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O momento literário

João do Rio

Palestras com Olavo Bilac, Coelho Neto, Júlia Lopes de Almeida, Filinto de Almeida, Padre Severiano de Resende, Félix Pacheco, João Luso, Guimarães Passos, Lima Campos; cartas de João Ribeiro, Clóvis Beviláqua, Sílvio Romero, Raimundo Correia, Medeiros e Albuquerque, Garcia Redondo, Frota Pessoa, Mário Pederneiras, Luís Edmundo, Curvelo de Mendonça, Nestor Vítor, Silva Ramos, Artur Orlando, Sousa Bandeira, Inglês de Sousa, Afonso Celso, Elísio de Carvalho, etc. etc.

A
MEDEIROS E ALBUQUERQUE.

Permita v. que eu dedique ao jornalista raro, ao talento de escol e ao amigo bondoso este trabalho, que tanto lhe deve em conselhos e simpatia.

João do Rio.

-O público quer uma nova curiosidade. As multidões meridionais são mais ou menos nervosas. A curiosidade, o apetite de saber, de estar informado, de ser conhecedor são os primeiros sintomas da agitação e da nevrose. Há da parte do público uma curiosidade malsã, quase excessiva. Não se quer conhecer as obras, prefere-se indagar a vida dos autores. Precisamos saber? Remontamos logo às origens, desventramos os ídolos, vivemos com eles. A curiosidade é hoje uma ânsia... Ora, o jornalismo é o pai dessa nevrose, porque transformou a crítica e fez a reportagem. Uma e outra fundiram-se: há neste momento a terrível reportagem experimental. Foram-se os tempos das variações eruditas sobre livros alheios e já vão caindo no silêncio das bibliotecas as teorias estéticas que às suas leis subordinavam obras alheias, esquecendo completamente os autores. Sainte-Beuve só é conhecido das gerações novas porque escreveu alguns versos e foi amante de Mme. Vítor Hugo. Talvez apenas dele se recordem por ter essa senhora esquecido o gigante para amar o zoilo. Quem vos fala hoje, a sério, de Schlegel, de Hegel, ou mesmo do pobre Hennequin? A crítica atual é a informação e a reportagem. Há alguns anos, Anatole France dizia: «A crítica é como a filosofia, e a história uma espécie de romance para uso dos espíritos avisados e curiosos. Ora, todo romance no fundo é uma autobiografia, e o bom crítico é aquele que conta as aventuras da própria alma entre as obras-primas.» Atualmente, para o grande público, já não é isso. Se o romance, desde Balzac, outra coisa não foi senão a reportagem, genial ou não, da moral e dos costumes, a crítica é a reportagem dos autores. Só dominam hoje os que vão ao local, indagam, vêm e escrevem com o documento ao lado. A crítica passou a ser uma consulta experimental, como a fazem Brisson e Huret, e eu posso assegurar que tenho uma impressão muito mais justa e exata de Zola ou de Rostand, quando Brisson os narra numa das suas entrevistas, que lendo toda a panegírica e todos os insultos de que o Cyrano e a Terre tenham sido causa.

Foi-se o tempo, meu amigo, em que Diogo de Paiva, num estilo pelos puristas considerado perfeito, aconselhava as mulheres o não olhar para os homens moralizados. Hoje tanto olham as mulheres como os homens, e a reportagem, para que essa moralidade tenha o valor das verdades consagradas, acompanha os moralizados, vai-lhes a casa e com eles almoça. É o único meio do mundo acreditar na pureza.

Estas palavras, abundantemente difusas e paradoxais, dizia-mas, há cerca de mês, um homem muito sério e muito grave. Eu bati nervoso com as duas mãos nos braços da cadeira e indaguei:

-Mas que quer o público? Qual é essa nova curiosidade?

-A curiosidade do verão.

-Uma curiosidade que desaparecerá como os figos e as mangas?

-Sim, não ria. Todo o povo razoavelmente constituído tem duas curiosidades intermitentes e de ordem extraprática: saber em que deuses crêem os seus profetas e o que realmente pensam e são os seus pensadores e os seus artistas. Estas curiosidades só aparecem quando a Câmara fecha. A imprensa, que fala de toda a gente, só não falou ainda dos literatos. Entretanto nós somos um país de poetas! Em cada esquina encontra-se uma escola de arte, em cada café corre desabrido esse processo epicamente nacional de sova literária, no interior das livrarias fervilham as novas escolas de arte. Como os homens variam e os livros não são lidos, oh! senhor Deus! ler todos esses volumes! Seria interessante fixar o que pensam ou o que não pensam os caros ídolos da nossa arte.

-Ídolos?

-O homem que escreve é sempre um ídolo. Mesmo quando escreve mal, o que não é raro. Quando alguém se destina a ser julgado, pode ter a certeza de ser pelo menos o culto de uma alma.

O tom sentencioso do meu venerável amigo começava a irritar e a convencer.

Ele, porém, continuava animado.

-Não se pode imaginar a admiração e o culto que se devota aos homens de letras nossos.

Eu conheci um estudante que acompanhava o Coelho Neto de longe e estragou com um pince-nez grau 7 os seus olhos sãos, só porque o Neto usava grau 7. São inúmeras as pessoas que recusam a apresentação de Machado de Assis porque estão convencidas da impossibilidade de balbuciar uma palavra diante do Mestre, e muito homem fino conheço eu colecionando tudo quanto escreve Olavo Bilac...

Quer ver você a admiração? Vá a qualquer teatro onde esteja o Artur Azevedo. Basta que ele pare um momento para que em torno comece a crescer a onda dos espectadores no desejo de ouvir as palavras que, com o seu ar de Buda razoável, Artur murmura pachorrentamente. Imagine se cada uma dessas criaturas se resolver a contar, no silêncio do gabinete, as suas origens literárias, a sua formação, as preferências e principalmente o que julga do momento...

Seria o documento, a psicologia dos super-homens, o romanceiro da nossa vida de literatura, e nem por isso tão novo que assustasse. A França faz o mesmo todos os anos e a Inglaterra e a Itália têm no gênero dois livros capitais: Books which influenced me e I cento migliori libri italiani.

-Mas a admiração restringe-se a poucos. Os outros serão ouvidos, conhecidos talvez e, quem sabe? admirados. É sempre agradável ouvir a história de um homem, principalmente quando é curta. De resto, você vai fazer a história do momento literário. É preciso indagar a todos: parnasianos, líricos, decadentes, clássicos, naturalistas, sociólogos, ocultistas, anarquistas, impassíveis, humoristas, simbolistas, nefelibatas...

-Ainda há disso?

-Há, há de tudo. Cada um desses homens dirá o que foi, o que é, o que pensa do futuro. Cada um desses homens julgará os outros, e, de súbito, mergulhado no círculo das variedades, ouvirá você os bons, os coléricos, os indiferentes, os irônicos, os altivos, os vagos, os místicos, debatendo-se no turbilhão das teorias d'arte.

Eu seguia fascinado o mistério visionador do conselho. O meu amigo parou.

-Talvez exagere. Em todo o caso há um resultado prático: o Brasil saberá enfim quais as tendências atuais da sua mentalidade e o público ouvirá a curiosa história das formações literárias, tão cheias sempre de nostalgia e de encantos.

-Qual! É impossível! Não tenho forças e tenho medo. Até agora convivi apenas com os crentes, que são simples e querem convencer. Os literatos, ao contrário, são cépticos e superiores. Que me dirão eles?

Mefistofelicamente o meu amigo esticou o dedo:

-Sei lá! Talvez alguns desaforos. Quando, entretanto, encontrares a má vontade na pele de um grande homem, corre ao mais novo dos novos e indaga a sua opinião. Ficas compensado e fica o Brasil com a idéia geral da classe pensante. Estava quase aconselhando a alternativa entre a Academia e os colégios equiparados.

Nesta mesma noite, os dois, no silêncio de sua alta biblioteca, resolvemos a maneira do inquérito: a resposta por carta para os que estão fora do Rio ou são muito reservados, e a entrevista para os outros. O meu venerável amigo, pegando a sua pena venerável, lançou no papel as seguintes perguntas do questionário, enquanto eu, humilde, ia lembrando nomes e endereços:

Para sua formação literária, quais os autores que mais contribuíram?

-Das suas obras, qual a que prefere?

Especificando mais ainda: quais, dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere?

-Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.) ou há a luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?

-O desenvolvimento dos centros-literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?

-Vamos afinal ver o que somos! bradava ele, rindo da minha fisionomia agitada.

De repente, porém, parou.

-Falta alguma coisa ao questionário, falta a pergunta capital, em torno da qual toda a literatura gira, falta a pergunta isoladora das ironias diretas!

-Qual?

Não respondeu. Curvou-se, e numa letra miúda escreveu:

O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?

No dia seguinte, logo pela manhã, mandava para o correio mais de cem cartas. Tinha mergulhado de todo na literatura...

A casa do poeta é de uma elegância delicada e sóbria. Ao entrar no jardim, que é como um país de aromas, cheio de rosas e jasmins, ouvindo ao longe o vago anseio do oceano, eu levava n'alma um certo temor. Eram oito horas da manhã, apenas oito horas. A rua parecia acordar naquele instante, os transeuntes passavam com o ar de quem ainda tem sono, e o próprio sol, muito frio e formoso, parecia bocejar no lento adelgaçar das névoas.

-Só muito cedo encontrar-me-ás em casa, dissera ele, e eu mesmo sabia que o cantor do Caçador de Esmeraldas acorda às cinco da madrugada, escreve até as dez, sai e não recolhe senão depois da meia-noite, porque o entristece ficar num gabinete sem outra alma, à luz dos bicos de gás.

Quando, porém, ia tocar o timbre de um velho bronze, o meu receio desapareceu.

Estavam as portas da sala abertas e eu via Bilac curvado sobre a mesa a escrever.

-Pode-se importunar?

-Ó ave madrugadora! Tu por aqui?

Ergueu-se com a sua aristocrática distinção. Estava todo vestido de linho branco, a camisa alva com punhos e colarinhos duros.

-Aposto que vens ver os meus cartões postais?

Eu olhava a sala onde há tanto tempo mora a Musa perfeita. As paredes desaparecem cheias de telas assinadas por grandes nomes, caquemonos de Japão, colchas de seda cor d'ouro velho. As janelas deixam ver o céu, a rua e as árvores entre cortinas cor de leite e sanefas de veludo cor de mosto. Do teto pende uma antiga tapeçaria francesa, a um canto um paravento de laca parece guardar mistérios no bric-à-brac do mobiliário -cadeiras de várias épocas, poltronas, estantes de rodízios, guéridons, divãs, dois vastos divãs turcos, largos como alcovas... Ao centro a mesa em que escreve o poeta, muito limpa e quase muito pequena, de canela preta, encimada por um ventilador. Os meus olhos repousam nos bibelots, nas jarras de porcelana cheias de flores frescas; a alma sente uma alegre impressão de confortável. O poeta faz-me sentar.

-Oito horas já? Há não sei quantas escrevo eu.

-Versos?

-Oh! Não, meu amigo, nem versos, nem crônicas -livros para crianças, apenas isso que é tudo. Se fosse possível, eu me centuplicaria para difundir a instrução, para convencer os governos da necessidade de criar escolas, para demonstrar aos que sabem ler que o mal do Brasil é antes de tudo o mal de ser analfabeto. Talvez sejam idéias de quem começa a envelhecer, mas eu consagro todo o meu entusiasmo o entusiasmo -que é a vida- a este sonho irrealizável.

-Basta o entusiasmo pelo irrealizável para que um homem seja perfeito, já disse Barrès.

Bilac sorriu.

-Mas então não queres ler decididamente os pensamentos dos quarenta membros da Academia Francesa?

-Eu venho para coisas muito mais graves.

-Tenho que há na vida coisas que se dizem mas não se escrevem, coisas que só se escrevem e outras que nem se escrevem nem se dizem mas apenas se pensam. Seria feliz se me viesses perguntar aquela, que sem me entristecer aos outros, pudesse ser pensada, falada e escrita. É entretanto difícil...

Eu ouvia-o embevecido. A originalidade desse homem reside na sua sensibilidade extrema e sorridente, na sua impecabilidade, nessa doçura como que rítmica que harmoniza os seus períodos e o acompanha na vida. Bilac chegou à perfeição -é sagrado. Não há quem não o admire, não há quem não o louve. As fadas, que são quase uma verdade, fizeram da sua existência uma sinfonia deliciosa, e como o seu talento não tem desfalecimentos e a sua atividade é sempre fecunda, a admiração se perpetua. É o poeta da cidade como Catulo o era de Roma e como Apuleio o era de Cartago. Todos o conhecem e todos o respeitam. Os editores vendem anualmente quatro mil exemplares de seu livro de versos, realizando o que até então era o impossível. Onde vá, o louvor acompanha-o. A cidade ama-o. Nenhum poeta contemporâneo teve o destino luminoso de empolgar exclusivamente a admiração. Ele é o pontífice dos artistas e dos que o não são. Há homens que guardam em cofres tudo quanto tem escrito de esparso na sua múltipla colaboração jornalística e não há um dia em que pelo menos não receba dos confins da província ou dos bairros aristocráticos meia dúzia de cartas chamando-o de admirável. E nunca a sua túnica branca teve uma ruga desgraciosa, nunca nos seus períodos a elegância deixou de brilhar. Quando escreve, os jornais aumentam a tiragem com as suas crônicas, e o seu estilo impecável aureola de simpatia todos os assuntos; quando fala, as suas palavras admiráveis, talhadas como em mármore e diamante, lembram os jardins de Academos e as prosas sábias do cais de Alexandria, no tempo dos Ptolomeus. E todos sentem a fascinação do encanto -as turbas confusas e os homens inteligentes.

É o portador do espírito da Hélade. No portal da sua morada bem se podia gravar o misterioso enigma da Antologia: «Nasci no bosque sagrado e sou feito de ferro. Tornei-me o secreto depositário das musas e quando falo, intérprete e confidente único, ressoa o bronze eternamente.»

E, entretanto, há por vezes no seu sorriso uma irônica amargura, na sua voz, que se vela, a secreta tristeza de quem está resignado a não dizer grandes verdades necessárias, e na sua alma, destinada à aclamação, uma delicadeza, uma modéstia infinita. Dois escritores ele os lê diariamente, ou pela manhã antes de começar a trabalhar, ou à noite antes de dormir -Renan e Cervantes. A vida fê-lo vestir os ímpetos e a imensa paixão lírica no burel de uma suave ironia. Quem o lê pensa em Luciano de Samósata, no ridículo do herói manchego, no travo das fantasias desfeitas. Mas, de raro em raro, surgem, como a reivindicação das idéias generosas, as tristes e delicadas imprecações da sua prosa, e em conversa muita vez quando todos riem, um doloroso suspiro de cansaço e tédio passa no seu lábio, de todos despercebido. E é ainda essa alma esquisita que cora e se confunde, quando pela milésima vez numa tarde alguém se lembra de dizer que o acha incomparável.

Talvez, por isso, o poeta sensual dos amores imensos, o vate embevecido nas vozes das estrelas, aquele que durante vinte anos dera intenções e idéias à natureza e comentara com um piparote céptico as ações dos homens, curvou-se um dia para a vermina com o fulgor do seu espírito luminoso e resolveu protegê-la. Bilac hoje é um apóstolo-socialista pregando a instrução.

Todos os problemas da vida ele os pode encarar como Capus os trata nas suas peças. A instrução das crianças e o bem dos miseráveis preocupam-no seriamente. Eu o ia interromper na composição de um livro para perguntar a sua opinião sobre o estado da literatura brasileira e o papel do jornalismo para com essa mesma literatura. Ele falou-me com uma certa amargura, ligando as minhas perguntas ao seu ideal.

-Que queres tu, meu amigo? Nós nunca tivemos propriamente uma literatura. Temos imitações, cópias, reflexos. Onde o escritor que não recorde outro escritor estrangeiro, onde a escola que seja nossa? Eu amo entre os poetas brasileiros Gonçalves Dias e Alberto de Oliveira, a quem copiei muito em criança, mas não poderei garantir que eles não sejam produtos de outro meio. Há de resto explicações para o fato. Somos uma raça em formação, na qual lutam pela supremacia diversos elementos étnicos. Não pode haver uma literatura original, sem que a raça esteja formada, e já é prodigiosa a nossa inteligência, que consegue ser esse reflexo superior e se faz representativa do espírito latino na América. Ah! A nossa inteligência! É possível atacar, espezinhar, pulverizar de ridículo tudo o que constitui o Brasil, a sua civilização e o esforço dos seus filhos. Esses ataques são em geral feitos por brasileiros. Duas coisas porém ficam acima dos maus conceitos: a beleza da terra e o espírito que a habita, o encanto da natureza e a clara inteligência assimiladora dos homens. Os comerciantes, os artistas em tournée, os humildes e os notáveis levam daqui a impressão imorredoura de que não há país mais aberto a todas as idéias generosas, mais espiritualmente irônico. Poderíamos acrescentar: nem mais indolente. Mas não basta haver talentos e belos livros para que haja uma literatura. Esta opinião talvez não seja uma grande novidade, mas é verdadeira. Nós nos regulamos pela França. A França não tem agora lutas de escola, nós também não; a França tem alguns moços extravagantes, nós também; há uma tendência mais forte, a tendência humanitária, nós começamos a fazer livros socialistas. Esta última corrente arrasta, no mundo, todos quantos se apercebem da angústia dos pobres e do sofrimento dos humildes. Um artista sente mais as dores terrenas que cem homens vulgares, os poetas são como o eco sonoro do verso de Hugo, entre o céu e a terra, para transmitir aos deuses os queixumes dos mortais...

A Arte não é, como ainda querem alguns sonhadores ingênuos, uma aspiração e um trabalho à parte, sem ligação com as outras preocupações da existência. Todas as preocupações humanas se enfeixam e misturam de modo inseparável. As torres de ouro e marfim, em que os artistas se fechavam, ruíram desmoronadas. A Arte de hoje é aberta e sujeita a todas as influências do meio e do tempo: para ser a mais bela representação da vida, ela tem de ouvir e guardar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Somente um louco, -ou um egoísta monstruoso-, poderá viver e trabalhar consigo mesmo, trancado a sete chaves dentro do seu sonho, indiferente a quanto se passa, cá fora, no campo vasto em que as paixões lutam e morrem, em que anseiam as ambições e choram os desesperos, em que se decidem os destinos dos povos e das raças...

Uma revista, que se fundasse, no Brasil, para exclusivamente cuidar de cousas de Arte, seria absurda. A Arte é a cúpula que coroa o edifício da civilização: e só pode ter arte o povo que já é «povo», que já saiu triunfante de todas as provações em que se apura e define o caráter das nacionalidades.

O que urge é compreender isso, e é aproveitar a lição dos fatos. Nós não temos unicamente, diante de nós, o problema do saneamento e do povoamento. Com o saneamento apenas, livrar-nos-emos das epidemias que os mosquitos, os ratos, os micróbios transmitem de corpo a corpo, mas deixaremos, intacta e tremenda, pairando sobre nós, a ameaça das epidemias morais, que depauperam o organismo social, e o conduzem à indisciplina, à inconsciência e à escravidão. Tratando apenas do povoamento, feito ao acaso das levas de imigração, sem fundar uma escola em cada novo núcleo de povoadores, conseguiremos somente aumentar e dilatar o império da ignorância e da irresponsabilidade.

O problema que tem de ser resolvido, juntamente com esses dois, é o da instrução. E o que dói, o que desespera, é que toda a gente culta do Brasil tem a consciência disto, e que, há mais de um século, esta verdade, anunciada, proclamada, escrita, em todas as tribunas, em todos os livros, em todos os jornais, ainda não achou governo que a servisse em terreno prático.

Houve um silêncio. O poeta falava como um filósofo e no seu lábio a verdade vibrava. Timidamente comecei uma frase, que não chegava a ser pergunta:

-Os Estados procuram criar literaturas à parte. Ainda há pouco, logo após a publicação das minhas primeiras entrevistas sobre o momento literário, todos os Estados agitaram-se, S. Paulo, Rio Grande, Pernambuco...

-É dividir o que não se pode dividir. Não há talentos do Norte nem do Sul. Há talentos brasileiros. Não posso compreender, para não citar senão um exemplo, em que os versos de Francisca Júlia possam ser paulistas. Quanto à separação da nossa futura literatura, ela se fará lentamente, como se vão formando a nossa raça e o nosso gosto, conforme as correntes mais ou menos fortes dos povos colonizadores. Talvez em 2500 existam literaturas diversas no vasto território que hoje forma o Brasil.

-E o jornalismo?

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, tão poeta que o seu nome é um alexandrino, limpou os vidros do binóculo e disse praticamente:

-O jornalismo é para todo o escritor brasileiro um grande bem. É mesmo o único meio do escritor se fazer ler. O meio de ação nos falharia absolutamente se não fosse o jornal -porque o livro ainda não é coisa que se compre no Brasil como uma necessidade. O jornal é um problema complexo. Nós adquirimos a possibilidade de poder falar a um certo número de pessoas que nos desconheceriam se não fosse a folha diária; os proprietários de jornal vêem limitada, pela falta de instrução, a tiragem das suas empresas. Todos os jornais do Rio não vendem, reunidos, cento e cinqüenta mil exemplares, tiragem insignificante para qualquer diário de segunda ordem na Europa. São oito os nossos! Isso demonstra que o público não lê -visto o prestígio representativo gozado pelo jornalista. E por que não lê? Porque não sabe! Tenho estatísticas aterrorizadoras, fenomenais. Era natural que decrescesse a lista dos analfabetos à medida que a população aumentasse em número e civilização. Pois dá-se o contrário. Há hoje mais um milhão de analfabetos que em 1890! E digam depois que não é preciso criar escolas e difundir a instrução. Um povo não é povo enquanto não sabe ler. Admiras-te dessa minha transformação? O poeta, que ama as cigarras e os flamboiants, o sonhador, que em tudo vê a poesia, batendo-se por um grave problema social!... Ah! meu amigo! Para mim esta é a última etapa do aperfeiçoamento, e o jornalismo é um bem.

Parou, foi até a janela, olhou o céu, que escurecera prenunciando chuva. Toda a sua figura transpirava simpatia harmoniosa. E, de entre as cortinas cor de leite, uma outra voz grave vibrou, cheia de melancolia:

«Oh! sim, é um bem. Mas se um moço escritor viesse, nesse dia triste, pedir um conselho à minha tristeza e ao meu desconsolado outono, eu lhe diria apenas: Ama a tua arte sobre todas as coisas e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prostituir o teu talento!»

João Ribeiro

A primeira vez que falei a João Ribeiro da possibilidade de um inquérito a respeito do momento literário foi à porta do Garnier, às três da tarde, hora em que aparecem os literatos e os diplomatas, para a conversação de praxe.

João Ribeiro estava num dos seus dias de irritação.

Arriscaria dizer que me recebeu com três pedras na mão, se não tivesse a certeza de que era muito maior o número delas.

Mas eu tenho para a vida uma certa quantidade de máximas capazes de explicar e minorar os sofrimentos possíveis. Abri o saco e li uma das sentenças de Nietzsche: «Fazer planos e tomar resoluções, aí está o que nos dá uma porção de sentimentos agradáveis. Aquele que tiver a força de não ser toda a vida senão um forjador de planos será um homem feliz. Ser-lhe-á, porém, necessário de tempo em tempo executar um plano e então começarão as cóleras e as desilusões.»

Guardei-me de insistir. No dia seguinte o superior espírito estava mais calmo. Chamou-me para um canto, teve a bondade de achar interessante o inquérito e disse:

-Vou responder. Aproveito a ocasião para acentuar umas idéias... Não prometo responder já, mas prometo ser sincero. Se for a Princesa Mangalona o livro que maior influência me tenha causado, pode ter a certeza que a ponho lá.

Quarta-feira de cinzas recebia eu esta deliciosa carta, em que a arte de escrever rivaliza com a fulgurância dos conceitos:

1. Para sua formação literária quais os autores que mais contribuíram?

Em termos restritos, não posso e nem sei responder. Fui um grande ledor de folhetos, revistas e livros de todo o gênero: as minhas admirações eram sempre efêmeras e precárias e logo substituidas ou argumentadas de outras novas; pratiquei, pois, um politeísmo tão numeroso como o antigo; não sei dizer quem era o Zeuspiter desse Olimpo, mas posso dizer quem foi o Uranus primitivo.

Meu avô (à cuja sombra cedo recolhemos minha mãe e eu, órfãos de meu pai) tinha uma biblioteca de cousas portuguesas; meu avô era da geração dos cartistas e franco-maçons, embirrava com padres e frades e como neocatólico adorava o Herculano e o Saldanha Marinho. Nem então, nem depois, participei daquelas iras ou entusiasmos; da sua biblioteca o que me atraía era uma magnífica coleção do Panorama e a do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro; se a estes ajuntar o Manual Enciclopédico de Emilio Aquiles Monteverde, que eu lia na escola, terá v. o gênesis de todas as minhas letras, ciências e artes daquela quadra. Confesso que não aumentei de um ceitil todo aquele patrimônio, e em muitas coisas o dissipei e diminuí. Todas as minhas horas de lazer consumiam-se em desenhar, copiando as gravuras do Panorama, em reler a mitologia e as verdades eternas do Manual Enciclopédico; por outro lado, o Almanaque de Lembranças ensinava-me a fazer charadas, e as charadas ensinaram-me a fazer versos. Não se espante de que aos doze ou treze anos eu começasse a fazer versos: eu ignorava ainda a arte, sem dúvida mais difícil, de os não fazer, arte que enfim, tarde e mal, aprendi. As minhas origens espirituais, pois, são, como a social, plebéias, rústicas e pobres, mas nunca pediram de saco e brado pelas ruas. As minhas expansões nunca fizeram explosão que pusesse em perigo o teto paterno: acomodaram-se no estreito ambiente doméstico e suportaram a pressão do silêncio externo. Resta, porém, indicar um fator singular e dos que se têm a conta de indiferentes, mas que, ao parecer, foi decisivo; sempre fui homem material, e, rudeza ou grosseria, sempre tudo submeti e subordinei à forma, não havendo para mim substância se não a externa, palpável e evidente. Sou capaz de afirmar e afirmo que me fiz poeta só e unicamente porque eu tinha então papel, esplêndido, como se diz hoje, para versos: eram umas aparas do Arquivo Econômico da Bahia, revista que meu avô assinava e cujas margens larguíssimas por supérfluas eram cortadas; do bico da tesoura eu recolhia aquelas fitas brancas e lisas, que na minha mão se enrolavam curvas como o aço dos relógios, esperando a desenvolução futura, nos momentos de furor e de estro.

Naquelas duas polegadas de papel a minha letra miúda poria destramente um alexandrino, mas nem de tanto havia mister, porque eu comecei pela oitava rima e pelo poema épico: a epopéia devia ser uma Brasileida ou Brasilíada (ou coisa que o valia, e agora me esquece) e era assunto a crônica de descobrimento do Brasil, que eu li no Panorama1 e onde se contavam os amores de Ipeca, índia tupinacuim, e de um português da frota de Cabral. Acabo aqui a história porque já vou excedendo, mal a meu grado, os limites da resposta; mas aqui tem v. mais ou menos os autores que mais contribuíram, na formação do meu primeiro e único poema: técnica -o papel aparado e o vezo da charada; ciência e mitologia -o Manual Enciclopédico; sujeito e desenvolvimento -o Panorama. O resto, atribua-o v. generosamente ao meu talento.

2. Das suas obras qual a que prefere?

Obras literárias, além de um livro de versos, não as tenho; tudo quanto escrevi foram fragmentos, artigos de jornal, cousas esparsas e sem valia, das quais um colchete coordenador poderá talvez fazer um mísero opúsculo. Mas posso dizer à maneira de D. Francisco Manuel -«nunca me arrependi do que deixei de escrever».

Escrevi, sim, e v. bem o sabe, alguns livros úteis, ou com a intenção de úteis, e em realidade o foram ao menos para mim mesmo.

A Brasileida perdeu-se ou eu a rasguei, sem nenhum gesto de ira; os outros terão agonia mais lenta e hão de perder-se com mais demorados vagares.

Francamente, não prefiro nenhum, a não ser talvez um ou outro verso, dos que compus, menos pelo que vale e mais pelo que lembra na memória de outros tempos.

3. Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação etc.) ou há a luta entre as antigas e as modernas? Neste último caso quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?

-Acho difícil responder a tanta cousa por junto e mais do que difícil acho que seria odiosa a minha inútil franqueza. Vou ver se me conformo à verdade sem faltar às conveniências. A verdade, segundo a eu entendo, já se vê. Não gosto, absolutamente não gosto dos nossos últimos poetas; falo dos últimos, recentíssimos. Basta dizer que não os leio e que ainda que o quisesse não os podia ler. E digo com a máxima sinceridade que, em abrindo uma folha, prefiro ler um anúncio de leilão a um soneto. É a nossa poesia de hoje uma cousa pior que péssima, porque é sempre a mesma repetição eterna, descorada, longuíssima, das mesmas coisas, é a mesma ênfase chilra, destemperada, cansada como aquele chá do Tolentino...

Em bule chamado inglês

que já para pouco serve,

duas folhas lança ou três

de cansado chá que ferve

com esta, a sétima vez.



Poder-se-ia ainda continuar:

De fatias nem o cheiro

etc.



Ao menos versos destes podem ser repetidos e hão de o ser eternamente.

Está-se a ver por este excesso do meu juízo que o defeito é todo meu, falha e insuficiência da minha parte. Não é possível que eu tenha razão.

A verdade é que não sinto e não entendo, não alcanço o que querem os nossos poetas. Quer v. mais? Já transpus os limites da discrição, e numa sociedade primitiva e guerreira como esta, democracia pela força das cousas mas sem nenhuma educação liberal, e em que a regra é eliminar os discordantes, com o que disse já estou muito mal parado.

Peço-lhe, se se interessa pela minha paz de espírito, que acrescente aí numa entrelinha: há algumas exceções honrosas...

Não sucede, porém, a mesma cousa com os nossos prosadores; e ainda que eu conheça (só pela rama) umas três das grandes literaturas européias, acho que podemos falar de escritores nossos sem incontinência. Se tudo é relativo, há descomedimento a nosso favor, e a proporção que nos convém dá muito para envaidecer-nos. Temos romancistas, críticos, jornalistas, oradores mais e melhor do que jamais tivemos.

Os nossos prosadores de hoje, no Rio, escrevem com gosto, clareza e não raro com perfeição de forma e outras excelências ainda há pouco tempo não sonhadas sequer; o mal estilo provinciano, condoreiro, asiático, sesquipedal, pedantesco, bombástico ou ridículo, aqui não acha quartel e cá se não vê mais no livro nem no jornal.

(Não falo de exceções para pior; nem a mesma Atenas de Péricles delas estaria isenta.)

Dessa tendência concluo que o predomínio será no Brasil o do culto da linguagem clássica; temos a doença que é o dialeto e é natural que se não poupem sacrifícios pela saúde.

Faça-me justiça. Não quero dizer que nos desvelem as noites o Fr. Luís de Sousa ou o Sá de Miranda: para estes haverá obreiros modestos que lhes consagrem as insônias, trabalhadores incessantes e fragueiros. A tendência para a perfeição é um instinto ingênito de todos os artistas; nunca houve guerra aos clássicos senão depois que houve jornalismo. Os jornalistas com a sua técnica repentina não se podem prender por esses polimentos demorados, por essas limagens preguiçosas que não podem ir por máquina. Falam pro domo sua, quando invectivam as velharias de antanho. Mas se há mister, por que se não há de, até nisto, engenhar uma máquina?

Não é talvez difícil e creio até que já está meio inventada.

Coloquemos a questão nos seus verdadeiros termos.

O estilo não é tanto correção, coisa trivial, mas é perfeição, isto é: a idéia precisa e exata na sua forma exata e precisa; é o bronze vazado no seu molde, a prata na sua rilheira. E qual é o artista de qualquer arte e de qualquer canto do mundo, que não busca, não pesquisa e não se deixa matar por um fim supremo?

Não se trata pois de gramática nem de gramaticões impertinentes e molestos como os da minha espécie que registram e passam, e nem se oferecem como prospectos modelares à geração nova.

A escola clássica que é da perfeição de forma é eterna ou antes é a mesma eternidade da compleição humana; as outras têm e sempre tiveram direito à vida, mas são antes modas efêmeras, diárias, anuais, bisonhas, e quando muito ao cabo de três ou quatro anos são excelências que degeneraram em sensaborias, elegâncias que cada transatlântico desfaz ou recompõe... São enfim roupagens enquanto o clássico é o nu daquela nudez que o Eça queria mal velada por um manto diáfano, e outros o querem... por um capote...

Falta-me responder ainda a duas questões. Sobeja o assunto, mas falta o papel (como vai longe aquele bom tempo das aparas!) É também preceito ibseniano que tudo se não há de dizer de pancada e a boa regra é deixar um pouco à colaboração dos que lêem...

Das duas questões que resta responder, a uma delas -se haverá de futuro literaturas à parte nos Estados?- pode-se dizer sim ou não, conforme a distância em que se ponha aquele futuro: se é no infinito onde todas as antinomias se conciliam e as paralelas se encontram, naturalmente, matematicamente, sim é a verdadeira resposta, e não tenho dúvidas a este respeito.

Há de v., porém, permitir-me que do infinito eu não passe adiante.

E depois de chegar ao infinito não tive coragem de lhe perguntar mais nada...

Um lar de artistas

«Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas...

De repente, um susto. Alguém batia à porta. E eu, com a voz embargada, dando volta à chave da secretária: já vai! já vai!

A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos em casa, viria o mundo abaixo. Um dia, porém, eu estava muito entretida na composição de uma história, uma história em verso, com descrições e diálogos, quando senti por trás de mim uma voz alegre: -Peguei-te, menina! Estremeci, pus as duas mãos em cima do papel, num arranco de defesa, mas não me foi possível. Minha irmã, adejando triunfalmente a folha e rindo a perder, bradava: -Então a menina faz versos? Vou mostrá-los ao papá!

-Não mostres! -É que mostro!

-Vai fazê-lo zangar comigo. Não sejas má!

Ela ria, parecendo refletir. Depois deitou a correr pelo corredor. Segui-a comovidíssima. Na sala, o papá lia gravemente o Jornal do Comércio.

-Papá, a Júlia faz versos! -Não senhor, não lhe acredites nas falsidades! -Pois se eu os tenho aqui. Olha, toma, lê tu mesmo...

Meu pai, muito sério, descansou o Jornal. Ah! Deus do céu, que emoção a minha! Tinha uma grande vontade de chorar, de pedir perdão, de dizer que nunca mais faria essas coisas feias, e ao mesmo tempo um vago desejo que o pai sorrisse e achasse bom. Ele, entretanto, severamente lia. Na sua face calma não havia traço de cólera ou de aprovação. Leu, tornou a ler.

A folha branca crescia nas suas mãos, tomava proporções gigantescas, as proporções de um grande muro onde na minha vida acabara a alegria... Então, que achas? O pai entregou os versos, pegou de novo o Jornal, sem uma palavra, e a casa voltou à quietude normal. Fiquei esmagada. Que fazer para apagar aquele grande crime? No dia seguinte fomos ver a Gemma Cuniberti, lembra-se? Uma criança genial. Quando saímos do espetáculo, meu pai deu-me o seu braço. -Que achas da Gemma? -Um grande talento. -Imagina! O Castro pediu-me um artigo a respeito. Ando tão ocupado agora! Mas o homem insistiu, filha, insistiu tanto que não houve remédio. Disse-lhe: não faço eu, mas faz a Júlia...

Minha Nossa Senhora! Pus-me a tremer, a tremer muito. O pai, esse, estava impassível como se estivesse a dizer coisas naturais:

-Estamos combinados, pois não? O prometido é devido. Fazes amanhã o artigo.

Sei lá o que respondi! O certo é que não dormi toda a noite, nervosa, imaginando frases, o começo do artigo. Pela madrugada julgava impossível escrevê-lo, tudo parecia banal ou extravagante. Mas depois do almoço, antes de sair, o pai lembrou-me como se lembra a um escritor: -Vê lá, Júlia, o artigo é para hoje. Tenho que o levar à noite. Havia um jornal que exigia o meu trabalho. Era como se o mundo se transformasse. Sentei-me. E escrevi assim o meu primeiro artigo... Só mais tarde, muito mais tarde, é que vim a saber a doce invenção de meu pai.

O Castro nunca exigira um artigo a respeito da Gemma...»

Estávamos na casa de Filinto de Almeida, um cottage admirável, construído entre as árvores seculares da estrada de Santa Teresa. Eu descera do tramway sob uma forte carga de chuva e, enlameado, molhado, em baixo da branca escada de mármore, não sabia como explicar tão lamentável estado. Filinto, porém, com um ar levemente imperioso, o seu ar quando começa a simpatizar com alguém, tomara-me o chapéu e D. Júlia sorria, cheia de bondade.

-Entre. Ninguém vê, estamos combinados que ninguém reparará na má ação do temporal.

Fora assim que eu ousara entrar e já trinta minutos havia que ouvíamos deliciados a dona daquele lar.

A casa de Filinto fica a dez minutos da cidade e é como se estivesse perdida num afastado bairro. Não há vizinhos; não há trânsito pela estrada, a não ser o bonde de quarto em quarto d'hora. Uma grande paz parece descer das árvores. Todas as janelas estão abertas.

A sala, de um largo conforto inglês, tem uma biblioteca com os livros preferidos dos poetas, um vasto bureau cheio de papéis e revistas, e uma porção de quadros com assinaturas notáveis de Sousa Pinto, Amoedo, Parreiras... Um perpétuo cenário de apoteose divisa-se das janelas, -o cenário do Rio com o seu estrépito de sons e de cores, o tumulto das ruas estreitas, os montes escalavrados de casas, o perfume dos jardins e a enorme extensão da baía ao fundo.

Toda a cidade, estendendo por monte e vale o formigamento dos seus bairros, trechos da Gamboa, trechos centrais, torres de igrejas, a cúpola da Candelária, tetos envidraçados de frontões, altas chaminés de fábricas, palácios, casas miseráveis, pedaços de mar obstruídos de mastros, parece cantar o ofertório da vida. Ah! A humanidade da grande colmeia!

Quantos soluços, quantas alegrias, quantas raças! A chuva passara, o mormaço ia a pouco e pouco esfacelando as nuvens baixas e o panorama aumentava, crescia, assombrava com leves tons de azul e ouro, um panorama épico de porto de mar latino...

-Este cenário lembra-me sempre aquele livro seu -A viúva Simões. Não imagina a impressão desse trabalho na minha formação de pobre escrevinhador.

Que intensidade de vida! Sempre perguntava a mim mesmo: onde foi buscar D. Júlia um tipo de tão penetrante realidade?

-Onde? Mas é uma história inventada.

-Não é um livro à clef?

-Não, não é, não há trabalho meu, com exceção dos «Porcos» e de A Família Medeiros, que não seja pura imaginação. O caso dos «Porcos» eu ouvi contar numa fazenda, quando ainda era solteira. Os homens do mato são em geral maus. A narração era feita com indiferença, como se fosse um fato comum. Horrorizou-me. A Família Medeiros tem dois ou três tipos que guardam impressões reais. Os outros não, são fantasia.

Não imagina como me aborrece a idéia de fazer romances com histórias verdadeiras. E entretanto sou vítima dessa suposição. A Viúva Simões é a história de uma senhora conhecida; A intrusa, ainda outro dia Afonso Celso perguntou a meu marido se era um romance à clef... Andava muito contente com aquele conto: «A valsa da Fome». Mandei o volume a uma das minhas primas em Lisboa e recebi logo uma carta sua. Oh! «A valsa da Fome», a verdade dessas páginas! Há dezesseis dias em Cascais deu-se um fato idêntico. Apenas o fim é que é diverso. Os rapazes levaram o pianista a jantar e ele desmaiou...

Nós sorríamos.

-Que se há de fazer? Quantos há por aí copiando a verdade, que são sempre falsos? D. Júlia tem a luminosa faculdade de criar, e trata os personagens da fantasia como educa os seus filhos. É a vida.

-Oh! Os meus personagens. Às vezes são até inconvenientes. A gente inventa-os e no meio do livro eles começam a discutir, a ter desejos, a forçar as portas da atenção. A Intrusa, por exemplo, quando a fantasiei, devia aparecer muito pouco...

Uma criança loira, de uma beleza de narciso, aparece à porta. É a Margarida. As suas longas mãos no ar, chamando a mãe, são tão finas e rosadas que recordam as pétalas dos crisântemos. D. Júlia levanta-se.

-Vou ver o Albano, coitadinho... Já não o vejo há muito tempo.

Ficamos sós um instante.

-Há muita gente que considera D. Júlia o primeiro romancista brasileiro.

Filinto tem um movimento de alegria.

-Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas há muito que o penso. Não era eu quem devia estar na Academia, era ela.

Esse sentimento de mútua admiração é um dos encantos daquele lar. Filinto esquece os seus versos e pensa nos romances da esposa. Leva-a a certos trechos da cidade para observar o meio onde se desenvolverão as cenas futuras, é o seu primeiro leitor, ajuda-a com um respeito forte e másculo. D. Júlia ama os versos do esposo, quer que ele continue a escrever, coordena o volume prestes a entrar no prelo. E ambos, nessa serena amizade, feita de amor e de respeito, envolvem os filhos numa suave atmosfera de bondade.

-Tens no teu questionário uma pergunta a respeito da influência do jornalismo. Nós todos somos um resultado do jornalismo. Antes da geração dominante não havia bem uma literatura. O jornalismo criou a profissão, fez trabalhar, aclarou o espírito da língua, deu ao Brasil os seus melhores prosadores. Não é em geral um fator bom para a arte literária, e talvez no Brasil não o seja muito em breve, mas já foi e ainda o é. Falas também das literaturas à parte. Tivemos a Mina da Bahia, a Padaria do Ceará, temos os ocultistas decadentes do Paraná, mas tudo isso mais ou menos desaparece ou tende a desaparecer. A literatura centralizou-se no Rio. Os rapazes de talento abandonam a província pela capital, e quando lá estão são sempre reflexos daqui. Não existirá nunca a arte regional.

Mas aparece a Lúcia, a outra filha, uma beleza brasileira, morena, redondinha, acariciadora.

Filinto abandona a arte regional, a Mina, a Padaria, os decadentes, para cobri-la de beijos,

-Sabes como eu a chamo? Sinhá Midobi. Ai! A minha filha! E faz versos. Esta casa está perdida, fazem todos versos, são todos poetas, o menos poeta sou eu...

D. Júlia volta.

-Então o Albano?

-Bem, está direito. Sabe o Sr. que é muito difícil responder ao seu inquérito? Tem tanta cousa! Começa logo com uma pergunta complexa a respeito de formação literária. Tive duas criaturas que a fizeram, -meu pai e meu marido. Em solteira, meu pai dava-me livros portugueses, -o Camilo, o Júlio Diniz, Garrett, Herculano. Já publicara livros quando casei, e só depois de casada é que li, por conselho de meu marido, os modernos daquele tempo -Zola, Flaubert, Maupassant.

-Maupassant causou-lhe uma grande impressão. A Viúva Simões...

-Eu li Maupassant depois de publicada A Viúva Simões. Sou de muito pouca leitura. Era capaz de passar a vida lendo, mas uma dona de casa não pode perder tanto tempo. E até fico nervosa quando vejo livros por abrir. Seria tão agradável gastar a existência lendo!... Quem entretanto cuidaria dos filhos, dos arranjos da casa?

-Como faz os seus romances, D. Júlia?

-Aos poucos, devagar, com o tempo. Já não escrevo para os jornais porque é impossível fazer crônicas, trabalhos de começar e acabar. Idealizo o romance, faço o canevas dos primeiros capítulos, tiro uma lista dos personagens principais, e depois, hoje algumas linhas, amanhã outras, sempre consigo acabá-lo. Há uma certa hora do dia em que as coisas ficam mais tranqüilas. É a essa hora que escrevo, em geral depois do almoço. Digo as meninas: -Fiquem a brincar com os bonecos que eu vou brincar um pouco com os meus. Fecho-me aqui, nesta sala, e escrevo. Mas não há meio de esquecer a casa. Ora entra uma criada a fazer perguntas, ora é uma das crianças que chora. Às vezes não posso absolutamente sentar-me cinco minutos, e é nestes dias que sinto uma imperiosa, uma irresistível vontade de escrever...

-E apesar disso, diz Filinto, tem doze volumes publicados e começa a escrever um grande romance.

-Oh! Um livro muito difícil, apenas esboçado, sobre a vida das praias, dos pescadores.

D. Júlia está sentada na sombra, fala dos livros e dos filhos ao mesmo tempo. Estou a crer que os confunde e pensa nos personagens da fantasia criadora como beija os meigos frutos da sua vida. É calma, repousada, doce a sua voz, como são maternais os gestos seus. Qualquer coisa de suave e de simples aureola-lhe o semblante, impõe a veneração. Uma grande sinceridade, tal que decerto, ao ouvi-la, as almas mais retraídas lhe devem confessar a vida e pedir-lhe conselhos, como se pede aos bons e aos misericordiosos.

-E que me diz das escolas em luta, do socialismo, do nefelibatismo, do feminismo?

-Há tudo isso?

-Pelo menos parece. A Regeneração, o Ideólogo, Tolstoi, e logo depois Stirner, Nitzsche, o naturismo; o simbolismo...

-Deus do céu! É verdade que eu leio pouco. Algum desses senhores entretanto (creio que os nefelibatas) são por demais complicados. A arte, para mim, é a simplicidade. Ser simples e sóbrio é um ideal. Eles, ao contrário, confundem, torturam, torcem.

-A verdade é que nós atravessamos um período estacionário, intervém Filinto. Esse mesmo nefelibatismo passou. A geração vitoriosa é ainda a de Bilac, Alberto, Raimundo na poesia e Machado de Assis, Neto, Aluísio na prosa.

-E o feminismo, que pensa do feminismo?

Parece-me ver nos olhos de D. Júlia um brilho de vaga ironia.

-Sim, com efeito, há algumas senhoras que pensam nisso. No Brasil o movimento não é contudo grande. Acabo de receber um convite de Júlia Cortines para colaborar numa revista dedicada às mulheres. Descanse! Há uma seção de modas, é uma revista no gênero da Femina...

Já passa de duas horas o tempo em que eu, numa causeuse de couro, interrogo inquisitoriamente os dois artistas. Levanto-me.

-Vai-se embora? Tão cedo?

-Duas horas! Há lá embaixo, naquela fornalha, uma outra fornalha que me espera -o jornal. Despeço-me.

-Ainda uma pergunta: dos seus livros qual prefere?

-Vai ficar admirado.

A Falência?

-Não.

-O primeiro?

-Não, é A Casa Verde, porque foi escrito de colaboração com meu marido. A Casa Verde lembra-me uma porção de momentos felizes...

-Imagina eu fazendo romances! Era porque ela queria. Também só me sentava à mesa depois que me dizia: tem que fazer um capítulo hoje com estes personagens, dando-lhe este desenvolvimento.

D. Júlia sorri. Como o tramway passe, precipito-me, e, ao tirar o chapéu, já dentro do carro, vejo no terraço os três airosos perfis dos três petizes de Filinto, que adejam no ar as mãozinhas de rosas.

Então, enquanto o tramway descia a montanha, com a visão daquelas duas horas embaladoras, eu pensei que o adeus perfumado das crianças fora como um resumo e um símbolo do espírito daquele lar. Filinto dividiu o tempo entre o esforço material e o verso, para lhes dar o conforto. D. Júlia, a criadora genial, tem a doce arte de ser mãe. E os seus livros não são outra coisa, na sua intensa verdade, que a evocação do Amor, do Amor multiforme, fatal como o viver, o Amor em que se desnastra como um harpejo de alegria, como a esperança mesma da vida presente, crendo no futuro, o riso cantante das crianças...

Sílvio Romero

Dez dias depois de mandar o meu questionário para a Campanha, onde o mestre refundia toda a sua obra, recebi uma carta telegráfica que se pode resumir em duas frases: «É difícil. Vou ver se faço.»

Passaram-se mais duas semanas e outra carta surgiu: «Tanto trabalho fez-me neurastênico. Não posso responder nestes trinta dias.»

