, disse:

-Agora, mãe Lúcia, continua.

-Nada tenho a acrescentar, senhora: disse tudo o que sabia, respondeu Lúcia dobrando-se sobre a grade, a que se recostara, e olhando curiosa para a rua.

-Não, mãe Lúcia, falta dizer-nos o melhor; e depois, eu notarei uma grande contradição no teu procedimento.

-Eu estou pronta, senhora, para responder.

-Pois bem: como se chama o moço loiro?...

-Oh!... a isso nada posso dizer.

-Ignoras o seu nome?...

-Ao contrário.

-Então por que o não dizes?...

-Porque ele me proibiu fazê-lo.

-Mãe Lúcia!...

-Outra coisa, senhora.

-Está bom, paciência, tornou a moça; vamos à contradição: como é, mãe Lúcia, que tão enfeitiçada estando por esse moço que tantas traições me andas fazendo por causa dele, tanto te empenhas agora por me ver casada com meu primo?...

-É uma outra coisa que eu não posso explicar.

-Então não explicas nada...

-Um outro explicará por mim...

Ouviu-se, então, passos de alguém que vinha subindo a escada; e pouco depois soaram palmas.

-Uma visita a estas horas! disse Ema.

-Quem será?... perguntou Honorina.

-Talvez D. Lucrécia, disse Raquel.

-Ora... não!... respondeu rindo-se Lúcia.

Um pajem entrou e, dirigindo-se ao gabinete, onde estavam Hugo e Jorge, parou na porta, e disse:

-Um moço, que se diz novo administrador da casa de meu senhor, pede para vir entregar as letras, que teve ordem de ir pagar ao Sr. Otávio.

-Isso é um sonho ou uma zombaria!... exclamou Hugo levantando-se.

-Seja quem for, manda-o entrar, disse Jorge.

-Eu não tenho novo administrador, tornou Hugo.

-Embora... vejamos quem é.

-Que entre pois.

Todos na sala ficaram suspensos e curiosos com os olhos fitos na porta de entrada; Hugo e Jorge em pé na porta do gabinete; Ema sentada no sofá; Honorina, Raquel e Lúcia na janela; todos estáticos nos mesmos lugares em que antes estavam.

E ele entrou... era um elegante mancebo vestido todo de preto, com uma bela gravata branca primorosamente atada... com um rico alfinete de esmeralda ao peito; era um jovem interessante, de olhos ardentes e cabelos loiros... era ele.

Tinha tremendo avançado... chegou ao meio da sala, quando da boca de Honorina e de Raquel saíram as mesmas palavras, posto que em tom baixo:

-O moço loiro!...

E Hugo de Mendonça e Ema surpreendidos bradaram:

-Lauro!...

O mancebo, sem pronunciar palavra, avançou comovido, mas resoluto, até parar defronte de um dos quatro retratos; era o de Clemência; então ele ajoelhou-se, levantou as mãos, e com voz entrecortada por soluço, exclamou:

-Minha mãe!... minha mãe!... minha mãe!... já tenho o rosto descoberto!... já provei minha inocência!...

E ficou assim de joelhos e com as mãos erguidas para o retrato de sua mãe, chorando docemente muito tempo... muito tempo...

E quando, enfim, pensou que se podia sorrir, voltou os olhos, e estendeu a mão para Honorina.

Epílogo

Um mês depois da entrada de Lauro na casa de seus parentes, uma grande festa ia ser dada: Lauro e Honorina celebravam o seu casamento.

Afora Lucrécia, que tinha julgado a propósito passar alguns meses no campo, e Otávio, que acreditara útil fazer uma viagem à Europa, todos os outros nossos conhecidos deste romance preparavam-se para o belo sarau oferecido pelos noivos.

E o sarau tinha de ser esplêndido; Lauro de Mendonça, viúvo da filha de um rico negociante da Bahia, reduzira a dinheiro tudo quanto herdara de sua mulher, e, regressando ao Rio de Janeiro, depois de desfazer a calúnia que o manchava, tomou parte na casa de seu tio, e com seus imensos cabedais, levantou-a em brilhante pé. O sarau será, pois, digno de tão abastados senhores.