Fiquei descorçoado. Entretanto, não esperei muito. Ainda não decorrera metade do tempo marcado para o repouso do incansável espírito, recebi com a resposta este simples bilhete: «Não pude esperar. Lá vai a coisa. Se não servir, rasgue.»

A coisa era esta extraordinária carta, cheia de mocidade e de fulgor:

«Meu amigo. -O seu questionário pôs-me em sérios embaraços. Logo que o recebi, supus ser coisa facílima o dar-lhe imediata resposta.

Quando me afundei em mim mesmo, para sondar como se me tinha operado o que se poderia chamar a minha origem e formação espiritual, conheci que essa espécie de exame de consciência não era nada fácil.

Achei, em minh'alma, meio velada, num semicrepúsculo subjetivo, tantas antropologias, etnografias, lingüísticas, sociologias, críticas religiosas, folclóricas, jurídicas, políticas e literárias, que tive medo de bulir com elas e me meter nesse matagal...

Conheci, sem esforço e para meu mal, que, se não sou ao pé da letra um cientista, não me cabe também a denominação de literato, no sentido restritíssimo que este qualificativo tem entre nós e parece ser a intuição por v. abraçada, quando diz no auto de perguntas: De seus trabalhos, quais as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere?

Escrevi, é certo, algumas poesias, entre os dezoito e vinte e cinco anos, que andam aí em dois volumes. Mas foi só.

Não tenho romances, contos, novelas, dramas, comédias, tragédias, folhetins, crônicas, fantasias...

Não, nada disso.

Conheci, mais e de súbito, que essas confissões de autores são coisa perigosa: se se diz pouco, parece simplicidade afetada e insincera; se se diz um tanto mais, parece fatuidade e pedanteria.

Quis fugir à resposta; mas estava preso pela promessa.

Palavra de tabaréu não torna atrás...

Aí vai, pois.

Em mim o caso literário é complicadíssimo e anda tão misturado com situações críticas, filosóficas, científicas e até religiosas, que nunca o pude delas separar, nem mesmo agora para lhe responder.

Não tive nenhumas precocidades literárias, científicas ou outras quaisquer.

Quando escrevi a primeira poesia e o primeiro artigo de crítica, tinha dezoito anos e meio bem puxados e já andava matriculado na faculdade do Recife.

Para lhe dizer tudo, devo partir do princípio.

Faço-o com acanhamento, mas é indispensável.

Nestes assuntos ou tudo ou nada. Não se assuste, serei breve.

Como caráter e temperamento, sou hoje o que era aos cinco anos de idade.

Não se admire; é que sou, se assim posso dizer, uma vítima das duas primeiras, mais famosas e mais terríveis epidemias que devastaram o Brasil no século XIX.

Em 1851, ano em que nasci, foi nossa terra invadida por uma violenta epidemia de febres más, que se estendeu por várias províncias.

A vila sertaneja em que nasci, em Sergipe, o Lagarto, não ficou imune.

Minha mãe teve a febre (supõe-se que já era a hoje nossa patrícia mui conhecida -a amarela); esteve às portas da morte, não me podia amamentar. Eu tinha seis semanas. Fui transportado para o engenho de meus avós maternos a quatro léguas de distância, na região chamada o Piauí, de um rio deste nome que ali corre águas turvas e cortadas no tempo das secas.

O sítio era delicioso, com trechos de mata virgem, belos outeiros fronteiriços, riachos correntes e o engenho. Este era dos de animais. São os mais poéticos nas cenas de sua movimentação especifica. Basta a almanjarra (manjarra -chama-se lá), para pôr em tudo uma nota festiva.

Fiquei no engenho Moreira, tal é sua denominação, até aos cinco anos. Dos três em diante a moagem era para mim um encanto.

Quando os bois ou cavalos eram bem mansos, eu trepava também na almanjarra e ajudava a cantar a algum dos tangedores:

Pomba voou, meu camarada,

avoou, que hei de fazer?

Quem de noite leva a boca,

de dia que há de comer?



Ainda agora sinto no ouvido a melodia simples e monótona desses e de outros versinhos do gênero; e invade a saudade, doce companheira a quem devo nos dias tristes de hoje as raras horas de prazer de minha vida.

Tudo que sinto do povo brasileiro, todo meu brasileirismo, todo meu nativismo vem principalmente daí.

Nunca mais o pude arrancar d'alma, por mais que depois viesse a conhecer os defeitos de nossa gente, que são também os meus defeitos.

Outra coisa me ficou incrustada no espírito, e com tanta tenacidade que nunca mais houve crítica ou ciência que dali ma extirpasse: a religião.

Devo isso à mucama de estimação, a quem foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos de minha meninice.

Ainda hoje existe, nonagenária, no Lagarto, ao lado de minha mãe, essa adorada Antônia, a quem me costumei a chamar também de mãe. É um dos meus ídolos, dos mais recatados e mais queridos.

Nunca vi criatura tão meiga e nunca vi rezar tanto.

Dormia comigo no mesmo quarto, e, quando, por alta noite, eu acordava, lá estava ela de joelhos... rezando...

Bem cedo aprendi as orações e habituei-me tão intensamente a considerar a religião como coisa séria, que ainda agora a tenho na conta duma criação fundamental e irredutível da humanidade.

Desgraçadamente, ai de mim! não rezo mais: mas sinto que a religiosidade jaz dentro de meu sentir inteiriça e irredutível.

Muito diáfana, idealizada, mas é sempre ela. Uma epidemia -a febre amarela- pôs-me fora do Lagarto, no engenho; outra, a do cólera morbus, em 1856, fez-me voltar definitivamente para a vila, para a casa de meus pais.

Havia mais recursos na povoação do que no engenho, quase despovoado na escravatura pela peste.

As cenas do cólera de 1856 foram dolorosíssimas por quase todo Brasil.

Lembra-me bem a chegada à casa paterna em meio da epidemia.

Numa vasta sala (era a sala de jantar), junto a uma das paredes laterais, em colchão posto no chão, agonizava minha irmã Lídia, a primeira deste nome.

Minha mãe, chorosa, sentada perto da doentinha, punha-lhe botijas de água quente, fervendo, aos pés. Meu pai, ainda muito vigoroso, e um senhor que eu não conhecia (era o médico) preparavam numa mesa, ao meio da sala, um emplastro de não sei que substâncias.

A menina, muito formosa, nos seus quatro anos, muito esperta, muito inteligente, muito pegada com minha mãe, só tinha, então, vida nos seus enormes olhos negros.

Que estranho olhar!

Alumiou-me tristemente a entrada na casa de meus pais -e tem-me brilhado através da existência por cinqüenta anos seguidos sem se apagar.

A volta a casa era assim feita em meio da tristeza.

A peste continuou a lavrar com intensidade. Lídia morreu; minha mãe, atacada depois, esteve a se partir também.

Muitos escravos de estima faleceram. Eu nada tive, mas acendeu-se-me n'alma uma tão intensa saudade do engenho, que me torturou por anos inteiros.

Quando, aos domingos, meus avós vinham à missa na vila, a minha alegria era sem par. Os encontros com Antônia eram festejados com lágrimas de contentamento.

Mas as separações, quando tinha de regressar ao engenho! Eram o inferno.

Eu, criado fora até aos cinco anos, era, no princípio, como estranho aos meus irmãos mais velhos, que me faziam troças e me maltratavam muitas vezes, com essa malignidade própria dos meninos. Daí, um estado d'alma que se me produziu e ainda hoje perdura, digo-o à puridade, quer me acredite, quer não.

Habituei-me cedo a ser paciente, sofredor, ao mesmo tempo desconfiado, suspicaz, talvez, e, ainda por cima, resistente, belicoso.

Algumas dessas qualidades são boas, parece, outras inconvenientes.

Existem em mim, encerram os germes de minhas tendências de analista e crítico. Aliadas às que tinham origem no engenho Moreira, explicam, em grande parte, toda a minha vida e toda a minha obra.

E eis aí porque disse, em princípio, que era vítima das duas maiores epidemias que assolaram o Brasil no século XIX.

Não seria, talvez, sem razão afirmar, por outro lado, a existência de certas predisposições hereditárias: a propensão analista e crítica, como devida, em grande porção, a meu pai, André Ramos Romero, português do norte, muito inteligente e muito satírico; a bonomia para não dizer de mim -a bondade, à minha mãe, Maria Vasconcelos da Silveira Ramos Romero, cujo coração é uma herança de meu avô Luís Antônio de Vasconcelos, outro português do norte, de quem até hoje só descobri um igual na bondade nativa, inesgotável, espontânea, -no velho Barão de Tautfoeus.

Peço-lhe que me perdoe o ter aqui incluído os nomes de meus pais e avós.

Há disso uma razão: é que meus desafetos, por me eu assinar, a princípio, Sílvio da Silveira Ramos, para abreviar o nome, e, depois, só Sílvio Romero, por o encurtar ainda mais, andaram aí a tecer uns libelos sem graça e sem verdade.

No Rio há muita gente que conheceu e conhece toda a minha família. Os senadores Olímpio de Campos e Martinho Garcez são do número.

A nova residência na vila, onde meu pai era negociante abastado, dos cinco aos doze anos, fortificou em mim as disposições inatas e as adquiridas.

O Lagarto, naquele período, era uma terra onde os festejos populares, reisados, cheganças, bailes pastoris, taieiras, bumbas-meu-boi... imperavam ao lado das magníficas festividades da igreja.

Saturei-me desse brasileirismo, desse folclorismo nortista. Não devo ocultar certa ação de dois livros que foram, nos últimos tempos de escola primária, a base do ensino do meu derradeiro mestre de primeiras letras.

Um -o Epítome da História do Brasil, de J.P. Xavier Pinheiro, por causa da descrição de nossa terra -de Rocha Pita, que ocorre logo nas primeiras páginas: «O Brasil, vastíssima região, felicíssimo terreno, em cuja superfície tudo são frutos...»

Outro, Os Lusíadas, por muitos trechos que me encantavam.

O Brasil da descrição de Pita ficou sendo o meu Brasil de fantasia e sentimento; a poesia de Camões ainda hoje é uma das mais elevadas manifestações da arte no meu ver e sentir, e, com seu ardente amor da pátria, fortaleceu o meu nativismo.

Apesar das inúmeras palmatoadas que apanhei na leitura e análise dos dois livros, nunca perdi a simpatia por Luís de Camões e pelo, mais tarde, tradutor do Dante.

Da minha aprendizagem de preparatórios no Rio de Janeiro, de 1863 a 67, guardo saudosas reminiscências de cinco homens que influíram assaz no meu pensamento.

Padre Gustavo Gomes dos Santos, professor de latim, pelas muitas coisas que profusamente, com muito gosto e muito saber, comunicava, em aula, não só das letras antigas como das portuguesas e brasileiras.

Foi quem me despertou o prazer literário.

Joaquim Veríssimo da Silva, lente de filosofia, pelas exposições da metafísica alemã, principalmente de Kant, de que se mostrava grande sabedor.

Padre Patrício Muniz, mestre de retórica e poética, pelas excursões que, em conversa, fazia também pelos domínios germânicos, de cuja filosofia era muito admirador, combinando-a, já se vê, com a escolástica. Estes dois fizeram-me divisar ao longe os sistemas filosóficos.

Francisco Primo de Sousa Aguiar, a cujo cargo estavam as cátedras de história e geografia, no antigo Ateneu Fluminense, onde eu estudava, por suas admiráveis lições em que salientava o papel e o valor histórico das gentes germânicas, e pelas muitas cenas da terra alemã que, com intenso prazer e num acento muito comunicativo, punha diante dos olhos de seus ouvintes.

Finalmente, o barão de Tautfoeus, o ídolo da mocidade do tempo, verdadeiro tipo lendário, que a todos enchia de respeito, admiração e amor.

Não foi meu lente; mas, por ser a bondade em pessoa, deu-me a honra de inúmeras palestras nos tempos dos exames, em que o procurava.

A filosofia da história deste sábio tinha uma raiz etnográfica poderosa, que me fez logo impressão e ficou até o presente.

Aos dois últimos, é claro, devo o meu germanismo histórico, político, social, diverso do alemanismo literário, pregado em Pernambuco, por Tobias Barreto, de 1870 em diante.

No Recife, onde aportei em janeiro de 1868, e onde permaneci até 1876, levei os dois primeiros anos calado, no estudo das disciplinas que, até aos dias atuais, me têm preocupado mais.

As influências ali recebidas não fizeram senão desenvolver o que em mim já existia, desde os tempos do engenho, da vila, da aula primária e dos preparatórios.

As três primeiras leituras que fiz no Recife, por um feliz acaso, me serviram para abrir definitivamente o caminho por onde já tinha enveredado, fortalecendo as velhas tendências.

Foram um estudo de Emílio de Laveleye acerca dos Niebelungen e da antiga poesia popular germânica, um ensaio de Pedro Leroux sobre a Gothe e um livro de Eugênio Poitou sob o título -Filósofos Franceses Contemporâneos.

O primeiro meteu-me nessas encantadas regiões de folclore, crítica religiosa, mitologia, etnografia, tradições populares, que me têm sempre preocupado.

O segundo nas acidentadas paragens da crítica literária moderna, que tanto me tem dado que fazer.

O terceiro no mundo áspero e movediço da filosofia, em que me acho nas mesmas condições. Mas tudo isso já vinha de trás.

Aí ficam as várias cenas do 1º ato -As Origens- de minha vida espiritual.

Como, depois, me orientei de tudo isso, por entre as leituras e estudos que tenho feito por quarenta anos ininterruptos, o que aprendi dos mestres, o que tirei de mim próprio, isto é, o 2º ato do drama -A Formação- deixo de indicar, porque já me vou tornando secante. A crítica indígena que o procure por si mesma descobrir e refazer, se achar nisso algum interesse.

Deixei para o fim a influência em mim exercida por Tobias Barreto, para ter o prazer de destacá-la com mais força.

Não recebi dele propriamente idéias; aprendíamos, por assim dizer, em comum.

Dele aproveitou-me intensamente, e nunca fiz disso mistério, o entusiasmo de combater, o calor da refrega, o ardor da luta, o espírito de reação, a paixão das letras, o amor pela vida do pensamento, pelo espetáculo das idéias.

E assim, penso, meu caro João do Rio, tenho respondido ao seu primeiro quesito.

Ao segundo, pondo de parte uma fingida modéstia que nunca tive, e sem perder a cabeça em julgá-los mui grande coisa, declaro que se se pode assim falar, de meus trabalhos prefiro todos, porque cada um deles visou um fim e teve função especial. Me gustan todos...

Desculpe a rude franqueza de nortista.

O terceiro ponto do questionário se me antolha coisa para ser discutida em estudo aprofundado.

O momento atual parece-me um momento de simples parada, não de decadência.

O mesmo se deu em começos do século XVIII depois de Gregório de Matos e Antônio Vieira, que se pode considerar brasileiro pela ação; o mesmo nos princípios do século XIX, após o surto da escola mineira. É o que se nota na própria Europa.

Fazendo mais de perto a distinção da poesia e da prosa, não me parece que esteja esta pujante no momento de agora e a outra decadente.

Apurando bem os prós e os contras, eu me decidiria antes pela poesia.

Estão ainda vivos e na força da mocidade e vigor do talento seis, pelo menos, dos melhores poetas que o Brasil tem produzido. Fazem ainda verdadeira a sentença de ser o lirismo a mais fulgurante manifestação da estesia pátria.

À quarta pergunta respondo sem hesitar: a função literária e intelectual de nossas antigas províncias não é a de criarem literaturas à parte, como, com alguma ironia, se alvitra no Rio de Janeiro, depois que o saudoso Franklin Távora falou em literatura do Norte.

Não foi no sentido incriminado o seu pensamento, com o chamar a atenção para as tradições, os costumes, as cenas nortistas e com o aludir aos bons talentos daquela zona.

A sátira é escusada, ainda que parta principalmente de provincianos acariocados.

A função das províncias, prefiro lhes chamar assim, do norte, sul, centro e oeste, é a de produzirem a variedade na unidade e fornecerem à Capital os seus melhores talentos.

Sempre foi isto desde os tempos de Silva Alvarenga, dos Andrada, Cairu, Odorico Mendes, até Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Coelho Neto, Raimundo Correia, Artur e Aluísio Azevedo, Luís Murat, José do Patrocínio, Graça Aranha, Araripe Júnior, Afonso Celso, Arinos, João Ribeiro, José Veríssimo, Capistrano de Abreu, Fausto Cardoso, Melo Morais, Teixeira Mendes... e duzentos mais, passando por Gonçalves Dias, Alencar, Porto Alegre, Macedo e as mais vivas figuras do romantismo.

Inútil é lembrar os políticos cujo número é legião.

Pelo que se refere ao quinto e último quesito, afirmo convicto, posto nunca tivesse sido um homem do ofício, que o jornalismo tem sido o animador, o protetor, e, ainda mais, o criador da literatura brasileira há cerca de um século a esta parte.

É no jornal que têm todos estreado os seus talentos; nele é que têm todos polido a linguagem, aprendido a arte da palavra escrita; dele é que muitos têm vivido ou vivem ainda; por ele, o que mais vale, é que todos se têm feito conhecer, e, o que é tudo, poderia ser mais se houvesse um acordo e junção de forças; é por onde os homens de letras chegam a influir nos destinos deste desgraçado país entregue, imbele, quase sempre à fúria de politiqueiros sem saber, sem talento, sem tino, sem critério, e, não raro, sem moralidade...

E aqui faz ponto seu admirador.»

Não é preciso fazer o elogio desta carta cheia daquele espírito que o filósofo chamava de eterno...

Dez horas da manhã. O grande artista escreve. A sala forrada de cinza está atravancada de altas estantes de canela, de largos divãs indianos, de vastas rocking-chairs de couro lavrado. Na secretária, um frasco de neurosina, um volume de Dumas, um pote de faiança com fumo rio-novo. Ao fundo, uma coleção de retratos de amigos. Muitos estão mortos. Os amigos que morrem levam para a sepultura um pedaço da nossa própria vida... A atmosfera morna é de inteira quietação. Na rua, o mormaço do céu, afogado em nuvens, parece abater as árvores; na sala ouve-se apenas o imperceptível cicio da pena no papel de linho, enquanto um gato, muito gordo, muito branco, muito peludo, lambe devagar uma das patas. Coelho Neto levanta-se normalmente às cinco da manhã, senta-se a escrever às seis, trabalha até às doze, vai para o duche frio, almoça e às três da tarde recomeça para só terminar quando se acendem na cidade as primeiras luzes. Há quatro horas já, impalpável e divina, a fantasia impele a sua pena de aço.

-Pode-se falar?

O artista levanta a cabeça.

-Oh! tu? entra... Aproveito e descanso um pouco. Estou a escrever agora uma peça para a companhia Lucinda e Christiano. A princípio foi um prazer. Mas eu tenho um juiz, o meu primeiro público, minha mulher. Outro dia sentei-a naquela cadeira e fi-la ouvir um ato. Sabes a sua opinião? É uma peça perversa, que me vai criar uma porção de inimizades! Verdade é que não há nada de mais atual. Estudo aspectos da nossa sociedade ainda por estudar no teatro, e entre os quais o mundo dos decaídos e a célebre questão dos casamentos... Minha mulher obrigou-me a rasgar uma cena inteira, entre um velho, que é o elemento honesto, representativo do nosso antigo fundo moral, e o grupo moderno. Que tem Sr. Paiva? -Ora, o que tenho! Não sabe que o Sousa casou? -Bom, e o que há nisso para tristezas? -Mas a primeira mulher está viva... Começava assim. Pois, rasguei a cena! Não imaginas como custa inutilizar um trabalho quando o sentimos vivo e exato. O meu público porém é inexorável. Senta-te. Tomas café?

Coelho Neto está de pijama branco, meias de seda, escarpins de pelica. Senta-se um instante.

-Sabes que inda não pensei no questionário? Há lá um ponto muito grave, -a pergunta sobre a influência do jornalismo.

-É dizer qualquer coisa: muito bom, muito mau, regular...

-Sem explicações?

-Pois se é grave!

Neto sorri.

-Vamos a ver o questionário. Deve estar numa destas gavetas.

Procura-o. O papel branco em breve aparece dobrado em dois, e eu prevejo que daquelas simples perguntas a imaginação de Coelho Neto fará surgir a maravilha e o encanto. Se é de pasmar o brilho, a cintilação de estilo no escritor, a faculdade da imagem, o poder evocador, o comentário agudo e a torrencial fantasia do seu claro espírito como que se acentuam na conversa. Neto conversa irresistivelmente, caleidoscopicamente. A palavra vive no seu lábio com um poder formidável e consciente. Há momentos em que se tem, pela harmonia dos períodos, a rápida impressão dos malabaristas jogando bolas de metal de pesos diferentes, e cada fase sua em torno do assunto traz, numa palpitação de encantos, a constante visão dos cultos mortos e dos deuses. Coelho Neto é, de resto, de uma rude franqueza meridional.

-Para a minha formação literária, começa ele, não contribuíram autores, contribuíram pessoas. Até hoje sofro a influência do primeiro período da minha vida no sertão. Foram as histórias, as lendas, os contos ouvidos em criança, histórias de negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos, a fantasia do sol, o perfume das florestas, o sonho dos civilizados... Nunca mais essa mistura de ideais e de raças deixou de predominar, e até hoje se faz sentir no meu ecletismo. A minha fantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos. É do choque permanente entre esse fundo complexo e a cultura literária que decorre toda a minha obra, e daí Baladilhas, Rapsódias, livros de uma fatura absolutamente especial.

-Há, entretanto, uma parte da sua obra...

-Sim, a parte fescenina. É aí, no Fruto Proibido, que começo a ter a responsabilidade do meu trabalho. O amor pelas lendas, pelo fantástico ficou porém. O livro que mais me impressionou foi As Mil e Uma Noites. Depois toda a obra de Shakespeare, o Dom Quixote, os poetas gregos, Plutarco, que releio constantemente...

-E dos modernos?

-Flaubert, o admirável Maupassant, Taine, que é a base da minha visão crítica, e os ingleses contemporâneos, com especialidade os dramaturgos.

-Quanto a Portugal?

-Todos os clássicos, Eça de Queirós... Eu estudo com grande amor a língua portuguesa, mas sou pela liberdade, fujo aos estudos propriamente chamados clásssico-gramaticais. As línguas evoluem, e eu admito, como necessidade de representação de idéias, o estrangeirismo. Tenho a respeito da palavra uma teoria: a palavra falada é a palavra viva, livre, solta de todas as cadeias, capaz de por si só definir, pintar, colorir; a palavra escrita é a palavra agrilhoada, morta, sem a expressão imediata. A primeira tem a intenção que é tudo e a inflexão que é a realidade da intenção. Toma por exemplo a palavra Deus. Deus tem uma cor no juramento solene, outra no auge do pavor, outra na ironia, tem todas as cambiantes do sentimento, graças à inflexão e, às vezes, apesar de sagrada, falta-lhe moralidade, como quando uma rapariga, comida de beijos pelo amante, murmura trêmula: -Meu Deus!

A palavra escrita vive do adjetivo, que é a sua inflexão. Daí a grande necessidade de disciplinar o vocabulário.

Coelho Neto é no Brasil o que Rudyard Kipling é na Inglaterra, -o homem que joga com maior número de vocábulos. Alguém já lhe calculou o léxico em 20.000 palavras.

-A questão não é de vocabulário; é de disciplina. Os russos têm uma porção de dicionários de soldados e para nada lhes serve o possuí-los. Eu consegui disciplinar o vocabulário. Dada um certa impressão, concluída uma idéia, posso sentar-me e escrever. A idéia sai vestida e os termos exatos juntam-se no perfeito reflexo da impressão. Estou a tomar uns ares dogmáticos... Perdoa. É quase uma confissão. Vem desse esforço, que foi a pouco e pouco desbastando do meu estilo os guizos de muitos adjetivos para substituí-los por um só, exato, o emprego de certos termos populares como sarrilho e de palavras desejosas de dar a idéia mais onomatopaica do fato, como buchorno com a significação de mormaço -dois substantivos vítimas em tempo da crítica...

Acusam-me de preciosismo, meu caro amigo. Não sabem eles que o artista é o resultado de mil influências desencontradas...

-Qual dos seus volumes prefere?

-O Pelo Amor! Não se admire. Prefiro o Pelo Amor! por uma questão de momento. Ainda naquele tempo julgava-me capaz de alguma coisa no Brasil. Foi uma batalha perdida, mas de que me lembro com saudades, como certos generais velhos recordam nostálgicos as derrotas. Em todo o caso foi uma perda que acentuou a cisão e determinou uma corrente literária.

-Mas só o Pelo Amor?

-E no romance Inverno em Flor. A verdade é que, enquanto escrevo, sinto um grande prazer e depois fico assustado com os defeitos. Tenho um processo de trabalho constante. Só as novelas foram acabadas e retocadas antes de serem entregues aos editores. O resto da minha obra tem sido escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz A Capital Federal, O Rei Fantasma, o Turbilhão.

-Mas é impossível!

-É a verdade. Devo muito à Gazeta e a O País, que receberam os meus primeiros ensaios. A crítica, quando foram dados à luz alguns volumes meus com intervalos apenas de dias, gritou contra o que ela chamava mercenarismo. Não sou infelizmente conhecido nem do público nem da crítica. O público não sabe a capacidade do meu trabalho, a crítica ignora por que trabalho tanto. A publicação de O Rajá de Pendjab levantou então uma celeuma. Não sabem eles que, subordinado o estilo à concepção, a pena trabalha quase mecanicamente, não querem recordar que muitas obras-primas foram escritas em dias como o Hamlet de Shakespeare e principalmente recusam compreender a necessidade de um escritor que resolve viver apenas da própria pena.

Não conheces a história do Rajá? Eu entrava na Gazeta precisando de dinheiro e encontrei o Araújo zangado. Por quê? Tinham perdido um novo e sensacional folhetim. Não se incomode, doutor, faço-o eu. Qual! Tens muitas psicologias... Faço sem psicologias! Fomos dali tomar um sorvete. Então fazes? O príncipe encantado serve? Também é um título velho. O rajá seja, o Rajá de Pendjab. Para depois de amanhã? Para depois.

E a réclame foi feita para um romancista francês, de que a Gazeta deu o retrato reproduzindo a cara do Humfreys...

Rimos os dois alguns instantes. Coelho Neto continua:

-A crítica não fala só da abundância de atavios, do mercenarismo com que confunde a realização imediata de uma idéia acabada, fala também do número dos meus volumes.

Neste país, onde se tem, não a preguiça mental, mas a preguiça física que inibe de escrever, o Sr. Coelho Neto tem cerca de trinta volumes. Pois, não senhor. Coelho Neto tem acabados 50 volumes.

-Cinqüenta?

-Sim, e a todos prezo, sim, cinqüenta! Bastava que em cada um houvesse uma página digna para que os publicasse.

Levanta-se maquinalmente para mostrar-me a lista dos volumes a aparecer. Nesse momento febril, com o olhar brilhante, o lábio grosso, cheio de juventude e de esforço, é impossível deixar de admirá-lo.

-Sou um trapista do trabalho, a bête de somme dos franceses - quero, e mourejo como um servo da gleba... Ah! meu amigo, o artista não é o zoilo das confeitarias à cata de jantar.

Preciso de um relativo conforto, preciso rodear os meus filhos de bem-estar. Trabalho! Creio que só a tenacidade e o querer têm obstado a minha morte. Hei de ir até o fim com o prazer de ter pago sempre as minhas dívidas...

Ficamos um tempo calados. Neto mostra-me as provas dos seus livros, agora editados em Portugal -A Treva, Água de Juventa, o Mistério do Natal, a Pastoral. Que extraordinária atividade! Que prodigioso cérebro!

-E quanto a escolas, a lutas?

-Não há nada. Vejo no Brasil uma coisa curiosa: dois grupos, um muito pequeno, dos que podem; outro, enorme, dos que não podem. Lembram-me a história da princesa Parizat nAs Mil e uma noites. No alto da montanha havia três talismãs: a árvore que canta, o pássaro que fala e a água amarela. Quem subisse até lá seria possuidor de todos três, mas o caminho era aspérrimo e as pedras faziam um estranho clamar. Quem atendesse ao chamado das pedras em pedras se transformava. Só a princesa chegou ao pico da montanha. O clamar das pedras é aqui o nefelibatismo, o ocultismo, o criticismo, o torcido, o escabujamento, o histerismo... Acho, entretanto, que chegaremos a ter uma Escola Brasileira, não o indianismo mas idéia brasileira, o costume brasileiro, numa língua que terá a clareza do Eça, e a maneira francesa na mais plástica de todas as línguas -a língua portuguesa. Para isso, é preciso antes de tudo o prestigio oficial. A transformação far-se-á violentamente, porque nós somos um povo de explosões. No dia em que a proteção oficial for uma realidade, o público admirará a arte no teatro e no romance, como se encaminhou para a Avenida, e o artista, tendo-se deitado num grabato, acordará num leito de púrpura.

-Falei-lhe da literatura dos Estados.

-O Euclides da Cunha já dividiu magistralmente o norte e o sul. É incontestável. Daqui para alguns anos teremos duas literaturas distintas: a dos trovadores ao norte, a dos troveiros ao sul. O norte não é belicoso. Um profundo lirismo vive na sua alma, e tanto as alegrias como as dores são sempre postas em canto. Daquele pedaço de terra o sol nunca de todo se arreda, porque, se a luz foge, fica o calor acalentando o solo, as árvores e os céus. Os homens vivem com os elementos, são dispersivos e crêem nas divindades. No sul, ao contrário, a terra fria faz a concentração, a luta, e os elementos estrangeiros vão se acentuando. O norte é virgem e bravio; ao sul, os homens de músculos brancos e cabelos de metal vão escorraçando a raça primitiva. O norte, para onde emigram os pretos, os caboclos e os descendentes deles, será o reservatório fatal da grande poesia natural do Brasil. Prevejo no futuro o Rio como um grande celeiro e a divisão da literatura em duas literaturas distintas -a do sertão e a da campina...

Eu interrompi sincero:

-Como é difícil ser céptico ao lado do corifeu da esperança!...

Havia na sala confortável o encanto das nobres emoções. Neto parou.

-Falemos então do jornalismo, já que é preciso. O jornalismo foi sempre, no Brasil, político. Cansado o público, a mania politiqueira foi atenuada pelos processos industriais. O jornal deixou de ser a urna para ser...

-Para ser?

-... uma oficina. Tem sido para a nossa literatura um grande bem relativamente. Como nunca teve audácia para educar, aceita um trabalho, não pelo gênio do autor, mas sempre de acordo com o agrado do público. Às vezes é perverso. A decadência do teatro é devida exclusivamente ao jornal e aos próprios escritores dramáticos jornalistas. O público é um animal que se educa. A princípio ia aos teatros bons. Veio o anúncio, o balcão dominou, começaram os incentivos para o trololó. Hoje o público está acostumado e não quer outra coisa.

Quanto à literatura que publicamos nos jornais, lembra os livros impressos no tempo do Santo-Ofício. Não tem o visto da Inquisição, mas tem o visto do redator-chefe.

-Uma última pergunta: é religioso?

-Muito. Não sei se creio em Deus Cristo, se em Deus-natureza, mas creio no princípio imanente da divindade. E por isto, talvez seja neste país um dos raros homens que esperam...

Tornou a sentar-se, pôs-se a escrever. Pela janela aberta entrava o dia abafado e só o gato impassível, muito gordo, muito branco, muito peludo, olhava os céus com um perturbado olhar da sua verde pupila cor de topázio verde...

Medeiros e Albuquerque

O ilustre Sr. Medeiros e Albuquerque escreveu-me dois dias antes de partir para a Europa esta longa e admirável carta:

«Recebi o seu inquérito e vou procurar responder com toda a sinceridade. Acho-o muito interessante -não, porém, para o grande público, que decerto se importa muito pouco com tudo o que a meu respeito se lembrou de me perguntar. A mim o caso interessou, por me obrigar a fazer um verdadeiro exame de consciência, em que eu nunca pensara.

Aqui, ao alcance de minha mão, tenho dois livros em que se fizeram a grandes homens da Inglaterra e da Itália perguntas em parte análogas a primeira do seu inquisitorial interrogatório. O primeiro livro chama-se Books which have influenced me e o segundo I cento migliori libri italiani. Assim, se eu quisesse épater le bourgeois, ou tomar um certo parentesco intelectual com pensadores notáveis, poderia copiar alguma dessas listas. Mas quase todas começam por nomes ilustres da antigüidade clássica.

Ora, eu declaro humildemente que conheço poucos clássicos e que esses não tiveram sobre mim nenhuma influência. Tenho verificado em palestras literárias, comparando confidências íntimas com declamações públicas, que o meu caso é o de muita gente; mas todos acham feio confessar claramente esse fato... Como, porém, o autor deste inquérito, pela cara rapada e pela vastidão do abdômen, tem um certo ar fradesco, não tenho dúvida em derramar-lhe no seio esta envergonhada confissão...

Evidentemente, eu não quero negar valor aos clássicos. Provaria apenas minha ininteligência. Pensando na época em que eles viveram, recordando o estado dos espíritos e da instrução daqueles tempos, qualquer pessoa é forçada a admirá-los. Mas o que eu não creio é que eles dêem hoje emoções fortes a ninguém. E é só isto o que eu digo.

Em todo caso, esse venerável pessoal antiqüíssimo nada influiu sobre mim. Só um me pareceu assombroso: foi Lucrécio. Aliás, eu o li modernizado na tradução em verso de André Lefèvre.

Há algum livro de literatura -romance, poesia ou contos- que tenha influído decisivamente sobre mim? Creio que não. Li muito, li gulosamente centenas de romances e de livros de poesias, mas não tenho idéia de que nenhum marcasse uma data na evolução do meu espírito. Admirei extraordinariamente Germinal, que ainda hoje acho um livro soberbo; Trois coeurs, de Edouard Rod; L'Adorée, de René Maiseroy; Pierre et Jean, de Maupassant; Daniel Valgraive, de Rosny, e Mensonges, de Paul Bourget. O Paul Bourget, que escreveu este último, não era ainda o pedante abominável, que um casamento rico e o desejo de entrar na aristocracia fizeram depois desse autor, a partir do Disciple. Pierre et Jean, pelo seu estilo de uma limpidez sem igual, claro e simples, me parece a obra-prima de Maupassant. Foi talvez lendo-o que eu tive mais pronunciadamente a sensação de que o ideal do estilo é a clareza e a simplicidade. Aliás, embora não se fale desse livro, é de crer que o autor o apreciasse muito, porque foi justamente para ele que escreveu uma proclamação literária.

Na poesia ninguém me causou maior admiração do que Vítor Hugo e Lecomte de Lisle, sobretudo nos Poemas Bárbaros. Depois, conheci Haraucourt, em Âme nue e Seul, e o fiz um dos meus companheiros habituais de trabalho. Digo «companheiros habituais», porque sobre minha mesa há sempre alguns volumes de versos, e entre dois artigos de jornal, que tantas vezes tenho de escrever a seguir, eu intercalo a leitura de algumas poesias, lidas em voz alta.

Dos poetas da língua portuguesa, de nenhum gosto tanto como de Antero de Quental.

Mas, ainda uma vez: é evidente que a quantidade enorme de obras literárias em prosa e verso, que eu tenho lido, há de ter influído sobre mim. Não vejo, porém, nenhuma que possa destacar para dizer que foi meu guia, meu ideal. Nenhum poeta ou romancista me deu as grandes emoções de certas obras de ciência. Apenas Richepin pode, talvez, pela circunstância que referirei, ter uma tal ou qual primazia.

Foi assim. Eu vim, sozinho, aos 18 anos, de Lisboa para o Brasil. Vim num vapor alemão. Era tímido e acanhadíssimo. Pouco antes de embarcar, por simples acaso, comprei dois livros: Força e Matéria, de Buchner, e Blasfêmias, de Richepin. Os volumes, que eu trazia, foram para o porão do navio, em um caixote. Assim, a bordo, isolado como se estivesse num deserto, tive amplo tempo para ler e reler várias vezes esses dois volumes, que se completavam maravilhosamente. Já então eu conhecia A Origem das espécies de Darwin e admirara a bela introdução que para esse volume escreveu Clémence Royer e de que ainda hoje, mais de 20 anos depois, sei de cor alguns trechos. Mas o livro de Buchner foi para mim um assombro, uma revelação, um deslumbramento! Na segregação em que eu estava só saía dele para ler as Blasfêmias; e as impressões que me vinham do filósofo e do poeta se completavam. Percorri várias vezes esses dois volumes, meditei-os longamente e não posso dizer todo o abalo que produziram sobre o meu espírito, no qual fizeram realmente uma revolução; mas o poeta era subsidiário do filósofo, porque a beleza que eu achava em Richepin vinha, sobretudo, da sua filosofia.

Depois, outros livros que contribuíram decisivamente para formar meu espírito foram a Historia da Criação Natural de Haeckel, o Exame da Filosofia de Hamilton, por Stuart Mill, e os Primeiros Principios de Spencer. Não me lembro de que nenhuma obra de literatura me tenha dado a sensação de intensa alegria, quase direi: de embriaguez intelectual, que eu tive ao ler a parte do Incognoscível daquele livro de Spencer.

É evidente que eu não pretendo enumerar as obras que apreciei, mas unicamente as que fizeram sobre mim uma impressão violenta, as que mudaram o rumo do meu pensamento, fixando-o no que ele hoje é.

Talvez fosse lícito mostrar que tanto os literatos como os cientistas que eu citei se caracterizam por uma qualidade: a clareza do estilo. As filosofias e as literatices obscuras sempre me repugnaram.

Depois, uma ordem de leituras me atraiu: o hipnotismo e o ocultismo sob todas as suas formas. Foi Bernheim quem me levou para aí com o seu livro sobre a Sugestão. Creio, porém, que o meu espírito já estava a bom caminho, porque, embora tivesse praticado muito o hipnotismo e devorado quanto escritor arrevesado escrevia a respeito de ciências ocultas, tive sempre a ambição de entender nitidamente essas coisas complicadas e o resultado foi que saí de todas essas leituras tão agnosticista e materialista como para elas entrara. Aliás, o livro excelente de Bernheim é, por isso mesmo, o melhor dos guias. Chega a ser um pouco estreito. Mas vale, porém, isto que a divagação aventurosa dos tipos como o Coronel De Rochas e outros charlatães.

Mas esta resposta está degenerando em uma autobiografia.

Passo, portanto, muito mais resumidamente à sua segunda pergunta.

Em regra, os autores preferem, não as suas melhores obras, mas aquelas que lhes deram mais trabalho. É o caso dos pais de vários filhos que têm maior predileção pelo mais doentinho e grandes rigores para os sadios e fortes. Flaubert tinha acabado por detestar Madame Bovary e proclamava o melhor dos seus trabalhos a Tentation de Saint-Antoine. Sully Prudhomme criou um verdadeiro horror ao Vase brisé, que, entretanto, não há quem desconheça. Não é de crer que Olavo Bilac prefira o seu soneto «Ouvir Estrelas...», nem Raimundo Correia «As Pombas».

Quanto a mim, de tudo quanto tenho escrito nada me desagrada menos que o prefácio do livro de Coste -Fenômenos psíquicos ocultos, livro editado pela casa Garnier. Esse prefácio, que tem cerca de 80 páginas, mereceu críticas do Dr. Manuel Bomfim, do Dr, Araripe Júnior, e suscitou diversos outros reparos. Espero um dia responder a eles. Nessas páginas eu penso ter formulado uma lei digna de estudo. É certo que a palavra lei se presta a várias acepções. Mas Ribot chama leis empíricas as que «consistem na redução de um grande número de fatos a uma fórmula única, embora sem dar sua razão explicativa.» E isso pelo menos eu suponho ter conseguido. Mas seja ou não um engano da minha presunção de autor, o certo é que nada escrevi com alegria maior.

Dos meus contos, os que eu acho menos ruins são: «Flor Seca», «As calças do Raposo», «O presente de Vovô» e «Noivados Trágicos». Das minhas poesias? «Resposta a uma propaganda», «Noiva Perdida» e o soneto «Pudica».

E agora a terceira pergunta.

Francamente, eu não distingo neste momento em nenhuma das literaturas que conheço «escolas literárias», na acepção estreita que dantes tinham estas designações. No Brasil, menos do que em outra qualquer parte.

É natural que seja assim. Nós somos uma nacionalidade em formação. Não, porém, em uma formação regular, orientada para um certo ideal, para um estádio futuro que seja possível pressentir desde já. Se fosse assim, teríamos uma literatura original e forte. Mas somos uma nação que se vai formando anarquicamente, sem rumo. Na indecisão geral das idéias universais, que há neste momento em todo o mundo, nós, no caso especial do nosso Brasil, ainda temos a nossa indecisão, própria de uma evolução, que ninguém sabe para onde se orientará.

Em regra, quando uma nação está na iminência de uma grande transformação histórica esse estado é fecundo. Acontece com os povos o mesmo que com os indivíduos.

A adolescência é uma época de fortes entusiasmos. O homem não está ainda formado de todo, mas sente o que vai ser dentro em pouco, e é o confuso desabrochar de todos os sentimentos que devem aparecer mais tarde que faz a beleza dessa idade. Mas se -figurem a hipótese- chegando à adolescência, um ser, que até aí tivesse tido a evolução de um homem, não soubesse se ia passar a homem, ou a peixe, ou a ave -é natural que esse monstro, em vésperas de uma brusca e incerta transformação, não tivesse nenhuma grande aspiração, porque precisamente, não saberia a que aspirar.

Creio bem que esse é o nosso estado.

Continuaremos unidos? Continuaremos independentes? Da fusão de todos os elementos étnicos que se vão misturando em proporções irregulares no nosso território, que povo sairá? Não sabemos nada disso...

Dir-se-á que um poeta ou outro qualquer artista, sentado à sua mesa de trabalho, não precisa indagar nada disso para rimar uma poesia? É verdade. Mas para haver uma corrente literária, em qualquer nação, é necessário que haja um grande número de sentimentos comuns entre todos os que nela habitam. E é o que nós não temos. Tanto não temos que um pedaço do Brasil pôde ainda há pouco, pelo laudo iníquo do rei de Itália, ser desmembrado dele sem causar no nosso povo a mínima emoção.

Dir-se-á que o nosso caso nada tem de novo e todas as nações dependeram da fusão de vários contingentes étnicos? É também verdade. Mas essa fusão se fez lentamente, aos poucos, durante séculos. Sempre, porém, que, de um modo brusco, houve, em uma nacionalidade qualquer, irrupção de elementos estrangeiros, toda a vida literária ou desapareceu ou se amesquinhou. E a nossa nacionalidade se está fazendo por essa invasão tumultuária de elementos diversos, estranhos, variegados, mal distribuídos pelo território.

Parecemos um cadinho, ao fogo, em que todos os químicos do mundo fossem atirando ingredientes vários. Que combinação sairá de tudo isso?

Por ora, somos uma «mistura», sem propriedades definidas... Para dizer mais claramente: é impossível pensar em literatura nacional -caracteristicamente «nacional»- quando ainda não somos uma nacionalidade, nem temos um ideal definido do que poderia ser a futura nacionalidade brasileira.

E chego à quarta pergunta: -há probabilidade de se criarem literaturas a parte, com o desenvolvimento dos centros literários dos Estados?

-Não! Nunca! Mesmo as grandes nações européias, tendo tradições seculares, cada vez oferecem menos características especiais que as diferenciem umas das outras. Quanto mais os nossos pobres Estados!

O que há entre nós é falta de meios de comunicação e falta de instrução primária. Quase ninguém lê, quase ninguém se vê. Daí a existência efêmera desses grupinhos estaduais, que são forçados ao elogio mútuo e exagerado pela estreiteza do meio e pela dificuldade de serem conhecidos no resto do país. Mas desde que um livro publicado no Amazonas for tão facilmente lido lá como aqui ou no Rio Grande do Sul, ninguém pensará mais na fantasia das literaturas estaduais.

O ideal de cada artista será sempre o de fazer vibrar o maior número possível de criaturas humanas. Como querer, à vista disso, tendo uma língua já tão pouco falada, fazer obras de um sabor meramente local? É tolice...

Na Bélgica, há, por exemplo, quem tente desenvolver, em contraposição às produções em francês, as produções em flamengo. Que resultado tem tido essa propaganda? Nenhum. E no entretanto, o flamengo é uma língua que tem tradições.

Fato idêntico na Itália. Em vão, diversos autores procuram reviver os dialetos locais dos velhos reinos de cuja fusão resultou a Itália moderna. Mas embora esses dialetos tenham também antigas literaturas já hoje nada podem. A língua italiana a todos suplanta.

Os sentimentos modernos tendem a ser os mesmos em todo o mundo. Os paquetes a vapor, as estradas de ferro, os automóveis, a imprensa e o telégrafo, os mil e um processos que aumentam a sociabilidade humana, tendem a reproduzir em todos os cérebros do mundo o que a física ensina que sucede com o nível dos líquidos nos vasos comunicantes. Há bem pouco tempo, uma circunstância me fez pensar nisso. Um fato, o assassinato do ministro Plehwe, em S. Petersburgo, me deu a mim um prazer tão intenso, como me daria o assistir à melhor cena dramática: vibrei de alegria. E ao mesmo tempo que isto me sucedia -a mim, que estava aqui longe, aqui desinteressado, lendo em banco de bonde essa notícia,- em Berlim, em Cracóvia e em Londres (disseram-no os telegramas no dia imediato) milhares de pessoas organizavam passeatas e meetings, comemorando esse assassinato redentor. Há assim, a todo momento, dispersos pelo mundo inteiro milhões de pessoas animadas simultaneamente pelos mesmos sentimentos.

Ora, literaturas locais corresponderiam a sentimentos locais, e estes só ainda existem por falta de meios de comunicação, de uma perfeita inteligência entre os povos ou entre as várias frações do mesmo povo.

Quanto a mim, eu creio que caminhamos não só para a universalização de todas as idéias, como para o emprego de uma só língua. O Esperanto, que é ainda imperfeito, já, entretanto, provou a possibilidade de uma língua literária universal.

Mas nisto, nem muitos crêem, nem o inquérito falou. Fica, portanto, a resposta à sua pergunta: não há a menor possibilidade de que se venham a criar literaturas locais nos nossos Estados, seja qual for a evolução posterior do Brasil. O fato só se poderia dar se uma zona dele fosse conquistada e povoada por uma nação estrangeira. Mas, nesse caso, mudada a língua, não haveria aí uma literatura local. Far-se-íam nessa zona obras na língua e na literatura do povo conquistador.

Realmente, pelo que ficou dito em resposta às duas questões últimas, que me parece completarem-se, creio que se pode afirmar que atualmente não temos propriamente o que se possa chamar literatura nacional, embora haja livros escritos em excelente português por bons poetas e bons prosadores brasileiros. Não há também literaturas regionais, nos Estados.

Nenhum deles é um foco de civilização à parte, bastante forte e autônomo, para sustentar uma escola.

Quando, pela difusão geral da cultura, nós passarmos a ter uma literatura brasileira e, orientada de qualquer modo, a nacionalidade brasileira se tiver constituído, também os meios de comunicação com o resto do mundo já serão tão ativos e constantes que a literatura brasileira será apenas o reflexo no Brasil de idéias universais, sem nada de muito característico.

As condições para a formação de literaturas nacionais estão cessando: elas só eram possíveis em centros de civilização com uma forte unidade de sentimentos e um grande isolamento das nacionalidades vizinhas. Foi assim para as literaturas francesa, inglesa, alemã, etc., de séculos passados.

Dentro em pouco, entretanto, não sucederá mais isso para ninguém. Ainda que subsistam as diferenças da língua, não subsistirão as de sentimentos. Por isso se pode dizer que não temos nem teremos literatura nacional: não temos, porque nos falta cultura, embora ainda permaneçamos bastante isolados para conservarmos algumas coisa de característico; não teremos, porque quando chegarmos a ser uma nacionalidade e atingirmos ao grau de cultura precisa, o mundo, em torno de nós, terá também caminhado e nós, embora o façamos em português, exprimiremos apenas sentimentos análogos aos de todos os intelectuais civilizados daqui, da França, do Japão... de toda a terra.

Resta a sua última pergunta: a influência do jornalismo.

Há, é certo, muita gente que lhe queira mal e dele diga horrores. Há um pequeno número de prevenções razoáveis. E há, sobretudo, os ratés e os fruits secs, que, produzindo com largos intervalos, pequenas coisinhas chochas, fazem de si mesmos uma alta idéia, atribuindo a raridade da produção à sua preciosidade. E como o jornalismo não se compadece com esse regime de reclusão intelectual, eles o atacam.

Quanto a mim, nunca me lembrarei de elogiar os intestinos de um cidadão, sujeito à constipação crônica. Guardo o mesmo critério para recusar elogios aos cérebros, também «constipados», que só excretam alguma cousa com raros intervalos e violentos tenesmos...

De um modo geral, a prevenção dos literatos contra o jornalismo é a mesma dos pintores de quadros pelos de tabuletas, dos escultores pelos marmoristas... Sempre que uma profissão usa dos recursos de qualquer arte para fins industriais, os cultores da arte se indignam e depreciam sistematicamente os profissionais, que assim se põem na sua vizinhança. Quanto mais o emprego dos meios é o mesmo e há, portanto, perigo de serem às vezes confundidos, mas também os artistas ostentam o seu desprezo e procuram cavar um fosso profundo entre os dois domínios. Mas em uma tabuleta se podem pintar figuras tão bonitas e tão artísticas como em uma tela destinada à moldura no mais rico dos museus. Hoje há cartazes melhores que muitas telas célebres. O marmorista faz às vezes estátuas que muitos escultores lhe invejariam.

Com o jornalismo sucede o mesmo. Como os jornalistas têm de ser prosadores, os artistas da palavra escrita, achando que eles a empregam para fins de imediata utilidade, procuram desdenhá-los. Demais, no afã da vida moderna, que nem a todos dá tempo para as lentas meditações, o jornal se fez um concorrente temível do livro. Daí o ciúme, a inveja.

Mas os livros bons sobrenadam apesar de tudo. Os que acham que não produzem obras-primas, porque estão jungidos aos trabalhos de imprensa, se dispusessem de todo o tempo preciso e não tivessem necessidade de trabalhar, talvez não produzissem nada nem na imprensa nem na literatura...

É certo, entretanto, que a necessidade de ganhar a vida em misteres subalternos de imprensa (sobretudo o que se chama «a cozinha» dos jornais: fabricação rápida de notícias vulgares), misteres que tomam muito tempo, pode impedir que homens de certo valor deixem obras de mérito. Mas isso lhes sucederia se adotassem qualquer outro emprego na administração, no comércio, na indústria. O mal não é do jornalismo: é do tempo que lhes toma um ofício qualquer, que não os deixa livres para a meditação e a produção.

A imprensa comporta para os que nela trabalham com certo amor uma grande dose de arte.

Que é o essencial em uma obra artística? Dar emoções. Pois bem: é um prazer superior pregar uma doutrina, sustentar uma opinião e vê-la seguir, difundir-se, infiltrar-se no espírito público, através de mil obstáculos, comovendo as multidões, abalando-as, dando-lhes um ideal e forçando-as a agirem de acordo com ele.

Para isso não se pede talvez a perfeição da forma. Pede-se, porém, a clareza dos conceitos, o aproveitamento das oportunidades, a repetição. Um poeta se dá por suficientemente pago do seu trabalho se esgotaram uma edição de mil exemplares dos seus versos e acharam magnífico um dos seus sonetos. É justo. Mas porque, um jornalista que defendeu um indivíduo acusado por todos, que sustentou uma doutrina rejeitada, não há de ter uma grande e legítima emoção quando vê que a sua defesa mudou as acusações, ou em perdão ou em aplauso, ou quando sente que a doutrina, outrora rejeitada, vai criando entusiasmo, abrindo caminho? É de tão boa arte como o soneto do nosso poeta. Não da mesma, porém tão digna de respeito como a dele.

-Mas o jornalismo muitas vezes não se faz por convicção e sim por negócio.

-É verdade. Mas há poemas friamente rimados por indivíduos que não vibraram absolutamente nada ao fazê-los e, entretanto, comovem, emocionam. Assim como se pode fazer poesia boa, por acaso, sem sentimento, também se pode fazer jornalismo nas mesmas circunstâncias. Ou jornalismo ou qualquer outra coisa. Talma, que foi aclamado como um ator perfeito, não sentia nas cenas mais trágicas o mínimo abalo. Enquanto a platéia delirava de entusiasmo, ele gracejava com os outros atores.

-Mas os recursos do jornalismo são grosseiros.

-Não vejo bem por quê. São diferentes dos do romance ou do conto, mas visam o mesmo fim: usar de palavras escritas para impressionar cérebros humanos, fazer vibrar inteligências e corações. Quanto a mim, eu compreendo que se possa fazer com todo amor certas propagandas de idéias elevadas, insinuando hoje um argumento no meio de uma simples notícia, amanhã no comentário de um telegrama, depois num folhetim, depois num artigo solene... E é com uma verdadeira emoção que, mais tarde, se encontra aquele argumento, que apareceu anônimo, perdido em duas linhas de noticiário, repetido aqui e acolá, fazendo o seu caminho... Por que razão há nisso menos arte do que em amassar meia dúzia de substâncias coloridas, borrar uma tela, e dar assim a impressão de uma paisagem, uma cena qualquer? Com aquelas linhas semeadas aqui e além o jornalista criou em muitos milhares de cérebros a impressão de uma sociedade futura, constituída de outro modo, com uma vida diversa da atual. Pois essa obra de criação e emoção não é artística? -Ninguém o devia negar!

Não é verdade que o jornalismo prejudique em nada a nossa literatura. O que a prejudica é a falta de instrução. Sem público que leia, a vida literária é impossível. O jornal faz até a preparação desse público. Habitua alguns milhares de pessoas a uma leitura quotidiana de alguns minutos, dando-lhes amostras de todos os gêneros. Os que têm gosto e tempo começam por aí e passam para os livros. Mas o jornal é o indicador. Em nenhum país de grande literatura deixa de haver grande jornalismo. Sem este, aquela é impossível. Os que atacam a imprensa o que deviam fazer era atacar a falta de instrução.

E parece que já respondi mais que muito, de sobra...»

O Sr. Lima Campos forma com o poeta Mário Pederneiras e o notável artista Gonzaga Duque uma antiga trilogia da mútua admiração, como que à parte na nossa literatura, pertencendo aos novos pela ousadia das idéias e aos velhos pela idade, pois são todos três contemporâneos da geração de 1890.

O Sr. Lima Campos é um artista e vive como tal, goncourtizando as horas da existência com apuro e encanto.

Vou encontrá-lo numa brasserie, que a vontade dos três resolveu tornar um retiro de boêmia espiritual. Lima Campos recebe-me num refloreio de frases raras. Depois, como me sento, definitivamente resolvido a ouvi-lo, o autor do Confessor Supremo pergunta com um gesto melancólico:

-Então, sempre quer saber a minha opinião. Valerá a pena? Há três perguntas -as três primeiras- cujas respostas podem ser breves. Aí está a primeira, sobre a formação literária...

-Não acha que a contemplação da natureza e a observação constante de todas as suas manifestações na vida tenham sido e sejam os melhores e, talvez, os únicos formadores do indivíduo espiritual e, por conseguinte, do indivíduo literário?...

Eu creio assim, e dos primeiros autores lidos, os preferidos são, apenas, iniciadores, apenas um incentivo que vem despertar, a um dado momento, o que já existe formado, por outros processos, no indivíduo mental.

-Mas há de fazer influências mais fortes -as da mocidade...

-Que me ocorram de pronto -e isso já lá se vai pelos meus bons tempos de mau preparatoriano: Bernardo Guimarães, no romance nacional; Fagundes Varela, na poesia, e um conteur espanhol de costumes, Antonio Trueba; mais tarde, porém, empolgaram-me de todo Hugo, Goethe, Balzac com as suas deliciosas Ilusões Perdidas, esse adorável Maupassant com Pierre et Jean e com Sur l'eau, Garret, Camilo, Fialho e ah!... mestre Dante e mestre Flaubert.

Ao preferir este último nome, Lima Campos ergueu-se, ligeiramente, em pequena mesura.

-E a crítica? Nunca o preocupou a crítica?

-Ah! João! A crítica é sempre a água da análise pedantocrática vazada malevolamente na açorda saborosa da produção.

Imagina tu uma purée deliciosa de grãos de bico ou uma Juliana de caldo louro, quente e cheiroso, em que se vaze, de repente, um copo de água fria e salobra!... Em todo caso, ela tem o seu papel e tem os seus mestres...

O Dr. José Veríssimo por exemplo. Esse é o mais proeminente dos nossos críticos. Admiro-o pelo peso dos conceitos, pela circunspecção discreta do seu espírito analítico, pelo critério do seu método expositivo e pela fluência canora e flébil do seu estilo, que nos lembra o deslizar marulhoso de uma linfa.

É profundo, é, incontestavelmente, profundo! Não fosse a existência de um outro crítico eminente, o Sr. Medeiros e Albuquerque, e, sem dúvida, o Sr. José Verissimo seria sem rival. Chamo a tua atenção para o artigo em que o Sr. Veríssimo, em um dos últimos números da revista Kosmos, escacha, com clava de mestre, Camilo Castelo Branco. Se o autor do Eusébio Macário já não estivesse morto, seria caso para ir direitinho adubar as terras municipais do cemitério de San Miguel de Seide.

Mudo o curso à conversa.

-E os seus trabalhos? Qual deles prefere?

-Só tenho um livro publicado, o Confessor Supremo, e um em preparo -romance de época, de costumes e de tipos. O mais consta de trabalhos avulsos em jornais e revistas. Gosto de todos e, se assim não fosse, não os teria dado à publicidade; a preferência, por conseguinte, se não é impossível, é pelo menos, para mim, difícil. Amo-os; agora, os que foram vítimas em lê-los é lá outra coisa: devem tê-los achado detestáveis...

-Andam a dizer que atravessamos um período estacionário para a arte.

-Não; não me parece que a prosa nem a poesia contemporâneas estejam estacionárias aqui. Quando uma literatura conta prosadores como Gonzaga Duque, Virgílio Várzea, Coelho Neto, e poetas como mestre Luís Delfino, Alberto de Oliveira, Mário Pederneiras, Emílio de Menezes, Olavo Bilac, B. Lopes, Anibal Teófilo, Raimundo Correia, Machado de Assis, Luís Murat, João Ribeiro, Daltro Santos, ela vive, ela progride, evolui, ganha, dia a dia, feições novas. Quanto a escolas, felizmente, não existem; mas existem, infelizmente, algumas assimilações, feitas com talento, de outros autores, já nacionais, já estrangeiros, desvirtuando o cunho original de autoria que a obra deve ter; e, mais infelizmente ainda, existem grupos e a luta, a repulsa desses grupos, que ocultamente se guerreiam e, por vezes, de modo mesquinho, sob o disfarce da desintimidade. É doloroso, é lastimável, é uma porcaria em que só aproveitam os medíocres, os moendas-secas e os attachés de uns e de outros lados.

-Entre os prosadores não citou Machado de Assis...

-Propositalmente. Admiro-o, leio-o com prazer, com imenso prazer mesmo, mas julgo-o na prosa, além de demasiadamente pessoal, um estacionário; não podia, portanto, incluí-lo entre os prosadores que citei, como permiti-me não incluir também Rui Barbosa e Euclides da Cunha, porquanto a prosa de ambos não pode, a meu ver, ser considerada prosa artística. Serão, antes, escritores notáveis que, a rigor e propriamente literatos, considerando esta última classificação em relação a coisas de arte, que é do que se está tratando.

-Não podia precisar quais sejam os grupos de que há pouco falou?

-Eles existem; todos os conhecem. Para que citar nomes?

-Pertence a alguns?

-Nunca. Ligo-me, apenas, de um modo acentuadamente íntimo a dois dos nossos mais admiráveis artistas, um da prosa e outro do verso: Gonzaga Duque e Mário Pederneiras; amo-os, tenho-os como dois irmãos; mas, nas íntimas relações pessoais que nos ligam, as nossas individualidades de arte, embora se admirem e sejam afins na orientação, se independem; não formamos, por conseguinte, um grupo, uma coterie literária, mas um trio de velha afetividade duradoura e carinhosa.

Compreendo, e passo aos Estados. À minha pergunta Lima, Campos sorri...

-Todos os legítimos méritos literários que se revelam nos Estados convergem sempre para aqui. O Rio no Brasil, como Paris na França, e como todas as capitais de todos os países, com exceção da Alemanha, cujo verdadeiro centro intelectual artístico é Munique -é e será sempre a grande atração das intelectualidades provincianas; daí a superioridade do meio literário do Rio sobre os dos Estados; ele é o núcleo dos méritos mais apurados de todo o Brasil. Pondo de parte, pois, o caso de uma excepcionalidade intelectual tão intensa e tão apuradora de si própria, que em qualquer parte se revele e se mantenha a mesma, todos os demais méritos literários, por mais legítimos que sejam, se persistirem em se conservar nas províncias, ou nunca se libertarão de uma certa feição incipiente que caracteriza a literatura provinciana, ou, se já estiveram e brilharam em centros superiores, se estiolarão gradualmente até o atrofiamento, o estacionamento completo. É que lhes falta o incentivo, de que resulta o apuramento, o entrain, a contínua evolução, e que só nos grandes centros intelectuais podem encontrar; somente os grandes excepcionais, os supertalentos, os possuem inatamente. A esses é até indiferente Paris, o Saara ou o Pajeú das Flores, Munique ou o Quebra-Cangalhas. Olha, João, eu se fosse um gênio, preferiria até a solidão; arranjaria, a jeito, uma febaidazinha a meu modo, e enquanto abrissem avenidas cá por baixo, pirava-me por esses subúrbios acima e só reapareceria com cinco tomos em 8º, já prontos, para meter figas à Literatura Brasileira do Sr. Sílvio Romero.

Aquilo é que havia de ser obra de fôlego, João, de fôlego e de volume!...

Apesar da maldade, esse desejo de silêncio, entre árvores, na solidão, faz-me compreender que, mesmo não sendo gênio, Lima Campos começa a preferir que o não importunem. Faço com açodamento a última pergunta sobre o jornalismo, e o escritor responde, devagar, fumando:

-O jornalismo, como se acha constituído atualmente, não me parece dos melhores, mas já houve tempo em que foi excelente, não direi como fator, porém como elemento animador -isso no tempo dourado, em que os espíritos cintilantes, robustos, limpos, sem invejas, sem receio de sombra e, sobretudo, sem esnobismo, eternamente moços e eternamente boêmios, de Patrocínio e de Ferreira de Araújo, eram as duas vidas, as duas almas simples e claras, as duas forças sadias da imprensa. Hoje, contudo, ele produz ainda, embora com menos freqüência, belas organizações literárias, e nós aí temos para provar o quanto o jornalismo pode, não criar, mas evidenciar o literato.

E voltando para mim, calmo, perfeitamente sério, o Sr. Lima Campos começa a elogiar-me. Quero impedir as frases, mudar a conversa. Dos lábios sobe, como uma estranha harmonia, esse saboroso som do elogio. Entonteço, quase convencido. Vou mesmo dizer:

-Mas, qual! não é tanto... -quando lembro o seu desejo de ficar só... Então recuo, afasto-me, fujo.

Saio cheio de felicidade e venho por aí a pensar que não há outro homem com tanta penetração e um tão lindo estilo...

A literatura! O momento literário! Sim, tudo isso, sem o elogio mútuo, que seria, Deus de Bondade?

Afonso Celso

Do eminente Dr. Afonso Celso, o autor de tão belos quanto apreciados livros, recebi a seguinte carta, datada da Vila Petiote, alto da Serra, Petrópolis:

«Prezado confrade. -Respondendo à sua obsequiosa missiva e ao questionário que a acompanhou, direi o seguinte:

- I -

Para sua formação literária quais os autores que mais contribuíram?

-Sinceramente, não o posso indicar com precisão. Desde muito novo, tenho, mais que o hábito, o vício da leitura.

Calculo em milhares os volumes de todos os gêneros e procedências compulsados por mim. Qual o resultado? À parte a corroboração de algumas verdades fundamentais e eternas, antes de ordem moral que intelectual, em tudo apuro apenas nomenclatura. Escritores das mais diversas e antagônicas tendências me deleitaram e absorveram a atenção. Ignoro qual deles atuou de preferência sobre o que o meu digno confrade denomina -a minha formação literária. Ignoro mesmo em que é que consiste e até se dispõe de vida própria essa formação.

- II -

Das suas obras qual a que prefere? Especificando mais ainda: quais, dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere?

-Em março de 1756, escrevia Voltaire aos irmãos Crame, seus editores: «Não posso deixar de agradecer-vos a honra que me dispensais, imprimindo as minhas obras; mas, nem por isso, sinto menos pesar por havê-las composto. Quanto mais a gente se adianta em idade e conhecimentos, tanto mais se arrepende de ter escrito. Nenhuma das minhas obras me satisfaz; algumas eu quisera nunca as ter feito...»

Isto escrevia Voltaire, no apogeu da nomeada. Que direi eu dos meus opúsculos?! Sem falsa modéstia -je m'en veux de n'avoir pas dit, d'avoir trop dit, d'avoir mal dit.

Por que, nesse caso, continuar a escrever? Francamente, não sei. A verdade é que me regozijo quando elogiam os meus trabalhos, e sofro, durante algumas horas, quando os deprimem: sobretudo se, a meu ver (e, de ordinário, assim me parece), o praticam de má fé. Tomo então o firme propósito de nada mais escrever. Na manhã seguinte, surpreendo-me com a pena na mão...

- III -

Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe, no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.), ou há a luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?

-Encarregado pelo Ministro da Instrução Pública e Belas Artes de redigir um relatório sobre o movimento poético francês, de 1867 a 1890, Catulle Mendés, depois de copiosa dissodação, assim concluiu:

«Após o esplendor dos gênios românticos, a que se juntaram as glórias parnasianas, surdiu acaso um poeta muito alto, muito vasto, muito pujante, dominador dos espíritos e dos corações, digno do universal triunfo?» Não, infelizmente.

Não há motivo para desespero ante o número extraordinário de sonhadores singulares, prosadores originais, almas comovidas, artistas esquisitos ou violentos, de que se honram os últimos anos e a hora atual. Quantos mestres! O Mestre, não! Já Vitor Hugo, no declínio da idade, exclamava, a um tempo com orgulho e com tristeza: «O fim do século é o fim de um dia enorme, glorioso, resplandescente, o ocaso de prodigioso sol: depois em seguida, luminosas, faiscantes, diversas, finas, deliciosas, as pequenas estrelas inumeráveis...»

Guardadas as proporções, a observação aplica-se ao Brasil. Atravessamos uma quadra de incontroverso talento e atividade. Sobressaem duas ou três estrelas de formoso brilho, em qualquer região da terra.

Nenhuma produção, porém, magnífica, soberana; nenhum incontestável centro planetário. É aliás, a situação literária de todo o Ocidente. Salvante Tolstoi, a quem agora caberá sem exagero o sumo epíteto de gênio?

No tocante a escolas, penso, também com Mendés, que ainda e sempre só há e só houve duas formas supremas para os surtos divinos do homem: a ode e a epopéia, o gênero lírico e o gênero épico.

- IV -

O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?

-Mesmo nos países compostos, étnica e historicamente, de elementos heterogêneos, nunca a expansão local da literatura foi fator de desagremiação.

Entre as superioridades do Brasil, avulta a da sua homogeneidade, rara e extraordinária, comparada à de outras nacionalidades. Não compreendo bem o que significa literatura à parte. Ou as obras literárias têm valor, ou não têm valor. Se não têm valor, claro está que não prevalecem, em nada influem, nenhum efeito determinam. Se têm valor, o seu primordial e insuprível caráter é serem humanas, gerais, propagadoras de simpatia, estreitadoras da solidariedade nacional e universal.

- V -

O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?

-Houve quem definisse o jornal um arquivo de bagatelas, ou, mais complacentemente, familiar e rápida conversação quotidiana sobre tudo quanto ocorre. Declara Emile Faguet, ao mesmo tempo exímio crítico e insígne periodista: «O jornalista é um vulgarizador. Deve ter quantidades medíocres, porém eminentes em sua mediocridade. Não é preciso que seja um pensador, mas é preciso que a maioria do público pareça mais pensador do que aquelas que o são. Não é preciso que seja original, mas é preciso que possua cunho pessoal entre os que não são originais. Não é preciso que seja muito sábio, porque, então, apenas saberia uma coisa, mas é preciso que saiba superficialmente, e bem nitidamente, grande multidão de coisas diferentes. Não é preciso que seja bom escritor, mas é preciso que apresente todas as qualidades médias do estilo, -clareza, precisão, vivacidade, movimento,- e as apresente em grau assaz elevado.»

Sendo assim, tornar-se-á benéfico ou nocivo o jornalismo (e o do Brasil não difere do dos outros países) à arte literária?

No meu conceito, depende a solução do modo como se concebe a arte. Se arte é, como pretendem muitos, o conjunto de processos e meios de que o homem se serve para suscitar no coração de seu semelhante emoções e impressões, especialmente o sentimento do belo, não poucos jornalistas realizam o ideal artístico e não se mostram somenos aos artistas de outras categorias.

Será o exercício do jornalismo compatível com o de diversa manifestação da arte, com o de romancista, de historiador, de dramaturgo, por exemplo?

Penso que não. O jornalismo é exclusivista, é exaustivo.

À semelhança da constituição vigente não admite acumulações.

A prática honesta e sincera de qualquer arte reclama o homem integralmente. «Se queres ser genuíno artista, doutrinava o velho Leonardo da Vinci, repele quaisquer inquietações e cuidados alheios à tua arte. Seja tua alma como o espelho que reflete todas as coisas, ficando sempre polido, imóvel, radiante e puro.»

Aí está o meu depoimento no seu curioso inquérito, meu caro Sr. João do Rio. Muito de indústria, apoiei os meus assertos em outros de maior autoridade. Foi para lhes emprestar alguma probabilidade de justeza, mutuando a galanteria do convite.

Queira apertar a mão que cordialmente lhe estende.»

É, como se vê, o próprio encanto, a própria modéstia...

Luís Edmundo

Luís Edmundo é o mais simpático dos nossos poetas. Alto, com uma fisionomia muito pálida, onde branquejam os dentes e cintilam os cristais das lentes, é a figura obrigada das primeiras sensacionais, dos hotéis up to date, das partidas de campo aristocráticas, dos five-o'-clock com senhoras distintas. Não há quem não goste do seu perfil, quem o tenha visto discutir, quem o tenha atacado. O elogio envolve-o. O primeiro livro de versos que resolveu publicar esgotou-se. O segundo também. O terceiro também. Um belo dia, diante de um absinto, o poeta, cujo excesso de elegância o faz comparável ao conde de Fésansac e a Wilde, resolveu partir para Paris. Ia continuar a sua filosofia de descrença amável, ia pôr em prática e em exercício -essa alma da geração que tão bem pintou no seu profundo soneto:

Na garupa e febril desse animal possante

que me lembra um centauro enraivecido e bruto,

vejo o Mundo passar, veloz e palpitante,

e a voz humana e a voz da Natureza escuto.

Perguntam-me: -Onde vais, ó Cavaleiro andante?

Que ardor te leva assim, tão forte e resoluto?

Buscas acaso a flor de um sonho extravagante?

Que vai contigo? O Bem? o Mal? a Guerra? o Luto?

E eu deixo este animal de trágicos furores,

que é o Desejo e que tem as asas dos condores,

na corrida veloz que me tira do Mundo.

Pouco importa saber onde me leva a Sorte,

corra embora, febril, para as portas da Morte,

para o profundo Céu, para o Inferno profundo!



Cheguei, entretanto, ainda a tempo de lhe exigir antes da partida a resposta ao questionário.

-Cinco perguntas? indagou ele. Mas são as Vogais do Rimbaud! É uma questão de estado d'alma. Eu posso sentir A branco, quando outros o sintam vermelho ou amarelo.

-Isso é que seria interessante.

O poeta pensou.

-Mas é difícil. Não tenho cores simples, tenho nuanças da mesma desilusão.

-Manda-mas em verso.

-Mando-tas em prosa.

Alguns dias depois eu recebia cinco tiras de papel.

Desdobrei a primeira.

Eis o que dizia:

A

Um monsenhor Frutuoso, cura em terras mineiras, chegado aos meus por parentescos distantes, senhor de grande saber e muita moral e de quem trago de memória a figura sempre irrequieta e biliosa que lhe vinha de anos passados em rixas políticas e perseguições de partido, foi quem me pôs primeiro entre as mãos os livros que me ensinaram a amar a arte com o ardor com que ele entendia e amava.

Monsenhor, que tinha poucas predileções, parecia ter, na vida, duas, decisivas, fatais e sérias: a caça às pacas e o amor aos clássicos. Ora, quanto à sugestão da caça eu me podia furtar, porque então habitava um sobrado na rua da Alfândega, lugar de poeira e não de pacas, mas quanto aos clássicos a coisa era outra; eu estudava latim e monsenhor me inundava de Horários, de Ovídios e de Virgílios.

Phoebus volentem proelia me loqui

victas et urbes, increpuit lira...



Tudo isso me vem à memória numa evocação suave, onde vejo o gesto de monsenhor, o seu nariz de ave rapace, a sua mão esquelética e a sua barba mal feita.

Eu adolescia e nessa idade, em que eu todo era um rebento de aspirações e espinhas carnais, comecei a ter, então, pelos clássicos, a noção do que era literatura. Mas apesar das palavras de monsenhor não os amava, mais por uma idiossincrasia especial que por uma razão fundada.

Foi como comecei. Depois veio o internato com os livros em voga nos colégios urbanos daquela época e que líamos à socapa pelos dormitórios e recreios -Júlio Verne, Hugo, Boisgobey, Eça e Balzac, num caos profundo de onde a literatura picaresca, às vezes, surgia numa brochura de Rabelais ou num opúsculo de versos pornográficos, sempre de autor desconhecido. Isso apenas prova o meu início incolor e apagado como o de quase toda gente, que vem desde o padre que ensina os clássicos e prega moral até ao livrinho obsceno de literatura de alcova, que a gente põe nos forros e cavas da manga, na ânsia importante de escondê-lo aos bedéis.

Liberto dessa primeira e caótica leitura entrei noutra ainda mais caótica e tremenda. Lia, lia muito, tudo que me caia entre as mãos com o cachet das edições da Plume Mercure, Stock, Charpentier ou Lemerre.

Devorava brochuras francesas com ânsia e a febre intelectual que absorve os espíritos para um país fora do mundo. Li parnasianos, românticos, decadentes, simbolistas, satânicos, naturalistas, naturistas e magos, mas sem entanto reler um autor por predileção, sem a preocupação do proselitismo, do apostolado.

Como sou um pouco cheio de arrebatamento e paixão, é natural que já dissesse, ou mesmo escrevesse -X é o meu autor predileto, é o molde do gênio ou a bandeira de arte que tenho que defender, -mas com sinceridade hoje afirmo- nunca tive modelador de arte que me fascinasse.

Não posso, portanto, meu caro João do Rio, dizer-te a fonte onde fui beber a fantasia com que eu, mais por boa intenção que por maldade, malho, pelos jornais e pelo livro, a minha arte tão sem expressão e sem cor.

E

Nenhuma. Digo sem pseudomodéstia ou preocupação de originalidade. Sou dos que não se satisfazem jamais com o que produzem e vivem sempre na febre ansiosa de escrever coisa que preste. O meu livro será o de amanhã. Isto é o que digo hoje e certamente o que hei de dizer aos trinta, aos quarenta ou aos sessenta anos.

Tenho três pesadelos n'alma, profundos e inapagáveis, tais os de ter dado em letra de forma três livros de versos que, mau grado a sua feição melosa e vazia, obtiveram da crítica indígena aplausos que mais tarde me fizeram uma reputação rasteira e manhosa com caricaturas em jornais ilustrados e citações nos retrospectos literários da terra.

Não que eu desame esses pobres versos que me brotaram d'alma como flores ao sol, mas porque não vejo neles esse toque que eu sonho como o brilho que deve irradiar da boa e sadia arte. Demais, a minha bagagem literária é curta, é curtíssima; venho de há três ou cinco anos apenas, na turbamulta de uma geração que ainda não se firmou e que ainda deve ser a promessa risonha dos artigos de crítica nos jornais.

I

Não creio que haja entusiasmo como desânimo entre os que escrevem no Brasil. O que há é indiferença. O ardor das velhas pugnas literárias é coisa que já não existe entre nós. A não ser o Sr. Medeiros e Albuquerque, que se diverte, às vezes, com a leviandade de certos escritores novos e que transforma as suas crônicas literárias em teatrinho Guignol, onde os desgraçados que lhe caem nas mãos dançam o velho desengonço do Pai João, nada mais se ouve ou se vê. Porque, em tirando o Sr. J. dos Santos, quando o poeta B. estréia com os Cantos do fundo d'alma ou a Lira do meu sofrer, o jornal entre um anúncio de pílulas e uma prisão em flagrante nunca deixa de avançar: O livro do jovem estreante é dos que não se confundem com a vulgaridade; o artista que espere o lugar que lhe compete entre a plêiade ilustre dos que formam os homens de letras desta terra.

E os poetas fervilham.

O jornal de polêmica, o panfleto literário, desconhecemos por completo. As célebres bengaladas de Camilo fazem rir às barrigadas escritores e críticos, como uma história sobrenatural e engraçada.

Chegamos mesmo, às vezes, a acreditar que somos todos boas e inofensivas pessoas.

Já não se diz mais: -Fulano é uma besta.

Velhos e novos são saldunes que passeiam pela trilha literária, bras dessus bras dessous, risonhos, calmos, indiferentes...

E dessa santa e pacata união nada avulta que impressione ou que fique: os velhos abandonam as letras e os novos dizem com ar de enfado, isto aos vinte anos, com bonitas cores no rosto: -Já não tenho veleidades...

E vão ser empregados públicos.

O

Centros literários dos Estados parece pilhéria, quando o próprio país não pode criar ainda um centro de literatura à parte. Nós temos, é verdade, no Paraná, em Minas, em S. Paulo, no Maranhão, e na Bahia, facções literárias com moços de bastante talento; mas não é crível que eles formem núcleos característicos capazes de determinar centros de literatura à parte. De resto, os olhos estão todos voltados para o Rio, onde a Academia assenta quarenta imortais que oficializam a Literatura Nacional.

U

É péssimo, e penso como toda gente.

Nós temos nesta terra duas instituições fatídicas para os homens de letras: uma é a política, a outra é o jornalismo.

O desgraçado que tem talento, ou cai na coluna diária a matar a sua arte a trezentos mil réis por mês ou vai apodrecer numa cadeira de Congresso a ganhar setenta e cinco diários entre os discursos sobre a lei do orçamento e sobre o imposto do gado.

Talvez isso ateste soberanamente a nossa fraqueza intelectual; mas como o país é de analfabetos os desviados desculpam-se dizendo -que não podem morrer de fome.

E em parte eles têm uma forte e pensada razão.

Clóvis Beviláqua

O eminente Sr. Clóvis Beviláqua manda-me do Recife a seguinte resposta:

- I -

«Ainda no colégio, em Fortaleza, dos 12 aos 14 anos, deliciavam-me os versos e as novelas que podia obter. Como é de imaginar-se, o regime do estabelecimento não nos permitia senão a leitura dos livros de lição e uma ou outra leitura anódina. Chegava-me, porém, aos ouvidos o ruído da literatura como o eco de um movimento realizado em mundo longínquo. E, aumentando o meu desejo de conhecer esse mundo ignorado e sedutor, fui conseguindo ler, apesar da vigilância do pessoal administrativo, romances de Dumas, pai, alguns livros de informações como os Varões Ilustres do Brasil, de Pereira da Silva, e outros de certo valor artístico.

Pedro de Queirós deu-me a ler, nesse tempo, o Goethe, mas nessa primeira aproximação não pude compreender as belezas transcendentes do grande poeta.

Passando em 1875 a estudar no liceu, tive mais facilidade de travar conhecimento com os escritores da moda: Gonçalves Dias, Varela, Alencar, Álvares de Azevedo e Castro Alves. Mas, justamente quando me ia docemente engolfando na região fantástica da poesia e do romance com os autores citados e quantos me caíram nas mãos, foi minha atenção despertada pelo movimento literário que então se operava no Ceará e a cuja frente se achavam Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior, João Lopes e Amaro Cavalcanti. Desse grupo foi Rocha Lima o escritor que mais simpaticamente atuou sobre o meu espírito. Por ele comecei a amar a crítica literária e a ter uma compreensão mais verdadeira da literatura. Lendo Taine, Teófilo Braga, Quinet e Luciano Cordeiro, os meus horizontes literários se dilataram e apoderou-se de mim forte desejo de penetrar as literaturas exóticas, isto é, a portuguesa e a francesa, recebendo através desta última o conhecimento dos grandes mestres alemães e ingleses, George Sand, com a sua empolgante Lelia, com o Isidora, o Aldo, a Indiana; Gautier, com o Fortunio e Mle. Maupin; Byron, com o Corsário, Manfredo, Giaur e D. Juan; foram os autores da minha predileção, nessa quadra. Isso quanto a estrangeiros, apesar do muito que me encantava Herculano; entre os nacionais, Alencar tinha para mim o prestígio de uma superioridade ofuscante.

Em 1876 fui continuar os meus estudos no Rio de Janeiro, tendo por companheiros Feijó, que se finou antes de revelar todas as refulgências de seu grande talento; Paula Nei e Silva Jardim. Fui assíduo freqüentador, ao lado deste último, da Biblioteca Municipal, situada então no campo de Santana, esquina da rua Conde d'Eu; mas lia sem método e com pouco aproveitamento. Não fazia seleção nem talvez pudesse fazê-la. Absorvia Hugo e Schiller de mistura com Escrich e consócios; Musset e Lamartine interessavam-me tanto quanto Michelet e Buchner; irmanava Shakespeare e Macedo.

No Rio, começara a interessar-me pelo positivismo, de que davam conhecimento os escritos de Miguel Lemos; mas foi no Recife, para onde me transportei em 1878, que me familiarizei com Littré, cujas obras ainda hoje me ornam a estante e da meditação das quais comecei a extrair uma segura intuição da ordem universal. Por algum tempo o positivismo seduziu-me, e passaram-me pelos olhos, além dos volumes de Comte, os trabalhos de Wyrouboff, Roberty, Bourdeaux, Robinet e Poly. Comecei depois a sentir as falhas do sistema e, ao concluir o meu curso de Direito em 1882, minhas leituras prediletas, em matéria filosófica, eram Haeckel, Spencer, Lange e Soury. Mais tarde é que Schopenhauer, Noiré, Bain, Mill e Wundt haviam de ser estudados.

Com Martins Júnior, Clodoaldo Freitas, João Freitas, Orlando, José Carlos e outros excelentes companheiros, embora me preocupassem as investigações filosóficas, mantinha o culto da literatura amena e da crítica literária. Dos nossos, ia lendo os antigos, os românticos e os naturalistas, que começavam a aparecer com Aluísio, e acompanhava com muito interesse as tentativas de romance histórico, sob a excelente feição de um naturalismo tradicionalista, que ia publicando Franklin Távora. Dos estranhos, Flaubert, os Goncourt, Daudet, Sully Prudhomme, Lecomte de I'Isle, alguns ingleses e italianos, mas principalmente Zola, o romancista e o crítico, eram os autores literários que mais doces emoções me despertavam.

Foi nesse momento que os estudos de Sílvio Romero me fizeram compreender que essa alta função da vida intelectual dos povos -a literatura- somente à luz do critério social e etnográfico se pode bem apreciar.

Depois de concluído o meu curso de Direito foi que, por assim dizer, comecei a interessar-me por essa bela ciência, ao lado da qual passara cinco anos sem lhe perceber os encantos. Devo a Tobias esse inestimável serviço de me ter aberto a inteligência para ver o Direito. Durante o curso acadêmico, estudei apenas para cumprir as minhas obrigações e transitar pelas solenidades escolares sem apoio estranho, mas não podia dedicar afeição profunda a uma ciência na qual não descobria o influxo das idéias que me davam a explicação do mundo.

Incitado pelo ensino de Tobias e guiado por Jhering, vi o direito à luz da filosofia, da sociologia e da história. Savigny, Bluntschli, Roth, Glasson, Cimbali, d'Aguano, Cogliolo e Post, para citar somente os mais característicos, deram-me a educação jurídica.

No Direito Penal, as minhas simpatias se declararam, desde os primeiros momentos, pela terza scuola de Tarde, Alimena e Liszt.

Mas, ainda que a história e a legislação comparada me dessem a contemplação do fenômeno jurídico no seu máximo brilho e em sua plenitude, é bem de ver que eu não me podia segregar do Direito Pátrio, cuja expressão me davam, principalmente, Coelho da Rocha, o mais completo discípulo de Melo Freire, e Teixeira de Freitas, o maior dos nossos jurisconsultos.

Talvez pareça longa esta resposta. Mas não a podia dar mais concisa. A formação de um espírito se faz lentamente, por assimilações e adaptações sucessivas.

A história do espírito de cada um de nós reproduz, em miniatura, a história do pensamento de uma época. Mas eu me resumo, afinal. Os autores que mais contribuíram para a formação do meu espírito foram:

Em Literatura: -Alencar, Taine, Sílvio Romero e Zola.

Em Direito: -Tobias Barreto, Jhering, Post, Savigny e Glasson.

Em Filosofia: -Littré, Comte, Spencer e Haeckel.

- II -

Qual das minhas obras prefiro? Julgo-as todas imperfeitas, não simplesmente em relação ao que deviam ser, mas até em relação ao que era lícito esperar que fossem.

Mas, para não fugir à interrogação, direi que o Direito da família e a Criminologia e Direito me satisfazem um tanto mais do que as outras minhas produções; o primeiro, pelas questões de ordem social que me permitiu enfrentar, e a segunda, porque nela pode meu espírito acentuar mais a sua individualidade.

No entanto, o Direito das obrigações é mais sintético do que o Direito da família; se me pedissem um trecho para uma coletânea, eu o iria colher, de preferência, nos Juristas filósofos; e, se fosse falar como técnico, talvez devesse dar a primazia ao Direito das sucessões.

Falo somente das obras jurídicas, porque fiz do Direito a minha especialidade, e portanto são as obras produzidas nesse domínio que devem dar a medida do meu espírito, quaisquer que sejam as minhas predileções literárias ou filosóficas.

- III -

Penso que a literatura pátria não atravessa um período estacionário. Os nossos grandes escritores estão em atividade: Sílvio, como Araripe e Veríssimo; Bilac e Neto, como Arinos; Machado de Assis, como Domingos Olímpio ou Euclides da Cunha.

Quer-me parecer que em poesia os moldes estão gastos, porque o artifício matou a espontaneidade do sentimento, mas daí talvez resulte uma vantagem: muitas inteligências deixarão o Parnaso, onde somente os verdadeiros poetas ficarão empunhando a lira eterna das emoções reais.

No romance, a escola naturalista perdeu os tons rudes e as arestas mais ásperas: tornou-se flexível e adaptável a todas as lutas de sentimentos, sejam individuais e íntimos, sejam sociais e externos.

Machado de Assis, Domingos Olímpio, Graça Aranha e Xavier Marques, pois que Inglês de Sousa está recolhido ao silêncio, são os nomes que me vêm à lembrança ao considerar esta nova feição de romance nacional.

O conto é gênero que reclama esforço menor e, por isso mesmo, se mostra mais abundante. Artur Azevedo, Medeiros e Albuquerque, Lúcio de Mendonça, Arinos, Neto, Freire, Neves e tantos outros vibram todas as notas.

Fujo de uma forçosamente deficiente nomenclatura; indico tendências apenas para mostrar que não estacionamos.

- IV -

A literatura brasileira é uma só; mas, como as condições do meio físico e da composição étnica não guardam uniformidade em toda a vasta extensão do país, é natural que, em alguns centros, se acentuem variações que, aliás, pela constante permuta de idéias e pela influência recíproca exercida pelos maiores núcleos, tendem a ser assimiladas ou a desaparecer no fim de pouco tempo.

- V -

Leitor constante de jornais, não sou muito simpático ao jornalismo. Sem negar-lhe o valor cultural, acho que, em relação aos que nele trabalham, esgota as energias, dispersa os esforços e alimenta a superficialidade; e, em relação aos que nele bebem idéias, mais vezes perturba do que bem orienta, mais vezes agita paixões do que esclarece opiniões.

É uma forte projeção de luz envolvida em densa fumarada.»

Nestor Vítor

Recebo-o na volta da sua longa viagem. Nestor Vítor está transformado. A violência, aquele ar de pedagogo zangado com que procurava convencer os discípulos, desapareceu. É um cidadão que passou por Paris, que viveu em Paris, que civilizou todas as arestas do temperamento na polidez de Paris.

Três anos antes faria reflexões a propósito do meu inquérito, reflexões onde haveria de certo alguns desaforos, alguns axiomas, algumas ironias e muito talento. No momento em que lhe pedia as suas idéias, entretanto, sorriu.

-Já?

-Quando quiser. O tempo de refletir. Os jornais não deixam a gente tempo para muita coisa.

Passou os olhos pelo questionário.

-Mas é grave!... Mando-lhe a resposta, amanhã. E sabe? encantado, positivamente encantado...

No dia seguinte recebia a seguinte carta:

«Meu caro João do Rio.O terceiro livro, de Abílio, adotado na escola em que aprendi a ler, é que me proporcionou os primeiros arrebatamentos que o verso me produziu. A «Minha Terra», de Casimiro de Abreu, o «Adeus aos meus amigos do Maranhão», de Gonçalves Dias, e a «Ode aos Baianos», do primeiro José Bonifácio, incluídos naquela miscelânea, deixavam-me fora de mim quando eu os lia, ou mesmo simplesmente ouvia ler, tanto mais se a leitura era feita em voz alta e com certa ênfase. Eu caía quase que em verdadeiro paroxismo, tal a deliciosa exaltação que se apoderava do meu espírito.

Nessas ocasiões nunca me passou pelo cérebro a ambição sequer de algum dia poder fazer coisa assim. Aqueles homens estavam aos meus olhos muito acima de quanto me fosse dado nesse sentido aspirar.

Na escola eu só fiz jornalismo manuscrito. Podia por fim tirar umas vinte ou trinta cópias, tendo conseguido comprar um polígrafo. A influência dos nossos poetas só dois anos depois é que frutificou com o estimulo de um jornalzinho, A Violeta, que rapazes mais velhos do que eu publicavam então na minha terra:

As flores são lindas,

são castas, são belas,

são lindas estrelas

que brilham no ar...



Lembra-me que foram estas as minhas primeiras trovas, benigna, indevidamente elogiadas pelos mocinhos que me aceitaram para seu colaborador.

Depois comecei a freqüentar o clube literário que havia na nossa cidade e ainda hoje existe, em cuja biblioteca pude encontrar-me com a literatura nacional e portuguesa.

Os poetas e os romancistas, eles e alguns críticos mais acessíveis, é que conquistavam a minha maior atenção, principalmente Gonçalves Dias, Castro Alves, Fagundes Varela, José de Alencar, Bernardo Guimarães e o autor de uma história da literatura portuguesa, cujo nome esqueci. Li Os Lusíadas, por indicação do meu professor de línguas; mas, de todo, não pude achar-lhes sabor.

Foi Gonçalves Dias quem sobrepujou as demais influências dessa época. Pelos meus quatorze anos de idade compus um poemeto, em não sei quantos cantos, ingênua imitação às poesias indianistas do autor do I-Juca-Pirama:

Qual perla mimosa de nácar corada,

que nasce encoberta no fundo do mar...



Era assim que começava.

Depois que fui sabendo traduzir do francês, ao mesmo tempo que manuseava Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro -os versos da Morte de D. João produziram-me um grande abalo-, fui lendo Vítor Hugo, Chateaubriand, Madame de Staël, os livros da história da literatura de Villemain, fora os clássicos, que tinha de traduzir em estudo, por obrigação.

De Vítor Hugo, mais do que a d'Os Miseráveis, deliciou-me a leitura de Nossa Senhora de Paris, e, ainda mais do que esta, a do Homem que ri e d'Os Homens do Mar. Seu livro, porém, que eu não me limitei a ler apenas uma vez, mas que volta e meia tinha às mãos, porque ele me interessava particularmente, era o seu William Shakespeare, que obtive de uns salvados, com um grosso volume das obras dos grandes autores italianos, mais os de Villemain a que já me referi.

Esse William Shakespeare, e depois os primeiros volumes de Hugo, que andei procurando de propósito, foram dos livros em que mais meditei até aos meus dezessete anos de idade, já aí com a louca, em todo caso nobre ambição que obras tais tão facilmente, na idade em que eu estava, inspiram. Devo juntar a estes os livros de Staël, principalmente os de crítica e de história, -as páginas em que ela se refere à sua vida, aquelas outras, excelentes, sobre a Alemanha, suas reflexões relativas à Revolução Francesa, etc.

Em todo caso já me achava então um tanto impressionado com o naturalismo, tenho lido principalmente muitos volumes de Zola. Custou-me a princípio aceitá-lo. Lembra-me de ter feito, aos quinze anos talvez, um ensaio intitulado Vítor Hugo e Emílio Zola, em que me declarava francamente pelo primeiro.

Chegando ao Rio com o propósito de preparar-me para o curso anexo da Escola Politécnica, estudos que iniciei num estabelecimento particular, um dia, por acaso, vi e comprei num livreiro A Filosofia d'Arte, de H. Taine, quase pelo mesmo tempo em que adquiria as Flores do Mal, de Baudelaire. Estas eu já conhecia um pouco de leitura superficial que fizera na província, levado pelo entusiasmo essencialmente comunicativo de um meu amigo, Emiliano Perneta, que chegava de S. Paulo, em período de férias.

As duas obras seduziram-me a tal ponto que eu reneguei as matemáticas e resolvi entregar-me de corpo e alma à literatura, participando isso mesmo a quem me cumpria dar satisfação a tal respeito.

Daí por diante entreguei-me ao estudo das ciências, da filosofia e da literatura em geral, com a decisão e o ardor próprios de quem julga que enfim encontrou o seu caminho. Ao mesmo tempo ia produzindo alguma coisa, mais verso do que prosa, então.

Não devo calar que Alberto de Oliveira, e Machado de Assis um pouco, principalmente na sua tradução d«O Corvo», de Edgar Poe, exerceram a maior influência de que me lembre, tratando-se de autores nossos, nas minhas produções dessa época.

É claro que depois disso, convivências e tantas outras leituras vieram que foram atuando e têm vindo a atuar mesmo até hoje na minha formação. De quantos amigos intelectuais tenho podido contar, nenhum como Cruz e Sousa, por exemplo, concorreu principalmente para me dar estímulo e inspirar-me paixão na minha fase de combate aqui no Rio. Mas quando nós nos encontramos, as minhas tendências já se achavam definidas nas suas linhas gerais. Foram, pois, esses de que acima falo que me deram o que se chama o impulso inicial.

Das minhas obras qual a que prefiro?

Sempre tive predileção pela que ainda não produzi. As outras só em dias especiais é que as posso reler. Depois, não me parece que valha a pena falar de coisas que fiz, tendo eu sempre a impressão de que o público não se lembra delas, tanto mais que a maior parte dos leitores as desconhece por completo.

Se atravessamos ou não um período estacionário em literatura?

Estamos mais ou menos nas mesmas condições de todo o Ocidente. Neste instante é mais em Roosevelt que se concentra a atenção universal, representante como ele é, ainda não de uma característica renascença, mas de um momento de crise, o planeta inteiro achando-se na perplexidade de quem não sabe ao certo para onde irá.

Há forças poderosíssimas em ação -há o movimento industrial e o movimento socialista; mas que pode conhecer antecipadamente o que vai resultar da incubação formidável a que assistimos?

Parece que o mundo terá dentro em pouco o seu eixo de influência inteiramente deslocado da posição em que se achava, e o governo da humanidade irá cair em outras mãos que não aquelas de quem mais dependeu até agora a marcha da civilização.