Hugo, Ema e Lúcia não tinham medidas para seu prazer.

Venâncio mandara (bem entendido, por ordem de Tomásia) fazer uma casaca nova. Manduca, apesar do logro que sofrera, exprimia-se com ardor a respeito de Lauro, pois que sua mana Rosa já se achava casada com Félix.

Brás-mimoso, sempre incorrigível, dispunha-se para estalar balas.

Raquel parecia ter cobrado o seu antigo prazer: fora ela quem apressara e marcara o dia do casamento; deu sua opinião sobre o vestido da noiva, de cujo lado só à força se separava.

Honorina ainda não se tinha acostumado a chamar seu futuro marido nem primo, nem Lauro; achava, dizia ela, graça indizível em chamá-lo moço loiro.

E o moço loiro continuava, como dantes, sempre bom e travesso, alegre e amoroso, apaixonado e extravagante. Sara e seu filho falavam dele com entusiasmo; Carlos mostrava-se sempre tão grato como devotado.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Ia-se volvendo a tarde do dia marcado para o casamento; eram horas de correr aos pés do altar, e de receber a bênção nupcial. Hugo chamava por sua filha.

Honorina, mais bela que nunca, ornada com suas galas, embelecida com seus naturais encantos; e ainda mais ornada e embelecida com essa interessante mistura de amor e pejo tão apreciável nas noivas, abaixou a cabeça para que Raquel lhe pusesse sua coroa de virgem, sua capela de flores de laranjeira.

-Estás pronta, Honorina, disse Raquel.

-Adeus, Raquel! balbuciou Honorina suspirando.

-Oh!... um beijo ainda!...

-Sim... seja teu o meu derradeiro beijo de moça solteira...

E as duas amigas estreitadas em mútuo abraço estavam a beijar-se mil vezes, quando uma lágrima caiu dos cílios de Raquel nos lábios de Honorina.

-Tu choras, Raquel?...

-E tu, Honorina?...

-Sim; mas eu... e tu também, choramos de prazer; não é assim?...

-Sim!... sim!... de muito prazer... adeus!... sê feliz!...

A noiva partiu.

Raquel foi à janela para vê-la embarcar-se na carruagem. Hugo deu a mão à sua filha.

-Sê feliz, Honorina!... sê feliz!... gritou Raquel da janela.

Honorina não respondeu... tinha muito pejo.

A carruagem desapareceu...

Raquel voltou-se e viu que se achava só na sala; deu alguns passos... soluçava... caiu de joelhos, e ergueu as mãos para o céu.

Um homem entrou pé por pé nesse momento, e ficou parado na porta por detrás da moça.

Raquel exclamou:

-Misericórdia!... meu Deus, misericórdia!... eu menti! eu pequei! mas estou arrependida; eu me desdigo, meu Deus!... não! não! amor não é uma vã mentira!... amor não é uma das muitas quimeras com que a fantasia nos entretém na vida, como a boneca que se dá à criança para conservá-la quieta no berço!... não!... eu o confesso... eu o experimento... amor é uma realidade!... realidade, meu Deus, terrível para mim!...

O homem, que estava observando Raquel, lançou-se então para ela, como levado da mais veemente das dores, e, abraçando-a, exclamou:

-Filha do meu coração!... pobre mártir!... Fujamos desta casa! vem... fujamos!...

Jorge tentava levar sua filha, que, forcejando para ficar, respondeu:

-Não! não! meu pai; aqui ao menos tenho eu um remédio contra meu padecer.

-Aqui?... e onde?...

-Na santa amizade de Honorina.

-Mas a sua felicidade faz o teu martírio...

-A sua felicidade é a consolação de minha alma.

-Queres, portanto, ser vítima de seu amor?...

-Outra vez não, meu pai; mas quero ser a mãe de seu primeiro filho.

Ouvindo tão nobre pensamento, Jorge levantou as mãos sobre a cabeça de Raquel e disse:

-Abençoada sejas tu, meu anjo de candura!...