Mas até que ponto e como essa deslocação se há de produzir? Quais os seus resultados práticos? Que abalos ou cataclismas hão de provir daí, que modificações sofrerá com isso a geografia política e até o destino das diferentes raças humanas?

Nós outros, brasileiros, não temos sido de todo indiferentes a essas graves preocupações.

A maior parte dos nossos escritores, é certo, poetas, autores de contos, romancistas, ainda obedecem ao programa de há vinte ou trinta anos atrás. Seus amores, ou então o esplendor da nossa natureza e a poesia dos nossos costumes, os absorvem quase por completo. Eles são mais ou menos parnasianos no verso e naturalistas fazendo contos ou romance. Como exemplo, dois excelentes autores, Alberto de Oliveira e Coelho Neto.

Mas há outros que já acordaram mais vivamente para a hora.

Por enquanto, preocupado franca e diretamente com essas perspectivas de que falo, só há um livro de arte, -Canaã, do Sr. Graça Aranha.

O romance tolstoísta, Ressurreição, do Sr. Curvelo de Mendonça, também é característico do momento, embora muito pouco no Brasil, onde ainda nem quase se pensa sobre essas coisas.

É de citar também A América Latina, do Dr. Manuel Bomfim, corajoso livro de crítica e doutrinamento, palpitante de atualidade.

Além desses, há outros que igualmente vêm a sua hora, porque nascem das circunstâncias da ocasião.

Por exemplo, produto da indecisão ou perplexidade de que falei, e do nervosismo que ela determina, está-se criando em todo o mundo um novo ramo literário, que, bastardo como seja, merece no entanto esse nome, quando praticado por homens de talento e de capacidade artística. Refiro-me à literatura de informação aos produtos de interessantes reportagens, primeiro publicados na imprensa e depois coligidos em volume, abrangendo os mais vários e, às vezes, os mais curiosos e importantes assuntos.

Ora, As Religiões no Rio e este livro em que v. me dá a honra de colaborar pertencem ao gênero, e, como eu já disse noutra ocasião, não encontram competidores no nosso meio. De modo que de v. também se pode dizer que é legitimamente um representativo.

Os trabalhos críticos dos Srs. José Verissimo, Sílvio Romero e Araripe Júnior, homens, todos três, que estudam incessantemente e têm o senso do tempo em que vivem, devem ser por isso mesmo considerados como agentes positivos na nossa literatura.

Seria injusto não lembrar o aparecimento de um livro de muito valor, e com ele o de uma forte individualidade, até então ignorada, como era a do Sr. Euclides da Cunha antes de publicar Os Sertões, que é a obra a que me refiro.

As valiosas páginas desse seu volume inicial, além do raro rebrilhamento da forma, são concebidas num espírito todo moderno, de informação e psicologia que procura ser honesta e certa, de um realismo, às vezes mesmo de um pessimismo, que fazem violento contraste com as basofias, de boa fé, porém ingênuas, que tanto caracterizam a atmosfera do Segundo Reinado. Mas nem isso se deixa de sentir que estes inflexíveis, talvez mesmo às vezes demasiado rigorosos, modos de ver do escritor de hoje, nascem do mais fundo e sério sentimento de amor e interesse pela terra brasileira que um filho dela possa nutrir.

Também o bom livro do Sr. Oliveira Lima, No Japão, é obra lida entre nós com o mais justo interesse. Ele nos poderá aproveitar não pouco no decisivo momento que atravessamos.

Não devemos, por fim, esquecer aqui o grupo de jornalistas que ora mais influência estão exercendo em nosso meio; é com toda razão que eles conseguiram esse predomínio. Homens do talento e preparo de Alcindo Guanabara, Eduardo Salamonde, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac e alguns mais, obteriam vencer em qualquer parte, uma vez colocados na imprensa.

Menos políticos do que tiveram de ser os jornalistas de há quinze anos atrás, os Quintino, os Patrocínio, os Ferreira de Araújo, os Rangel Pestana, mais desilusionados e realistas, em todo caso eles são os representantes dos novos ideais de acordo com o espírito da época.

Hoje nos é talvez mais indispensável acompanhar este último e precaver-nos à altura das suas exigências, do que o era a própria obra da abolição e a vitória do princípio republicano. Sem estas duas coisas a nação poderia perfeitamente subsistir então, enquanto que ela corre hoje em dia riscos os mais sérios, se não souber ver a hora e não tiver a energia necessária para colocar-se como exigem os seus problemas vitais.

É claro que de quanto se faça em letras, quer no novo sentido, quer continuando ou completando a obra que foi a novidade anterior, só o que seja realizado superiormente é que há de ficar, como sempre tem acontecido. Digo isto, meu caro João do Rio, para responder ao seu último quesito dos que se prendem a esta questão.

Não me parece que os centros literários constituídos nos Estados de há uns anos para cá ofereçam tão cedo o perigo ou a vantagem -conforme se encare- de criar literaturas à parte.

O centro, seja como for, ainda exerce tal influência sobre a periferia em nosso país, que Estados há onde se é mais ortodoxo em relação a uns quantos preconceitos criados nos grupos literários do Rio, do que mesmo aqui.

A criação desses centros prova, pois, que eles, na sua maioria, não são mais do que produtos de imitação, devidos à influência da nossa Academia de Letras.

Terminando, sobre a questão de saber-se se o jornalismo é um bom ou mau fator para a arte literária, direi que se ele não existisse, se a evolução das coisas já tivesse podido eliminá-lo, substituindo-o por instituição melhor, seria bem bom para a arte literária. Mas como isso ainda não se realizou, e pelo contrário, o jornalismo resiste de cada vez mais vivaz, parece-me que hoje ela não o pode dispensar.

Muito cordialmente.»

O Sr. Pedro do Couto, crítico bem conhecido, manda-me estas opiniões sensatas e cheias de discreta reflexão:

«Correspondendo ao vosso gentil apelo, passo a responder o que julgo cabível nos moldes do questionário que me foi presente.

No primeiro quesito pedis-me indicação dos autores que mais influíram para a minha formação literária. Ser-me-ia difícil, mesmo quando fora de grande monta o meu valor nas letras, tal dizer, visto que a nenhum dos mestres ou dos chamados tais devo determinada orientação. Iniciado no domínio da matemática e tendo, portanto, o espírito educado convenientemente, fácil me foi julgar com precisão dos trabalhos literários cuja leitura fiz.

Em uns apreciava o vigor da forma, a elegância do estilo; em outros, o valor da tese estudada e o brilho com que era apresentada. Nenhum deles, porém, cooperou para o meu juízo estético, de modo a filiar-me a tal ou qual orientação literária. Tenho noção assentada sobre a função da arte e seu destino, julgava as obras que lia segundo o modelo filosófico de antemão traçado. Ora, assim sendo, facilmente compreendereis que era mui precária a influência que em mim poderia produzir qualquer autor, por mais valor artístico que a evidência manifestasse.

Penso ter respondido à vossa primeira pergunta do modo mais consentâneo com a minha individualidade e segundo a interpretação que dei ao espírito do quesito.

Em relação ao 2º, cumpre dizer-vos que não dou aos meus trabalhos importância tão subida que valha uma preferência por este ou aquele -reputo-os todos efêmeros, sem nenhum destaque especial. Resta-me, no entanto, a consoladora certeza de que nas condições dos meus se acha a mor parte dos que por aí andam, sem excluir, é bom lembrar, os de muitos medalhões pretensiosos. A estes, coitados! nem sequer resta a convicção da mediocridade de seus esforços intelectuais.

Bom seria que a minha franqueza atuasse de algum modo em muitos dos nossos contemporâneos que a ignorância própria e de seus iguais arvora em estetas e mesmo em mestres. De mestres só têm a catadura e a empáfia, porque letras e ciências, sobretudo estas, andam deles tão afastadas como nós do Sol.

Deixêmo-los, porém, em paz, e continuemos nossa palestra.

O 2º quesito exige resposta mais detalhada, o que passo a fazer-vos gostosamente.

No momento atual, no Brasil, dá-se um fato de ordem sociológica mui natural: como deveis saber, o movimento estético, em todas as suas modalidades, é função do movimento social. O conjunto reage sobre as partes, determinando esta ou aquela manifestação, neste ou naquele tipo. Assim sendo, as grandes obras de arte só se podem efetuar quando a situação social o impõe taxativamente. Ora, o período de dissolução que atravessa o mundo moderno não pode determinar o aparecimento de obras de relevância, capazes de por si sós caracterizar uma época, isso não só em nossa Pátria, como mesmo nas nações que ocupam a vanguarda do movimento progressivo. Posto assim o problema, julgo que a situação -da poesia, da prosa, da música, da pintura e da escultura, no Brasil como na Europa, tem de ser, na melhor das hipóteses, um apuro de fatura, nada traduzindo que manifeste grandeza de concepção.

Quanto à existência de novas escolas, e à luta entre elas, cumpre que eu estabeleça uma preliminar: que se deve entender por escolas? Existem elas bem discriminadas?

No rigor do termo, não existem escolas; e quanto à sua diferenciação, é mais aparente do que real. Notam-se maneiras diversas de fazer, modos diversos de expor o pensamento, em regra, sempre o mesmo. A luta é, pois, entre indivíduos, como representação de modos de ser literários.

A um exagero de forma opõem alguns um completo desleixo dela, como sendo a verdadeira arte. A uma crueza de expressão, tocando as raias da licença, como alguns compreenderam o realismo, segue-se um emaranhado de palavras, procurando veladamente traduzir sentimentos dos chamados, permiti que os englobe, nefelibatas.

Os primeiros deleitam-nos muita vez pelo vigor da forma, pela correção do estilo; os segundos inebriam-nos com a música de suas palavras. É claro que, assim dizendo, me refiro aos primazes, únicos que podem servir para uma análise precisa da tese que propusestes.

Como vedes, não há entre eles distinção de princípios, de idéias, de orientação -divergem exclusivamente na maneira de exprimir os mesmos pensamentos.

Pedis-me entre os contemporâneos brasileiros os representantes dessas pretensas escolas. Entre os poetas cultivadores da pura forma, ocupam lugares salientes os Srs.: Alberto de Oliveira e Olavo Bilac; entre os modernos, salienta-se Cruz e Sousa.

Representando um fato único no nosso meio literário, destaca-se o Sr. Luís Delfino, que vem atravessando todas as correntes, revelando sempre uma pujança intelectual digna de admiração.

Dos romancistas filiados ao primeiro agrupamento, evidencia-se pelo vigor do talento o Sr. Aluísio Azevedo, hoje infelizmente demasiado entregue às suas funções consulares; da segunda categoria não há, que eu saiba, nenhum romancista que possa ser considerado típico.

No romance, porém, obedecendo a uma orientação social, isto é, tendo em vista a solução do problema moderno, já se começa a sentir algo de interessante: cansados de fazer arte pela arte, espíritos emancipados da rotina, tendo estudado a crise que assoberba a sociedade moderna, entregaram-se à solução da questão, pondo seus méritos literários ao serviço do movimento de reforma, que se impõe de mais em mais. Discorde eu embora das soluções apresentadas, pouco importa; o que é inegável é que uma preocupação alevantada os impulsiona, libertando-os da esterilidade a que se veriam entregues não fora um nobre amor pela espécie a que pertencem.

Pelo número se não salientam eles, mas pela qualidade são dignos de nota.

É vezo colocar entre estes o Sr. Graça Aranha, cujo livro é mais, a meu ver, uma apologia bem escrita, com muito estilo, do germanismo, como poderá sentir quem imparcialmente ler Canaã. Não sei mesmo por que o classificam como escritor socialista, classificação esta que o meu pobre espírito ainda não pôde compreender. Nessa categoria podemos, no entretanto, incluir os Srs.: Fábio Luz e Curvelo de Mendonça, cujos trabalhos, se não têm o vigor de forma de Canaã, coisa aliás fácil de adquirir, obedecem, todavia, à determinada orientação, pregam novos ideais, propugnam pela reforma da sociedade mercantilizada em que vivem.

Em referência ao 4º quesito, tenho a responder-vos negativamente. De fato, não creio que os Estados possam criar literatura sua. Isto admitir seria desconhecer a influência que a Capital Federal exerce intensamente nos vários departamentos do Brasil, em todos os ramos de atividade. É ela que, como intermediária, lança aos Estados, mais ou menos modificados, os frutos do meio literário europeu, sobretudo francês. O que se poderá talvez dar é haver nos trabalhos literários ali surgidos uma certa cor local, isto é, certo cunho regional em que as paisagens e os costumes respectivos sejam apresentados com carinho, seja dito de passagem, bastante aceitável e até necessário.

Nunca, porém, poderá existir uma literatura em cada Estado, o que desde hoje, com os elementos existentes, se pode terminantemente assegurar.

Eis-me, finalmente, chegando à última interrogação que me fizestes. Perguntais-me se «o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom, ou mau, para a arte literária.» Encarado como função habitual, evidentemente aniquila boas vocações literárias, obrigando-as a trabalhos ligeiros, ao sabor do público, de quem se torna cada vez mais dependente. Assim considerado, prejudica de fato o jornalismo a boa literatura, o que infelizmente se acentua em um forte crescendo pela maneira por que se o faz modernamente, em que se exige mais um bom repórter do que um ótimo redator.

Se o encararmos, porém, como meio mais simples e mais pronto de entreter entre o literato e o público convivência necessária, iniludivelmente serviços reais ele presta às letras. Se não fora ele, como poderiam começar a aparecer belos talentos que posteriormente chegam a impor-se até aos editores?

Sim; não fora ele, como conseguiriam imprimir seus trabalhos inteligências que surgem, mas que os gananciosos editores não conhecem e a quem, portanto, não acolhem sequer com a devida cortesia?

Não, meu talentoso confrade, seja como for, não podemos negar que o jornalismo é um fator favorável ao desenvolvimento das boas letras em nossa Pátria.

Com máxima lealdade e tão resumidamente quanto possível, penso ter respondido às vossas interrogações.

Isto feito, ponho-me, como sempre, à vossa disposição.»

Artur Orlando

O insígne autor do Pan-Americanismo responde-me com uma longa carta em que dá explicações e leves conselhos. Infelizmente responde apenas a dois quesitos. Sobre o jornalismo, o pensador ilustre diz:

Depois da descoberta da imprensa e outros meios de comunicação do pensamento, a instrução cientifica, estética, moral e filosófica passou da escola para o jornal. A escola deixou de ser um instrumento de cultura, um fator de progresso para se restringir a ensinar a ler e a escrever maquinalmente palavras.

Hoje a instrução transbordou da escola e espalhou-se pelo vasto campo da vida; hoje só há uma escola na altura dos tempos modernos, que é o jornal, escola sui generis sem penas disciplinares, escola verdadeiramente livre, que o aluno não é obrigado a freqüentar, que penetra todos os dias pelas janelas no interior do lar como os raios do sol, escola que é a mais elevada expressão das relações livres entre as pessoas, umas que sentem necessidade de aprender, outras de ensinar...


A respeito da sua formação literária, o filósofo é mais extenso.

Não sei se posso falar em formação literária; porém, a instrução que possuo devo mais à natureza e à vida do que aos mestres e aos livros.

Em regra, tive péssimos professores, com exceção do velho José Soares de Azevedo, que me ensinou português e francês, e do dr. José Austregésilo Rodrigues Lima, que lecionava filosofia como os filósofos antigos -por amor à ciência.

Até onde vai a claridade de minha memória, posso dizer que a Capunga com a doçura e poesia de sua paisagem foi a matéria-prima de minha educação.

Evocando as pessoas e as coisas no seio das quais passei minha infância, não diviso as primeiras senão através de densas brumas, de vagas nebulosidades, enquanto a natureza se me apresenta ao espírito com toda a elegância de suas formas, com todo o brilho de suas cores, com toda a suavidade de seus perfumes.

O eu é menos independente do mundo exterior do que geralmente se pensa.

Nós comungamos com a natureza até mesmo depois da morte, a íntegra potestade que restitui à terra o que veio da terra, e com a podridão dos corpos produz o fermento de todas as incessantes metamorfoses, de todas as fecundas eclosões.

Não é na escola que se aprendem as verdadeiras lições de coisas, e sim na vida, a grande mestra de tudo que existe no mundo.

Que me seja permitida a tão espontânea quão sincera confissão retrospectiva que vou fazer, a qual, valendo como penitência, serve ao mesmo tempo de prova do que venho afirmando. Assim é que não faço teoria pedagógico-filosófica, mas falo por experiência própria.

Todos os dias, pela manhã, surgia, como por encanto, no terreiro de casa o vencedor nunca vencido das capoeiras vizinhas. Era um formoso galo, que contava as vitórias pelos lugares por onde passava, e se orgulhava de ser o terror dos poleiros.

Imaginei que era preciso decretar a paz para os galinheiros, como a Convenção decretou a vitória para a França, e deliberei queimar o bico, cortar os esporões e arrancar as garras do invencível guerreiro.

Foi o que fiz certa ocasião, em que haviam saído todos os de casa; mas o radiante triunfador, com o bico queimado, as garras e os esporões decepados, caminhando tropegamente, afigurou-se-me um monstro, e minha alma ingênua de criança um monstro ainda mais horrível.

Depois, como se não bastasse aquela figura de Bank para meu castigo, disse-me o dono do animal: -Olhe, se apanho o malvado que praticou tamanha perversidade, corto-lhe as orelhas.

À noite, custei muito a dormir, e quando pela madrugada conciliei o sono tive um horrível pesadelo. Sonhei que estava com as orelhas cortadas; e se realmente não as perdi, sentenciou no dia seguinte minha Mãe, não foi porque não merecessem ser arrancadas a puxões, mas para que as sentisse arder todas as vezes que me lembrasse daquele crime.

Outro exemplo ilustrativo: aos dez anos, quando entrei para a escola, pois meus pais tinham tido o bom senso de não me subtrair durante a primeira idade ao viver livre, que a natureza impõe ao desenvolvimento da infância, eu não sabia A nem B; mas em compensação conhecia toda a passarada, desde a fúnebre coruja até ao petulante beija-flor.

Ora, em face de todas as galas e esplendores da avifauna pernambucana, que encanto podia ter para mim a aula com o seu monótono e aborrecido B...A -BA?

O preto Calisto era um grotesco tipo de mestre-escola: usava cartola cinzenta, casaca preta e calças brancas. Comprometera-se com meu pai a ensinar-me primeiras letras em troca de uma flauta de ébano com chaves de prata.

A sedução do campo, trepando-me nas árvores, enchendo os bolsos, e ainda mais o estômago, de frutas, espreitando os pássaros, perseguindo as borboletas, inspirava-me horror à escola.

Entretanto, o Laurentino, cria de casa, filho mais velho da escrava Antônia, era acusado de distrair-me dos estudos com a sua estimada criação de canários brigadores, e, em um belo dia de sol, bem me recordo, ao voltar da escola, já não encontrei às voltas com os seus queridos passarinhos o Laurentino, que havia sido embarcado para o Sul.

Com os olhos cheios de lágrimas, abri a porta das gaiolas, e deixei ganharem o espaço livre aqueles outros cativos. Desde aquele momento fui abolicionista de coração.

No curso de preparatórios o livro que concorreu para a formação de meu espírito foram as Fábulas de Fedro.

É um livro em cujas páginas se reflete nitidamente a Natureza como em um espelho, e que não se pode dizer escrito para a escola e sim para a vida.

D. Quijote de la Mancha, com seu inseparável companheiro de jornada, o pacato Sancho Pança, e a formosa Dulcinéia del Toboso, tão radiante como só podia imaginar o cérebro exaltado de seu incomparável cavalheiro, marca a segunda etape de minha evolução intelectual.

Miguel Cervantes, provocando o riso à custa das loucuras e ridículos humanos, há feito mais bem a humanidade que todas as escolas, em que o professor abomina o riso e está sempre disposto a sacrificar a originalidade e mais atributos superiores à submissão a umas tantas conveniências, que não raras vezes tocam as raias da hipocrisia.

A disciplina baniu da escola a função do riso, quando é o riso que torna o homem superior aos outros animais. Há coisas na vida que somente se corrigem à custa de muita gargalhada, e o riso, pode dizer-se, é exclusivo da espécie humana.

Entretanto, o professor, por força da disciplina escolar, capricha em não rir, muito embora o riso seja o mais poderoso e humano instrumento de seleção social.

Um outro gênio, que produziu em meu espírito uma verdadeira embriaguez intelectual, com o néctar de seu divino humour, foi Henri Heine, autor de Alta Troll, sátira política superior a tudo que tem sido escrito a respeito desde Aristófanes.

No ponto de vista filosófico, devo tudo, por um lado a Kant e a Tobias Barreto, por outro lado a Spencer e Sílvio Romero.

Tais foram os elementos que concorreram para a formação de minha acanhada cultura de espírito.


E concluindo a tratar de preferências literárias, com uma habilidade de diplomata diante do impossível, Artur Orlando termina:

Julgo-me incompetente para responder a este quesito.

É uma questão difícil de resolver como os casos dados para concursos de vigários.

Ensinou-me, porém, o meu professor de Direito Eclesiástico que desde longa data a jurisprudência canônica instituiu a proibição dos atos emulativos, negando o direito, que envolve pecado.

Para que se construir um edifício, que é inútil ao proprietário e prejudicial aos vizinhos?

A Igreja resolveu bem que é preciso não consentir a abertura de janelas, que, no dizer do ponderado Cino de Pitóia, não têm outro fim senão descobrir os segredos dos frades ou devassar a mulher bonita do vizinho.

Tenho as minhas simpatias, mas entre umas e outras mon coeur balance, ou melhor, entre umas e outras confesso francamente, estou como o burro de Buridan, o mais filósofo dos burros: não sei para que lado me vire.

Porém, que importa que entre as minhas simpatias meu coração oscile?

O pêndulo do relógio oscila constantemente de um para outro lado, e nem por isso os ponteiros cessam de ir sempre adiante e as horas de correr velozes como que tangidas por invisível mão de fugaz divindade.


Padre Severiano de Resende

Encontrei o padre Severiano preocupado com a tradução de Isaías. Esse escritor realista, como ele o julga, tem tido até hoje traduções abjetas. O padre, com as suas finas mãos, trabalhava o buril da forma na vernaculização da prosa ardente.

-Já pensei na enquête, sabes?

O padre Severiano de Resende, um raro talento, fala suavemente, com a voz passada em seda. É, porém, o nosso Huysmans. São bem conhecidos os dotes violentos do seu estilo combativo e pletórico. Há páginas nas suas histórias de santos que lembram o Là-bas. Ainda ultimamente, contando a virtude de um asceta venerável, afirmava que o pobre homem se entregava a esbórnias de jejuns. São bem notáveis as suas preciosas qualidades oratórias.

Há tempo, em Niterói, tendo que pregar, e como a multidão não fizesse silêncio para ouvir a sua homilia, ergueu-se e, com voz retumbante, disse: -Meus senhores. Apresento-lhes um dilema. Ou os senhores calam ou eu me retiro!

Sei por conseqüência que vou ouvir de Severiano coisas imprevistas.

-De S. Paulo mandaram-te muitas respostas? pergunta o padre. Não mandaram. Era natural. Eu expatrio S. Paulo do Brasil. Houve um tempo que a Paulicéia era um viveiro de poetas e prosadores. Tempos idos! Hoje há na Academia uns bacharéis em germe muito bem vestidos e muito pedantes, e o escol literário vive em retiro. No entanto, em S. Paulo podia haver um grande movimento literário, havendo lá, como há, talentos raros. Não falo por exemplo de um Garcia Redondo, que é o arquétipo do imbecil relapso na sua mania de literatejar à outrance, mas se eu disser que em S. Paulo há um Freitas Vale, um Antônio de Godói, um Herculano de Freitas, que são estetas a valer, todos compreenderão que a Paulicéia podia brilhar nas letras.

E temos ainda como poeta e como cronista Adolfo Araújo, que tem sonetos que eu assinaria e prosa que rivaliza com a de qualquer bom prosador excelente.

Há poetisas também: Francisca Júlia, por exemplo, que não tem contudo originalidade e vive a imitar todo o mundo, o que não acontece com uma outra poetisa, muito bizarra criatura essa, -Atália Bianchi-Betoldi, que faz de vez em quando uns sonetos dignos de serem lidos.

Houve uma pausa. Eu estava atordoado.

-Hás de me perguntar por que é que estou esquecendo o Wenceslau de Queirós? Mas este, meu caro, é super-abominável. Pretensioso e orgulhoso, este detestável escriba é capaz de matar a quem disser que os seus versos são maus. E não há quem os faça pior, fazendo-os, com abundância, há mais de trinta anos... Hoje toda a gente o deixa versejar livremente, ninguém faz mais caso dele. A verdade é que S. Paulo possui condições para lá se criar um núcleo literário e não o cria. É hoje um povinho de rastacueiros...

Parou: a catilinária acabara. O padre apanhou a manga larga no seu gesto habitual e deu dois passos. Estava seraficamente calmo, e sorria.

Atrevi-me a indagar.

-Então, desde que começamos por S. Paulo, as literaturas dos Estados?...

Severiano interrompeu-me.

-Eu detesto tudo quanto é centro literário, como detesto tudo quanto é conciliábulo de literatos em via de perpetrações literárias. Como penso que o talento que é real tem fatalmente que se revelar na hora marcada, acho toleima essas concentrações perigosas de plumitivos que ensaiam vôos em grêmios. Os grêmios dos Estados são focos de insuportáveis esperanças das letras e acostumam o espírito à estreiteza das igrejocas em que o elogio mútuo cria irredutíveis pedantes e pretensiosos mestrúnculos de sinagogas improdutivas, em que se cultiva a flor da retórica convencional. A prova é que tudo quanto é talento aqui não se formou em centros literários. O talento aparece quando tem que aparecer, e a sua evolução por meio dos centros literários é uma ilusão. Os centros literários dos Estados são perigosíssimos e alarmantíssimos. Acho bom não bulir nisso. É horrível.

Começo a ter medo de continuar. Entretanto, tento uma perguntazinha vaga:

-Atravessamos um período estacionário para as letras?

-A prosa estacionou como um navio entre gelos, e quanto à poesia, as liras estão por aí penduradas. Não vejo nada de novo, de original e, se umas tentativas surgem, são esperanças que ainda não se corporizaram. Os representantes da prosa, entre nós, quais são? Eis o nome de Rui Barbosa. É um escritor que se deixou hipnotizar pela mole arqueológica dos bons clássicos que a gente desinfeta antes de manusear, para que o arcaico não venha agitar, no nosso estilo, os seus lenços de alcobaça. Rui Barbosa agora não passa de um Cuvier das letras, não é um revivedor de formas, é um escavador de fórmulas. Há Machado de Assis: a gente o lê confiantemente, a sua psicologia calma calça uma forma elegante, e a sua linguagem, que é dele, podia ter por divisa o in medio consistit virtus, que, se não entusiasma, não escandaliza. É o único prosador honesto que temos e o único observador de almas que possuímos. Mas não é um profundo. Aluisio Azevedo zolaizou assaz, num estilo em que eu reconheço o relampejo de um estro real.

Depois desta tirada, vulcanicamente, o padre Severiano começa a distribuir prêmios de louvor aos seus amigos e cacetadas nas pessoas com que não simpatiza.

Assim na prosa João Luso tem fleugma e é chic, Bilac encantador, Coelho Neto vibrante e merece o nome de artista. Euclides da Cunha é vibrante. Araripe Júnior é o único crítico que se pode ler, pois tem argúcia, graça, leveza e clareza; Sílvio é redundante e labiríntico, mas em todo caso hercúleo e poderoso; José Veríssimo arqueia-se sisificamente sob as densas arroubas dos seus períodos plúmbeos, eriçados de ângulos. Na poesia Alphonsus de Guimaraens é um gênio, Bilac o primeiro, Raimundo e Alberto também primeiros, Luís Delfino é o incomparável nababo da poesia, Cruz e Sousa teve influência, Emilio de Menezes pode ser chamado o mestre boêmio do soneto, B. Lopes é adorável na sua pose, Luís Murat...

O padre Severiano não termina a lista, desanimado.

-Eu não posso evidentemente lembrar-me de todos! confessa com amargura. Há tantos poetas, tantos prosadores! Mas falas da poesia de ação? Essa poesia é tola.

-E quanto a escolas?

-Creio que não as houve no Brasil, ao menos que se não queira chamar de escolas -conjuntos de imitadores de Castro Alves, o insuportável metralhador de sílabas, os nefelibatas, etc.

De novo, Severiano faz-me o elogio do prodigioso Alphonsus de Guimaraens.

Eu indago:

-Deve ser curiosa a sua formação literária?

-Eu positivamente não sei bem como foi a minha formação literária. Não estou mesmo certo se houve ou se há em mim isso que o amigo chama respeitosamente «uma formação literária». Só sei de uma coisa: é que desde cedo tive sempre uma insaciável necessidade, ou para melhor dizer, uma intensa ânsia de cultura, que me levou a ler, ler, ler, e dessas leituras várias, mas bem orientadas, me ficaram, creio, uma estesia e um estilo -estesia ainda a corporificar em síntese e estilo ansioso de realizar a Forma. A minha formação literária é feita pois de um amálgama em que são ingredientes as obras-primas que eu admiro e que eu amo. Porque eu entendo que a coisa literária, como os diletantes a tomam, será sempre mesquinha e desinteressante se não for elaborada com o intuito de reproduzir o Belo, e o que reproduz o Belo é a Obra Prima, ou seja palavra falada ou escrita, ou seja som, cor, linha ou bloco. Por isso é que esta expressão «formação literária» me soa mal. «Formação literária» parece querer indicar pretensiosamente o quer que seja que se assemelha, verbi gratia, a «colação de grau»; há nessa fórmula de aula de retórica, um perfume de bacharelice compenetrada da sua canonização literária. Fico por conseguinte, tonto, instado para dizer quais os autores que mais contribuíram para a minha formação literária. Estou certo que o Sr. Barão de Loreto ou o Sr. Barão de Paranapiacaba, versicultores cobertos de cãs, não hesitariam, um minuto, na resposta. Eu hesito, porque, francamente, não tenho formação literária, e acho que ninguém deve tratar de ter.

A minha formação literária é isto: uma grande revolta e uma grande aspiração -revolta contra o pedantismo inativo do medalhão e a maçonaria nula das coteries, aspiração à luta sincera pela Arte e pela supremacia do Talento. A minha formação literária inspira-se pois nessa direção e a minha doutrina bebo-a nas fontes supernas que borbulham nos píncaros: Homero, Ésquilo, Virgilio, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac, e, sobretudo, a tout seigneur tout honneur, Ricardo Wagner, o mestre dos mestres, o colosso sobre-humano, o descobridor dos novos-mundos da Arte, o único a quem é imprescindível pedir licença quando se quiser dissentir de idéias.

De novo aí vulcanicamente, Severiano distribui louros aos escritores contemporâneos que mais admira. Começa assim:

-Está claro que não desprezo Hugo...

Cita Peladan, Huysmans, Lecomte, Verlaine, Mallarmé, D'Annunzio, Flaubert, Chateaubriand, Heredia, Petrarca, Poe, e termina agredindo os homens que fazem seletas de autores célebres.

-Esta exploração no terreno de Charles André pode tentar o Sr. João Ribeiro, a mim não me tenta.

Resta-me fazer uma pergunta -a da influência do jornalismo. Padre Severiano de Resende, jornalista, responde assim:

-O jornalismo no Brasil é para a arte bom e mau. No estado atual da nossa cultura, é o jornal que se lê mais, e não o livro. Quem quiser, pois, fazer alguma coisa pela arte -extensivamente considerada- há de ter um jornal em que escrever. Nem a revista nem o folheto preenchem a função do jornal, que é o que todos lêem. O poeta ou o prosador que quiser ver a sua obra passar de coisa escrita a coisa impressa tem que se submeter ao jornal. O jornal é inevitável, precisamos sofrê-lo.

É ele que abrirá caminho ao livro, ou melhor, é ele que tem aberto caminho ao livro. Entretanto, para quem vive disto, de escrever para a imprensa, não há nada pior, como meio esterilizante e dispersivo. Esterilizante, porque o trabalho au jour le jour esgota as forças desorientadas e exaure o tempo desmetodizado; dispersivo, porque não admite a reflexão, a concentração da idéia, o apuro e o esmero da Forma, que é a ambição de todo artista. Assim, o jornalismo é um fator bom, porque é só por ele que o artista se pode manifestar, e é um fator mau porque, como Saturno, devora a vida dos seus próprios filhos. Que belo não seria haver aqui no Rio um jornal em que um grupo de artistas mostrasse que é ainda pelo jornalismo que, entre nós, poderia um esteta viver e trabalhar, iluminando almas e arejando espíritos. É o meu sonho em breve realizável.

E Severiano termina com essa esperança.

Guimarães Passos

O Sr. Guimarães Passos é o conhecido poeta dos Versos de um Simples e das Horas Mortas. Ultimamente publicou um Dicionário de Rimas. Alagoano, Alagoas tem por ele a mais profunda admiração. Há na terra do marechal Floriano centros literários, clubes de propaganda, o diabo, com o nome de Guimarães Passos. Cremos mesmo que se fundou agora, na capital do Estado, uma sociedade recreativa Homenagem a Guimarães Passos. Outro dia encontrei na mala do Correio um maço de jornais com o seu endereço. O conterrâneo encarregado da expedição não se pudera conter e escrevera: Ao imortal poeta Guimarães Passos...

Sebastião de Guimarães Passos sente-se bem nesta atmosfera e corresponde à admiração da terra com um carinho especial. Quando lhe entreguei o questionário disse gravemente:

-Vou pensar.

Dois dias depois não se lembrava mais.

-Oh! filho, é verdade, amanhã sem falta.

Afinal, uma tarde de chuva, sentados ambos diante de um bock, o poeta desdobrou imperialmente o questionário e julgou-o irrespondível.

-Muito difícil, meu caro, muito difícil.

Para a sua formação literária quais os autores que mais contribuíram? Se eu fosse responder, diria: o primeiro poeta que eu li e admirei, ainda na escola, foi Nicolau Tolentino.

Ainda hoje a influência se faz sentir.

Depois li Camões e Bocage. Finalmente comecei a estudar o grande padre Antônio Vieira.

Guimarães Passos tem uma absoluta adoração pelo extraordinário pregador, o maior diplomata e o maior artista da língua portuguesa. Sabe-lhe sermões inteiros de cor.

-Está a primeira pergunta respondida.

Quanto à preferência pelas minhas obras, tenho quatro volumes publicados.

Aqui o poeta fala vagamente dos seus versos, das críticas elogiosas, dos prefácios célebres no mundo, de Araripe Júnior, que lê muito...

-Das minhas obras gosto da outra metade -a metade que o público não gosta.

É obscuro mas chic. Bato palmas.

-Cá temos a segunda resposta.

O Brasil atravessa um período absolutamente estacionário. Não há lutas de escolas, não há mesmo escolas novas, poesia de ação e outras histórias. Ainda estamos com que os traquinas de café chamam os velhos -Aluísio Azevedo no romance, Bilac e Alberto de Oliveira no verso.

Neste ponto Guimarães Passos dá as suas impressões sobre os homens representativos da literatura pátria: -Coelho Neto, por exemplo, é um admirável artista, mas não é um romancista; Aluísio não tem um romance verdadeiramente romance com a nota individual; Araripe Júnior anda a ler tanto que acaba não sabendo como escrever. A impressão da França esmaga tudo.

-E a literatura dos Estados?

-Uma blague. Não é possível.

-E o jornalismo?

-O jornalismo?

-É um fato bom ou mau para a arte literária?

Guimarães Passos diz duramente:

-Péssimo. O jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde há trocos; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo.

E, abrindo os braços, Sebastião de Guimarães Passos conclui uma terrível catilinária contra o jornal.

Ai de nós!

Curvelo de Mendonça

O Sr. Curvelo de Mendonça estende-se longamente:

- I -

Este primeiro quesito reporta-me a um tempo já afastado, longínquo, impalpável, de que me resta hoje apenas uma consciência nebulosa, mas ainda assim caríssima ao meu espírito. Evoca-me a bucólica vida provinciana, os nobres esforços de um pai amante das letras, grande espírito de filósofo, tolhido em meio de sua carreira científica pelas necessidades da vida matéria.

Eis aí o vago e indeterminado teatro em que se me descerraram os horizontes intelectuais. Em casa fazíamos todos os irmãos os primeiros tirocínios de estudo. Era uma escola viva e espontânea, onde os nossos mestres liam conosco os livros didáticos, os romances e as revistas. Os Miseráveis, de Hugo, e os Mistérios do Povo, de Eugênio Sue, lembram-me ainda como as leituras mais decisivas na formação de meu espírito atual.

Era o mesmo pai, mestre e amigo, que nos iniciava no cultivo dos bons autores, comentando as passagens empolgantes, vivificando maneirosamente os seus ensinamentos, construindo suavemente a sua boa filosofia da vida, que se traduzia e expressava no amor dos homens, dos animais e até das coisas ambientes.

Era isso em plena roça, numa fazenda modestíssima de açúcar, no seio amplo e livre desse norte brasileiro que dá o fogo crepitante das secas e queimadas, mas que produz igualmente o mel dulçuroso das abelhas e o da cana. Esse foi o primeiro núcleo de minha formação literária, se é que tenho uma, tanto a julgo ainda imprecisa e falha. Tudo o mais quanto veio ao depois -outros homens, outros ares, outros livros- dilataram os raios da minha visão objetiva. E, como nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu, daí novas idéias, novas concepções em debate, empolgando-me a alma sonhadora e contemplativa de meridional, mas prescrutando-me bem dentro do íntimo, tudo vejo partindo dali, daquela escola de amor, daquele céu estrelado e sereno, a quem atirei os primeiros anseios dolorosos de minhas rudes e prematuras meditações.

Tenho dito, pois, qual a fonte onde bebi a primeira água que me fez saltar para a vida. Os caminheiros que, pelos dias adiante, nela tenho encontrado, muitos são e de vários pensares. Cada homem, cada livro, cada acontecimento de pequena circunstância, em que me achei envolvido, constitui certamente uma nova fonte onde bebi um pouco com tal ou qual sofreguidão. Por fim, tantos foram os mananciais, que lhes perdi a conta e o nome. Com firmeza, com sinceridade, só me posso reportar a um forte elemento criador da minha desvaliosa formação: aquela fonte límpida, doce como o mel das abelhas e o da cana, fonte pura onde quisera beber sempre toda a minha vida.

- II -

Evito dizer-lhe qual das minhas obras prefiro. Seria uma coisa triste e desinteressante ao leitor acompanhar-me nessa miragem subjetiva, nessa contemplação íntima dos meus passos de escritor incipiente. Tenho publicados três livros, e se de nenhum deles me envergonho hoje, não os tenho como padrão de glória na vasta cultura literária do país. Deram-me eles a alegria extraordinária da produção, esse prazer ingênuo e simples, que independe do acolhimento da crítica e do meio.

Sou, aliás, um otimista irredutível. Por mais humilde que seja a minha parte na literatura moderna do meu país, julgo-me fartamente, sobejamente pago dos meus esforços e do meu trabalho.

Escrevendo sem ambicionar triunfos, procurando apenas enveredar pela trilha de uma literatura útil, quero dizer, de um exercício intelectual aplicado às necessidades sociais, tive a felicidade de receber a simpatia e o estímulo em proporção tal que jamais poderia imaginar. Atribuo essa generosidade ambiente à corrente de idéias que defendo e que julgo bastante espalhadas no Brasil, mesmo muito mais espalhadas do que geralmente se acredita. Quase não há dia em que a leitura ou a observação me deixe de trazer novos fatos e documentos em abono dessa verdade para mim inconcussa.

Este país é fadado a realizar o sonho do paraíso humano. Não digo que seja isto amanhã; mas digo que isso será, não porque me queira dar ares de profeta, mas porque observo em redor e vejo uma soma maravilhosa de esforços latentes que se fazem heroicamente nesse sentido. Há coisas que não vemos, porque não queremos olhar. O Sr. José Veríssimo disse uma vez que o cristianismo puro, o cristianismo sem padres nem dogmas, o cristianismo sublime à maneira de Tolstoi, não tem cabimento em nosso meio, é uma coisa que «ofende ao sentimento do real». Não é ele só que assim pensa, bem o sei eu. Alguns outros, não em grande número, subscreverão o seu juízo; mas eu acredito que estão redondamente enganados. O seu talento e a sua observação estão voltados para coisas diversas. Não reparam bem os fatos e as correntes sociais que trabalham a nossa civilização.

A doutrina de Tolstoi não é privilégio dele nem da Rússia. Se no Brasil, assim como na França e em todo mundo civilizado, toda a gente lê e aprecia Tolstoi, é porque ele soube traduzir em boa linguagem moderna a ansiedade universal dos povos. As mesmas forças sociais atuam em toda parte. Renova-se o mundo inteiro em busca da solidariedade e do amor puro nas relações humanas.

O Brasil também vai sendo há muito tempo abalado por tais idéias.

Há cerca de vinte anos, uma modesta mocinha de S. Paulo acolheu em seu coração de virgem o doce socialismo cristão. Que poderia fazer essa débil força de mulher, se o seu sonho fosse um desvairamento incompatível com o meio brasileiro?

Pois bem. Essa jovem delicada e meiga trabalhou a princípio só. Fez-se professora particular e pública, escreveu livros, abriu escolas para instruir as crianças e educar a mulher brasileira, retirando-a da confabulação miserável nos confessionários dos padres. É preciso reparar nesse fato, que é expressivo. Os sacerdotes se levantaram e moveram-lhe uma guerra estúpida de todos os dias, servindo-se da ignorância e do prestígio rotineiro das formalidades do culto católico. A mocinha fraca não esmoreceu. Lutou, persistiu, venceu. Fez discípulos e discípulas numerosas. Só na capital as suas escolas sustentam e educam perto de dois mil alunos. Pelo interior do Estado nascem e multiplicam-se escolas filiais da propaganda central tenacíssima de D. Anália Franco. Ninguém no Rio de Janeiro falou nisso. Os livros, os romances e a revista, que essa brasileira notável tem escrito e dirigido, nem um só momento apareceram em nosso meio literário, porque é próprio das coisas sérias e profundas vicejarem modesta e ocultamente. O Sr. Veríssimo e os outros críticos ignoram tudo isso. Que importa! A obra não fica sendo menor, nem menos valiosa. Quando no futuro essas coisas aparecerem, toda a gente se espantará, duvidando da realidade.

Entretanto, a coisa está ali em S. Paulo. Ninguém a vê, porque não quer ou não sabe. Há poucos anos, também, morreu na Bahia Luís Farquínio, que aí fez uma obra semelhante, diferente nos processos, igual no fundo e no pensamento dominante. Da sua imensa fábrica fez uma vasta escola de amor e trabalho. É possível que não tenha deixado continuadores entre os discípulos numerosos, por ele salvos da ignorância e da miséria? Duvido, porque acredito no contrário.

No Rio Grande do Sul, em Pernambuco, e até em Sergipe, há esforços mais ou menos vastos para um semelhante trabalho social. Que importa, se os nossos intelectuais do Rio de Janeiro fecham os olhos a essas coisas? Digo somente que a vaidade e o orgulho cegam desgraçadamente os homens de mais talento e saber.

Foi o meu justamente esquecido romance, Regeneração, que me pôs no encalço desses movimentos fecundos que agitam a sociedade brasileira. Muito mais do que poderia acreditar, toquei nessa ordem de idéias e de aspirações, que já tinham órgãos numerosos disseminados em todos os âmbitos do nosso país. Vi então que o meu trabalho era apenas o eco amortecido de uma força pujante que anima o nosso povo.

Eis porque, consciente da nulidade literária daquele romance, sou entretanto apaixonado ardentíssimo das idéias que nele pus. Por elas, tenho amigos desconhecidos que me comunicam os seus esforços e as suas impressões, embelezando-me a vida e dando-me a coragem de trabalhar com um prazer encantador, que não trocaria pelas glórias mais retumbantes no mundo da arte.

A literatura não é o meu fim. Se a faço um pouco, é como um instrumento de ação social, aliás bem menos poderosa, assim feita, do que por outros meios de propaganda e luta, que outros homens e mulheres assombrosas empregam com sucesso neste mesmo Brasil.

- III -

Creio, pois, muito felizmente, em face do que fica dito, que não atravessamos um período estacionário para as nossas letras. É o contrário que sucede: movimento e vida, como jamais o tivemos em outra qualquer época. O Brasil todo se agita em um trabalho pujante de renovo e progresso. Não é só no Rio de Janeiro que a vida econômica e industrial se expande, como parece que acreditam alguns enclausurados da Rua do Ouvidor e da Avenida Central.

A novidade das coisas reflete-se nos corações e nos espíritos. Abrem-se novos horizontes aos moldes acanhados da velha literatura. Passaram os clássicos, os românticos e as pequeninas escolas realistas, naturalistas, simbolistas, e outras, mais ou menos extravagantes e precárias. O que hoje se ensaia, se esboça e já se faz, é alguma coisa de mais forte e grandioso do que essas tentativas de uma literatura em formação. É o Brasil que adquire a consciência de si mesmo e aborda as grandes correntes universais do pensamento moderno. Somos mais nacionais assim, isto é, sendo mais hábeis e mais originais na colaboração que prestamos ao movimento mundial.

Enquanto a Europa nos manda o excedente da sua população, acaso desejando retalhar-nos em pequenas colônias, o Brasil absorve essas gentes todas que lhe chegam da Itália e da Alemanha. As nossas escolas são o grande fator ativo dessa nacionalização empolgante.

É o Brasil, de todos os países novos, aquele em que o estrangeiro se sente mais à vontade, onde menos existe o preconceito de cor, de raça ou de fortuna.

A nossa jovem literatura reflete já esse sopro augusto de fraternidade. Não é só de uns três ou quatro anos a esta parte, como pensam alguns, que se faz entre nós o romance e a poesia de ação. A não ser que se queira fazer questão de palavras, menosprezando as idéias, essas coisas se encontram já, em lampejos geniais, nas poesias de Castro Alves, Gonçalves Dias e Domingos de Magalhães, assim como nos poemas de Basílio da Gama e Varela. Apenas, agora, o movimento é mais consciente e enérgico na geração de novos que nele toma parte.

Os críticos, que dessas coisas se incumbem, menoscabam orgulhosamente dos pensadores e literatos dos Estados. Cada novo dia, entretanto, vê surgir um novo batalhador. Alguns se revelam com vigoroso talento e uma capacidade forte de trabalho. É difícil e perigoso citar nomes, como pede o quesito, pelo risco de se cometerem injustiças; mas as promessas aí estão vibrantes. O Brasil é um imenso campo verde que aspira cobrir-se de flores. As sementes foram plantadas, chega a hora pressurosa da colheita.

Seria preciso uma crítica nova, partindo dessas mesmas correntes, para dar-nos conta dessa falange de trabalhadores. Não mais os críticos frios com as suas críticas frigidíssimas, pesadas e acomodatícias. Essa velha arte está agonizante. Com exceção dos conscienciosos estudos, infelizmente raros, de Araripe Júnior, dela se salvam apenas os materiais amassados no desalinho e na indiferença, que precisam ser refundidos por um espírito de amor. A velha crítica, repito, está morta. Os seus livros dogmáticos e oraculares dormem pelas livrarias em companhia das traças. E os antigos editores já lhe torcem a cara, convencidos afinal da sua inutilidade. Havemos mister de alguma coisa mais bela, mais humana, uma semelhança dos Precursores e Revoltados, de Eduardo Schuré.

Elísio de Carvalho, em um livro de crítica original, completamente diverso do que se tem feito entre nós nesse ramo da literatura, parece bem tê-lo compreendido com o seu talento agudo e a alma vulcânica de apóstolo dos novos ideais. Pelo que vi, pelo que se acha parcialmente publicado de sua formosa obra, não trepido em considerá-lo como um dos iniciadores de mais essa campanha, a investigação carinhosa das nossas correntes sociais, que o jovem Brasil pede ansiosamente.

Pedro do Couto, que é um positivista livre, desabusado e ardente, sabendo separar o joio do trigo, tem no prelo um livro congênere, cujo conteúdo desconheço ainda. Mas considero a concepção positiva da arte como a mais bela, a mais vasta e a mais grandiosa que se tem imaginado. É uma das faces mais geniais, talvez a única que se possa aceitar sem restrições, da imensa obra de Augusto Comte. Tenho, pois, que seja uma novidade auspiciosa para as nossas letras o aparecimento de um livro bafejado por essa influência, aliás perturbadora e nociva a outros respeitos. A sua crítica ampla e erudita, talhada por um largo sopro social, será mais um golpe na outra: a velha, a sediça, a fóssil, a inútil e felizmente moribunda.

Trabalhos assim feitos deixam de ser superfetações livrescas, porque têm os seus lugares previamente indicados na nossa moderna literatura.

- IV -

Não creio que esteja na índole dos brasileiros tentar a formação de literaturas estaduais ou provincianas. Ao contrário de muitos outros, penso que fora do Rio de Janeiro se fazem muito belos trabalhos literários; mas todos esses movimentos particulares se prendem ao movimento geral das nossas letras. A formosa língua de Camões e o sentimento inato da unidade nacional, que todo o bom brasileiro em regra possui, salvam-nos dessas veleidades ridículas de literaturas divergentes. Nem há entre nós razão histórica que assim o determinasse. Nenhuma das nossas antigas províncias realiza no Brasil o caso da Polônia que, oprimida e esmagada pela Rússia, conserva por isso mesmo a sua literatura e as suas tradições particulares.

Quase todos os nossos grandes Estados tiveram, ou vão tendo, as suas épocas mais ou menos importantes de atividade literária: Bahia, Minas, Maranhão, Pernambuco, São Paulo, e até um pouco também o Rio Grande do Sul, o Pará e outros. Todos esses movimentos, porém, passam ou se deslocam, e o seu acervo aproveitável se incorpora afinal no patrimônio comum da literatura brasileira. Não vejo sintomas que nos façam recear fenômeno diverso para um futuro próximo.

Nos recantos do interior, pois que tenho viajado um pouco, hei visto muitos letrados desconhecidos devorando ansiosamente as últimas novidades da casa Garnier. Os romances de Machado de Assis, as gramáticas de Maximino Maciel, Hemetério dos Santos e João Ribeiro, até as Páginas de Estética deste último, penetram as populações ribeirinhas do São Francisco.

É inacreditável, diante disso, que essas mesmas gentes abandonem os seus mestres, os seus ídolos queridos, para fundar literaturas sertanejas.

- V -

Mais algumas palavras para satisfazer ao último quesito. O jornalismo é uma força, o grande instrumento de ação social nas sociedades modernas. Ora, de que uma força é mal empregada ou dirigida, não se pode nem se deve concluir que ela seja ruim.

Acontece isso, muitas vezes, com a imprensa. Mercantilizam-na, exploram-na os vendilhões do templo. Mas é necessário reconhecer os seus serviços prestados à literatura brasileira.

Quase todos os nossos homens de letras, os mais eminentes, os mais ativos, passaram pelo jornalismo. Coelho Neto viveu e vive nele, e daí mesmo retira os seus romances e os seus contos finamente lavorados. O mesmo se pode dizer, mais ou menos, de muitos outros. Quem pode negar a influência civilizadora do jornalismo nacional, conhecendo os grandes talentos que aí afiaram as suas armas e, por ele, exerceram tão poderosa ação na vida intelectual brasileira? Evaristo da Veiga, Patrocínio, Rui Barbosa, Alcindo Guanabara, falando somente daqueles que rapidamente me ocorrem, pode ser que tivessem feito alguns livros a mais, se não fora a absorção da imprensa. Duvido, porém, que houvessem sido mais úteis.

O trabalho diuturno e exigente do jornal conduziu esses e outros espíritos a acompanharem de perto a vida nacional. Batendo, insistindo, ensaiando, sondando o terreno e apalpando as idéias, fizeram o que não cabe fazer aos isolados, que escrevem pachorrentamente no conforto dos gabinetes domésticos. Sem a imprensa, o Brasil não seria o que é hoje, as nossas letras não poderiam ter chegado ao que são agora.

Não acredito, portanto, que o jornalismo seja inimigo da literatura, sobretudo se não se quiser circunscrever e limitar essa palavra ao domínio restrito de romances e poesias. Muitos romances, aliás, escreve um grande publicista nas páginas dispersas dos jornais. É a vida do país, em suas variadas faces, que ele ausculta todos os dias. Se o faz superiormente, com amor e a sede ardente do progresso, muitos erros se lhe devem perdoar.

São agentes mais poderosos do nosso movimento literário do que os egoístas que, insensíveis ao meio, de quando em quando se apresentam, vaidosos, de ponto em branco, com um livro na mão. Esses livros, algumas vezes, são tão úteis ao Brasil... como à China.

Assim respondo eu, sem suspeição, porque não sou jornalista.

Félix Pacheco

O Sr. Félix Pacheco é, como toda a gente sabe, uma das figuras proeminentes do simbolismo. Em tempos que já lá vão, o bizarro poeta foi quase o sacerdote magno de uma igreja que tinha por Deus Cruz e Sousa. Era a época da nevrose. Os literatos andavam pelos jardins dos delírios, surgiam diariamente revistas em que o núcleo nefelibata esgrimia tendo na destra o cacete do desaforo mostrado com orgulho ao vácuo, e, afivelado à sinistra, o broquel d'oiro da rima exótica.

O medievalismo, o intencionismo e outros males provenientes do pré-rafaelismo carcomiam a alma dos infantes poetas, e todos esses infantes, alguns dos quais ainda nos preparatórios, eram de uma ignorância religiosa e sesquipedal.

Um desses meninos vociferava de manhã à noite, na Rua do Ouvidor, os quatro pontos cardeais da poesia universal, os quatro grandes e assombrosos gênios da rima.

Sabem quais eram esses pontos cardeais?

Homero, Dante, Shakespeare e Cruz e Sousa! Tudo o mais cavalgaduras!

Foi nesse meio que apareceu o Sr. Félix Pacheco. Mas, enquanto os outros eram o cachoeirar de uma escura água que pára, espuma e em espuma se perde, ele trazia n'alma, além do branco lírio do sonho, figura da retórica simbólica, a capacidade de Vencer. A capacidade de Vencer é cousa relativa. Há por este mundo muita gente empregando o verbo. O Sr. Félix Pacheco, entretanto, venceu como queria vencer, com a consideração, o aplauso e o carinho dos que o circundam.

Homem em tais condições devia ser fatalmente um orgulhoso. Juntem a isso a certeza de que o Sr. Félix Pacheco é redator do Jornal do Comércio, profissão que tem a propriedade de desenvolver nos seus possuidores a hipertrofia da vaidade e uma altíssima noção dos próprios méritos.

O Sr. Félix Pacheco guarda um certo orgulho, isto é, manifesta um certo egoísmo numa larga e acertada cultura do seu Eu; mas longe de se solenizar, como lhe ordenava a boa sorte acarinhadora, continua frondeur e batalhador.

Logo depois de me mandar sentar numa das cadeiras do seu severo gabinete, o jovem poeta põe os dedos nas cavas do colete, um colete lindo, e fala:

-Não acredito que a prosa e a poesia contemporâneas no Brasil atravessem um período estacionário, pois tanto importa no absurdo de acreditar que no começo de século XX, em uma era de vida intensa e num país que não é propriamente a Botoculândia, o pensamento parasse!

O estilo, a Botoculândia, o absurdo, anunciavam uma descarga, eram o esperado intróito combativo. Aproximei a cadeira.

-Então há escolas?

-Escolas? Mas o meu amigo está doido!

Aproximei ainda mais a cadeira.

-Pois haverá ainda quem acredite em escolas?

Recuei a cadeira. Hein? O chefe do simbolismo sem escolas? Deus louvado! Afinal encontrava a franqueza, essa coisa tão rara que nem o próprio Diógenes se achou com coragem de a procurar!

O Sr. Félix Pacheco passou os dedos pela face escanhoada, limpou o pince-nez.

-O triunfo hoje é do individualismo. Isso de grupos literários são verdadeiras lérias para embair meninos. A única escola que conheço no Brasil é a dos alhos com bugalhos.

-A dos alhos?

-Sim, quero dizer a Academia.

-Oh!

-Qual oh! Meu caro! Essa escola nem sequer tem mobília, sofre de um mal que não sei se existe em medicina, mas que é positivamente a tuberculose dos recém-nascidos.

-Nossa Senhora!

-Qual Nossa Senhora! Medeiros e Albuquerque, que é diretor da instrução, faria uma obra de caridade se olhasse um pouco para a pobrezita. Porque com o Zé Veríssimo, positivamente a coisa não vai lá das pernas!

-Mas o Dr. José Veríssimo...

-O homem é dos tais que não enxergam uma polegada adiante do nariz. Daí talvez seja preferível: é o caso do «quanto pior, melhor». Os imortais já tiveram casa e franquia postal...

Interrompo o poeta de súbito:

-Quais foram os autores que mais contribuíram para a sua formação literária?

O Sr. Félix Pacheco pára; um leve sorriso põe-lhe no lábio o amargor da ironia. Que pensará ele? É lá possível saber o que pensa um homem por mais que o interroguemos?

Entretanto, a sua voz rouca perde os tons de cólera, e ele começa num ar de narrador, o ar que teria o eminente membro da Academia, Sr. Silva Ramos.

-Se não fora o receio de que me tomasse por vaidoso, dir-lhe-ia que só dois autores concorreram para a minha formação literária: o Amor, que é a razão de tudo, e o Tempo, que é o melhor mestre, o único talvez capaz de ensinar como havemos de dizer o nosso segredo à vida. Significa isso que evoluí como deve fazer quem quer que traga na cabeça um sonho de arte.

Este pedacinho grácil e perfumado é breve como os oásis na terra do sol. O Sr. Félix volta para mim o seu olhar.

-Estou a vê-lo explicar com ironia que fui militante e esforçado amigo de contendas e descomposturas, com a pretensão de quem vinha botar abaixo a Academia e salvar o mundo da grande praga dos Signos. Que quer? No Rio as cousas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil -elemento seguro e infalível para a subida rápida.

Imaginem o atroz dilema! -Devora ou és devorado.

O poeta continua, entretanto.

-Não sei quais os autores que mais contribuíram para a minha formação literária. Sei apenas que essa formação, ainda não ultimada, há de prosseguir como começou, isto é, num vôo livre, soberano, para a suprema beleza, que é tão inatingível como o sol, mas que constitui, como ele, a explicação da vida, a luz, a glória...

Parece um discurso. O Sr. Félix Pacheco, porém, desce dos páramos onde voava e, mais razoável e humano, acaba concordando com algumas influências menos elevadas.

-Recordo-me, entretanto, de alguns poetas que foram ou são de meu agrado e com os quais talvez tivesse tido, em épocas sucessivas, e ainda hoje tenha, a ilusão de haver encontrado longínquas afinidades.

-É quase pô-los à margem. E quais foram?

-Fagundes Varela, o meu predileto em criança; Lamartine, Hugo, Richepin, Luís Delfino, companheiros das noites de vigília do internato, e finalmente Baudelaire, Rimbaud, Regnier, Quental, Francisca Júlia, Cruz e Sousa, C. D. Fernandes.

-Ora esta!

-Para desencargo de consciência devo acrescentar que, a despeito de minha boa vontade, ainda não consegui ler nem Gonçalves Dias nem Machado de Assis...

-Qual prefere das suas obras literárias?

Sinto que esta pergunta enternece o poeta.

A sua voz aveluda-se, e, enleado numa suave modéstia, ele diz devagar:

-É boa... Das minhas obras?

Mas esta frase é o prelúdio de uma berceuse que começa pianíssimo, tem de vez em quando acordes violentos, e cujo desenho é o arabesco sutil da consciência censurando por chic coisas que ela, a consciência, acha razoáveis, boas ou talvez, quem sabe? para a idade, mesmo muito boas...

-Ainda não tenho obras. Espero ter. Por ora nada do que escrevi merece tão pomposa denominação. Obra é o que fica. Na minha bagagem há por enquanto meros ensaios. Estreei com um folheto ruim, em prosa detestável e verso pior, as Chicotadas, que escrevi por ocasião da morte de Canovas. É um mistifório de colegial apressado...

Aí o primeiro forte na orquestra:

-Talvez um pouco no gênero das Vergastas do meu cordial inimigo, o Dr. Lúcio de Mendonça, que aliás nunca tive a fortuna de ler, ao contrário do que acontece com as Harmonias Errantes do Dr. Francisco de Castro, amigo e quase parente de um conhecido homônimo de um ilustre ministro do Supremo Tribunal...

E a berceuse recomeça:

-Fiz depois O Publicista da Regência, trabalho de jornal, com dia certo para ser publicado. Releio às vezes o volume e, palavra de honra! não desisto de tirar-lhe algumas infantilidades, retocá-lo, ampliá-lo e fazer dele uma Obra, quando mais não seja, em homenagem aos reparos e à sarabanda tremendíssima de um certo jornalista meu amigo, que viera das mesas do café Paris e irrompera desabusado pela Cidade do Rio, numa fulgurante promessa de altos vôos...

Outro vôo!

-Traduzi as homilias de piedade, de Bossuet; atamanquei uma versão da Verdade, de Zola; escrevi o Périplo de Hannon para a edição especial que o Jornal deu no dia do Centenário. Mas tudo isso precisa de largas emendas e correções... Em 1901 publiquei Via Crucis, que não é positivamente uma obra.

O meu romantismo ficará na coleção do Debate, sepultado juntamente com um amor que era feito de mel rosado e borboletas. A crítica aplaudiu o volume, mas, em meio desse coro de bênçãos, houve um berro que me desconcertou um pouco. Com uma ingenuidade de Calino meditei na razão do necrológio e vi que o homem não deixava de ter razão: o contrapeso do assobio é necessário para que as palmas não embriaguem.

O fato é que Via Crucis não era sem falha, e tanto assim que depois de publicado ainda emendei muita coisa, como terá ocasião de ver na edição definitiva.

Dei finalmente o Mors-Amor, que é de ontem e a respeito do qual julgo desnecessária qualquer referência... A página melhor de Via Crucis é o Símbolo dos Símbolos; em Mors-Amor o que mais me agrada é a Canção do Louco.

Tenho dois livros de prosa que ainda não sei quando virão a lume, mas que se acham prontos; Robles e Cogumelos (figuras contemporâneas) e Cartas de Amor (prosa passional).

A berceuse terminara. Íamos recomeçar as coisas graves.

-Não lhe pergunto o que acha do jornalismo.

-O jornalismo, como o praticam hoje na Europa e um pouco por toda a parte, é uma grande escola. A ele devo tudo o que sou e tudo o que aprendi. Dirão que entre nós ainda paga muito mal, mas é bom não esquecer que estamos num país de analfabetos, onde a circulação das grandes folhas é verdadeiramente irrisória. Toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e cinco anos fez escala pela imprensa. Uma ou outra exceção servirá apenas para confirmar a regra. Raros são os homens que não maldizem a própria profissão. Eu não penso assim...

-O jornalismo é um veículo de Sugestões, como me disse o mago Söndhal. Acha que seja o veículo para a formação de literaturas estaduais, para a poesia científica, para o romance social?

O Sr. Félix Pacheco riu.

-Não creio que no Brasil o romance social dê coisa melhor que o Canaã, obra estupenda e gloriosa. Ignoro o que significa poesia de ação. Deve ser muito complicada, mais complicada e obstrusa que a musa científica do Sr. Martins Júnior ou do que as Rezas do Diabo do Sr. Wenceslau de Queirós.

Sei que houve uma Mina no Pará, como sei que há várias minas por este Brasil afora; sei também que houve uma Padaria no Ceará, coisa naturalíssima onde quer que chegue um pouco de farinha de trigo; mas nenhuma dessas, ao que me conste, deu indício de criação de literatura à parte. Na Bahia há escritores de mérito; em São Paulo e Paraná também. É possível que o tempo e o meio estabeleçam diferenciações, mas a verdade é que estas ainda não apareceram.

E o Sr. Félix Pacheco levantou-se. Estava muito bem disposto. Eu também. E talvez, quem sabe? aqueles a quem zurzira...

Silva Ramos é modesto e delicado, quase tão modesto quanto delicado. Conversa como se estivesse no salão de Mme. Geoffrin, em pleno século XVIII; usa um bigode branco que lembra o de Edmond Goncourt e a sua voz guarda um sonoro sotaque alfacinha. Como é possível que esse homem, sendo professor, tendo concorrido para a pletora de bacharéis, conserve a inalterável distinção e a aristocrática afabilidade? Não há no mundo coisa que mais enerve do que ensinar meninos, e estou em acreditar Silva Ramos capaz de resistir a tão exaustiva existência pelo seu rico temperamento lírico.

Silva Ramos é talvez entre nós o último dos românticos, com todo o seu encanto, o seu imprevisto e o filagranado sutil de ironia e amor que fez Théophile e fez Musset. A sua arte pode defini-la um período de Jules Laforgue:

-Faire partir l'esthétique de l'amour.

A sua modéstia como a sua delicadeza são indefiníveis.

É dele esta encantadora carta de tão fino sabor literário, que acaba a gente até por admirar a Academia de Letras:

Não lhe parece, meu amigo, que um poeta lírico, como eu, poderia bem escusar-se de responder a um interrogatório da natureza do seu, muito interessante, embora?

Embaraço-me logo na primeira pergunta: «Para sua formação literária, quais os autores que mais contribuíram?»

Na formação de um poeta lírico, que eu saiba, influi exclusivamente um único autor: o Autor da criação, que fez o céu, o mar, os bosques, os rios, semeou no éter as estrelas, pôs o perfume nas flores, deu às aves o canto, coloriu de tons a aurora, derramou a plenas mãos o oiro fulvo dos poentes, tudo isto iluminado pelo olhar da mulher, ente singular em quem se resumem todos os encantos, em cujo seio se engendra o amor, com todos os refinamentos imaginados pelas filhas de Eva, desde Maria Madalena até Santa Teresa de Jesus.

Quando ainda não tinha vinte anos, adotei por epígrafe de um livro de versos aquilo de Musset:

Je n'ai jamais chanté ni la paix ni la guerre.

Si mon siècle se trompe, il ne m'importe guère.

L'amour est tout;

aimer est le grand point.



Caíram-me os críticos em cima, vaticinando-me que nunca seria nada, porque não possuía a compreensão dos grandes problemas em cuja solução a humanidade se debate. De fato, nunca fui nada, mas, como não acabo de me convencer que a minha insignificância tenha sido motivada por aquela falha que os críticos me assoalharam, já agora não hei de largar o estribilho:

L'amour est tout;

aimer est le grand point.



A segunda interrogação já ficou implicitamente respondida: do Autor da criação a melhor obra é a mulher.

À terceira apenas me permito afirmar que no quartel-general das letras, mais conhecido pelo nome de Academia Brasileira, nada consta oficialmente sobre refregas ou simples escaramuças travadas entre escolas literárias, de modo a perturbarem o doce sono a que se julgam com direito em toda a parte do mundo as instituições desta natureza. Demais, brigas de literatos poderá havê-las, lutas de escolas é que não; por muitíssimas razões, das quais apontarei apenas a primeira; é que no Brasil não há escolas.

Se polêmicas houvesse, é claro que a razão estaria com certeza da parte dos que pensam como eu, e que seriam eles os vencedores; porque muito há que eu estou convencido desta verdade profundíssima, que constitui o princípio fundamental da crítica entre nós: os nossos amigos são uns gênios, os outros são todos uns alarves.

Para satisfazer ao quarto quesito, direi que, não existindo, de modo nenhum, no Brasil, pelas condições inerentes à sua natureza, o que se chama uma literatura, o perigo de literaturas provinciais, com tendências emancipadoras e absorventes, só se pode desenhar no horizonte como visão de cérebros doentes.

Por último: «O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?»

Distingo: para a arte literária é mau, para o literato é bom. Para a literatura é um fator mau, porque a feição essencialmente mercantil das folhas diárias, revelada nas pequeninas preocupações de furos, curiosidades de senhoras vizinhas, folhetins de sensação, ao paladar das criadas de servir, é absolutamente incompatível com a idealização da arte pura, no sublime desinteresse com que se ala aos mundos superiores, toda ela desprendida das misérias terrenas. Para o literato é um ótimo fator, porque, facultando-lhe um emprego de repórter ou de noticiarista, quando mais não seja, coloca-o ao abrigo das primeiras necessidades, tornando, para sempre, impossível a reprodução do quadro lendário: o poeta morrendo de fome...


Já é uma utilidade descoberta com tão fino humour por Silva Ramos, principalmente quando os jornalistas mesmo não sendo poetas esperam a todo o instante fazer o quadro vivo: -o jornalista morrendo de fome aos pés do público...

Garcia Redondo

O autor das Caricias e da Botânica Amorosa é dos que primeiro respondem à minha carta. Em S. Paulo, redigindo a Folha Nova, professor, cheio de afazeres, Garcia Redondo manda-me esta curiosa resposta em 8 de março:

-Para sua formação literária quais os autores que mais contribuíram?

RESPOSTA.- Esta pergunta oferece-me pretexto e oportunidade para uma confissão que eu há muito desejava fazer. A minha formação literária tem o seu alfa na leitura do Almanaque de Lembranças, isto em 1867. Nesse tempo cultivavam-se com entusiasmo a charada, o logogrifo e o enigma, e esse gênero de diversão, que o Almanaque vulgarizou e pôs em moda em Portugal e no Brasil, atraiu-me e instruiu-me. Para obter decifrações com relativa facilidade, foi-me preciso estudar a história, a geografia, a fábula, as ciências naturais e a língua vernácula. Conquistei com esse estudo uma grande cópia de conhecimentos que outros, na minha idade, não tinham. Era, nesse tempo, estudante em Coimbra e companheiro de casa de Gonçalves Crespo e de João Penha. A nossa «república», instalada na casa das velhas Seixas, à Rua da Couraça de Lisboa, era freqüentada pela élite intelectual de Coimbra. Entre outros, iam ali diariamente Guerra Junqueiro, ainda imberbe e aspirante a homem de letras; Cândido de Figueiredo, poeta então e hoje filólogo; Frederico Laranjo, prosador de pulso; Simões Dias, poeta lírico dos melhores que Portugal tem tido; Caetano Filgueiras, brasileiro e poeta; João e Manuel de Campos Carvalho, mineiros e excelentes prosadores; Macedo Papança (hoje conde de Monsaraz), já poeta e muito democrata então; Silva Ramos, autor dos Adejos; Sérgio de Castro, prosador e poeta; e outros que prestavam culto a João Penha. Eu era menino de 13 anos e assistia cheio de curiosidade às discussões que se travavam no quarto de Penha ou de Crespo, por entre a fumarada dos cigarros, sobre escolas literárias ou sobre livros recém-publicados. De outiva, ia aprendendo muita coisa e ganhava gosto pelas letras. A Folha, a famosa Folha de João Penha, surgiu por essa época, e a leitura desse hebdomadário literário despertou-me o desejo de compor e de escrever. Fiz os meus primeiros versos que João Penha e Crespo corrigiram e, logo depois, tive a coragem de fundar com Silva Ramos, Bitencourt Rodrigues, Macedo Papança e Sérgio de Castro um periódico literário -O Peregrino- que saía quinzenalmente. Esse peregrino audaz saía pela mesma porta que atirava à grande circulação a apetecida Folha de João Penha! Para fazer o periódico, para ter idéias e dar-lhes forma amena, senti a necessidade de ler poetas e prosadores. Comecei pelos portugueses e passei logo depois aos franceses, lendo-os em versões e no original. Ramalho e Eça acabavam de publicar no Diário de Notícias, com grande sucesso, o celebre Mistério da Estrada de Sintra e encetavam a publicação das Farpas em pequenos fascículos. Urbano Loureiro mantinha no Porto uma revista satírica e humorística -Os gafanhotos, cuja feição me agradava. A prosa tersa destes homens e a poesia de João Penha, Crespo e Simões Dias faziam as minhas delícias. Gonçalves Crespo ainda não tinha publicado as Miniaturas, mas exibia-se na Folha, onde os seus versos eram lidos com aplausos gerais. Era, nesse tempo, nosso cônsul em Lisboa o barão de Santo Ângelo (Manuel de Araújo Porto Alegre) que, ao receber O Peregrino, me enviou as primeiras palavras de animação que tive na minha vida literária e que me aconselhou a que lesse poetas e prosadores brasileiros, citando os que eu devia ler de preferência.

Li os que consegui obter: Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e os sermões de Monte Alverne.

Paralelamente, ia lendo os clássicos portugueses e franceses. A leitura desses livros despertou-me o desejo de ler outros a que eles se referiam. Antônio de Castilho, o autor dos Ciúmes do Bardo, iniciava a publicação das suas traduções de Molière, e a leitura dessas versões levou-me a ler Molière no original para o cotejar com a traduções. Li assim a obra inteira do grande autor-ator e em seguida conheci a do bonhomme La Fontaine, a de Boileau e a de Scarron. No meu espírito já se manifestavam predileções, e o gosto pela forma apurada pronunciava-se. Percebi que precisava metodizar a leitura e estabeleci um plano. Comecei pelos poetas e prosadores espanhóis e notei que os que mais funda impressão deixavam no meu espírito eram Cervantes, Bartrina, Castelar e Campoamor. Passei depois aos italianos e a minha predileção manifestou-se por Dante e De Amicis. Dos ingleses foram Shakespeare, Dickens, Byron, Shelley, Carlota Brontë e George Elliot; dos alemães, Heine e Goethe; dos norte americanos, Longfellow e Edgard Poe. O autor do Corvo encantou-me e assombrou-me. Lendo-o, senti o desejo irresistível de escrever no gênero das suas Histórias extraordinárias. Fiz o que meu primeiro conto nesse gênero quando tinha 15 anos e ainda conservo esse trabalho medíocre, que nunca publiquei. Foi nessa idade que li com avidez e já preparado para sentir e julgar os então modernos escritores franceses. Li Vitor Hugo, Lamartine, os Dumas, pai e filho, Alfred de Musset, Verlaine, Baudelaire, Théophile Gautier, Guy de Maupassant e outros. Daudet aparecia. Li-o, mas não me impressionou como Hugo, Gautier e Maupassant. Hugo era para mim assombroso, extraordinário, e magnetizava-me pela grandeza das suas concepções e o imprevisto dos seus conceitos. Amava-o mais na prosa do que no verso. Théophile Gautier, o divino Théo, empolgava-me principalmente pelo estilo; Maupassant seduzia-me pela escola, que era nova, e pelo talento descritivo, em que já se aproxima de Gautier e de Hugo.

Não contando os clássicos portugueses que li, eis a minha bagagem literária daquele tempo.

Só mais tarde, quando regressei ao Brasil em 1871, foi que conheci a obra literária de Macedo, Alencar, Castro Alves, Varela e Machado de Assis, que ainda não era o mestre consagrado que hoje é.

O meu espírito, já então disciplinado, começava a produzir metodicamente.

Não quero fazer uma autobiografia, mas posso agora, resumindo, dizer que os escritores que mais influência exerceram na minha formação literária foram: Gonçalves Crespo, João Penha, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Alencar, Edgar Poe, Henri Heine, Théophile Gautier, Guy de Maupassant, Vítor Hugo, Bartrina, Byron, Shelley e De Amicis.

Destes, o que tiveram uma influência decisiva foram Crespo, Penha, Ramalho e Eça, Heine, Dickens, Gautier, Edgard Poe e Maupassant.

De todos, o que mais influência exerceu foi Gonçalves Crespo.

Eis aí porque o quis para patrono da minha cadeira na Academia Brasileira.

A confissão está feita.

Das suas obras, qual a que prefere?

RESPOSTA.- Carícias.

-Especificando mais ainda; quais dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere?

RESPOSTA.- «Viagens pelo país da ternura» (das Caricias); o conto «O Caso do abade e os Poemas da juventude» (da Choupana das Rosas).

-Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.), ou há a luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?

RESPOSTA.- Não, o Brasil não atravessa atualmente um período estacionário. Também não há luta entre as antigas e modernas escolas. Há, sim, certa tendência ainda vaga para a formação de novas escolas que no romance se revela em Canaã e na poesia dos versos de Francisca Júlia e Emílio de Menezes. Penso, porém, que essa tendência não passará jamais de uma aspiração.

-O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?

RESPOSTA.- Não me parece. O velho Portugal ainda sobre nós exerce tal influência literária que não conseguimos criar uma literatura essencialmente nossa, a despeito de quase um século de emancipação política. A Capital Federal está para os Estados como Portugal para o Brasil. Dela é que há de irradiar sempre a influência literária para os Estados, por mais autônomos que estes sejam, politicamente falando. Quando muito, poderemos vir a ter uma literatura do norte e outra do sul, algo distintas, mas com eternos laços de afinidade.

-O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?

RESPOSTA.- É um fator excelente. É ele que estimula o cultivo das letras, dando azo a que os novos surjam e exercitem as suas primeiras armas. Sem o jornal, que é um fanal, a arte estaria às escuras. É geralmente pelo jornal que o homem de letras começa; é ainda o jornal que lhe dá, máxime entre nós, as primeiras animações; é, finalmente, o jornal que consagra o escritor quando o neófito se transforma num triunfador.»

Frota Pessoa

O Sr. Frota Pessoa escreve-me a seguinte carta, onde se vê o seu pouco desejo de entrar para a Academia:

«Meu caro João do Rio. -Respondo aos três últimos quesitos do seu inquérito. Por julgá-los de pouco interesse, deixo de atender aos que se referem à minha formação literária e à preferência que dou aos meus trabalhos literários.

-Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.), ou há a luta entre antigas e modernas?

Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?

O meu amigo há de me permitir umas linhas de estilo demagógico. Bem sei o horror que tem às informações definitivas e violentas; mas de outra forma não lhe poderei dar inteiro o meu pensamento.

Salvo melhor juízo, cuido que o Brasil contemporâneo não admite o largo embate de idéias desinteressadas, no domínio da arte, porque todo ele está chafurdado em um vastíssimo pântano. Todos os sonhos e ideais jazem sepultados nos espíritos dos mais fecundos estetas. Não se nota um signo de renovação na atmosfera do sentimento.

Pareceu nas almas a fé, e com a fé o entusiasmo.

Compare a estagnação deste decênio com a febre do decênio anterior.

As causas? É que as instituições sociais que regulam a nossa existência entraram em decomposição.

As consciências melhores andam afogadas nas misérias que as assoberbam. Isto é um naufrágio.

Os caracteres oscilam: vacila o conceito da moral dominante.

Acentua-se um desequilíbrio formidável entre as ambições e os processos de conquista. Nenhum pudor, nenhum respeito pelas antigas formas de virtude. Os governos prevaricam, blindados por uma inconsciência invulnerável; os congressos, impessoais, realizando, como em tempo algum, os tipos coletivos de ajuntamentos ilícitos, curvam-se ao poder executivo com o incondicionalismo de escravos; os tribunais se desvairam, atônitos, a formar jurisprudências contraditórias sobre casos concretos imprevistos. E nenhuma preocupação hipócrita de salvar aparências.

Depois, ainda há uma decisiva agravante: é a ignorância popular, fomentada e cultivada pelos poderes públicos. Com a monarquia o mal não era tão grande. Num regime em que a graça de Deus inspira governantes e governados, a ignorância é quase um bem. Mas em um regime democrático, tão fatal é ao organismo social o analfabetismo das massas como ao organismo animal a privação de alimento. Quem disse essas coisas de um modo admirável foi o meu ilustrado amigo Dr. Manuel Bomfim, em um discurso que pronunciou o ano passado perante o Sr. Presidente da República e o Sr. Prefeito do Distrito Federal.

Não cito uns trechos característicos, para não alongar demais este arrazoado; mas leia o meu amigo as páginas 10,11 e 12 do opúsculo O progresso pela instrução, que tal é o título sob que se acha publicado esse monumental documento de crítica social, obra ao mesmo tempo de artista e de filósofo.

Não! As escolas não se batem, meu caro. Nem há escolas. Há apenas poetas que vão tristemente produzindo livros tristes, pela lei do hábito.

Temos românticos, naturalistas, nefelibatas, líricos, parnasianos, simbolistas, mas quase tudo francelho, com aquelas magras exceções que, no dizer dos gramáticos, vêm confirmar a regra. O que não temos é naturalismo, parnasianismo, simbolismo, etc.

E temos a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS -um mito evocativo da Academia dos Seletos, ao qual o Sr. Seabra acaba de insuflar um pouco de realidade, fornecendo-lhe aposento, luz e criado, à custa da nação, para que, ante os seus pares atônitos, o Sr. Lúcio de Mendonça reviva e perpetue a imortal querela com o Sr. G. Redondo sobre a nacionalidade de Gonçalves Crespo. Mas a própria Academia de Letras, considere o meu douto amigo, nunca passou -tal a melancolia destes tempos- de uma sociedade funerária, com o exclusivo escopo de prantear os defuntos imortais e de receber novos imortais candidatos à vida eterna. Nela se entra pura e simplesmente para adquirir direito a uma morte carpida entre frases retumbantes e descompassados encômios. Nunca, jamais, nenhum imortal, ali penetrando, fez, no seu caráter de imortal, outra coisa que não partir para a bem-aventurança. E como o meu arguto amigo, com a sua incomparável perspicácia, deve ter ponderado, de si para si, isto é macabro.

E nestas condições, dado este meio, como haver atividade, emulação, justas renhidas entre estéticas rivais; como -escolas modernas lutando pela supremacia; como -escritores representativos; como -predomínio de cânones literários?

-O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?

A literatura dos Estados é um reflexo da literatura desta capital. Às fulgurações e aos desfalecimentos desta correspondem fogachos e delíquios naquela. As formas prediletas da arte literária, aqui, são imediatamente aceitas pelos provincianos, da mesma forma que nós aceitamos e assimilamos, sem coisa alguma inovar, tudo quanto nos vem do estrangeiro.

Mas essas agremiações não deixam de ser interessantes e até certo ponto se justificam. No meio provinciano falece de todo o estímulo a qualquer produção de arte. Os jornais que aí se publicam vivem açodados em salvar a Pátria: uns, defendendo os atos, de maravilhosa honestidade, do governador ou presidente; outros, dia a dia apontando e verberando as incontáveis infâmias e tranquibérnias que esse mesmo cidadão pratica.

Não há como se celebrizar um gênio, fulgindo nessas colunas febris, consagradas a fins mais altos que acolher lucubrações literárias. Depois, o poeta que é amanuense do governo não tem guarida no jornal da oposição e o contista que freqüenta os salões e namora a filha do chefe político em oposição nunca achará agasalho na folha oficial. A publicação de livros é um martírio: o preço da edição -exorbitante, e ninguém quer ou sabe lê-los, quanto mais comprá-los.

É assim que os rapazes que se preocupam em fazer versos, fantasias e contos -que é quase a que se reduz essa literatura provinciana- só encontram um certo desafogo nos agrupamentos neutrais.

Reúnem-se, lêem as suas produções, aplaudem e são aplaudidos; às vezes, fundam uma pequena revista... E tudo obrigado a presidente, tesoureiro e secretários. Esses centros trazem uma vantagem: desenvolvem umas vocações mais bem dotadas e as preparam para vôos mais largos.

E trazem um inconveniente: o orgulho de alguns plumitivos exacerba-se e torna-se feroz.

À força de criar em torno de si uma certa legenda de talento, um ou outro desses agremiados cresce para dentro de si de uma forma alarmante. E, então não há expressões encomiásticas que, em breve, lhe não pareçam sem sabor. Mas, em verdade, desses há raros. A maioria é modesta e pouco a pouco sucumbe asfixiada. Talentos brilhantes conheci que para sempre desapareceram. O meio provinciano é uma campânula de bronze.

Mas, apesar de tudo, o mais humilde desses centros tem uma decisiva superioridade sobre a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, associação aqui fundada em 1896 e que o meu amigo, que é lido e curioso, deve conhecer pelos fúnebres arruidos que produz de onde em onde. Superioridade: porque são sinceros e liberais, porque são determinados por um justo sentimento de defesa e uma ânsia ativa de progresso, e ainda porque são ingênuos, compostos, na sua maioria, de rapazelhos que têm uma visão estreita, uma compreensão provinciana e uma cultura imperfeita. Até aqui eles pouco têm influído, ou quase nada, de um modo direto, na literatura, quanto mais ao ponto de criar literaturas à parte. Mas acaso a Academia, nos seus nove anos de existência (existência é uma metáfora), acaso a Academia, viveiro de águias, nos seus nove anos de existência, tem revelado um pendor, mesmo ligeiro, para a formação de uma literatura nacional dos escombros das tentativas anteriores?

Não! Nove anos de inércia ante o aguilhão dos sarcasmos e nem um movimento para qualquer obra útil e fecunda. Ou a Academia matou esses quarenta imortais, ou esses quarenta imortais mataram a Academia.

Mas, além das causas gerais indicadas no 3º capítulo e das que aqui vão compendiadas, a literatura dos Estados sofre outros males que a sufocam. Nessas deploráveis circunscrições geográficas não há governos, há feitores quase analfabetos, que exercem o seu domínio com fúria e sanha. Uma rede de extorsões, de violências, de peculatos descarados, de concussões voracíssimas, envolve todas as atividades, colhe os frutos de todos os esforços individuais, no proveito dos usufrutuários privilegiados.

Justamente os intelectuais são os que menos se sujeitam ao vexatório regime de descabelada opressão que aí se exerce sobre todas as autonomias; e, ou ficam privados de elementos vitais para exercer a sua função, ou fogem ao meio irrespirável. Por aqui já se vê: de uma parte, a melancolia que se derrama por essas regiões é incompatível com o subjetivismo das criações de arte; de outra, os cultores da literatura se retraem, ou buscam paragens onde o sentimento se possa expandir com uma certa liberdade.

E não é tudo: a instrução popular é, pouco mais ou menos, o que é na Rússia. Setenta e cinco ou oitenta por cento dos indivíduos são analfabetos. Os cargos do magistério são privativos dos filhotes políticos dos pequenos chefes locais. Distribuem-se os lugares de professores como os de escriturários de cartório. Um professor adverso aos governantes é um inimigo público. Querem-se cabos de eleição e não mestres de ensino.

Nem se faz questão de que haja uma instrução pública, senão de que exista um quadro de empregados, para prêmio dos apaniguados.

Esta é a situação geral, se, no entanto, excetuarmos três ou quatro Estados, que escapam, aqui e ali, a umas ou outras dessas argüições.

Desconfio bem que, não obstante a numerosa dialética que venho empregando, não respondi ao esfuracante quesito sobre os centros literários. Porque o que o meu delicioso amigo quer de mim é que lhe prognostique se o desenvolvimento de tais centros tenderá a criar literaturas à parte... Os séculos são, por natureza, longos, e o meu dom divinatório curto. Eu sou um oráculo tímido e prudente. Zelo a minha reputação: que dirão os meus tetranetos remotos, se no século XXX me encontrarem em falta, tendo feito errôneas previsões? Contudo, posso arriscar-me ao seguinte: com o Brasil de hoje, não creio; com uma nova Pátria, expurgada, regenerada e redimida, é possível. Porque o meu caro inquisidor bem sabe que tudo é possível. É possível que o Sr. Padre Severiano venha a ser canonizado. É possível que o modesto rabiscador destas singelas profecias e sentenças ainda seja um dos luminares da Academia de Letras.

-O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom, ou mau, para a literatura?

E, meu doce amigo, quanto ao jornalismo... Difficilem rem postulasti...

Não faça caso do latim e atenda. Tenho para mim que, em geral, as instituições, as coletividades, têm uma moral inferior à dos indivíduos que as compõem ou representam. Considere o Estado, que é a instituição -tipo. Conhece acaso entidade mais despótica, mais absorvente, mais cruel e mais nociva? Ele paralisa a iniciativa pessoal; concentra em si, em detrimento da liberdade individual, uma formidável soma de poderes discricionários; estimula, com a arbitrária legislação que institui e com o aparelho compressor de que se cerca, os crimes e as infrações; sacrifica ao bem-estar de um pequeno grupo de seres improdutivos todo o enorme esforço das populações laboriosas.

Considere as subdivisões dessa complicada máquina de opressão: os congressos, os tribunais, os júris, os exércitos... Todos os males que desabam sobre as nações vêm dos atos soberanos dessas e outras corporações. Considere ainda as instituições que se fundam pelo livre concurso dos indivíduos: os clubes, os sindicatos. os trustes, as associações de qualquer gênero, inclusive as de intenções pias, inclusive a ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, que nunca abrigou no seu venerando e infecundo seio intenção alguma. E verá que se refletem, dessas pessoas coletivas sobre as singulares, mais malefícios do que benefícios.

Mesmo as de intenções pias, disse: porque elas nada mais representam do que a hipocrisia com que as classes privilegiadas pretendem mascarar o seu monstruoso egoísmo e, portanto, concorrem para manter no mundo as seculares injustiças que o envergonham.

Mesmo a Academia de Letras, disse também: porque é uma mentira mumificada, uma aristocracia decadente e vadia, para embasbacar papalvos e formar esnobes. E toda mentira deve ser combatida e repudiada, porque toda mentira é uma adulteração fraudulenta da Natureza e um refalsamento indigno do espírito humano.

E essas instituições não evoluem das suas formas essenciais.

Os congressos têm o mesmo cordato servilismo que fazia o Senado Romano dar o título de cônsul ao cavalo de Calígula. Os júris são incompetentes ou venais: ou absolvem por cupidez, ou condenam por preconceito e ignorância. Os exércitos professam os mesmos princípios de glória assassina e sanguinária, e trazem aos povos os mesmos flagelos que as hordas primitivas de mercenários, apenas sem as francas atitudes e os ingênuos gestos de brutal ferocidade. Eles massacram, como outrora, os indivíduos válidos, e sacrificam, dessa arte, os milhões de frágeis seres que do seu amparo viviam; e, como conjuração aos clamores e às maldições das vítimas inocentes, fabricam-se códigos de humanitarismo e cria-se toda uma repulsiva moral patriótica, que galvaniza o coração da bruta massa de carrascos inconscientes que compõem as suas fileiras.

Ora, o jornalismo é hoje uma instituição coletiva, anônima e quase irresponsável, por quase onipotente; participa, pois, dos vícios das coletividades. Estes se atenuam quando o jornal é a tribuna ativa, de onde um determinado espírito, que traz convicções e idéias próprias, se dirige às massas para esclarecê-las, conduzi-las e educá-las.

É o caso de Ferreira de Araújo e de José do Patrocínio.

Mas, na sua feição mais comum, o jornal moderno é uma instituição que decai.

No entanto, eu não pretendo, nem desejo, aqui, vociferar contra o jornal, onde nos fizemos, que nos deu os primeiros ardores para o combate da vida, os primeiros entusiasmos e ilusões de renome e as últimas emoções, realmente sinceras, da publicidade. Sou grato ao jornal, amo o jornal, com esse amor irrefletido dos verdadeiros amantes. E nem por isso -não se sobressalte o meu preclaro amigo- nem por isso constatarei nestas linhas simples que ele é um veículo de idéias, ou uma alavanca do progresso.

O jornal é o que não pode deixar de ser: função do progresso e dele servidor.

-Mas particularmente para a arte literária, argúi-me o seu quesito derradeiro, é um fator bom, ou mau? Com as inevitáveis restrições que decorrem de quanto fica dito, cuido que o jornalismo presta à arte literária -e isto é intuitivo- todos os serviços de propaganda e difusão rápida, que ela requer para se desenvolver. E sobretudo em um meio como o nosso, em que a indústria editora é tão arisca e mofina, ele é um estimulante eficaz à atividade intelectual dos neófitos de valor. Estas são as suas inegáveis utilidades, no que se refere à literatura.

Entre as suas influências nocivas pode esta ser de pronto lembrada: facilita uma literatura de fancaria, que embota e corrompe o gosto artístico dos leitores e determina a decadência dos escritores que a executam (e temos exemplos contemporâneos memoráveis), quer instigados pela necessidade de viver, quer induzidos por uma ânsia vã de reclamos e gloriolas.

Terei correspondido aos intuitos do magnífico espírito que me honrou com a sua consulta? Estou que sim, tanto quanto isto é possível a um homem que se acostumou a dizer todas as extravagâncias que pensa -um péssimo costume...»

Osório Duque Estrada

O Sr. Osório Duque Estrada é professor, jornalista, poeta, conteur e, de vez em quando, crítico de arte. Há tempos, em campanha de eleição acadêmica, foi o nome do Sr. Osório Duque Estrada muito falado. Alto, louro, forte, no auge das ambições, o Sr. Osório escreve-me uma carta rápida e cortante.

Antes, porém, quando o mesmo escritor disputava uma cadeira na Academia, mandaram-me graciosamente esta nota para um dicionário, que não pretendo fazer:

«Osório Duque Estrada, nascido em Vassouras, Estado do Rio (1870), bacharel em letras pelo ex-colégio Pedro II; foi secretário de legação e encarregado de negócios no Paraguai (1891 a 1892); foi inspetor geral do ensino no Estado do Rio, por concurso, tendo também exercido ali os cargos de membro do Conselho Superior da Instrução e de lente de Francês do Ginásio Fluminense.

É atualmente lente de História Geral e do Brasil do Ginásio Nacional.

Tem publicado: Alvéolos (poesias) 1886, Zaida (poemeto) 1894, O Fonógrafo indiscreto (comédia), A aristocracia do espírito, Cartas do Paraguai, A questão do divórcio, Gramática portuguesa, Questões de português, Flora de maio (poesias) 1902.

Colaborou em alguns jornais de S. Paulo, em quase todos os desta cidade, e foi fundador e redator-chefe do Eco de Cataguases (Minas).

É ainda autor de três revistas de ano, duas das quais já foram representadas, tendo concluído ultimamente três libretos de óperas, sendo um escrito em francês e outro em italiano.»

Tão preciosa nota não podia deixar de ser publicada.

Eis a carta:

«Meu caro. -Aí vai em quatro palavras o que entendi responder ao questionário que me dirigiste.

Quatro palavras apenas, para não me comprometer muito: é a melhor maneira de responder às enquêtes literárias, principalmente quando se tem sobre os ombros a responsabilidade de uma candidatura à Academia de Letras.

Aí tens, com alguma cautela, cinco respostas que pouco adiantarão à tua curiosidade:

1ª. As três maiores fontes de poesia, segundo Hugo: a Bíblia, Homero e Shakespeare; entre os modernos: Goethe e Hugo, na poesia; Flaubert e Zola, os Goncourt e Eça de Queirós, no romance.

2ª. A Flora de Maio; desta as poesias Dolor Supremus e Em Passeio, além do Livro de Isa. Em prosa: O Paraguai e a Questão do Divórcio.

3ª. Sim, atravessamos um período estacionário. Os representantes das diversas escolas são ainda os mesmos de 20 anos atrás, mas emudeceram quase por completo.

4ª. Não me parece; a inspiração literária, para consumo de todo o Brasil, continua a ser importada de França, e chega muito deteriorada pelos imitadores sem talento, principalmente de Verlaine.

5ª. Atualmente é um péssimo fator. Dominou-o o espírito prático da época; o jornalista está quase substituído pelo repórter; as redações, de focos intelectuais, converteram-se em casas de negócio; as colunas da imprensa estão quase trancadas às produções intelectuais; os talentos reais, que ainda colaboram nela, já refletem o espírito prático dessas empresas mercantis: a crônica política, o comentário sobre os assuntos da vida burguesa e conservadora, a chalaça pérfida, o verso mordaz e a invectiva sórdida ou desabalada substituíram a obra forte da intelectualidade.

Ninguém produz, porque já não há quem leia. O futuro se me afigura ainda pior: a desorganização e a imoralidade no ensino vão preparando novas e mais temerosas ousadias do bacharelismo analfabeto.

Atravessamos uma época de crise intelectual bastante aguda. Um fator político a justifica, pela asserção de Guyau: la démocratie tue l'art. É lógico e irrecusável. Nesse particular, a República foi uma calamidade para o Brasil.»

O Sr. Fábio Luz foi um dos primeiros escritores com tendências sociais e humanitárias que consultei. O Sr. Fábio respondeu-me com esta breve carta:

«1º. Para as minhas tendências literárias (muito incompleta ainda a minha formação) contribuíram diversos autores, notadamente Zola, nos seus últimos livros, e Kropotkin acentuando sentimentos desde muito carinhosamente cultivados. Mais que todos, porém, contribuiu a alma ingênua e boa do povo, em cujo contato vivo, cujos costumes e índole procuro estudar, cujas dores físicas e morais sou obrigado a observar quotidianamente, por dever profissional, sendo, como sou, médico. Por amor deste último mestre vieram-me a revolta contínua contra a organização social de hoje e a aspiração por um futuro melhor e mais eqüitativo.

2º. Nenhuma preferência tenho por qualquer dos meus trabalhos, julgando-os sempre incompletos e deficientes, mal os publico, constantemente torturado pelo desejo de produzir melhor, numa sede insaciável de perfeição nunca atingida, máxime quando os comparo com as obras de arte dos outros.

3º. Atualmente o Brasil literário atravessa um período de estagnação e as lutas se travam entre os consagrados, que procuram amesquinhar e depreciar os trabalhos dos novos, no justo receio de que lhes venham fazer sombra, e os novos, que aspiram ser velhos, medalhões, consagrados, demolindo reputações bem ou mal adquiridas.

Acredito, entretanto, que um vigoroso movimento, sério e consciente, se vai fazendo para dar à arte um cunho social e humano, que há de predominar, abandonados os requintes de perfeição manual e mecânica, tão em voga, bem caracterizados pela modelagem perfeita das estátuas das nossas praças, sem um sopro de inspiração artística na concepção, nem como símbolos, nem como verdade, pela falta absoluta de sinceridade, incapazes de provocar sensações fortes e duradouras e sentimentos elevados. Arte de filigrana -bela para ver e inteiramente inútil-; boa arrumação de palavras, paisagens sem figuras, figuras sem a iluminação do olhar.

4º. Julgo que não.

5º. O jornalismo estraga e esteriliza os escritores e artistas que fazem dele profissão. Para a literatura é sempre prejudicial, com suas apoteoses aos amigos e conluiados, enchendo-os de vento e vaidade, e o silêncio matador para os desafetos ou indiferentes. Dos conciliábulos das redações e dos chopps íntimos saem sempre as coteries e as consagrações das mediocridades, em torno das quais chocalham os guizos da fama (!), desviada a atenção pública do verdadeiro mérito, iludida pelas fanfarras, entontecida pelo fumo do incenso queimado em turíbulos de folha de Flandres.»

O autor do Ideólogo, aliás uma alma delicada e simples, não compreende que já não estamos no tempo dos gênios ignorados...

Mandam-me entrar para uma pequena sala cheia de pequenas estantes, de guéridons, de fotografias e de jarras com rosas. Há junto à mesa uma vasta poltrona; encostado à parede, sob um retrato de Eça de Queirós, um largo divã coberto de pano da Índia.

Sento-me no divã e olho em derredor. À esquerda, uma porta quase apagada pelo reposteiro; à direita, outra porta dando para uma pequena área donde se divisa a beleza da paisagem da montanha. É noite. O candeeiro tem uma luz tênue e carinhosa, dessas luzes que deixam sombras agradáveis pelos cantos. Lá fora, a lua espalha pelo monte a poeira de prata do luar alvíssimo. Tenho a impressão de estar em cena, num cenário arranjado cuidadosamente para o final triste das peças passionais francesas. Devem ter lugar ali as despedidas soluçantes, os últimos adeuses dos olhos pisados e dos peitos arfantes, e eu vejo nitidamente o dono da casa de pijama de veludo despedindo os velhos amores, com o gesto calmo dos super-homens:

-Adeus, cruel! -Boa noite, minha querida senhora...

Neste momento, abriu-se a porta e apareceu o conhecido cronista, alto, corcovado, com o pescoço muito comprido e todo ele envolto num pijama lilás.

-Ia trabalhar?

-Ia; resolvera até não sair à noite.

-Há trabalhar e trabalhar.

-Era trabalhar no bom sentido. Sabe bem que eu deixo definitivamente essas criançadas da boêmia de jornal. O meu ideal é a paz do lar. Sinto que depois trabalharei muito mais. Ah! meu amigo, o que nos perturba, a nós outros, é a inconstância da vida sentimental!

Gravemente, João Luso sentou-se na poltrona.

-Tenho então que responder a um inquérito?

-É mais fácil que uma carta de amor.

-Conforme...

Pegou da carta que eu lhe enviara.

-Quais os autores que mais influíram na minha formação literária? Zola, Flaubert, Maupassant, Eça de Queirós e muitos outros.

Tomei do lápis, fui anotando os nomes, posto que tivesse a certeza de que o escritor para a sua formação tivesse antes sido Garrett, Júlio Diniz e Castelo Branco. Mas era uma certeza pessoal. Continuei.

-Qual dos seus livros prefere?

-A escolha não é difícil. Tenho apenas dois livros publicados; prefiro o segundo, Prosa, porque me parece um pouco mais bem escrito. Mas dos trabalhos nele contidos não prefiro nenhum porque todos estão muito longe daquilo que eu quisera escrever.

Tomei do lápis, fui anotando essas palavras, posto que tivesse a opinião de que o primeiro livro desse admirável temperamento de escritor era, pela sua espontaneidade, muito melhor que o segundo, do qual o mesmo temperamento fazia um alto juízo. Mas era uma opinião pessoal. Volvi-me ao inquérito, indagando as suas opiniões sobre escolas literárias.

-Romance social, vejo apenas o de Curvelo de Mendonça, diz João Luso esquecendo Fábio Luz e o Canaã de Graça Aranha, que o sr. Félix Pacheco tanto admira; poesia de ação, não creio que haja, felizmente. Depois, o período das escolas passou com as revistas de título grego. Hoje, cada um faz o que pode, livremente, por si -o que me parece muito melhor.

-Não há lutas?

-A literatura atual é essencialmente pacífica.

-E talvez passiva...

João Luso sorriu vagamente, aconchegando a gola do pijama ao seu pescoço cor de araçá. Irradiava simpatia. As suas mãos admiráveis de príncipe do Renascimento, mãos magras e esguias, mãos que Van Dick pintaria nos palácios de Espanha, eram como uma carícia por onde pousavam.

-E a literatura dos Estados?

-A meu ver só Curitiba deu-se ares até agora de centro literário independente e forte. Mas esses brilhantes rapazes fizeram-se isoteristas, simbolistas, cabalistas, impossibilistas, e -horresco referens!- um belo dia surpreendi o nome do mais vigoroso e mais entusiasta, o maioral da banda, no cabeçalho de um jornal maçônico. Ai dos filhos da Viúva!

Ai dos rapazes de Curitiba!

-Ai! ai! fiz para acompanhá-lo, percebendo que João esquecera a Mina do Pará, a Padaria do Ceará, e outros estabelecimentos literários à parte do vasto litoral brasileiro.

-Quanto à sua última pergunta, a minha resposta é esquisita.

-Deveras?

-Acho que o jornalismo não favorece no Brasil a literatura; mas é igualmente verdade que a literatura não favorece o jornalismo.

-É na sua essência a maior verdade que eu tenho ouvido.

-Porque praticamente o jornalismo serve aos literatos.

-Exatamente.

-Pois ainda outro dia ouvi de um diretor de jornal o seguinte: se eu dispensar todos os meus colaboradores, a saída da minha folha não diminuirá um exemplar. Engoli em seco em nome da classe, e calei-me. Parece que é assim mesmo!

-Mas, diga-me: tem muita coisa em preparo?

-Foi-se o tempo do livro único; eu imagino por conseqüência, muita coisa mas para quem vive preso ao jornal -e só têm grande ração os que assim vivem- as obras dependem dos jornais. Não se dá uma penada sem a certeza de ver a coisa publicada no dia seguinte. Eu tenho um romance que ainda não passou do primeiro capítulo. Ficará pronto se um jornal tiver a idéia de encomendar-me um romance. Daí o achar que para anunciar obras minhas falta aqui o colaborador eventual, o que coleciona os trabalhos -o jornal...

João Luso ergueu-se, diminuiu a luz do candeeiro. Lá fora a lua espalhava pelo monte a poeira de prata do luar alvíssimo. Em derredor tudo era como se estivéssemos em cena, no quarto ato de uma peça em que entrasse a Rejane com os diálogos feitos pelo Donnay. Deviam ter lugar ali as despedidas soluçantes, e eu ouvia nitidamente, na alucinação calma dos imaginativos, uma voz arfante murmurar -adeus, cruel!...

-Pois muito boa noite.

-Até outra vez! concluiu o escritor. E, cuidadosamente, deu volta à chave por dentro.

Ia trabalhar.

Mário Pederneiras

O Sr. Mário Pederneiras, um dos mais admiráveis poetas da geração nova, recebo a seguinte carta:

«Meu caro João do Rio. -São profundos e consideráveis os quesitos do teu interessante interrogatório sobre a nossa atualidade literária.

Demandam Erudição, e tempo não me sobra para o trabalho paciente de aprendizagem e rebuscamento pelas empoeiradas e sonolentas prateleiras das Bibliotecas e dos Institutos.

Demais, eu detesto o Alfarrábio, que me traz ao espírito a tristeza das exumações, quando não representa a ilusão de uma inutilidade, porque, se têm mérito excelente a Idéia e o Princípio pontificados pela Inteligência de há séculos, vencem facilmente a profunda inexorabilidade do Tempo e dos Esquecimentos, impondo-se à feição prática dos nossos dias, em reedições cômodas e cuidadas, pois não me parece que aos progressos tipográficos de agora repugne a divulgação impressa de uma velha Idéia sã ou de um louvável Princípio secular.

Ora, para que na minha resposta houvesse a substância e o esclarecimento que procuras, era preciso que eu arrumasse por dias inteiros no silêncio pacato de um gabinete de estudos, na companhia detestável e perigosa de livros velhos, e me deixasse encharcar pelo alto Saber dos Tratados para a análise das Causas que concorreram para a minha formação literária, para o desenvolvimento dos centros literários dos Estados e para a consideração do jornalismo, principalmente no Brasil, como um fator bom ou mau para a arte literária.

Tudo isto é considerável, João; precisa Método e eu sou, por desgraça minha, dos de temperamento nervoso e dispersivo, de tal modo, que odeio os gramofones pelo horror à exatidão mecânica das reproduções e detesto os cronômetros Gondolo pelo terror à hora certa.

Já vês que me embaraçam dificuldades insuperáveis para atender à gentileza das tuas interrogações, e entre aquelas não são as menores o Método e o Alfarrábio, sem os quais, reconheço, nada de mérito se pode fazer em questões de alta literatura.

Entretanto, não me quero furtar ao teu honroso convite, que me veio surpreender nesta minha solitária vida de hoje, tão preciosamente repartida entre as cansativas atribulações do ganha-pão de todo o dia e o carinhoso consolo da Família.

E poupo assim à Posteridade a trabalheira dos rebuscamentos históricos sobre a minha formação literária e sobre os méritos que me possam proporcionar a homenagem de uma herma na quietação bucólica das alamedas do Passeio.

Tem paciência e ouve-me.

Pouco antes de 1890 eu ainda chorava amores traídos e desventuras sentimentais, com a mesma sinceridade com que choraria hoje, se me roubassem a carteira com todo o ordenado de um mês.

Era um lírico, com todos os matadores, e, se bem me lembro, usava também a sombria sobrecasaca da Escola e o mole chapéu conquistador. Era pálido e tinha insônias.

O meu lirismo tinha qualquer coisa da espontânea sinceridade de Casimiro de Abreu e do bucolismo agradável de Gonzaga. Foi na imitação destas duas boas Almas simples que eu moldei as minhas primeiras produções literárias, acrescentando-lhes, por conta própria, um cepticismo reles de filosofia colegial, que condizia admiravelmente com a minha palidez, com o meu chapéu conquistador e com as minhas insônias.

Por esse tempo o lirismo nacional agonizava envergonhado, diante dos parnasianos, que traziam a novidade da Forma impecável de Alberto de Oliveira, o Verso meridional e vigoroso de Olavo Bilac e os sonetos magistrais do Mestre do soneto brasileiro -Luís Delfino.

A nova Escola, porém, nenhuma influência exerceu sobre o meu espírito e eu continuei, por algum tempo ainda, a chorar os meus amores traídos e as mesmas desventuras sentimentais, embrulhado na mesmíssima sobrecasaca sombria, à sombra do mesmíssimo chapéu conquistador e mole.

Foi em 1890 que eu comecei a minha verdadeira formação literária na companhia de dois lindos Espíritos de Artistas -Gonzaga Duque e Lima Campos.

Era a época da boêmia rebelde dos «novos», com todo um longo cortejo de revistas efêmeras e um desperdício extraordinário de talento e de energia.

A nova Escola seduzira-me encantadoramente com a riqueza pomposa das suas teorias de Renascimento, a delicada transcendência da sua Fantasia e a alta novidade emocionante do seu Ritmo e da sua Forma.

Comecei então a considerar-me simplesmente reles e atrasado.

Que diabo! Aos 21 anos, com todo um curso completo de Humanidades, Filosofia inclusive, era ridículo viver atarraxado àquele sentimentalismo choramingas de poeta lírico e desconsolado, pois não era?

Foi quando resolvi vender a minha pobre sobrecasaca, sombriamente longa, e o meu querido chapéu, sentimentalmente mole, a um estudante de farmácia, nomeado amanuense por concurso.

Desde logo detestei os poetas líricos, inclusive Lamartine, e atirei-me desesperadamente à leitura dos ardorosos simbolistas franceses.

Anos depois publiquei a minha primeira plaquette Agonia, que mereceu a honra de umas tantas descomposturas, solenemente passadas pela venerável crítica indígena. Crítico houve que a qualificou aterradoramente de dernier cri do nefelibatismo. Engoli calado o insulto, pelo alto respeito que dedico ao venerável sacrifício intelectual da crítica.

Entretanto, João, era um livro honesto, sentidamente trabalhado, sem pose e sem intenções preconcebidas de armar ao efeito.

A crítica, porém, condenou soberanamente a minha pobre plaquette e... esgotou-se a primeira edição.

Depois, a delicada compreensão artística de Lima Campos e a delicada espiritualidade de Gonzaga Duque abriram à minha modesta inteligência horizontes mais largos e mais claros e eu me fui educando aos poucos e aos poucos conhecendo os mestres da Arte escrita.

Foi então que eu comecei a amar perdidamente a obra monumental de Flaubert, a compreender o fino estilo delicado dos Goncourt e a ler Maupassant e Gautier.

Cuidei carinhosamente da Frase e da Forma e procurei para o meu Verso toda uma feição puramente pessoal.

Publiquei então as minhas Rondas Noturnas.

A Crítica teve elogios para o meu livro. Apenas um crítico de S. Paulo conseguiu encontrar um verso errado no meu trabalho.

Mentalmente mandei-o à fava.

Eu, Lima Campos e Gonzaga Duque formávamos uma trindade solidamente unida pela mais ampla e a mais sincera das afeições.

Gonzaga Duque, pela superioridade do seu Espírito, pela sua erudição, pelo seu alto cultivo intelectual, reunira, em torno da sua doce figura sentimental, todos os rapazes de mérito da época. Era o amado de todos.

Tinham-nos como chefe dos «novos» os que o não compreendiam, os que precisavam de alguém para responsabilizar pelos cometimentos ousados daquele grupo de rebeldes. Asneiras...

Gonzaga Duque era então o que ainda é hoje, -o mais delicado Espírito de Artista da nossa época, e nada mais.

Lima Campos era também o que continua a ser hoje, -o Artista excelente da prosa larga e do estilo vigoroso.

Foram estes dois Espíritos delicados, estas duas Almas simples, as maiores influências da minha formação literária e da minha folgada vida boêmia, que começou ali, naquela brasserie da rua da Assembléia, onde o velho e paciente Knopp, o mais inflexível e manso dos alemães que tenho conhecido, nos servia, a par do topázio excelente dos seus chopps e do perfume apetitoso dos seus «sandwichs» de fígado de ganso, o cabedal precioso para as nossas futuras dispepsias.

Amo apaixonadamente esse delicioso livro de Arte, que é a Mocidade Morta, e esse magnífico trecho sentimental, encaixado na delicadeza de um conto, sob o lindo título de «Benditos Olhos», que Gonzaga Duque publicou, vai para dez anos, num jornal carioca.

De Lima Campos, venero todo o Confessor Supremo, especializando essa admirável página descritiva, que é a «Velha Mangueira», e esse lindo trecho simples do «Faroleiro».

Quais os poetas que influíram na minha formação literária? Sei lá... Só te posso dizer que tanto adoro a plástica antiga de José Maria Heredia e Lecomte, como a simplicidade delicada de Verlaine e o romantismo de Gautier.

E dos nossos?

Tenho um devotado culto pelos sonetos magistrais de Luís Delfino, o das «Naus» e da «Madalena aos pés da Cruz», e tanto admiro o Verso quente e meridional de Olavo Bilac, como a impressão catedralesca de Emílio de Menezes. E por que não dizer também que me delicio com a arte estranha de Cruz e Sousa, do «Satã», do «Acrobata da Dor», e de «Meu Filho», e que nutro uma delicada afeição pela meiga simplicidade consoladora de Cesário Verde e Macedo Papança?

Respondo agora ao teu segundo quesito.

Para desespero dos amadores da literatura de peso, em brochuras de quilo, todo o meu trabalho literário, até hoje aparecido, está enfeixado em duas plaquettes esgalgas, excelentemente impressas: Agonia e Rondas Noturnas.

A primeira, meu livro de estréia, sofreu, coitadinha, todos os maus tratos da veneranda Crítica indígena; disseram-lhe nomes feios, chamaram-na de produto postiço do preconceito escolar, e até, João, chegaram a arrumar-lhe em cima o peso vigoroso de insultos em francês. Um horror...

Lembro-me ainda de que o egrégio Sr. Antônio Sales, no seu belíssimo estilo pompadour, deu-lhe pra baixo de rijo, em meio palmo de excelente prosa gramatical, pelas colunas de honra de um diário de efêmera duração.

Desesperei, João, porque contava bastante com a autorizada opinião de S. Exª. para a minha consagração de poeta novo.

Infelicidades da vida, que queres?

Outros críticos veneráveis perderam-se num estranho labirinto de considerações e rebuscamentos, e lá fui eu levado, aos trambolhões, das asas de Ícaro aos quadros de Puvis de Chavannes, por todo o longo espaço de um substancioso rodapé do Sr. Araripe Júnior, onde se exclamava a respeito do simbolismo: «De onde provém o Universo, perguntava o Rishi ao Rig Veda?»

Descobri-me respeitoso e embasbaquei...

Foi este o mérito exterior do meu primeiro trabalho. Pôs tonta a indigesta crítica nacional e os que não puderam apresentar méritos de uma erudição medonhamente cacete, insultaram-me, chamando-me até de «mistificador».

Entretanto, João, eu havia feito convencidamente um livro honesto e sincero; era assim a minha compreensão literária na época e foi assim que a executei.

A Agonia representava valorosamente a iniciação do meu sentimento de poeta, naquele agitado período de transição, e trazia na expressão do meu verso novo e trabalhado um grande feitio de apuramento e de remodelação de toda a minha alma de sentimental.

E eu sentia gloriosamente que a minha doce e amada Poesia perdera aquele jeito capadócio de modinhas em noitadas de esbórnia ao choro melancólico dos violões gemedores.

Bastava isto para que eu dedicasse à minha modesta plaquette um carinho especial e esta grande afeição que ainda hoje lhe dedico.

Há ali dois capítulos que eu amo sinceramente -«Clamor» e «Hora viúva», e versos que ainda hoje me encantam, como este, de uma suave observação fantasista:

Belo tempo o da messe,

Do sol que a terra e que as espigas doira...

Para quem passa nos trigais parece

que a terra é toda loira.

E outros e muitos outros.



Para compensar a maldade da crítica dos velhos medalhões da minha terra, eu tive o largo e lisonjeiro aplauso da espiritualidade moça da minha época, magnificamente representada por Paulo Barreto, Gonzaga Duque, Félix Pacheco, Félix Bocaiúva, João Luso e tantos e tantos outros.

E dei-me por satisfeito.

A minha segunda plaquette, Rondas Noturnas, teve elogios da Crítica, e o eminente Sr. José Veríssimo chegou a adiantar que o simbolismo havia trazido aproveitamentos reais para a expressão da nossa sentimentalidade. Exultei...

Este é, por enquanto, o meu livro bem amado, mais delicadamente feito, ainda mais trabalhado e mais perfeito.

Orgulho-me de o ter publicado e sinto nele, deliciosamente, num destaque proeminente, toda a minha individualidade literária.

De todos os meus sonetos o que eu mais amo, o que mais me orgulha, é a «Sombra», e não posso deixar de destacar também essa trilogia da «Fé, Esperança e Caridade» e a «Insônia».

José Veríssimo deu as honras de uma citação ao «Sonho» e Medeiros e Albuquerque ao «Mar».

Na composição deste meu pequeno livro gastei um ano, o que prova, João, o cuidado e o carinho com que tratei de fazê-lo...

Não cito versos, porque, como bom pai, adoro todos eles.

Para maio preparo o meu terceiro livro, todo um poema íntimo de meiguice e sentimento; é a história da minha vida solitária de hoje, inspirada na delicadeza de um convívio docemente sentimental das Árvores e do Mar, do Amor e meus Filhos.

Dei-lhe o nome simples de Histórias do meu Casal e vai ser, espero, o meu melhor livro...

A tua terceira interrogação tem ares de tese a desenvolver.

É profunda. Não me ânimo a respondê-la; como já disse lá acima, demanda erudição e uma série de aptidões filosóficas que o meu modesto espírito pacato não comporta.

Mando-te, se quiseres, com boas recomendações, ao alto Saber do nosso Instituto Histórico, onde dormem todas as capacidades nacionais na espécie.

Entretanto, deixa que te diga, João, que é de franco e deplorável estacionamento a nossa atualidade literária. Estamos à espera que a Idéia Nova nos chegue pelos próximos transatlânticos franceses.

Não há luta, João, nem «literaturas rivais que se engalfinham».

Com a morte de Cruz e Sousa, o simbolismo enfraqueceu consideravelmente. Os líricos desapareceram... do mundo, e se por aí ainda algum existe, dorme comodamente na doce paz de um emprego público, sonhando apenas com o regalo das aposentadorias.

Dominam, portanto, ainda, com toda a sua glória, os parnasianos.

Felizmente, ainda não nos veio assombrar essa esquisita espécie de literatura de que falas (romance social, poesia de ação).

Deve ser detestável.

Toquemos de leve no quarto quesito. Não conheço as literaturas estaduais, como não creio na sua influência para a formação de escolas especiais. Em todo o caso, como estamos num regime federativo...

Último quesito:

João, a imprensa, no Brasil, é um péssimo fator para a arte literária, principalmente depois do desaparecimento dos dois únicos jornalistas brasileiros para quem o jornal não era simplesmente uma indústria -Ferreira de Araújo,- e este amado morto de ontem -José do Patrocínio.

Só a crítica, mas a crítica dos considerados, encontra a complacência de um agasalho na nossa imprensa diária.

O jornal de hoje tem o seu precioso espaço dignificadoramente ocupado pelo comércio, pela política e pela indústria, e não pode cuidar dessa estranha coisa inútil e maçadora que é a Arte literária. Não é, João? -Do teu, Mário Pederneiras.»

Vê-se que o Sr. Mário Pederneiras, além de ser dos mais justamente admirados, admira-se também com a convicção e a certeza dos verdadeiros artistas.

Rodrigo Otávio

O Sr. Rodrigo Otávio, da Academia de Letras, escreve-me a seguinte carta:

«Meu caro João do Rio. -Minha formação literária...

Mas, eu não sei mesmo se tive uma.

Em nossa terra, salvo exceções que se contam, as letras ficam no domínio do diletantismo. Muitos de nós, os chamados homens de letras brasileiros, mas realmente, na generalidade, professores, empregados públicos, advogados, jornalistas, muitos de nós, eu mesmo talvez, poderíamos ser, na França, por exemplo, homens de letras no sentido preciso, restrito da expressão.

Aqui, ainda o não somos e não será possível sê-lo enquanto a literatura não for uma profissão, um meio de vida remunerador e confessável.

Por enquanto é uma ocupação segunda, trabalho para as horas vagas, para o tempo que nos deixam as lides de nossa ocupação normal e principal.

Assim, entre nós a produção literária, em sua máxima parte, é antes o fruto da satisfação subjetiva, de uma necessidade de espírito do escritor, do que do acentuado desejo, da intenção decidida de fazer um livro, de compor um trabalho que se destine à leitura dos outros e vise o pagamento do editor.

E em tal conjuntura não é possível a gente que se ocupa de letras no Brasil orientar a produção literária por um caminho seguro, por uma feição definitiva.

Vive-se aqui a ensaiar, a experimentar, tentando-se todos os feitios, amoldando-se a todas as escolas.

Pela minha parte esta é a sensação que tenho da vida literária brasileira.

Animado, desde bem louros anos, de um decidido amor pelas letras, tive por sonho dourado de minha meninice o desejo de «fazer um livro», de ter o meu nome impresso em pequenas letras de ouro nas lombadas de marroquim, enfileiradas nas estantes ao lado de outros e outros. E tal sonho, antes que o meu espírito juvenil pudesse discernir a significação das cousas, me fez passar horas perplexas, deliciosas horas, na leitura inconsciente dos frontispícios dos livros da biblioteca de meu pai, à escolha do assunto de que me havia de ocupar um dia, do título do -«meu livro»-, vacilando entre Oração da Coroa, Apostilas de Praxe, Noites na Taverna, conforme as palavras cantavam-me ao ouvido, ou a disposição dos tipos me falava aos olhos, e essa ingênua pesquisa embaladora me desvendava, sugestiva e mecanicamente, os mal definidos horizontes de tantos mundos desconhecidos, mas, por isso mesmo, fascinadores, irresistíveis.

Os anos passaram sobre esse sonho pueril; os -meus livros vieram, que jamais se me apagou do espírito o fogo sagrado; o meu nome foi impresso nas ambicionadas pequenas letras douradas nos lombos de marroquim, mas esses livros não satisfizeram o sonho ardente dos meus primeiros anos. Outros títulos, outros horizontes, outros mundos continuam a passar dentro de mim nas minhas horas de contemplação interior, e surgem e se acentuam e se desdobram, mas passam e fogem e se apagam, sem que o título seja aproveitado, sem que o mundo seja explorado, sem que o livro seja feito, enfim.

Bem eu sinto que se eu pudesse ser um homem de letras, se a minha preocupação principal, se não exclusiva, fosse a difícil arte da palavra, bem eu sinto que essa muda revoada de ideais não me deixaria apenas o amargo ressaibo de uma ilusão perdida, de uma visão desfeita, de um sonho apagado num acordar doloroso...

Mas as contingências da vida que me tem sido dado viver desfazem a proficuidade desse labor, no qual, sinceramente o digo, veria com prazer chegar o cansaço e a velhice, porque os veria chegarem com a consciência de haver vivido a intensa e fecunda vida do meu sonho irrealizado.

Mas, tudo é vão e inútil: pois, em meio do torvelinho e das preocupações de atividade profissional, que nos requer todos os dias e todas as noites, é inútil qualquer tentame, qualquer esforço é vão.

Os livros que tenho conseguido escrever são o resultado de uma favorável série de circunstâncias oportunas. Muito maior, porém, é o número daqueles que não consegui escrever; e aí certamente é que está, ou que estaria, ou que devia estar minha obra.

É possível que eu ainda a venha escrever um dia; receio, entretanto, que quando possam chegar esses dias de despreocupação material da existência, o fogo esteja extinto e a impotência venha conturbar os derradeiros lampejos de uma vida estéril.

Por hoje sou, e o tenho sido desde que a minha razão se formou, magistrado e advogado.

Nos meus primeiros anos, da academia ao casamento, que me trouxe a consciência das minhas responsabilidades, nos meus primeiros anos, fiz versos, nem creio mesmo que houvesse feito alguma outra coisa com seriedade.

Fiz versos e escrevi o Aristo, uma novela que ninguém leu nem conhece, mas que é o meu livro mais significativo e mais meu. De então para cá a minha obra, quer na fatura, quer no sentimento, quer na respiga do assunto, ressente-se das circunstâncias atropeladas em que tem sido feita.

Aqui, onde a gente começa tão cedo as graves funções da vida pública, a literatura passa desde logo a ser uma ocupação de segundo plano.

Assim foi comigo, se bem que a princípio não fosse assim. Como disse, não tinha pensamentos que não para as rimas de meus sonetos, para os hemistíquios de meus alexandrinos. Vivia com eles, com eles ouvia as lições dos mestres no velho mosteiro da Paulicéia, com eles ia aos meus passeios de notívago impenitente, a que não fazia mossa a fria garoa clássica de S. Paulo.

Poetas foram os primeiros companheiros do meu espírito. Na já referida biblioteca de meu pai, minha segunda fase, depois que passou a preocupação pueril da escolha dos títulos para «minha obra», -minha segunda fase foi de leitura apaixonada de versos. Ali eu encontrei toda a opulenta flora do espírito brasileiro, desde o Gonzaga, da Marilia, até Castro Alves, da Cachoeira de Paulo Afonso. De tantos, porém, Álvares de Azevedo, no verso como na prosa, foi o que mais fecunda impressão me causou.

Minha primeira feição, inteiramente inédita e infantil, foi byroneana.

Por esse tempo meu pai me deu, prêmio de um exame distinto, os três volumes do teatro de Schiller. Depois, no ano seguinte, a esse volumes vieram juntar-se quatro tomos expurgados de uma tradução portuguesa dAs Mil e uma noites. E essas leituras abriram no meu espírito uma perspectiva extraordinariamente brilhante de fantasia e de sonho. Jamais deixei de ler essa obra estupenda, posteriormente, em edições outras que obtive, e ainda hoje a releio, já agora na primorosa tradução direta do árabe e cruamente literal do Dr. Mardrus.

Escrevi então meia dúzia de dramas e romances, cheios de agitação, pavorosos, extraordinários...

Mas, tudo isso passou, e essa feição primeira do meu espírito ficou ignorada para os homens, que nada perderam com isto; tudo passou, e a fisionomia com que me apresentei ao mundo foi o calmo e composto aspecto de um parnasiano.

Se eu pudesse ter continuado a evolução natural de minha tendência literária, teria ficado no terreno da ficção, fundamente romântico na essência, cuidadosamente parnasiano na fatura.

O impulso que eu trazia teve, porém, de se deter ante barreiras cada vez mais temerosas, e que, ai de mim! começaram a surgir desde os meus claros vinte e um anos de idade.

A absorção não foi, entretanto, pacífica: houve tremenda luta entre as correntes opostas. Aos 24 anos, eu já havia escrito um artigo de fundo para o Jornal do Comércio, e em sexta-feira da Paixão, e havia assinado uma sentença de morte, como juiz de direito interino da comarca da Paraíba do Sul.

A luta estava, pois, no mais intenso, quando, por esse tempo, o casamento, satisfazendo-me os impulsos do coração, normalizando-me a vida, criando-me as alegrias tranqüilas do lar, o indefinível gozo da paternidade, completou a obra da conquista.

A lira calou. Le bonheur tue le poète, disse algures Balzac, esse grande conhecedor da comédia do mundo, e em mim o poeta morreu.

Quanto fiz de então para cá é obra do paciente amador de alinhar palavras, e essa mesma feita quando outra cousa de obrigação lhe não disputa os momentos de melhor disposição para o trabalho.

E mais não tenho que lhe dizer, meu caro senhor.»

Inglês de sousa

O Sr. Inglês de Sousa, autor de O Missionário, manda-me a seguinte carta extremamente curta:

«Cumprindo as suas ordens, respondo aos quesitos da circular que teve a gentileza de enviar-me.

1º.- Os autores que mais contribuíram para a minha formação literária foram Erkmann-Chatrian, Balzac, Dickens, Flaubert e Daudet.

2º.- Das poucas obras que hei publicado, prefiro O Missionário, ainda que a sua fatura não corresponda ao meu modo atual de ver e sentir a natureza. O Missionário é espesso e palavroso; tem, pelo menos, cem páginas a mais. Todavia ainda hoje escreveria alguns capítulos, como o da viagem do Padre, o dia do Nico Fidêncio, o enterro do Totônio Bernardino.

3º.- A este quesito só podem responder bem os que se entregam a crítica literária, cousa de que Deus me defenda. Como amador de literatura penso que é o lirismo a forma que há de predominar na poesia, e ao romance já agora é impossível tirar a preocupação social que está em todos os espíritos. Para falar com franqueza, considero secundária esta questão de escolas em arte: não chego mesmo a estabelecer outra distinção entre os trabalhos literários se não a de ter ou não ter talento o sujeito que se mete a escrever para o público.

4º.- É possível, com o tempo, quando a federação tiver criado verdadeiros Estados e os Estados se tiverem tornado nações.

Por enquanto, não conheço nada mais parecido com o brasileiro do norte do que o brasileiro do sul. Não partilho da opinião do Sr. Assis Brasil sobre as diferenciações étnicas produzidas pela farinha de mandioca e pelo churrasco.

5º.- Fazer literatura e fazer jornalismo são coisas diversas, como fazer arquitetura e fazer engenharia.

Está demonstrado que se pode ser ótimo jornalista sem saber ler nem escrever. Em compensação, há redatores de periódicos que se contam entre os melhores literatos. Também há diretores e amanuenses de secretaria, escrivães e outros rabiscadores de papel, que são excelentes poetas e grandes romancistas. O que não quer dizer que a burocracia seja bom fator para a arte literária...»

É como se vê, curta, mas cheia de idéias.

O escritor paranaense Rocha Pombo, em geral tão prolixo, vence porém, o record da sobriedade. Parece quase impossível que seja este o Rocha Pombo do No Hospício e de alguns artigos, em que as revistas põem de vez em quando -continua.

O romancista manda-me numa tira de papel almaço, cortada em três pedacinhos, o seguinte:

1º.- A Bíblia, principalmente os Evangelhos; Homero, Virgilio, Dante, Milton, Carlyle, Hugo, Goethe, Klopstock e alguns outros mais; Vieira, Herculano, etc.

2º.- Das minhas obras eu prefiro as que não escrevi ainda. Se me instigar a destacar alguma coisa dentre as que tenho escrito -aí está: gosto mais de alguns dos meus contos, de algumas páginas do No Hospício e de um poemeto ainda inédito.

3º.- Não se pode dizer que atravessemos um período estacionário: creio antes que a obra desta geração vai ser uma das mais fartas e notáveis de toda a nossa história literária. -Não vejo escolas delimitadas: apenas tendências místicas em alguns, e noutros, no maior número talvez -a velha concepção naturalista da arte. Dou mais, muito mais, pelos primeiros.

4º.- É tão insignificante o movimento literário nos Estados que não acredito na possibilidade de se formarem literaturas à parte. Demais: ainda quanto à atividade intelectual -o Rio de Janeiro continuará a ser por muito tempo o Brasil.

5º.- Para os jornalistas de profissão -o jornalismo é um grande mal em toda parte. É o mais que se pode dizer. Para a arte literária, porém, a imprensa é um grande fator de progresso, pois estimula esforços, revela aptidões, destaca os mais capazes de vencer.

Laudelino Freire

O Sr. Laudelino Freire escreve-me a seguinte carta:

«Ilustre Confrade. Satisfazendo o seu desejo, aqui lhe dou as respostas que me pede:

- I -

As minhas primeiras leituras, na época em que estudava preparatórios (1885-1890), foram feitas em almanaques, seletas e pequenos manuais enciclopédicos, de que me resultaram os primeiros conhecimentos com os autores nacionais e portugueses mais em voga. Recordo-me do entusiasmo, ainda hoje conservado, com que lia e decorava as poesias de Castro Alves, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, Tobias Barreto, Casimiro de Abreu, Guerra Junqueiro, Tomás Ribeiro...

Estudante de filosofia, preparatório então exigido, comecei a estudar Barbe e Pelissier, sentindo mais se me despertar o gosto pela literatura com as lições do padre Honorato, livro que sobraçava na aula de retórica; com o Curso de literatura, de Melo Morais Filho; com os romances de José de Alencar, Os Miseráveis, de V. Hugo...

Depois as minhas leituras se foram voltando para João Ribeiro, cujas gramáticas acabavam de aparecer; Sílvio Romero, que se tornara mestre com a publicação da história da literatura brasileira, Tobias Barreto, C. Castelo Branco, Eça de Queirós, Alexandre Herculano, Rui Barbosa, Teófilo Braga, Taine, Spencer, Buckle, Montesquieu, Kant, Comte...

- II -

Dou preferência ao capítulo segundo do livro intitulado -Sílvio Romero; ao estudo sob o título de um crítico, do livro -Um Crítico de um poeta; e os ensaios -Intuição Científica da História.

- III -

Quanto à prosa no Brasil, é assinalável não pequeno progresso nos últimos anos. Observa-se presentemente bem pronunciada tendência para o apuro da língua, salientando-se nessa propaganda os nomes de Rui Barbosa, Heráclito Graça, João Ribeiro, Cândido de Figueiredo e outros.

Pode ser indicado o nome de Pacheco Júnior, o último, cronologicamente falando, dos velhos mestres, como o iniciador de uma fase inteiramente nova para a filologia indígena, imprimindo-lhe uma orientação muito diversa da que até então era seguida -orientação que foi largamente firmada por Júlio Ribeiro, João Ribeiro, Maximino Maciel, Alfredo Gomes e outros gramáticos de nota.

Ao meu ver, os melhores dos prosadores atuais são: Rui Barbosa, Carlos de Laet, Machado de Assis, Coelho Neto, João Ribeiro, Medeiros e Albuquerque, Alcindo Guanabara, Olavo Bilac, Artur Azevedo...

No romance nada de novo observo, no momento atual; nenhuma movimentação de idéias há que se traduza em escolas definidas. Apenas vagas aspirações para o romance social, que só mais tarde, com uma maior aceitação das correntes socialistas que convulsionam as sociedades européias, poderá frutificar entre nós. Continuo a preferir os velhos romancistas -Macedo, Alencar, Machado de Assis, Taunay, Aluísio...- ao que atualmente surge sob as formas aparentes de idealizações humanas e sociais.

Na poesia é incontestável o nosso estacionamento. Os mais notáveis representantes da poesia atual ainda pertencem a essa geração de poetas que, nascidos há pouco mais da metade do século findo, começaram a vicejar dos últimos anos da década de 1870 em diante. Geração que despontava para o encontro de novas formas de estética, que em França surgiam e repercutiam entre nós, cabia-lhe manter a elevação dos últimos românticos, sem quebra de continuidade, ou sem interromper a ligação existente entre as cousas sucessivas, como diria Taine, verificando um dos elementos da sua lei das condições. Era com efeito um grupo que irrompia forte e vigoroso pelo talento, do qual outros poderiam ser indicados além de -Artur Azevedo, Foutoura Xavier, Correia de Azevedo, Teófilo Dias, Batista Massena, Augusto de Lima, Múcio Teixeira, B. Lopes, João Ribeiro, Alberto de Oliveira, Ciridião Durval, Afonso Celso, Raimundo Correia, Martins Júnior, Luís Murat, Xavier Marques, Rocha Filho, Cruz e Sousa, Adolfo Caminha, Teotônio Freire, Francisco Lins, Olavo Bilac, Adelino Fontoura, Alexandre Fernandes, Guimarães Passos, Emílio de Menezes, Bento Ernesto Júnior... Estes nomes garantiriam à poesia o mesmo vigor, a mesma exuberância com que ela vinha revestida, se não lhes fosse dado surgirem precisamente num momento de temerosa crise para a arte, que se sentia sacrificada ao surto de correntes várias e indecisas, de escolas não definidas, de embates mal dirigidos e extravagâncias curiosas. O ideal artístico ressentira-se em meio de tantas lutas e reações desencontradas, e a arte em si mesma muito perdera do que lhe é condição essencial -a sinceridade. E daí as manifestações contrafeitas e desvirtuadas.

Não é fácil definir as feições literárias posteriores ao romantismo; mas só o tentássemos, buscando os sentimentos que os inspiraram e as causas ou idéias aparentes que as justificam, talvez bem pouco apurássemos da sinceridade delas. Os seus atuais representantes, esses que se intitulam parnasianos, realistas, naturalistas, cientificistas ou místicos de qualquer espécie, pecam por essa mesma falta de sinceridade do ideal que os possa conduzir. Conseqüência talvez mais decorrente da própria crise que a poesia atravessara nos ardores da reação contra o romantismo, do que da falta de aptidões e qualidades dos novos cultores, o que fica plenamente evidenciado é a inferioridade crescente da nossa produção poética. E não será temerário afirmar que, à medida que a poesia se distancia do derradeiro período romântico, menos valiosos se vão tornando os seus produtos, menos belos os seus cantores, e mais incompreensíveis e obscuros os seus pensamentos.

- IV -

Não observo semelhante tendência, e julgo difícil a formação de literaturas à parte entre nós.

Devo lembrar, entretanto, a tentativa de Franklin Távora para criar a Literatura do Norte, cujos moldes não podem ser, segundo lhe parecia, os mesmos em que vai sendo vazada a literatura austral que possuímos.

Norte e Sul, dizia, são irmãos, mas são dois. Cada um há de ter uma literatura sua, porque o gênio de um não se confunde com o gênio do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e há de ter, se já não tem, sua política. Devem também ser lembradas a Padaria espiritual, do Ceará, e a Oficina dos Novos, no Maranhão.

- V -

O jornalismo não deixa de ser um fator importante para o desenvolvimento literário. No Brasil, porém, as condições do meio ainda não permitem que a imprensa consagre à literatura o apreço que fora para desejar.»

Magnus Söndhal

-... «Assim te amaldiçoaram os Covardes, na tua sublime Dor!... E só quiseram ver-te quando alegras -a Vida-, como fulgor do teu Sorriso!... Mas, Tu és somente Amor!...

A vida!... o palpitar desse Universo, imenso e sideral!... O palpitar do Lhôma, na Matéria que se tornou sensível ou que pensa, na Célula que é a Síntese do Cosmos!...

A Vida!... o doce e desejado Encanto de ter Consciência, e de sentir-se em torno!... Um Bem-Supremo ou uma Desgraça suma!... Oh! como é doce a Vida, ou quanto amarga!...

Por que é que a Vida amarga e infelicita?!...

-Porque inda há Morte e as Esperanças ruem!...

Quando é que a Vida é doce e desejável?!... Quando Justiça e Amor eterna a fazem!...

E SUN pensou!...

E assim falou SIN-UR!...»

O misterioso hierofanta Magnus dava-me nesta noite a honra de ouvir a sua grande obra inédita Assim falou Sin-ur. -Como eu o fosse procurar, no meio do gabinete loiro e satânico, o mágico desembrulhara o manuscrito e dissera:

-Dou-te para exemplo concreto o quarto capítulo desse poema em prosa, cuja epígrafe é A Vida.

Já dez horas tinham batido nas torres das Igrejas.

Magnus Sondhal é o nosso sar Peladan, o escritor complicado, cheio de palavras exóticas. Na sua mesa há seis qualidades de tintas, desde o vermelho carmim à cor de violeta: em cada tinteiro uma pena descansa. O hierofanta escreve como um pintor: Tudo é delicadeza de sensação, assombro, incognoscível...

Logo que acaba de ler a ode nietzscheana da vida, Magnus limpa o pince-nez e fala com um ar de regato tranqüilo:

-Confesso que me sinto em sério embaraço para satisfazer aos teus quesitos, máxime quanto à segunda questão, não só pelo modo -geral- por que são formulados, como também, e principalmente, pelo fato de se referirem a assuntos mais relativos à Erudição do que à Invenção.

No entanto sou obrigado a dizê-lo -embora no meio atual deponha contra mim!- que sou puramente, um -CRIADOR, tendo posto fora toda a minha velha Erudição como Bagagem inútil e incômoda.

Começa o assombro. Curvo-me. O Mago continua:

-A minha formação literária, artística e filosófica foi, em rigor, um resultado direto de uma excepcional Educação, fornecida por minha Mãe, um tipo superior -uma Poetisa ilustrada.

Esse fato contribuiu aliás, grandemente, para a minha emancipação completa de Mestres, Autoridades e Compêndios.

Quando Eu me senti Homem com a minha Orientação e a minha Opinião formada, só tinha lido os EDDAS e os SAGAS dos antigos Nórskos.

Nessa época, aos 21 anos de idade, escrevi o meu primeiro trabalho, do qual nunca terei de me envergonhar, e que tem por título:

O CAMINHO DA VERDADE, Alegoria, que começa quase com as mesmas expressões e as mesmas frases da Divina Comédia de Dante, Obra, no entanto, que Eu absolutamente não conhecia ainda.

Depois disso é que li as principais Epopéias de Humanidade, preponderando no meu Espírito a influência da Literatura Oriental, principalmente da Índia e do Egito.

Oh! Homem bizarro! Eu falara com alguns membros da Academia. Tinham quase todos começado no Panorama! O formidável Criador começava como um Dante embebido nos Sagas! Com a voz trêmula de arrebatamento inquiri:

-E tem um tão orgulhoso amor pelas suas obras?

-As minhas Obras, não posso citar, como tendo verdadeiro valor literário, nenhuma daquelas que foram publicadas em Revistas, Livros ou Jornais, embora algumas já tenham merecido tradução para línguas estrangeiras: O Amor Livre, e a Pré-história, por exemplo.

No entanto, sou um Reformador, não só da Literatura, mas até da própria Linguagem.

Houve uma pausa. O Reformador continuou:

-No Curso de um dos Discípulos atuais de UNIVERSIDADE acaba de traçar as Normas principais dessa Reforma. É isso pois uma Realidade já, embora não sejam essas novas Teorias conhecidas ainda do Público e dos Literatos, especialmente.

Não tenho preferências por coisa alguma do que já fiz!... Nisso, como em tudo mais, Eu só dou preferência àquilo que ainda não fiz!

No entanto, das minhas Obras inéditas a que me parece melhor é a que tem por título: Assim falou Sin-ur, de que já te li esse palpitante trecho da «Vida».

A Literatura, aqui ou alhures, não pode ser senão a Expressão do Estado Mental de uma certa Época ou de um Período de Evolução, de uma certa Fase Social, na qual prepondere uma determinada Corrente de Idéias.

Dada essa definição, e essa condição, para a existência de uma Literatura digna desse nome, é fácil reconhecer que, nem no Brasil, nem no Ocidente, se constituiu ainda uma verdadeira Norma Literária, visto como não se formou ainda uma Escola Filosófica, geralmente aceita, capaz de inspirar, orientar e dirigir as Concepções e Sentimentos dos que produzem e dos que interpretam.

Achamo-nos em um período de efervescência, de decomposição e até mesmo de DEGENERESCÊNCIA profunda.

Não falo isso com o espírito pessimista dos Degenerados!... mas com a certeza e a convicção de um Filósofo e as simpáticas Esperanças de um Reformador.

Se houvesse hoje Literatura, já não digo quanto ao Estilo e à Forma, mas quanto à Inspiração filosófica, essa Literatura não poderia ser senão CRISTÃ; e isso por boa razão: -que o Cristianismo ainda prepondera como Fonte da IDEOGENIA SOCIAL.

As sementes da bela Revolução Hodierna estão semeadas, mas o terreno em que foram lançadas é ainda estéril, porque os últimos bafejos das fogueiras cristãs ainda vêm crestar as plantinhas tenras, e os novos rebentos do poético Ygdrasil.

Não deixei de suspirar baixinho. As plantinhas tenras e crestadas enterneciam. O grande homem foi grato a essa prova de delicadeza.

-Coma um biscoito, João!

Aceitei. Ele mastigou e de novo arremeteu contra o catolicismo.

Dante imaginou que tivesse cantado os últimos luôres da civilização cristã. Em vez disso, porém, forneceu novos argumentos em favor das fantasias tresloucadas dos doutores da Igreja e dos Crentes acarneirados, que encontraram, na sua Comédia, uma descrição positiva das três Regiões da moradia celeste das Almas dos que morrem.

A prova palpável da fatal preponderância brutal do cristianismo dos Ignorantes é o fato de conservar-se em quase todas as referências periódicas a contagem das datas segundo a Era cristã.

E a prova do malogro da Grande Revolução Francesa é justamente o fato de não ter podido preponderar a nova Era, e a reforma racional do Calendário.

Com estas alusões aparentemente desfavoráveis aos cristãos e ao cristianismo, Eu, de modo algum, pretendo hostilizar, quer a Doutrina, quer aos seus Adeptos.

O Cristianismo representou em outros tempos uma necessidade social, e a sua utilidade então foi incontestável. Como tudo, ele também passa!... e, de fato já passou. Quem pois, hoje, quiser conservá-lo não faz mais do que infeccionar a Sociedade com um Cadáver em decomposição ao ar livre!

Ninguém, porém, é livre de sentir, ou de pensar! O Sintarismo, a Nirvanação, a Hereditariedade, a Educação, a Sugestão e a Magia coletiva: -eis o Determinismo e o Fatalismo, que rege o DESTINO do Indivíduo e da Sociedade!...

Cada Ciclo Revolucionário é sempre coroado por uma EPOPÉIA, como o ciclo anual ou germinal de uma Planta é coroado por FLORES e FRUTOS. Por isso, na passada civilização Bramânica encontramos os inimitáveis monumentos Literários, como o Ramaiana, os Vedas, o Maabárata, a Sakuntala, e tantos outros. Os Povos Norskos, ou os Godos, sintetizaram a sua Evolução na esplêndida Epopéia filosófica: -Os EDDAS. Os Egípcios tiveram as suas Obras de Hermes e o LIVRO DOS MORTOS. Os Chineses tiveram o seu Confúcio; os Persas, o seu Zaratustra; os Hebreus, o seu Salomão; os Gregos, o seu Homero; os Latinos, o seu Virgilio, o Mestre de Dante. E assim sempre tem cada Ciclo de Evolução e de Revolução o seu Representante supremo.

Em todos os ramos do Progresso Humano, há Fases e Ciclos distintos, os quais se podem categorizar, por -CICLOS de EVOLUÇÃO, CICLOS de REVOLUÇÃO, e CICLOS ÉPICOS.

Assim preparei a possibilidade de satisfazer a tua pergunta sobre o momento Literário, no Brasil, caracterizando o seu estado atual e as suas condições evolutivas.

Todos sabem que a civilização preponderante na América e na Vinlândia (América do Norte) é um prolongamento, ou uma ramificação, da civilização Européia.

Quanto à Construção Literária ditam portanto as Leis: -na Vinlândia, Shakespeare: e na América, o Camões e Cervantes...

Abri a boca aterrado! Evidentemente Magnus dizia coisas admiráveis, e tanto as dizia que parecia não acabar mais.

Limitemo-nos agora ao Brasil!

Preponderando, embora, entre nós a influência letífera do velho Cristianismo, achamo-nos em condições muito superiores, para poder evoluir em Espírito, aos Povos, industrialmente mais adiantados da Vinlândia, ou da América Inglesa, só pelo fato de predominar, entre nós, o Cristianismo Romano, em vez de nos ter infelicitado qualquer das detestáveis Reformas chamadas Protestantes, as quais, em geral, só concorrem para prolongar a lenta agonia dessa lúgubre Doutrina da Morte!

Ecoou mui debilmente no Brasil a benéfica Influência da Grande Revolução Francesa. Mas, as últimas notas desse belo Hino de Reivindicação Literária ainda ecoaram por estas plagas, inspirando novos Ideais e revitalizando a Alma Nacional. Essas notas são resumíveis em três nomes: -Comte, Buchner, Spencer; e em três Escolas Filosóficas: -o Positivismo da França, o Materialismo da Alemanha, e o Evolucionismo Inglês.

Por causa da Propaganda Ortológica, mal interpretada, tendem hoje a influir, de um modo crescente, as Escolas Esotéricas, entre as quais se destacam:

-O Ocultismo da Índia. o Hermetismo e o Esoterismo do Egito, o Cabalismo Hebraico, a Teosofia Ocidental, e, finalmente, o Mentalismo Vinlândico, ou da América Inglesa. Essas belas e interessantes Escolas Metafísicas e Místicas são destinadas a destruir todas as teias de aranha dos Cérebros cristãos, pois que representam, de fato, a base sã e Esotérica do próprio Cristianismo. Elas vêm, ao mesmo tempo, fazer uma limpeza atmosférica, desterrando para a Lua o pobre Espiritismo de Swedenborg e de Allan Kardec, que tantos Espíritos sãos tem desorganizado, nesta terra.

No entanto, para que se inicie e se caracterize um verdadeiro Período Literário é mister que, tanto essas Escolas de influência capital como as outras, quaisquer, de influência secundária, se fundem em uma única Escola preponderante, conciliando-se todas e harmonizando-se numa Fórmula Sintética.

Essa Fase nova e fluorescente da Literatura está prestes a surgir para o Brasil.

Quanto às Escolas Literárias que existiram ou que existem hoje entre nós não são elas mais do que um Ensaio, ou Ensaios, transitórios, sendo algumas pueris, mas todas efêmeras.

Ensaios! Tudo ensaios antes do Assim falou Sir-ur!

Achei-me profundamente pueril. Que pensaria de mim o profundo mago?

Não lhe perguntei isso, entretanto. Dos meus lábios, numa ânsia de saber, surgiram trêmulas apenas estas palavras:

-E as escolas dos Estados?

-Embora o desenvolvimento da literatura, como da Arte em geral, dependa essencialmente de uma Educação superior, uma orientada Teoria filosófica qualquer, ainda assim a fundação e a multiplicação de centros Literários nos Estados tendem a beneficiar progressivamente a evolução da Arte Literária no País.

E, assim como a separação espiritual do Brasil e Portugal modificou profundamente a Literatura de um e de outro país, diferenciando-a tanto no Fundo como na Forma, assim também a constituição de Centros-Literários ou Núcleos independentes de desenvolvimento Artístico, em os Estados, tenderá a destacar e diferenciar as tendências Literárias, tanto de uns em relação aos outros, como em relação ao Centro Metropolitano.

-E o jornalismo?

-O Jornalismo deve ser considerado como um Fermento Ideogênico, sendo portanto um excelente meio de desenvolvimento da Arte, bem como dos outros ramos do Entendimento e da Atividade Humana, se houver mais Escolha nos Assuntos, mais Independência e mais Critério na Orientação geral.

Mas, especialmente no Brasil, embora também nos outros Países, o Jornalismo tem sido um elemento de Decomposição, de Desorganização e de Desorientação profunda.

Pode-se dizer que ainda não apareceu um Jornalista independente, que fosse capaz de desprezar a Rotina e a Opinião miserável do Vulgo para só tratar de implantar as suas idéias, fazendo prevalecer a sua Opinião pessoal e livre.

Para dar uma idéia do que sinto sobre o Jornalismo, devo dizer que o considero, entre nós, como a MÚMIA da Caricatura e do Escândalo Policial.

Tal espécie de Jornalismo não pode ser, de forma alguma, um bom fator para a Arte Literária; mas, onde está o meio, e onde os recursos de modificar esse inconveniente?

O Jornalismo, em si mesmo, não é bom nem mau, mas é utilíssimo como veículo de Sugestões e de Idéias, boas e más, dependendo, pois, do estado mental dos Jornalistas, o seu bom ou mau efeito social ou coletivo.

Por sua vez, é o estado social que faz os Jornalistas quando não se trata de secundar a Evolução e o Progresso, mas satisfazer apenas a Opinião Pública, esse Monstro Policéfalo!

Eu saí a pensar. O chefe da literatura ocultista pode ser extravagante, mas tem coisas razoabilíssimas. O jornalismo, veículo das sugestões, hão de convir que é admirável.

Elísio de Carvalho

O Sr. Elísio de Carvalho representa por si só uma porção de pequenos movimentos literários, reflexos de pequenas escolas francesas.

A princípio, a propósito da antiga história de um soneto, resolveram jurar que o Sr. Elísio não escrevia nada -mas o Sr. Elísio tem escrito tanto e a respeito de tanta coisa pouco conhecida no Rio que forçoso foi dar-lhe atenção.

O Sr. Elísio de Carvalho conta a história do seu espírito com um prazer evidente. Lê-lo é saber o que fizeram de 1897 para cá os tremendos jovens nefelibatas, hoje socialistas:

- I -

Não sei, na verdade, como contestar vossa primeira pergunta. Não me será fácil assinalar quais os autores que mais influíram na formação da minha mentalidade, porque, no começo da minha carreira literária, li muito, mas muito, e lia tudo quanto vinha da Europa, via Paris, e sobretudo os novos. Era um desespero. Conta-nos a crônica patológica que, ao entrar na puberdade, há meninas que comem carvão e cal das paredes: eu devorava brochuras francesas. Essa leitura contínua, variada, superficialmente, sem método, junto com exercícios enfermos da vontade, atropelou de alguma forma meu sistema nervoso. E o que é interessante é que lia mais para satisfazer minha vaidade de homem lido do que para encontrar um alimento necessário para meu cérebro, destituído de idéias e de sensações estéticas. Sem embargo, essa mania, que logo passou, foi útil: convenci-me de pronto da superfluidade da literatura francesa contemporânea, e imediatamente procurei leituras mais sólidas.

Suponho que não tratais de saber todas as obras que li, senão daquelas que mais acentuadamente contribuíram para minha educação estética e filosófica, que transformaram meu modo de ser, que me abriram novos horizontes e perspectivas novas, que me revelaram novos valores das coisas. As tragédias de Ésquilo e de Sófocles agradaram-me imensamente, como me entusiasmaram muito a História dos Césares, de Suetônio, e o Satiricon, de Petrônio. Li e leio continuamente as máximas de Epiteto, Helvetius, Champfort e La Rochefoucauld. Conheço muito superficialmente a literatura clássica. Zola, escritor que eu detestava e combatia... sem nunca o ter lido, empolgou-me de emoção.

Foi ele quem despertou em mim o desejo de uma arte mais sã, mais humana, mais conforme com a natureza: daí a minha adesão ao movimento naturista que em França iniciara Bouhélier, cujas idéias procurei propagar e defender no Brasil, publicando para isto um manifesto e uma revista. Zola, interpretado pelos naturistas, foi um dos espíritos que mais influíram na minha primeira formação intelectual, mas essa influência não persiste, e creio mesmo que ele hoje não me satisfaz. Prefiro Mirbeau e Anatole France, os mestres admiráveis do romance moderno, ao chefe da escola naturista: nutro por Mirbeau, o autor de tantas obras- primas da literatura revolucionária, uma viva simpatia. Émile Zola foi ainda o meu iniciador nas idéias de reforma social. Os seus romances, principalmente Germinal e Paris, deram-me uma triste idéia da sociedade atual, revelaram-me os crimes e os vícios da burguesia, fizeram-me odiar a política e os políticos profissionais, mostraram-me o sofrimento dos pobres e os tormentos das classes proletárias, vítimas da torpe exploração do homem pelo homem.

Comecei então a ler os escritores socialistas, e principalmente os anarquistas, com quem aprendi verdades que jamais esquecerei e que procuro tornar conhecidas dos homens: que o indivíduo é a medida de todas as coisas; que o homem é ingovernável, é para si sua única realidade, seu fim e seu todo; que todo poder é um absurdo; que a propriedade é um roubo; que o Estado tem seus alicerces no crime e só é mantido pela violência; em suma, que o mundo da iniqüidade e do roubo, onde a desigualdade faz do sofrimento do maior número o poder dos plutocratas e dos dirigentes, será fatalmente substituído por um mundo novo, onde as relações sociais serão fundadas, não mais sobre a rotina e a arbitrariedade, mas de acordo com as leis do viver integral e a dignidade humana, visto como a história marcha para a anarquia -ideal que não é, como pensam os reacionários e os laboradores do obscurantismo, um sonho de loucos, mas um fenômeno que a ciência constata como inato na natureza e uma idéia orgânica no homem, ideal que será a vitoria final da vida no planeta.

Os escritos de Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Mackay, Tucker, Réclus, etc., fizeram de mim um anarquista convicto; e Buchner, Spencer, D'Holbach, Lange, Diderot, etc., converteram-me num ateu profundo. Foi por esse tempo que conheci Marie-Jean Guyau, o luminoso pensador francês, morto em plena primavera da vida, cuja influência moral sobre meu espírito foi profunda e salutar. A sua obra capital, o Esboço duma moral sem obrigação nem sanção, onde nos propõe como princípio ideal a própria vida, «a vida a mais intensiva e a mais extensiva possível sob o ponto de vista físico e mental, a vida total sem mutilação», provocou em meu organismo uma explosão de sensibilidade e suscitou um novo movimento de consciência.

De posse de idéias sociais, preocupado com os grandes problemas que se debatem na sociedade moderna, sabendo das excelências do anarquismo, a única doutrina que oferece possível solução à questão social e a única que satisfaz minha concepção da justiça e meu apetite de eqüidade, desdenhei a literatura propriamente dita, consagrando-me à crítica e ao estudo da sociologia, ciência pela qual cada vez mais me apaixono, não só porque a considero como a base de toda a cultura moderna, como também para assegurar meu futuro e dar satisfação a um pendor que desde muito nutro por este ramo do saber positivo. Senti a necessidade da ação e da luta contra a mentira, a hipocrisia e a iniqüidade reinantes, e lancei-me decidido, cheio de entusiasmo e de esperanças, no movimento revolucionário, freqüentando os centros operários, realizando conferências (as circunstâncias me fizeram orador), fundando periódicos e revistas de propaganda, minha última tentativa tendo sido a Universidade Popular, a primeira que se funda na América do Sul, para empreender a instrução superior e a educação social do proletariado.

Assim se fizeram -minha iniciação e minha educação revolucionária. Explico-vos este movimento, porque creio que influíram muito mais na minha vida do que os livros.

Também influíram na formação do meu espírito: Carlyle, com o seu Culto dos heróis; Emerson, com seus Homens representativos e seus ensaios, em que exalça a personalidade humana; Ruskin, com suas teorias estéticas; Ibsen, com seu industrialismo soberbo; Gener, com as suas sábias idéias indutivas; Gorki, com seu otimismo humano e ardente, e alguns outros. Os ensaios de Carlyle me fizeram pensar durante algum tempo. Refiro-me ao Culto dos heróis e ao Passado e presente, porque o Sartus Resartus, livro vazado no humorismo do formidável João Paulo, não pude até hoje digerir. Todos estes filósofos da vida ascendente, exaltando a individualidade, proclamando o advento de uma humanidade superior em força, em grandeza e em beleza, visto como o progresso existe e as espécies se transformam, afirmando que a vida é o prazer nobre e intenso e que o cristianismo, com seus valores decadentes, falsificou, deformou, corrompeu tudo quanto era terrestre e exaltava a vida, retardando assim por dois mil anos a marcha ascendente da planta humana para o super homem, deixaram um sulco profundo na história da minha alma.

Foi, porém, o intelecto alemão o que influiu mais profundamente na formação da minha mentalidade. O fenomenalismo do Mundo como vontade e como representação, retificado pela filosofia nietzscheana, e a serenidade de Goethe tornaram mais luminosa a minha visão estética. Foi em Schopenhauer que aprendi que «uma existência feliz é impossível, que o que o homem pode realizar de mais belo é uma existência heróica». Max Stirner, o autor desse livro imortal, único na história do pensamento, que é O Único e sua Propriedade, o código do individualismo e o gerador do anarquismo moderno, livro que a censura achou «absurdo demais para ser perigoso» e que mãos generosas arrancaram do esquecimento para lançar no mar vivo das controvérsias contemporâneas, Max Stirner e Frederico Nietzsche, este com o seu niilismo dionisiano e com seu ideal trágico da vida, são os meus grandes, os meus maiores, os meus verdadeiros educadores, porque me ensinaram bastante a pensar, me induziram a procurar e encontrar meu eu, foram os autores da minha emancipação intelectual.

«Os teus verdadeiros educadores, diz o verbo luminoso de Nietzsche, que são também teus formadores, revelam-te o que é o sentido primitivo e a essência elementar do teu ser, qualquer coisa que não se deixa nem educar nem formar, em todo caso, alguma coisa que é de acesso difícil, que está subjugada e paralisada; teus educadores não seriam capazes de ser para ti senão libertadores.»

O que Schopenhauer e Wagner foram para o jovem Nietzsche, quando este não tinha ainda 25 anos, Nietzsche e Stirner foram para mim -maravilhosos educadores. Hoje, fiel à filosofia de Zaratustra, procuro pensar por conta própria, só assimilando dos mestres o que julgo bom; procuro ser eu mesmo, com meus instintos, meus defeitos, meus ódios, minha verdades, meus erros...

Necessito observar-vos que atribuo a influência que os autores citados deixaram em meu intelecto ao meu temperamento, à constituição do meu espírito e à analogia de ideais. Sou um apaixonado, um homem de idéias extremas, um espírito combativo, um energético, um impulsivo, podendo dizer sem exagero que sou um rebelde nato. A minha infância foi uma revolta permanente: no seio da família, contra os preconceitos e a prática de uma moral caduca e despótica; no colégio, contra a disciplina do mestre-escola; no seminário, contra a imoralidade e a hipocrisia ambientes. Ao entrar na academia, sublevou-me o néscio ambiente reacionário que ali dominava, tendo, depois dalgum tempo, abandonado os estudos superiores por escrúpulo de minha consciência anárquica. Estreei na imprensa literária, fundando uma revista iconoclasta, demolidora de velhas fórmulas e de reputações ilegítimas, tentativa que me valeu inimizades e rancores, alguns dos quais ainda hoje perduram. Insubmisso na adolescência, e iconoclasta no começo da minha carreira literária, anarquista insurrecional em 1905, ainda em luta no seio do próprio partido contra o dogmatismo e a intolerância de alguns doutrinários, tenho seguido a evolução natural do meu espírito e me desenvolvido segundo minha própria natureza. Escreveu alhures o mais velho dos Bosny, refutando a alguns críticos que diziam ter Jean Boule (personagem dos Maus Pastores, de Mirbeau) se tornado revolucionário à força de miséria, esta observação que me parece justa: «nasce-se revolucionário como se nasce romanesco ou sentimental e, quaisquer que sejam as circunstâncias felizes ou desgraçadas, fica-se tal qual a natureza nos criou.» Bakunin, Blanqui, Rochefort, Kropotkin, Mirbeau e outros justificam a sutil observação de Bosny. Sou, pois, de instinto, um rebelde.

Como vistes, não citei nenhum escritor brasileiro entre os que mais influíram na minha formação literária e isto muito naturalmente, crede com sinceridade, porque não sofri a influência de nenhum deles. O intelecto brasileiro está muito baixo, não tendo ultrapassado ainda as raias da mediocridade, para influir em meu espírito. Os escritores antigos são de tendências tão anticivilizadoras, tão anti-humanitárias e tão antiprogressistas, que, se algo em mim influíram, foi em sentido negativo, provocando repulsão. Os modernos, salvo raríssimas e honrosas exceções, que não passam de verdadeiros «filisteus» e cabotinos, sem cultura, sem ideais e sem sentimentos nobres, embora tenham cotação na cocheira do Senhor -Todo o Mundo- e sejam decorados por uma fábrica de... reputações ilegítimas, inspiram-me nojo, nojo e dor, dor sobretudo. Asseguro-vos que minha alma é muito pouco brasileira; propriamente falando, não sou um escritor brasileiro, não me pareço em cousa alguma com qualquer deles: diz-me Gener que eu sou supernacional e pertenço ao momento intelectual europeu.

- II -

Não sei dizer-vos qual das minhas obras literárias a que prefiro. O que sei que é a obra que representa melhor meus ideais é sempre a última que escrevo, porque procuro fazer da minha vida um evoluir permanente para a beleza e para a perfeição, um contínuo excelsior. Em nosso tempo sempre se é alguma coisa mais do que se foi ontem.

Um dia que passa é um passo vencido na escala da vida. Felizes aqueles que sobem com uma consciência perfeita da ascensão. Por mim, sinto-me avançar, e o meu estímulo e a minha alegria de ser estão na coragem de não me deter senão o tempo, os minutos necessários para tornar-me senhor das estações que vou fazendo.

Sou um eterno descontente, um insaciável, um espírito ávido de sensações novas, cheio duma curiosidade inquieta e de aspirações infinitas; sou como uma sarça de fogo, que tudo procura devorar. Sou um atormentado pelo ideal, nunca satisfeito com o que produzi, mas cheio sempre de entusiasmos e de alegrias pelas obras que sonho realizar, um atormentado por essa vontade, essa necessidade de renovamento, que leva a serpente a mudar constantemente de pele. «A serpente morre quando não pode mudar de pele: do mesmo modo os espíritos a quem se impede de mudar de opiniões deixam de ser espíritos.» Viver é mudar, mudar continuamente de ritmo, renovar-se perpetuamente: renovar-se ou morrer, dizia Da Vinci. Goethe escreveu na segunda parte do Fausto: Tudo o que passa não é senão símbolo. E Nietzsche, ao recordar-lhe, disse: Todo o imutável não é mais do que símbolo, e os poetas mentem muito.

Afirma Nietzsche que o conhecimento de si mesmo e, por conseguinte, o descontentamento de si próprio, são a base de toda a cultura, palavras que lembram Pascal quando diz que a dúvida é o fundamento do humano saber. «Vejo acima de mim, escreve o mestre admirável, alguma cousa de mais elevado, de mais humano do que o que sou; auxiliai-me todos a atingir este ideal, como eu viria em auxílio daquele que pensasse comigo e sofresse comigo; isto para que um dia, enfim, nasça de novo o homem que se sente perfeito e infinito na razão como no amor, pela contemplação como pelo poder criador, o homem que, na plenitude do seu ser, viva no seio da natureza, que é o juiz e a medida de todas as coisas.» Eu, que tenho a alma alterada de beleza eterna, digo sempre como Descartes: Eu sou uma coisa que aspira incessantemente a alguma coisa de melhor e de maior que não sou.

Não me é possível, portanto, dizer-vos qual, dentre os meus pobres trabalhos, o que prefiro; o mais que poderia fazer era indicar-vos quais aqueles que resumem melhor minhas idéias.

- III -

Não vacilo em afirmar, pois que é de evidência incontestável, que as letras nacionais atravessam presentemente um período estacionário. Explicá-lo não seria fácil em poucas linhas, visto como devem ser muito complexos os fatores de tal situação. Mal se me permitirá que entre esses fatores assinale de passagem, como dos mais eficientes, o estado político em que se encontra a República.

Não passa de uma pura fantasia o propósito de lobrigar no meio dos nossos labores intelectuais qualquer cousa a que se possa atribuir a característica de escola literária, nem mesmo simples intuito de agrupar espíritos, sob distintos pontos de vista. Não há, nem nunca houve, escolas literárias: em arte, há espíritos criadores e espíritos medíocres. A observação que a este respeito fez Remy de Gourmont é verdadeira e interessante. «Há, escreve ele, duas maneiras de pensar: ou aceitar tais quais estão em uso as idéias e as associações de idéias, ou se entregar, por conta própria, a novas associações e, o que é mais raro, a originais associações de idéias. A inteligência capaz de tais esforços é mais ou menos, segundo o grau a abundância e a vaidade de seus dons, uma inteligência criadora.»

A arte, pelo menos a verdadeira arte, nada tem de convencional, nem se confina num círculo estreito, de produtos de ofício ou de simples amadores. A obra de arte não se naturaliza em escola alguma. Já vai longe o tempo em que se procurava encerrar em fórmulas estreitas, classificar em escolas, como se rotulam produtos de fábrica, as múltiplas manifestações de arte que, aliás, é una e indivisível. O artista que se sente forte e capaz, consciente do seu valor e da sua missão na terra, não necessita desses entraves morais, que na verdade, são os sistemas e as doutrinas. O legítimo espiritual triunfa sempre; não admite escolas; é indiferente às preocupações de cenáculo; escapa às categorias; despreza as etiquetas e os rótulos. O gênio explui, revela-se exuberante com todos os sinais do tempo, fora de todo dogma e de toda escola. É esta a verdade, que seria preciso repetir sem cessar a todos os moços: não procureis partidos nem escolas, não aceiteis os dogmas que vos impõem propagandistas extenuados de culto, extenuantes e áridos; procurai ser legítimos, porque assim vos aproximais da verdade e, sobretudo, da vida.

O que não se poderia mais negar é que o espírito social invade o nosso meio e, a tal ponto que já se considera como lançados aqui os grandes problemas que agitam o mundo europeu. O problema social, sob suas formas várias e seus múltiplos aspectos, ocupa incontestavelmente um lugar preponderante na vida atual e preocupa profundamente a todos os espíritos, pesa sobre tudo e sobre todos. Tudo nos impele a estudar o grave problema, proveniente deste vergonhoso antagonismo sobre que repousa o regime burguês, para que, constatando as causas que engendram a dor universal, que não reside somente no sofrimento, na miséria física, mas sim na ausência de liberdade, determinemos o remédio eficaz para completa extinção do mal imperante e avassalador. Assim, o mal-estar e o desespero, a fome e a miséria, de que padecem as classes trabalhadoras, fruto da opulência dos parasitas e da ignorância das massas, o espetáculo deprimente da dor e da injustiça humanas, que despertam em todos os corações bem formados o desejo de ver estabelecidos entre os homens os princípios de eqüidade e de justiça, levaram alguns dos nossos artistas a pôr os seus dotes intelectuais ao serviço deste movimento de legítima revolta que, desde muito tempo, vem minando as bases do velho mundo da iniqüidade e do roubo. A arte social, pois, que aliás nada tem que ver com essa pseudo «arte social», que se ensaiou fabricar para o povo, a arte cuja essência verdadeira deve produzir uma emoção estética, profundamente social, já conta entre nós os seus cultores, e não seria difícil indicar algumas obras de mérito indiscutível e consagradas à propaganda do ideal de emancipação humana. A obra de Fábio Luz, esse sugestivo ideólogo, e o romance Regeneração, de Manuel Curvelo, dois belíssimos espíritos de quem temos ainda muito a esperar, para só citar estes dois nomes, revelam muito nitidamente a inspiração do grande ideal libertário, para o qual se dirigem agora todos os grandes espíritos e todos os corações generosos...

Propriamente luta entre antigos e modernos não será lícito afirmar que exista. Há alguns anos, e mais recentemente, há cerca de uns seis anos, houve um certo movimento de reação dos moços contra o que se chamava literatura dos velhos. Entre as revistas que deram sinal dessa reação peço-vos permissão para citar A Meridional e a Revista Naturista, embora essas publicações não tivessem passado, como tantas outras, de meras tentativas, sem resultado algum prático. O movimento que aqui iniciou a Revista Naturista era uma tentativa sincera de uma beleza nova, mais luminosa e mais humana, e que não deixou de impressionar a muitas inteligências.

O naturismo, que era antes uma explosão de sensibilidade do que uma escola literária, não era uma tentativa que se explicava apenas pela diversidade de ponto de vista: era, por assim dizer, uma volta às leis legítimas que regulam a gênese espiritual, uma reconstrução em que se aproveitasse para o edifício novo exatamente o que restava de sólido entre os escombros do velho edifício. O naturismo, que nós proclamamos como a expressão estética do socialismo, isto é, o Estado organizado sobre bases naturais, vinha reconstituir toda a vida estética, colocar a arte moderna sobre novos fundamentos, mais sólidos e mais verídicos. Conduzir os espíritos à natureza fecunda e criadora, colocá-los, elevados e augustos, em presença da Terra, a fim de que dela continuasse a correr a grande vida dos espíritos, -eis a obra que nos propúnhamos realizar...

Não havendo luta de escolas, não se pode senão dizer que a intervenção daquele espírito social, a que acima me referi, e que, posso afirmar, surgiu aqui com o movimento naturista, há de vir a determinar a orientação de toda a nossa intelectualidade. E isto muito naturalmente, porque ninguém mais pode ficar indiferente, deixar de se interessar pelo estudo dos palpitantes problemas contemporâneos, de cuja solução depende o destino da família humana; e, portanto, a questão social vai ser o tema predileto, o leit motif obrigado, o objetivo de todas as nossas locubrações de artista e de cantor. O espírito moderno não concebe a arte, qualquer que seja sua forma, senão social, tendo uma atividade vital e uma função humana. A arte é um apostolado social, e é um apostolado social porque é um sacerdócio da beleza, sendo sua principal missão: restituir à humanidade sua heróica beleza, desembaraçando o homem de todos os prejuízos morais e religiosos, e estabelecer os laços que o unem a terra, formar a consciência universal para produzir a sinergia social -a anarquia.

- IV -

Não acredito que a obra literária que se faz nos Estados venha a criar literatura à parte. Em quase todas as capitais de ordem secundária, o trabalho intelectual é ainda mais escasso do que no Rio de Janeiro, e o que é inegável é que a qualidade de metrópole política assegurará por muito tempo ainda a hegemonia da Capital Federal na esfera literária. É verdade que muitos escritores residentes em vários Estados, onde há mais vida literária, procuram seguir os aspectos e o caráter dos respectivos Estados, dar uma cor particular aos mesmos desejos, aos mesmos ideais comuns a todo um povo, parecendo isto, sob o regime de federação, acusar veleidades de movimentos literários regionais.

Mas, nem S. Paulo, nem Pernambuco, nem Paraná, apresentam elementos capazes de delimitar-se da grande corrente central do Rio.

Não haverá talvez duas opiniões a respeito do último quesito: a imprensa diária, no Brasil, é o mais pernicioso dos fatores entre os que embaraçam presentemente o nosso progresso literário. Há males diretos e males indiretos que devem ser atribuídos ao jornal. Entre os primeiros: ele perverte o estilo, rebaixa a língua e relaxa a cultura. Entre os segundos: corrompe, divide, gera ódios na própria esfera intelectual, suscita o espírito de coterie e mata entre os mais capazes todos os estímulos.»

De como se vê que só a idade e as desilusões podem fazer um homem justiceiro...

Sousa Bandeira

O ilustre Dr. Sousa Bandeira escreve-nos esta carta longa e brilhante:

É muito difícil, seja qual for o gênero literário, indicar com exatidão os autores que mais concorreram para a formação de alguém, e ainda mais difícil é a própria pessoa responder isso de si mesma. Há sempre a equação individual, com que se deve contar, perturbando qualquer dosagem proveniente de leituras, e que impede o próprio indivíduo de ser a um tempo sujeito e objeto de observação. Esta resposta para ser sincera (o que me parece a condição essencial do inquérito) não pode deixar de ser vagamente aproximada.

Para responder, pois, com a possível segurança, julgo necessário remontar à época que mediou entre 1880 e 1884, onde se formou a geração a que Sílvio Romero chamou a «Escola do Recife» e de onde saíram Clóvis Beviláqua, Martins Júnior, Graça Aranha, Artur Orlando, Virgílio Brígido, Anísio de Abreu e tantos outros.

Com a bagagem fartamente literária e tenuemente científica que tínhamos os que então procurávamos o estudo do Direito, trazíamos da adolescência o espírito cheio do romantismo puro de Hugo, Musset e Byron, canalizado para o Brasil por Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves. Como base à retórica rançosa do tempo, algum conhecimento dos clássicos latinos, desconhecimento completo dos clássicos portugueses, que as seletas de então nos faziam odiar, e um estudo um tanto superficial de história, à moda do tempo. Como síntese, o deísmo vago que se deduzia do ecletismo de Cousin, o qual então constituía a filosofia oficial. Como aspiração, uma indômita curiosidade de saber e um anelo quase angustioso pela liberdade de pensamento e pela emancipação do espírito no terreno social, literário e filosófico. Acrescente-se a isto um republicanismo sentimental e palavroso, aprendido em Castellar e Esquiros, e eis descrito o mais fielmente possível o estado de alma da maior parte dos rapazes do meu tempo na época a que me refiro.

Nesta ocasião, porém, começava no Brasil, especialmente em Pernambuco, a propaganda da filosofia experimental e da arte naturalista. Ávidos de novidade, recebemos as doutrinas revolucionárias como a sonhada Boa-Nova, e cada um tornou a orientação mais quadrante às suas aptidões pessoais. Grande parte apaixonou-se pelo positivismo, vulgarizado por Littré de um modo tão sedutor.

Quanto a mim, apesar de toda a admiração que ainda tenho por Augusto Comte, nunca fui positivista. Desde o início me entusiasmei pelo evolucionismo conciliador e progressista de Spencer, para depois adotar a concepção monástica do mundo explicada por Haeckel e Hartmann e completada mais tarde pela síntese criticista de Kant e Schopenhauer.

Nesta época, Tobias Barreto, o grande mestre, eletrizava a mocidade com os estos de sua palavra fulgurante e imprimia nos que tivemos a fortuna de ouvi-lo o profundo sulco que se faz sentir em todos nós, muito depois de desaparecido o prestígio da sua empolgante personalidade.

Taine e Renan coroaram esta intuição, -o primeiro com a aplicação dos processos experimentais à crítica histórica, filosófica e artística, o segundo com o sorriso confortante do seu sadio cepticismo e da sua fina ironia. E foram estas as leituras básicas da intuição filosófica a que venho obedecendo há uns vinte anos.

Literalmente, como todos do meu tempo, devorei a série Rougon-Macquart, tomando ao pé da letra o romance experimental e estudando as árvores genealógicas organizadas por Zola com o confronto dos livros de psicologia de Ribot. Daudet, os Goncourt, Maupassant e sobre todos o imortal Flaubert foram com Zola os autores que mais fundamente me calaram no espírito e me fizeram considerar o naturalismo como a aplicação à literatura do espírito novo que então havia invadido a filosofia.

Posteriormente, as idéias, e principalmente os sentimentos sugeridos pela capitosa literatura do norte, me fizeram ler Ibsen e Tolstoi, Turgueniev e Dostoiévski, considerando assim alargado para a grande obra da regeneração social o plano relativamente estreito do romance experimental, como a princípio entendia Zola, o qual, aliás, nos seus últimos livros (Fécondité, Verité, Travail) seguiu esta orientação.

Como cultura geral, além de Dante e Shakespeare, sempre tive por escritores favoritos, entre os alemães, Goethe, Schiller, Heine; entre os franceses, Montaigne, Rabelais e Molière. Dos contemporâneos só Anatole France me desperta as impressões que ainda guardo das leituras de Renan.

Ultimamente volto as minhas vistas para os antigos, o que afinal é hoje o meio de saber alguma cousa de novo. Leio dos latinos Horácio, Virgílio, Juvenal, Plauto, e Lucrécio, e dos gregos (infelizmente através de traduções) Homero, Aristófanes, Sófocles e Ésquilo.

Finalmente, para recuperar o tempo em que desdenhava os clássicos e achava elegante escrever em português afrancesado, dedico algum tempo por dia em ler: dos antigos Camões, Vieira, Bernardes e frei Luís de Sousa; dos modernos Herculano, Garrett, Camilo e Eça de Queirós, este último, já se vê, não como clássico mas como a organização artística mais completa de todos os que modernamente escreveram em português. São estes os autores que mais tenho lido. Terão eles concorrido para a formação do meu espírito? Não sei...

Os meus trabalhos? Pobre de mim! Andam esparsos por quanto jornal tem sido vítima da minha mania de escrever. De muitos já me esquece, de outros hoje me envergonho e dos que poderiam ter mais interesse formei um volume que a casa Garnier (sem reclamo) teve a bondade de editar.

Como tantos outros no meu caso, tenho na cabeça um ou dois romances, outros tantos livros de crítica, talvez um livro de história. Terei algum dia tempo e lazer para escrevê-los?

Considerando o momento atual, ninguém pode dizer que atravessamos um período estacionário. A freqüente produção de livros, embora em sua maioria pertencentes ao que José Veríssimo chama literatura apressada, o aparecimento de jovens e ardentes aptidões literárias, a publicação de novas revistas (nada menos de três que prometem não ser efêmeras, só no Rio de Janeiro), tudo demonstra haver um certo renascimento na nossa vida intelectual. Se tal movimento será durável e prolífico, se a nossa geração não desmentirá para o futuro as atuais promessas, é o que por ora não se pode saber.

Quanto às escolas a que se refere o questionário, é difícil acentuá-las.

Há tendências de espírito correspondentes às correntes que hoje dominam o mundo intelectual, há as diferenças provenientes da idiossincrasia de cada escritor.

Aliás, no estado presente da evolução intelectual, é isso o que se dá por toda a parte. Cedendo ao irresistível espírito da época, que se faz sentir em todos os aspectos da vida humana, desde a religião até a política, a literatura e a arte têm hoje um cunho acentuadamente social. Os puros estetas, insulados na torre ebúrnea de uma arte impessoal e impassível, não correspondem ao momento atual, e seja qual for a pompa de que revistam o seu estilo, ficarão, como D'Annunzio, fora do seu tempo.

Se esta é a tendência geral, bem acentuada nos demais países cultos, ela também é verdadeira para o nosso meio cultural. Os nossos escritores, dos que hoje estão nos casos de imprimir um movimento literário, todos mais ou menos se ressentem desta influência. Vindos do romantismo ideologista que lhes animou a adolescência, influenciados pelo advento da filosofia moderna (positivismo francês, agnosticismo inglês, monismo alemão ou mesmo cepticismo renaniano) e arrastados pela irreprimível tendência de regeneração social, eles trazem para os seus livros os resultados desta tríplice influência, a que o cunho individual, a forma especial do talento, a diversidade de estilo, a variedade de leituras, dão como resultante a maneira especial de cada um.

Na poesia cabe falar, em primeiro lugar, de Machado de Assis, o mestre superior e impecável. Saindo do puro romantismo na época em que este florescia tiranicamente, nunca se deixou escravizar por ele; passou pelo indianismo sem os exageros a que não resistiram espíritos cultos como Gonçalves Dias e José de Alencar; pagou o seu tributo ao simbolismo sem a forma enigmática dos epígonos, atravessou enfim todas as escolas e todas as épocas sem perder a originalidade, por assim dizer casta, do seu espírito e chegou até nós com toda a força de um pujante individualidade, servido por uma linguagem simples sem trivialidade, lídima sem gramatiquices, a qual faz dele um verdadeiro escritor clássico.

Depois, os três grandes poetas da nossa geração: Raimundo Correia, Bilac e Alberto de Oliveira. Todos três saídos do romantismo, todos três penetrados do espírito moderno, todos três angustiados pelos problemas que perturbam a sociedade atual. As diferenças que neles se notam não fazem mais que acentuar a individualidade literária de cada um, mas não fornecem base para separá-los em escolas.

Em Alberto de Oliveira, o culto extremado da forma, a pureza do ritmo, «os versos marmóreos e espaçosos» como os desejava Sully Prudhomme. Em Bilac, o lirismo sensual, o deslumbramento pela plástica, o apaixonado anelo da beleza imortal. Em Raimundo Correia, o pessimismo delicado e doentio, a preocupação moral, a piedade sistemática pelo sofrimento. Em todos três, o verdadeiro espírito poético independente das efêmeras escolas, superior às ridículas subdivisões dos pretensos departamentos literários, que os fará sempre compreendidos e admirados seja qual for a época em que se os leia.

Ao lado deles temos uma boa porção de estimáveis poetas e um número infinito de fazedores de versos. Em todos domina o lirismo, essencial aos poetas brasileiros, oriundo da raça, bebido com o leite, difundido pelo quente sangue ibérico, no sensualismo ardente das duas raças inferiores com que ele se caldeou e enervado pela constante sugestão do nosso meio tropical.

Eis porque a poesia brasileira foi sempre lírica nos mais salientes representantes passados. Eis porque ainda hoje tem uma forte base de lirismo que se trai através de todas as várias maneiras dos poetas contemporâneos, no idealismo sugestionante de Luís Delfino, nas metáforas de Luís Murat, no equilibrado entusiasmo pela natureza em Augusto de Lima, na desenvolta sensualidade de Guimarães Passos, na malograda poesia científica do malogrado Martins Júnior, até nas duquesas de B. Lopes.

Formando um tipo à parte, pela apurada procura do elemento clássico, pela distinção elegante no escrever, pelo conhecimento da técnica do verso, pelas felizes tentativas de modificação na metrificação corrente, não se pode deixar de notar Magalhães de Azeredo.

Quanto ao romance, é mais fácil acentuar as diferenças, se não de escolas, ao menos de tendências literárias e de aptidões individuais.

Machado de Assis em primeiro lugar. Como romancista ainda mais do que como poeta lhe cabem as observações que fiz acima. A maliciosa ironia do seu humorismo sob a forma aparente de uma plácida vulgaridade, o apuro da sua prosa fluente e castigada, os finos conceitos de que estão recheados os seus livros, a firmeza com que em quatro traços desenha o lado moral dos seus personagens, suprem generosamente a despreocupação do meio físico, em que se desenvolve a ação dos romances, e a falta do que se chama enredo. A leitura dos seus livros deixa uma impressão parecida com a que desperta o enigmático sorriso da Gioconda de Leonardo da Vinci. Um escritor como Machado de Assis é forçosamente um escritor individual. Nem pertence à escola alguma, nem pode formar escola sua.

Outro prosador individual é Coelho Neto, cujo estilo rebuscado até o ponto de se tornar às vezes arestoso, ao serviço de uma imaginação tropical, abrange várias formas, desde o simbolismo literário adaptado das lendas estrangeiras até o estudo da vida rude dos nossos sertões. A sua preocupação essencial é o lado trágico da natureza e da sociedade, preocupação que influi poderosamente na sua maneira impressionista de escrever. A escola de Coelho Neto não sei qual seja.

Aluísio Azevedo apresentou-se em campo como o porta-bandeira do naturalismo e os seus primeiros romances justificaram brilhantemente o seu intento. Posteriormente, nO Livro de uma sogra, parece inclinar para o psicologismo, sem perder todavia a maneira antiga. É muito de desejar que este romancista interrompa finalmente o longo silêncio a que se tem obrigado. Não lhe falta nem observação nem colorido, e basta comparar o seu último livro com os do início para ver como melhorou a sua linguagem.

O romance de costumes é representado, e brilhantemente, por Júlia Lopes de Almeida, escritora fina e conscienciosa; por Domingos Olímpio, admirável na cor local e no desenho dos caracteres, e Emanuel Guimarães, cujos romances bem observados, bem pensados, bem delineados, só têm o defeito (facilmente corrigível, dado o talento do autor) de uma linguagem como que propositalmente incorreta.

A preocupação social tem dois representantes: Curvelo de Mendonça com Regeneração, verdadeiro tipo do romance de tese, e Graça Aranha no seu formoso Canaã, cheio de admiração panteísta pela nossa natureza, magnífico de observação da vida do interior, repassado de um alto e filosófico simbolismo e prenhe dos mais momentosos problemas sobre a luta das raças no continente americano.

Esta feição de concorrer para os problemas que torturam a humanidade, de discutir (com ou sem forma de tese) as questões de que depende o bem-estar da sociedade, me parece a que tende a predominar no nosso meio literário, como aliás em todos os outros aos quais nós imitamos.

No conto, gênero que tem sido entre nós cultivado em demasia, além de Machado de Assis e Coelho Neto, ocupam lugar saliente Afonso Arinos, estudando com deliciosa exatidão a vida sertaneja; Domício da Gama, em quem predomina um psicologismo como que irônico; Lúcio de Mendonça, escritor de apurada linguagem; Medeiros e Albuquerque, Garcia Redondo, Afonso Celso e Artur Azevedo. J'en passe...

O gênero é por demais efêmero para que se lhe possam descobrir tendências.

Não creio que o desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenda a formar literaturas à parte.

É verdade que atualmente se nota nos centros cultos dos Estados um movimento que já começa a ser pronunciado e que em muitos deles se prende a longínquos antecedentes. No Pará, no Ceará, em Pernambuco, no Rio Grande do Sul, até em Goiás fundam-se Academias, havendo mesmo no último destes Estados senhoras imortais. Isto, porém, constituirá uma tendência para formar literaturas exclusivistas, ou pelo contrario será uma manifestação do mimetismo literário?

No Brasil, o número dos que lêem é insignificante e, apesar de tudo, ainda é o Rio de Janeiro onde mais se lê. Os pequenos, corajosos e simpáticos grupos que nos Estados trabalham pelas letras lutam com dificuldades de todo o tamanho, desde a falta de editores até a escassez dos leitores. O Rio de Janeiro é sempre o grande centro para onde converge a vida social, política e cultural do país. Sem a sua consagração, dificilmente se podem formar reputações literárias. Sem a sua animação, dificilmente estas reputações podem produzir os resultados que procura todo homem de letras.

Não justifico nem exagero o fato. Verifico-o apenas, tanto mais quanto ele não é novo. Já nos tempos que mediavam entre a Regência e o Segundo Reinado, os poetas provincianos glosavam este mote:

Sem grande corte na Corte

não se pode melhorar.

O corte é que nos faz bem

a corte é quem nos faz mal.



E agora, sob o regime da federação, as cousas não mudaram. Eis por que todos procuram viver no Rio, visitá-lo com freqüência ou estar em comunicação com os centros cariocas para conseguirem as mesquinhas vantagens que no Brasil se oferecem aos que exercem a pouco invejável profissão de homem de letras.

Nestas condições, como supor que nos Estados se formem literaturas à parte?

Além disso, na essência das cousas, não existe fundamento para estabelecer diferenças radicais entre as literaturas regionais do Brasil. Salvo insignificantes particularidades, os costumes, o folclore, as crenças, as aspirações, os desânimos, até a preguiça, são os mesmos em todo o Brasil, e, servidos pela mesma língua, impressionam da mesma forma os cérebros conformados segundo as leis de evolução da mesma raça.

Finalmente, a maioria dos escritores que florescem na Capital Federal são filhos das províncias, que, depois de haverem passado nelas a adolescência ou a mocidade (precisamente as épocas em que as impressões estéticas calam mais fundo), vêm para aqui despender o capital intelectual que lá entesouraram. O substrato da cultura é o que veio do torrão natal. A vida do Rio de Janeiro nada mais fez que limar as arestas e encher os claros. As produções de todos os poetas e romancistas dos Estados, aqui aclimados (e estes se chamam legião), comprovam inteiramente o meu asserto.

E pelos Estados existem atualmente numerosas aptidões literárias que aspiram pelo momento em que a seu turno possam se exercer no Rio de Janeiro com os materiais que hoje estão acumulando.

A pergunta relativa ao jornalismo exige um distinguo e um sub-distinguo.

Se se trata do jornalismo puramente industrial, destinado a servir ao público um determinado gênero de consumo sem outra preocupação além de obter maior lucro com menor despesa ou vender muito para vender barato, acho que ele é um fato tão importante para a literatura como o comércio de roupas feitas ou o negócio de carnes verdes.

Se porém se trata de fazer um jornalismo literário ou ao menos de introduzir nele uma pequena dose de literatura, é bem de ver que com ser efêmero ele constitui um gênero apreciável. Ao lado dos telegramas, do noticiário, das taxas de câmbio, das publicações a pedido, os jornais costumam permitir que assuntos literários ocupem algumas colunas, sobre as quais os burgueses não desdenham passar um olhar distraído, quando a viagem do bonde lhes dá tempo. É-me grato lembrar que esta salutar inovação é devida à Gazeta de Noticias, graças àquele completo jornalista, forrado de um finíssimo homem de letras, que se chamou Ferreira de Araújo.

Assim considerado, o jornalismo não pode deixar de ser um bom fator para a arte literária, pois que lhe serve de veículo, sem falar nas preciosas vantagens do reclamo indispensável para tudo, até para as letras.

Gustavo Santiago

O Sr. Gustavo Santiago é o exótico poeta do Cavaleiro do Luar e dos Pássaros brancos, a hipertrofia do nefelibatismo.

Um cavaleiro a quem pergunto onde mora artista tão complicado, previne-me:

-É um homem com a mania de dar na vista. Ultimamente ofereceu um almoço aos amigos. O primeiro prato foi uma salada de violetas, temperadas -como as alfaces- com azeite e vinagre!

Não recuei espantado. A mim sempre me estava parecendo que o Sr. Gustavo Santiago era o mais simples e o mais encantador dos homens. E com efeito. Cavaleiro do Luar atravessando oceanos de erisipelas, pássaros bizarros, idéias exóticas, complicações de versos livres, quebrados, harmônicos, inarmônicos, intencionistas -tudo isso é a aparência, o broquel para fazer pasmar o burguês.

Na intimidade o Sr. Gustavo Santiago, com um pince-nez de míope a encobrir dois lindos olhos doces e femininos, é o próprio bom senso.

Recebe-me afetuosamente e começa tratando-me de ilustre jornalista.

-Há de permitir o ilustre jornalista qualifique a pergunta de obscura. Acho-a vaga demais, não abrangendo precisamente o fim colimado, ou indo além dele, para merecer resposta perfeita. Entendâmo-nos. Se o que o amigo pretende é saber onde colhi as idéias gerais, sobre que se baseiam as minhas opiniões, sobre que assenta a minha orientação estética, sobre que se desenvolvem os meus escritos em prosa e em verso, dir-lhe-ei que em todos os livros lidos, em todos os recantos do globo visitados, em todos os gestos e olhares surpreendidos, em todas as amarguras e satisfações experimentadas, enfim em tudo que constitui a Vida. Se, porém, o que deseja é que lhe nomeie poetas, romancistas, conteurs, filósofos, críticos, com os quais houvesse aprendido a tornear a frase, a arredondar o período, a polir o epíteto, a relevar o verbo, consinta lhe declare com absoluta franqueza nenhum poder infelicitar-se de tamanho peso à cauda.

Decorei nos tempos de colégio as regras, até agora sem o menor valor para mim, da gramática então adotada, e creio ter vindo disso a rara desventura, que me segue, de não dispor de memória. Não nasci para copista...

-Entretanto, não me poderá apontar, entre os escritores com que tem confabulado, quais os que maiores e mais duradouras emoções lhe têm fornecido?

Da melhor vontade. Na língua portuguesa enumerar-lhe-ei Camões, Herculano, Tomás Antônio Gonzaga, Fagundes Varela; nas outras, Lamartine, H. F. Amiel, Dante, Schiller, Longfellow, Shakespeare, Taine e o assombroso Balzac.

-E das suas obras qual a que prefere?

-Houve um instante que todas as minhas simpatias se voltaram para as Saudades, publicadas em 1892, em Coimbra. Veio depois o poema O Cavaleiro do Luar, tão mal acolhido pela chamada crítica indígena e, no entanto, de resultados tão completos junto ao público. Por fim, foram os Pássaros Brancos. Hoje...

-Hoje...?

-... é o livro em que ando a trabalhar.

-De sorte que v. não tem preferências por esta ou aquela de suas obras?

-Naturalmente. Nem eu concebo um pai com mais amores a um filho do que a outro. Não são todos filhos?

-No que importa à prosa e à poesia contemporâneas, separadamente, parece-lhe que no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário? Haverá novas escolas? Haverá luta entre escolas antigas e modernas?

-No que refere à poesia, ou, melhor, ao verso, julgo não errar, assegurando ser o momento de luta. Há, de um lado, o parnasianismo, que, agonizante, a debater-se nas vascas da morte, tenta por todas as formas resistir, apegando-se até à tabua de salvação de todas as inteligências extintas do classicismo; há de outro lado, o que, de maneira geral, se convencionou denominar no Brasil e em Portugal nefelibatismo, e que tão desastradamente tem sido interpretado e compreendido entre nós. Lembra-se da apreciação de Sílvio Romero, filiando o movimento aqui a não sei que produto poético de um vinhateiro, que há lá na península ibérica, em Portugal, chamado Guerra Junqueiro? Pois é assim que a nossa crítica se externa, e, olhe, Sílvio é dos mais competentes, se não o mais autorizado. Imagine o resto... Não estamos no verso estacionário; as duas coortes em frente provam o inverso, a atividade. Enquanto os parnasianos, unidos aos clássicos e aos românticos, que ainda os há, querem o statu quo, a conservação de fórmulas que o tempo e o uso imoderado tornaram imorais, como o adjetivo com a acepção rigorosa do dicionário, o número de sílabas muito de acordo com os compêndios, os acentos muito direitinhos nos respectivos lugares, a imagem muito terra-a-terra, a suportar a análise do burguês, a rastejar, a rima a opulentar-se ridiculamente num trabalho todo de paciência e rebuscamento por alfarrábios e empoados cadernos de sacristia, -os nefelibatas, insurgindo-se, arremetem contra tudo isso, na prédica do verso livre, na afirmação alta da imagem com asas, pairando inacessível em regiões estelares, em mundos outros que não os devassáveis pelo olho filisteu. Os «velhos» pretendem a arte-habilidade; os «novos» pretendem a arte-sonho. Os primeiros, partindo do ponto de vista falso de que a paisagem nada mais é do que um quadro, de que o homem nada mais é do que um simples animal obedecendo estritamente às leis biofisiológicas, que governam todos os outros, baniram da arte a emoção, o sentimento, a jungi-la ao termo preciso, a senhoreá-la à descritiva, a nivelá-la à fotografia. Os segundos, tomando como verdade o pensamento de Amiel, de que a paisagem nada mais é senão um estado de alma e de que o homem, com ser um animal, não é menos um coração, nem menos um espírito, procuram reintegrar a emoção, recolocar no altar o sentimento.

Se o combate não está travado com o ardor e o arruído, com que o fizeram em outras épocas outras falanges, nem por isso cabe a suposição de uma invejável paz nos arraiais beletrísticos.

Acredito mesmo que nunca o Brasil intelectual andou um quarto de hora mais belicoso.

O que se deverá de registrar é que da parte dos que surgem, sabendo ao que vêm, tem havido mais delicadeza, mais respeito pelo valor pessoal dos que o possuem, mais consideração para com os méritos alheios.

Neles a compreensão do problema é mais nítida, e daí não sentirem a necessidade de ataque a quem quer que existe só pelo fato de rumo diverso. As pedras e os espinhos da estrada apenas ferem a quem por ela envereda, e não vale ir atrás do que ao bom preferiu o mau caminho.

E acresce que em matéria de estética a discussão nunca foi nem será produtiva. Cada qual faz do Belo o juízo que melhor lhe quadra e é inútil querer convencer de erro ou falha.

Sobre tanto penso com Luís Dumur que cada poeta com talento é um príncipe na sua ilha.

É verdade que existem por aí uns irrequietos discípulos de Cruz e Sousa, que, de quando em quando, borbulham a insultar, a injuriar, crendo assim honrar a memória do mestre. Convém, contudo, descontar em alguns a idade, em outros a falta de laços familiares fortes, em terceiros o desvio da sua verdadeira carreira.

Não se recorda do epíteto «mulato», atirado por um desses moços a Gonçalves Dias?...

Na poesia, pois, e em resumo, eu diviso duas orientações diferentes, em antagonismo, disputando-se valorosamente o predomínio do momento, ainda que sem fragor, nem escândalo -o parnasianismo e o nefelibatismo-, o primeiro, correspondendo, na ordem filosófica, ao materialismo; o segundo ao espiritualismo.

-Qual a que julga destinada a predominar?

-Necessariamente a última, como a melhor aparelhada para as responsabilidades do momento estético brasileiro, como a mais consentânea com a transformação, que de tempos se vem operando na alma popular nacional. Devo dizer-lhe que não estou de modo algum filiado a nenhuma delas, embora já me acoimassem pelas colunas de jornais de chefe do simbolismo. Todavia a verdade, de tal qual a vejo nos meus segundos de filósofo, é essa.

Desbastadas as arestas que o nefelibatismo ainda apresenta, cortados em seus produtos certos exageros, aliás desculpáveis, ver-se-á não contar o lirismo com substituto mais digno, nem mais sério.

Dispense-me fundamentar o conceito; levar-nos-ia longe e, como o assegura o inglês, time is money.

-Quanto à prosa?...

-No relativo à prosa, ou, melhor, ao romance, também a luta é a nota em destaque. Três tendências se desenham ao olhar do observador, caracterizadas no romance naturalista, ou de costumes, no romance social, ou de tese, e no romance psicológico.

Em tempos dominou exclusivamente o campo o naturalismo. Com o abuso, porém, a que se entregou, do esvurmar contínuo das partes cancerosas da sociedade, com o gasto desmedido que fez de descrições e cenas demasiado cruas, teve que bater em retirada, e ceder o palco ao psicologismo e ao socialismo. Hoje são estes dois os que contendem, e não se me afigura desrazoável augurar a vitória do primeiro.

-E quais os escritores contemporâneos que representam as diversas escolas, tanto na poesia como no romance?

-Do lado das fórmulas velhas, o meu amigo Alberto de Oliveira e Aluísio Azevedo, Augusto Lima, Júlia Lopes de Almeida, Machado de Assis e Olavo Bilac; do lado das novas, Alphonsus de Guimaraens, Artur Lobo, Curvelo de Mendonça, Esperidião de Medeiros, Emiliano Perneta, Fábio Luz, Mário Alves, Nestor Vítor, Pethion de Vilar, Oliveira Gomes. Talvez estranhe não lhe citar os nomes de Luís Murat e Luís Delfino... Considero-os à parte, numa categoria de luz em que são poucos os que entram.

-O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?

-Não o creio. Eles, se por um lado possuem a paisagem e mesmo costumes, por outro não poderão nunca possuir usos, modos de vida perfeitamente próprios; a vida lá, pelo menos enquanto a língua for a portuguesa, nunca deixará de ser uma simples repercussão da nossa. E mesmo a posição privilegiada do Rio está a indicar que, qualquer que seja a sorte da capital política do país, enquanto os vinte Estados se mantiverem unidos na formação do Brasil, a capital de fato há de ser sempre aqui. Por isso não acredito possam os centros literários estaduais vir a criar literaturas especiais.

-O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?

-Encarando-o sob o aspecto da prática, do exercício, considero-o dos piores. A facilidade com que o público aceita quanto se lhe dá; a maleabilidade de espírito necessária no jornalista para o enfrentamento das questões as mais diversas; a pressa com que se é obrigado a trabalhar na redação, a atender à urgência da hora; a banalidade e leveza de comentários, a que se é forçado -são elementos nocivos, que acabam esterilizando, matando o homem de letras.

Depois, v. está na lide e não ignora, no jornalismo a nota predominante é o bom senso, a chapa, o lugar comum, o cachet prontinho, tudo como sempre e como em toda parte, e isso é a asfixia lenta da originalidade de cada um, o assassinato frio e pausado do poder criador peculiar a cada individualidade. Eu poderia exemplificar, mas as horas adiantam-se... Não quer isso, porém, significar que o jornalismo não seja um belo fator de engrandecimento social e sobretudo um magnífico meio de reclame... para as nossas obras.»

Como se vê, tudo quanto há de mais cordato e de mais calmo. O Cavaleiro do Luar afinal razoável...

Eu sou como o formoso Cavaleiro

que a branda luz adormeceu do Luar

e nunca mais, formoso Cavaleiro,

e nunca mais tornou a despertar.



Júlio Afrânio

Júlio Afrânio é o autor da Rosa Mística, poema impresso em Leipzig com as cores do íris; Júlio Afrânio é também, além de escritor de raro talento, um dos nossos mais ilustres psiquiatras.

É dele esta carta:

Querido João do Rio. -Sua indulgência, desejando resposta a um inquérito literário, obriga-me talvez a merecer a pecha de presumido. Valha-me o não poder furtar-me à sua benignidade, sem descortesia.

1º.- Sobre a minha «formação»... Não lhe parece enfático? Não sei de muitos em nossa terra que, como o Sr. Nabuco, possam falar, com interesse para outrem de sua «formação». Muito mais os amorfos.

Se posso transmudar em preferências literárias o conteúdo de sua pergunta dir-lhe-ei que Nietzsche, d'Annuzio e Maeterlinck, para os dias festivos do espírito; e Anatole France, Eça de Queirós e Machado de Assis, para a intimidade de todas as horas, são os meus autores prediletos... Os velhos, sobremodo os recuados, faço como toda a gente, respeito-os e penso que lhes não faz falta o meu trato. Prefiro os contemporâneos no momento mesmo, a guardá-los para o aplauso de meus vindouros. Sei que não é esse o uso literário. A literatura oficial, como o vinho e o café, deve ser velha, para ser louvada.

Os autores infelizes, que não tiveram louvores nem editores, que se consolem com a possibilidade de uma estátua, no futuro, ou a probabilidade de enriquecerem daí a trinta ou cinqüenta anos os que os explorarem. Eu, de mim, suponho que os literatos, como os criados, devem ser pagos em dia: com a remuneração, o louvor, a consideração que merecem. É uma determinante de minha preferência pelos presentes. A outra, de ordem psicológica, e esta egoística, é que eu sinto melhor o que observa, imagina, representa ou deduz um autor de meu tempo, de meu meio, de minha civilização, que um sujeito de uma era, um país, uma sociedade que não conheço.

O mais é prazer do exótico e do anacrônico, quando não veleidade de erudito: e aqueles são os dispépticos da literatura: estes, indivíduos que têm como profissão se aborrecerem e; às vezes, aborrecerem os outros.

Não vale isto dizer que desrespeito os velhos consagrados; não. Venero-os, e possivelmente os leio com acatamento e fastio.

2º.- Qual prefiro de minhas obras?... Quem não aspirou ainda ser autor de uma obra ou de muitas obras? Eu, como todo o mundo. Das minhas, prefiro certamente as que não escrevi, e, se um dia isso for passado ou presente, a que não escreverei. Realizar o ideal é degradá-lo. Isso pode ser acaciano, mas explica a razão de minha preferência.

3º.- Não, não me parece que no momento atual haja estagnação literária no Brasil. Ao invés, lembro que, à parte Alencar e Castro Alves, quase todos os nossos grandes engenhos literários vivem, e fecundos ainda. Se são precisos nomes, os de Machado de Assis e Aluísio Azevedo, Olavo Bilac e Raimundo Correia, José Veríssimo e Araripe Júnior, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, João Ribeiro e Medeiros e Albuquerque, Coelho Neto e Júlia Lopes, Graça Aranha e Domingos Olímpio, Afonso Arinos e Euclides da Cunha... e tantíssimos outros, romancistas, poetas, críticos, panfletários, polígrafos... deporiam favoravelmente.

Respeito a luta entre novos e definitivos, nada há a dizer de novo, porque isso é já definitivo: os que chegaram e venceram estão senhores da situação; os que chegam e os agridem desejam aquela vitória e esta situação. Isto se faz as vezes com talento, mas, entretanto, com pouco espírito e muito insulto.

As coteries tem apenas o mérito de, sobre o adubo da mediocridade conglomerada, fazer nascer o destaque de um talento que por ventura aí se encontre. Para a geração seguinte este já definitivo amargará com o insulto tal consagração.

Predominará, porém, certamente, quem tiver talento e souber usa-lo: são as maquinas que impulsionam os navios, e não as cores de que são pintados ou o nome que trazem na proa. É rudimentar, mas a aplicação não parece.

4º.- Não creio que o desenvolvimento dos centros literários dos Estados possam criar literaturas a parte: a identidade de língua, a uniformidade de costumes e a mesma tendência imitadora dos defeitos franceses bastam para assegurar a unidade literária do Brasil.

5º.- Sim, o jornalismo, em toda a parte, tem sido um fator de arte literária, e isto é razoável, quando o jornal tende a substituir o livro cada vez mais. Se é apressada, as vezes, tal literatura, lucra, por outro lado com a difusão.

No Brasil... diga-me, à puridade, não é imprudente conversarmos este assunto?... Demos que influência, e muito favoravelmente.

Augusto Franco

O Sr. Augusto Franco, de Minas, manda-me dizer que não pode responder aos dois primeiros quesitos, porque, além de complexos, seriam uma autobiografia quase pretensiosa. Quanto aos dois últimos, o ilustrado crítico transcreve na resposta um trecho do seu livro Fragmentos literários, sobre a idéia de estreitamento de relações literárias entre as nações, e continua:

Muitos eram os adeptos dessa e de outras idéias, quase idênticas em relação à necessidade de um estreitamento de convivência literária e mesmo científica entre as nações. Deles avultavam os nomes de Henrich Laub, Paulo Heyse, Geibel, Gneist, Werder, Czermk, Rosenthal e outros célebres literatos e doutores, também desmiolados e asneirões.

Na França, na Holanda, na Rússia, na Inglaterra, na Itália e até na Espanha, essas idéias já iam tomando corpo, por isso que nesses diferentes países já se haviam mesmo criado seções filiadas ao centro tedesco.

Pois é na persuasão de que não me saia pela frente algum carvoeiro malcriado e atrevido, que ouso divulgar a idéia de se porem em ação convergente os meios necessários à comunicação e congregação íntima dos variados elementos literários esparsos pelos diversos Estados do Brasil.

E é, indubitavelmente, a crítica literária brasileira que cabe tal mister. É a ela, com efeito, que cumpre, por meio da análise conscienciosa e justiceira dos trabalhos dos diferentes escritores nacionais, tornar destes conhecidas as obras de valor, pondo-os em contato espiritual, aguçando entre eles a curiosidade e o interesse pela procura e conhecimento dos trabalhos de mérito, afiando-lhes, por fim, a vontade de conchegar as relações literárias de mais em mais, cada vez com redobrado afinco e avidez.

Já que a nossa Academia do Letras não se interessa por essas cousas, tentemos consegui-lo por meio da análise crítica no livro e no jornal, pois impossível é quase a fundação de centros literários nos Estados, subordinados a um centro-diretor, que, na hipótese, poderia ser a própria Academia, se, acaso, cogitasse ela de semelhantes nonadas...

Entre os fins mais nobres, destinados à missão da crítica brasileira, está, pois, o de fazer conhecidos entre si os nossos escritores, acabando com essa crassa ignorância que oculta aos talentos aprimorados do norte as mais belas inteligências do sul, e vice-versa.

Sociológica, estética, psicológica, determinista, ou o que mais seja, a crítica literária deve também ser um instrumento prático e honesto de vulgarização dos bons trabalhos e um veículo justiceiro para a coesão das capacidades intelectuais.

Que todo o Brasil, de norte a sul e de leste a oeste, se conheça e se confraternize literariamente, por meio de uma crítica imparcialmente disseminadora e difusiva, que terá como resultante a criação de uma literatura interestadual, ou formação integral da literatura brasileira, forte, robusta, vigorosa, inteiriça.

Era este o meu pensamento em 1901. Hoje, não está absolutamente abalado. Hoje, como então, ponho em dúvida a existência de centros literários estaduais, e chego mesmo a negar a integração definitiva da literatura pátria.

Nos Estados há grandes talentos, brilhantes ilustrações, homens de rara e notável capacidade mental, escritores e pensadores de fina têmpera, que se não trocam por certos nulos empavesados da Rua do Ouvidor -cloróticos representantes de uma literatice mórbida, doentia, aquosa, anemizada pelo elogio de confraria ridícula e pulha.

Entretanto, por múltiplas circunstâncias, a capital da República será ainda por longo tempo o foco principal de convergência das aspirações à consagração literária.

Podem nos Estados refulgir, luminosos e rútilos, talentos vigorosamente cultivados; podem sobressair aureolados por uma fotosfera intensa, nas ciências, nas letras, nas artes, no jornalismo, no ensino; mas, se o Rio de Janeiro os não consagra (felizmente há muita gente aí que não faz coro com o empurro mútuo), jamais romperão a penumbra provinciana.

No seu escrito La Nationalité et l'Etat, o sociólogo Novicov observa que as capitais das nações são geralmente centros intelectuais mais poderosos. É nelas que se centraliza a elaboração das idéias e dos sentimentos. É aí que a literatura brilha com um fulgor mais vivo. É aí que se encontra a élite social, na expressão de Comte.

Tudo isso é verdade, não há negar. Mas como bem acrescenta o mesmo publicista noutro trabalho intitulado L'évolution de l'organisme social, há diferença entre aquela e a élite intelectual.

Se a primeira, de fato, se concentra nas capitais, a segunda «est répandue, dans une certaine mesure, sur toute la surface du territoire d'une nation».

Donde se conclui que as capacidades mentais de plano superior não constituem privilégio das sedes políticas dos países.

E é necessário ajuntar que o Rio está cheio de escritores provincianos, que lá não foram adquirir nem mais talento nem mais aptidão, mas apenas tornar-se mais conhecidos, lidos e apreciados.

Duas linhas agora acerca do último quesito.

O jornalismo, em qualquer parte do mundo, e sobretudo no Brasil, e particularmente aí no Rio, pode ser um fator ótimo ou um fator péssimo da arte literária.

É péssimo, quando os seus diretores não têm critério na escolha das produções que a colaboração irresponsável e duvidosa de rabiscadores medíocres lhes oferece; quando permitem que os próprios autores elogiem ou mandem elogiar os seus livros com fins essencialmente mercantis; quando afastam os escritores de real valor, de merecimento comprovado, e protegem as nulidades apavonadas.

É igualmente péssimo e, mais do que isso, profundamente pernicioso, quando dirigido por tipos ignóbeis como aquele finamente caracterizado por Villiers de I'Isle-Adam nos seus belíssimos Contes Cruels (págs. 34-51).

Mas quando o jornalismo conta entre os seus mentores um vulto da estatura moral do pranteado e meigo Ferreira de Araújo, então ele é bom, ele é fecundo, ele é ótimo, não simplesmente como vigoroso fator literário senão também como um nobre impulsor da civilização de um povo.

Tocando o nome augusto do grande e saudoso mestre da imprensa brasileira, não parece fora de propósito recordar um fato que deve ser aqui narrado por ter estreita conexão com o assunto deste artigo.

Um moço de mérito, mas desconhecido, um moço, que muito prometia, escreveu um dia um esplêndido conto. Onde publicá-lo?

Sem apresentação, sem proteção literária (até nas letras é preciso ter proteção no Rio!...), entendeu, contudo, de ir procurar o querido diretor da Gazeta de Notícias para que lhe publicasse o conto.

Foi por uma bela tarde, após o jantar, que Ferreira de Araújo, obeso, risonho, no jardim, a palitar os dentes, recebeu o jovem estreante. Depois de, naturalmente, lhe ter dito alguma frase corriqueira, igual àquela que Th. Gautier, no seu livro Portraits Contemporains (pág. 47), conta haver dirigido ao estupendo Balzac, quando o visitou pela primeira vez, o tímido candidato à sagração fluminense entregou ao preclaro jornalista as tiras caprichadas do seu burilado conto, implorando-lhe a publicação dele na Gazeta, Ferreira de Araújo passou ligeiramente os olhos pelo manuscrito, dobrou-o, pô-lo no bolso, dizendo languidamente ao rapaz: -«Agora, não posso ler.»

Estas quatro palavras simplíssimas bastaram para afastar dali, desacoroçoado e triste, o pobre escritor de contos.

Grande, porém, foi a sua surpresa quando no dia seguinte, ao abrir a Gazeta, deparou estampado, na coluna de honra, o seu amado trabalho.

E maior foi ainda o seu espanto quando, passeando à Rua do Ouvidor e parando em frente da redação da Gazeta, Ferreira de Araújo o chamou e disse-lhe: -«Vá entender-se com o caixa; traga-me sempre contos como aquele e terá de cada um trinta mil réis.»

Hoje, o medroso contista de outrora é uma das figuras mais salientes, de mais nítido e claro destaque, da literatura nacional.

Alberto Ramos

O Sr. Alberto Ramos é um poeta fortemente original na métrica dos versos, nas idéias e no sentimento com que os anima. A Ode do Campeonato tem qualquer coisa de pindárico, lembra a olímpica a Théron d'Agrigento e as grandes frases sonoras do conviva dos reis de Siracusa.

Essa poesia obedece a um sistema filosófico. O Sr. Alberto Ramos, com a sua elegância brummeliana e o seu nervosismo, cultiva o eu, pratica o super-humanismo de Nietzsche.

Que diz o sábio da floresta no Zaratustra?

«Direi que acreditais em Zaratustra? mas que importa Zaratustra! Sois meus crentes? Mas que importam os crentes. Ainda não vos tínheis procurado a vós mesmos quando me achastes. É assim que fazem todos os crentes: eis porque é a fé tão pouco.

Ordeno-vos agora que me percais para vos achardes, e só depois de todos vós me terdes renegado é que para a vossa companhia voltarei.»

O Sr. Alberto Ramos já se achou. Zaratustra acompanha-o. É talvez o único homem no Brasil a quem Zaratustra dá essa honra. Daí o Sr. Alberto Ramos não acreditar senão nele mesmo, adorar a força, o domínio, e praticar, no limitado círculo dos humanos a que permite a honra da sua palavra, a filosofia do super-homem.

Que vem a ser um super-homem?

Um super-homem, na nossa sociedade, é o cavalheiro irresistível, de cujas palavras todos pendem e de cujos braços depende o mundozinho em que vive e que, com tudo isso, é frio, brilhante e duro como o diamante.

Mando, cheio de humildade, ao Sr. Alberto Ramos o meu questionário, e fico à espera.

Dias depois recebo estas imprevistas considerações filosóficas, em que o poeta da Ode do Campeonato se revela o idólatra da força e do paradoxo:

«As grandes épocas de civilização dos povos caracterizam-se pela elevação integral e harmônica da cultura física. Antes que o dogma cristão tivesse pervertido a noção da vida, erigido o pessimismo em moral e subvertido o sentido da terra, a saúde do corpo corria parelhas com a saúde do espírito. A base da cronologia grega foi a olimpíada, isto é, a glorificação da força e da inteligência. Os mais puros monumentos do gênero humano são a apoteose da força e da saúde.

Os períodos de decadência, ao contrário, caracterizam-se pela depressão física do indivíduo. A literatura dos anêmicos, dos alcoólicos, dos escrofulosos e dos dispépticos será paralelamente anêmica, desequilibrada, mórbida e indigesta. (Corra-se a galeria dos nossos autores da atualidade.)

As sociedades decadentes, fisicamente atrofiadas, como a nossa, são incapazes de produzir o tipo superior da espécie, o criador, o artista. Expiam assim obscuramente o crime da sua pusilanimidade. No domínio literário, como na esfera política, estão condenadas a uma subserviência opressiva e humilhante, quando não à esterilidade e à morte.

Mas em arte, como no mundo orgânico, o que importa sobretudo é a vida. É a força e a plenitude; é o gesto intenso e o coração à larga; é o vigor do músculo e o belo equilíbrio das funções vitais; são as aspirações livres para os cumes ásperos e solitários; é o ar puro da montanha no cérebro e nos pulmões, a afirmação imensa e transbordante perante a existência.

Fora disso, toda criação de arte não passará de um arremedo grosseiro e pueril, perigoso excitante de imaginações doentias, qualquer cousa, que será talvez polução da arte, não a arte mesma, de sua natureza fecunda, libérrima e dadivosa até a prodigalidade.

Os que pretendem que há no Brasil, hoje em dia, uma arte nacional, artes e artistas nacionais, ou ignoram as condições essenciais geradoras do fenômeno estético -ou conscientemente praticam uma fraude impudente, que repugna aos espíritos animosos, capazes de encarar a vida no que ela tem de austero e de elevado, e para quem a probidade mental constitui simplesmente um hábito de decência.

Mas a decadência é ainda uma das formas da vida. É também um desejo de primavera. Tal é a minha fé, o que eu considero o meu heroísmo na vulgaridade do presente. É a guirlanda radiosa e terrível que eu atiro ao futuro, por cima de cada berço, como uma promessa de vitória.

Eis o que julguei de meu dever declarar em resposta aos seus quesitos. Hoje, como ontem, eu proclamo a necessidade de uma reação implacável pela cultura física. É preciso que restauremos como fórmula irredutível o «mens sana in corpore sano»; ainda mais: é preciso que se lhe dê uma aplicação prática pela criação de medidas sanitárias rigorosíssimas (p. ex. o isolamento dos atacados de moléstias contagiosas; a proibição de casamento para os anêmicos, os tísicos, para os indivíduos achacados de moléstias crônicas, para os degenerados de toda espécie; a repressão do alcoolismo; a regulamentação da prostituição, etc.). Dia virá em que um espírito clarividente, apreensivo pelo futuro, ousará abordar em nossa terra a questão da redução das escolas superiores -a maior das calamidades públicas que têm assolado este país.

Então, subitamente esclarecidos, animados de fé tenacíssima, de paciente e valorosa energia, trataremos seriamente da grande reforma do ensino primário, cuidaremos da criação de escolas especiais de agricultura, de horticultura, de indústria e comércio, de artes e ofícios, etc. -Essa hora- ai de nós, longínqua! assinalará o primeiro passo no caminho das reações salutares, que nos conduzirão à posse efetiva dos bens supremos, honra e privilégio das nações fortes, que os não tiveram por obra e graça do Espírito Santo, mas que os disputaram, que os conquistaram, que os defenderam em lutas as mais nobres, as mais heróicas, as mais cheias de sacrifícios admiráveis, que constituem a história da mentalidade humana, através dos séculos.

Em suma, eu entendo que o orgulho da nossa sociedade atual -a admitir que ela fosse ainda capaz de um gesto fecundo de energia e saúde- devia proceder da consciência austera e formidável de ser a depositária de um germe sacratíssimo, a augusta portadora do fruto aspérrimo e luminoso que, em momento mais ou menos remoto, supremo, de reivindicações salutares para as nações fortes e de conseqüências irreparáveis para as nações pusilânimes, será chamado a testemunhar da nossa vontade vitoriosa, da nossa colaboração ativa e pertinente na obra de civilização e de progresso, do nosso direito de existência como povo livre, isto é, uma geração, robusta e sadia, muito diferente da nossa, melhor que a nossa, que saiba querer e saiba vencer, apta para conquistar os bens que não nos foram consentidos e, sobretudo, capaz de realizar pelo braço o que tiver sonhado com a mente.

Grávida do futuro! Que imensa perspectiva para esta raça de avariados, sombria, morna, vencida, sem paixões viris, sem entusiasmos frementes, nem alegrias tonificantes, e que ameaça extinguir-se pela impotência de uma senilidade precoce!

Mas não haverá por aí quem invente a fecundação artificial? Magnífico assunto para o seu próximo questionário, caro Sr. João do Rio, mais útil, mais atual e positivamente mais produtivo...»

A última ironia zaratustreana, aquela exclamação extática pela perspectiva da nossa raça grávida do futuro, não me tira do assombro de todo esse sistema reformador e forte. Talvez o Sr. Alberto Ramos tenha muita razão.

Felizmente já vamos subindo a montanha. Os clubes de regatas começam a transformação...

Raimundo Correia

O grande poeta, ao receber o meu pedido, passeia nervosamente afinando o nariz com o índice e o polegar num gesto breve, rápido, curto.

-A minha opinião? É grave. Eu estou muito afastado agora.

Torna a passear, fica ainda mais nervoso diante da nossa insistência.

-Mas eu não tenho nada de interessante para dizer!

-E' o que parece...

Há gênios de que a gente não se aproxima sem aborrecê-los logo; há homens de talento que quanto mais nos mostram a sua intimidade, mais se fazem amar e respeitar. Raimundo Correia é dos últimos. Todo ele é bondade. Os seus nervos vibram como as cordas de uma lira, e essa espírito superior interessa-se por tudo quanto é novo, auxilia, elogia, ajuda. Era impossível que Raimundo Correia se negasse a responder.

-Pois está bem; eu mando...

Passou-se um mês, passaram-se, dois, três, quatro meses...

-A resposta?

-Já comecei...

Mas afinal, um dia, entre outras cartas, encontrei uma carta simples e sem espalhafatos denunciadores de que trazia a resposta à enquête. Abri-a. Era de Raimundo Correia:

Não respondo ao seu 1º quesito, sem remexer em cinzas frias, esquecidas a um canto da minha memória. É talvez uma indiscrição que certas dificuldades de sentimento me tornam muito penosa agora. Na velha Livraria Clássica Portuguesa dos irmãos Antônio e José Castilhos achará v. os dois escritores de minha predileção na meninez: o prosador Manuel Bernardes e o poeta Bocage. Mas a verdade é que naquele apanhei um tremendo pavor do inferno, que me fez sonhar muitas noites com o diabo, e que, no segundo, só me deleitaram os ligeiros epigramas aos médicos e as redondilhas satíricas à estanqueira do Loreto. Ainda me lembra esta fácil quadrinha:

Domingo, dois do corrente,

faz-se pela vez primeira

o brinco dos cavalinhos

na testa da estanqueira.



Também, para mim, o fazer versos não passava então de uma brincadeira, de um meio cômodo e inofensivo de gracejar com os camaradas da mesma idade. Só depois é que os outros me levaram a tomar isto mais a sério.

Em Cabo Frio, onde passei, além de uns restos da infância, todo a minha adolescência, foi que li pela primeira vez, à beira-mar, a epopéia marítima de Camões. Da direção que o autor dOs Lusíadas e outros clássicos portugueses teriam dado talvez ao meu espírito, foi este desviado mais tarde pela leitura dos autores nacionais contemporâneos e, sobretudo, de alguns poetas franceses de grande voga, -Hugo e Gautier, por exemplo. Por muito tempo oscilei entre estes dois. Se um parecia desobrigar-me de ter maior fôlego, o outro parecia desculpar-me de não ser menos imperfeito. Não me pude gabar nunca de lhes conhecer a obra inteira; mas do pouco que fiz, muito lhes devo. E não vou além, neste assunto, porque os escritores, por mais pequenos que sejam, incorrem sempre na pecha de grandes mentirosos, quando falam de si.

-Qual a que prefiro dentre as minhas obras? Haveria motivos intelectuais, senão puras razões de sentimento, para eu preferir alguma, dentre as mais modernas. Mas, dispense-me de descer a especificações. Nestas coisas, o mais seguro para a gente é se deixar levar pela cabeça dos outros.

-Se me parece que atravessamos um período estacionário? De modo algum, pois nada há, entre nós, desse definitivo que caracteriza os períodos estacionários. O período atual é, ao contrário, de transição. Transição em tudo; na política, nos costumes, na língua, na raça e, portanto, na literatura também, que é onde melhor se refletem o espírito e o sentimento das nações. Quem se puser um pouco ao lado desse movimento, dessa ebulição geral, assistirá ao espetáculo miraculoso de uma sociedade, de um povo inteiro em vias de formação. Tudo se mescla, se mistura, se confunde de tal modo que só de hoje a 90 anos é que lhe poderei dizer ao certo o resultado disto.

-O jornalismo, para a arte literária, não é um fator, é um subtraendo.

Dentre todos os males necessários e inevitáveis da nossa época, nenhum há mais infenso, do que ele, à cultura sã e tranqüila da verdadeira arte.

Aí tem v., meu caro, as respostas que aos seus quesitos eu posso dar. Se não prestam, acabou-se.

Estou salvo ao menos pela boa intenção que tive de lhe ser agradável. Vivo muito ocupado agora e as minhas ocupações não me dão lugar para mais e melhor.

Os que não responderam

MACHADO DE ASSIS.- GRAÇA ARANHA.- ALUÍSIO AZEVEDO.- ARTUR AZEVEDO, ALBERTO DE OLIVEIRA.- GONZAGA DUQUE, EMÍLIO DE MENEZES E JOSÉ VERÍSSIMO.

Naturalmente, a ausência de certos nomes notáveis num inquérito, que procurava as respostas dos corifeus dos espíritos brasileiros, poderá parecer estranha. Talvez o seja, mas, como todas as coisas verdadeiramente estranhas, é perfeitamente explicável. Há nomes que deviam aqui estar, mas que não estão porque a isso se opuseram uma sensibilidade grande, a vaidade doentia, a noção de responsabilidades graves e principalmente talvez a balbúrdia das idéias. A sensibilidade grande é a do ilustre mestre Machado de Assis. Quando fui pessoalmente levar-lhe o inquérito, o admirável escritor recebeu-me com um acesso de gentilezas, que nele escondem sempre uma pequena perturbação.

-Um inquérito? Pois não: às suas ordens, com todo o gosto.

Passaram-se os dias. Voltei à carga.

-Francamente, disse-me o autor do Brás Cubas, o assunto é grave, é muito grave. Mas eu respondo, respondo quando tiver ânimo para escrever.

Logo os amigos e admiradores do mestre disseram-me:

-Perdes o tempo, o Machado não responde...

Resolvi então cultivar a relação preciosa em bocados de palestra, ouvidos nos balcões do Garnier, por onde todos os dias passa o glorioso escritor. Soube assim que o Brás Cubas fora ditado, durante uma moléstia de olhos de Machado, à sua cara esposa; que o humorista incomparável da «Teoria do Medalhão» tem uma vida de uma regularidade cronométrica, que as suas noites passa-as a tentar o sono...

Espírito de tamanho fulgor tem, entretanto, a nevrose de se incomodar e sofrer com os pequenos nadas da existência. Se por esquecimento deixa de cumprimentar um homem, perde-se em conjecturas. Que irá pensar o homem? Que dirá dele? Nesse período, uma vez, o grande mestre chegou à livraria nervosíssimo. E contou por quê. Fora à secretaria um cavalheiro pedir-lhe qualquer coisa. Não o satisfizera e estava incomodado com isso quando passou o contínuo com a bandeja do café. Aceita uma xícara? Se me fizer companhia!

-Ora eu não tomo café; mas já tinha recusado ao homem uma coisa e achei que seria demais não o acompanhar. Tomei a xícara e estou com dores de cabeça...

Do inquérito cheguei a saber que Machado de Assis tem como livros de cabeceira o Hamlet e o Prometeu, que acha as predileções passageiras como o próprio homem, e respeita a mocidade olhando-lhe as extravagâncias com um pasmo sincero.

Mas, por fim, o mestre incontestável percebeu que eu o acompanhava para lhe arrancar frases e tornou seco um pedaço de intimidade nascente entre o meu louvor e a sua bonomia.

Outro escritor de monta a interrogar seria o Sr. Graça Aranha. S. Ex.ª começou por não responder absolutamente nada. Pessoalmente, depois, deu-me, com a sua alma de heleno, alguns conselhos. O ilustre autor da Canaã é de opinião que se deve escrever pouco. Plutarco, Luciano e Zola poriam as mãos na cabeça se o ouvissem; todos os trágicos gregos abririam a boca de pasmo. Felizmente estava eu só, que concordei com o superior espírito.

Aluísio Azevedo mandou-me de Cardiff uma carta. Tenho diante de mim uma torre de papéis a despachar! O cônsul inibe o escritor de responder!

Artur Azevedo não disse nada.

Gonzaga Duque esqueceu.

José Veríssimo, o conhecido crítico, não gostou do inquérito, e numa roda chegou mesmo a dizer que era esse um processo de fazer livros à custa dos outros.

Tamanha amabilidade impediu-me de insistir, e obrigou-me a pedir a Deus que a produção da literatura nacional aumente. Só assim o sr. José Veríssimo não insistirá na pesca na Amazônia para continuar a sua série de Escritos e Escritores.

Os poetas Alberto de Oliveira e Emílio de Menezes adiaram infinitamente as respostas.

Mas, ainda assim, apesar de não ter essas curiosas opiniões e as luzes de conceitos superiores, catalogando as pessoas que não tinham recusado a formação de um livro -idêntico a muitos outros- do estrangeiro, eu tive a certeza de que ia assinar um livro feito à custa do escol literário brasileiro.

E só não tive a vertigem porque, obrando assim, estava de acordo com o mestre Machado de Assis, pois não dava opinião minha e definitiva; estava de acordo com o Sr. Graça Aranha, pois escrevia pouco; e ainda estava de acordo com o venerável Sr. José Veríssimo, porque realizava, embora sem as suas letras, a sua mais exata previsão interna nestes últimos três lustros...

Depois

Quando dei por findo o meu trabalho voltei ao amigo que mo indicara como necessidade do público e provento literário. Sentei-me desoladamente num vasto divã de Mapple; e, como fazia Aulo-Gellius nas suas noites áticas, pedi-lhe, cheio de humildade e temor, a sua opinião.

-Francamente, acha alguma utilidade social em saber que o sr. Alberto de Oliveira não responde a um inquérito e que o Sr. Alberto Ramos prega a força do super-homem?

-Meu amigo, eu acho que a crítica está absolutamente acabada. As reflexões de Sainte-Beuve, as tiradas do Arnold, os ensaios científicos ou metafísicos para explicar a composição da Comédia do Dante ou o Testamento do Gallo desapareceram por completo. Hoje, sejamos francos, a literatura é uma profissão que carece do reclamo e que tem como único crítico o afrancesado Sucesso. Não sei se conhece o livro de Gastão Ragot a respeito. O êxito, resultante ou acidental, é uma força. Esta força não é cega e não é inexplicável: vem de uma corrente que o vulgo acompanha, mas que o filósofo analisa, corrente que obedece a leis fáceis de determinar. O autor, seja ele qual for, de uma notoriedade lucrativa, de valor no mercado -porque a venda é uma força- deve o seu sucesso ao favor público. O público não simpatiza senão com os que o sabem tocar e lisonjear. A marca de um autor cotado é uma boa marca. Ele a princípio é quem a recomenda; ela depois é que o faz valer. Por isso o autor que vence é uma espécie de jogador feliz.

-Oh! Que teoria discutível!

-Eu chego aos exemplos. A Sra. D. Júlia Lopes de Almeida é o tipo ideal da mãe de família; acha infantil o feminismo, o nefelibatismo e outros maluquismos da civilização. As suas idéias modestas e sem espalhafato, a sua sensibilidade sem extravagâncias souberam tocar o público. A colaboração da Sra. D. Júlia nos jornais aumenta a edição dos mesmos. Que importa à D. Júlia um crítico, dois críticos, três, uma dúzia mesmo contra ela? A sua marca é boa, é vendável; e como acontece a outros produtos, os próprios críticos, forçados pela corrente, fazem-lhes o reclamo com o instinto, aliás muito humano, que tem toda a gente de aclamar os que a multidão aclama. Quando o público adota um escritor- D. Júlia, Bilac, Medeiros e Albuquerque -é que se percebe bem a inanidade da crítica, o fim desse gênero de vagabundagem criadora, porque a pobre coitada que não lhes tece artigos todos os dias, esfalfa-se inutilmente em louvores para certos senhores, sempre ignorados, sempre esquecidos, sempre invendáveis e envenenados pela intoxicação do próprio ineditismo.

-O amigo é brutal. Isto não é filosofia, é balanço de livraria.

-Muito bonita frase no tempo em que os poetas morriam dipsômanos e só escreviam por chic em estado de embriaguez. Mas o Brasil transforma-se, civiliza-se. Hoje o jornalismo é uma profissão, quando antigamente era um meio político de trepar; hoje o escritor trabalha para o editor e não manda vender como José de Alencar e o Manuel de Macedo por um preto de balaio no braço, as suas obras de porta em porta, como melancias ou tangerinas. Uma nova necessidade infiltrou-se nos nossos hábitos: a necessidade da higiene e do confortável. O escritor precisa de higiene, de cuidados, de luxo. Eu acredito que o gênio profundo e fecundo de Coelho Neto não se expandiria de maneira tão maravilhosa se não tivesse o ambiente de luxo e de conforto da sua sala de trabalho; e Medeiros e Albuquerque não possuiria aquela regularidade, aquela precisão, aquela clareza de argumentos e de estilo se não adquirisse na vida todas as comodidades do corpo e do espírito. Os tempos mudaram, meu caro. Há vinte anos um sujeito para fingir de pensador começava por ter a barba por fazer e o fato cheio de nódoas. Hoje, um tipo nessas condições seria posto fora até mesmo das confeitarias, que são e sempre foram as colmeias dos ociosos. Depois, há a concorrência, a tremenda concorrência de trabalho que proíbe os romantismos, o sentimentalismo, as noites passadas em claro e essa coisa abjeta que os imbecis divinizam chamada boêmia, isto é, a falta de dinheiro, o saque eventual das algibeiras alheias e a gargalhada de troça aos outros com a camisa por lavar e o estômago vazio...

-Há de permitir que eu o considere feroz.

-Bato um corpo morto, bato no passado... Se hoje o escritor não trabalha em vinte e quatro horas mais do que um seu colega trabalhava em dois meses há vinte anos, vê os seus assuntos aproveitados, as suas idéias escritas, o seu pão comido pelos outros e talvez com maior originalidade. E a concorrência não é só de homens, é também das mulheres, algumas das quais, como a cintilante e espiritual Carmem Dolores, ultrapassam a maioria dos homens em encanto, modernismo e elegância, conquistando de súbito o favor público. Depois, quais são as resultantes do seu gravíssimo inquérito?

-Isso, pergunto eu.

-Em primeiro lugar a demonstração de que a vaidade não é mais uma qualidade má, mas ao contrário, a satisfação natural de todo o homem, uma deliciosa coquetterie cerebral, que o arrivismo prático transforma em reclamo. Os escritores consultados, quase na sua totalidade, contaram com especial prazer a própria vida. Tem v. para sempre um livro de consulta biográfica dos escritores nacionais. Em segundo, a idéia clara de que o homem de letras só tem um desejo, mesmo quando está na torre de marfim: conquistar o favor público, ser lido e ser notado. O seu inquérito é um exemplo das idéias que v. acha brutal.

As opiniões que se emaranham nessas páginas são conseqüências desse princípio. Vemos em primeiro lugar a anarquia mental, a anarquia do século. Uns acham que estamos em decadência; outros que progredimos. Aqui brada um que estamos no momento da luta; ali brada outro que não temos escolas literárias; acolá mais outro insurge-se contra a luta e a decadência. A verdade é que cada um cuida de si. A época é de um individualismo hiperestésico. Há a estagnação dos corrilhos literários, mas a fúria de aparecer só -é prodigiosa. Os vencedores acham todos o jornalismo animador, o jornalismo necessário; os que por inaptidão, trabalho lento ou hostilidade dos plumitivos, ainda não se apossaram das folhas diárias, atacam o jornalismo, achando essa idéia uma elegância de primeira ordem. São geralmente os poetas, os poetas que fatalmente tendem a ver o seu mercado diminuído -porque o momento não é de devaneios, mas de curiosidade, de informação, fazendo da literatura no romance, na crônica, no conto, nas descrições de viagens, uma única e colossal reportagem.

-A literatura, uma reportagem?

-Desde o romantismo, desde Vítor Hugo tende a ser, simplesmente, reportagem impressionista e documentada. É a sua força. A poesia conservou-se no ideal, e por isso, como bem disse Clóvis, tem os seus moldes gastos. -Ainda outro dia um homem, para fazer sucesso em verso na França, teve que fazer uma reportagem poética sobre a vida dos galinheiros...

-O meu amigo é paradoxal e insolente.

-É o que quase sempre não são os seus entrevistados. Foi-se o tempo das ganas, das raivas, das descomposturas. Agora não se ataca mais. Não há tempo. A delicadeza é um resultado da falta de tempo. Já Avianus, um fabulista latino que La Fontaine copiou com descaro, dizia: nullus proemissis vincere posse minis...

-Mas em suma? fiz eu enfadado com aquele excesso de palavras.

-Em suma?

-Sim, sem circunlóquios, francamente...

-O inquérito mostra que não há escolas no Brasil, que é uma fantasia a idéia de literatura do norte e literatura do sul, que já não há romancistas, que os grandes poetas e os grandes escritores são os que estão na Academia, e que não há uma só das nossas idéias que não seja bebida no estrangeiro, nos livros do Félix Alcan, ou nas extravagâncias publicáveis do Mercure de France; que o naturalismo morreu, que o nefelibatismo agoniza, que a poesia estrebucha...

-Tudo para pior.

-Há também o lado bom, e esse é que a alma e o cérebro do Brasil tomam as feições modernas, que as idéias do mundo são absorvidas agora com uma rapidez que pasmaria os nossos avós; que o jornalismo inconscientemente faz a grande obra de transformação, ensinando a ler, ensinando a escrever, fazendo compreender e fazendo ver; que o individualismo e o arrivismo criam a seleção, o maior esforço, a atividade prodigiosa, e um homem de letras novo, absolutamente novo, capaz de sair dessa forja de lutas, de cóleras, de vontade, muito mais habilitado, muito mais útil e muito mais fecundo que os contemporâneos.

-E esse homem, o literato do futuro...?

-É o homem que vê, que aprendeu a ver, que sente, que aprendeu a sentir, que sabe porque aprendeu a saber, cuja fantasia é um desdobramento moral da verdade, misto de impassibilidade e de sensibilidade, eco da alegria, da ironia, da curiosidade, da dor do público -o repórter. E aos livros desse- sem ódios, sem corrilhos, sem extravagâncias -não faltarão nunca o imprevisto da vida e o sucesso que é o critério mais exato da aclamação pública.

Levantei-me, e deixei a causa moral do meu inquérito. Mas deixei-o com uma convicção: é que positivamente elevara ao auge a confusão de idéias, de biografias, de opiniões, de raivas, de satisfação, com tanto esforço colecionadas. Felizmente já um filósofo disse que as verdades do homem são em última análise os seus erros irrefutáveis...