Poemas
Fagundes Varela
Sobre uma ilha isolada,
por negros mares banhada,
vive uma sombra exilada,
de prantos lavando o chão;
e esta sombra dolorida,
5
no frio manto envolvida,
repete com voz sumida:
-Eu inda sou Napoleão.
Tremem convulsas as plagas
bravias lutam as vagas,
10
solta o vento horríveis pragas
nos cendais da escuridão;
mas nas torvas penedias
entre fundas agonias,
ela diz às ventanias:
15
-Eu inda sou Napoleão.
-E serei! do céu da glória,
nem dos bronzes da memória,
nem das páginas da história
meus feitos se apagarão;
20
passe a noite e as tempestades,
venham remotas idades,
caiam povos e cidades,
-Sempre serei Napoleão.
Da coluna de Vendôme,
25
o bronze, o tempo consome,
porém não apaga o nome
que tem por bronze a amplidão.
Apesar de infausto dia,
da infâmia que tripudia,
30
dos bretões a cobardia,
-Sempre serei Napoleão.
Nos vastos plainos do Egito,
sobre Titães de granito,
eu tenho um poema escrito
35
que deslumbra a solidão.
Das Ísis rasguei os véus,
entre os altares fui deus,
fiz povos escravos meus,
-Ah! inda sou Napoleão.
40
Desde onde o crescente brilha
até onde o Sena trilha,
tive o mundo por partilha
tive imensa adoração;
e de um trono de fulgores
45
fiz dos grandes -servidores,
fiz dos pequenos -senhores,
-E sempre fui Napoleão.
Quando eu cortava os desertos,
vinham-me os ventos incertos
50
de incenso e mirra cobertos
lamber-me as plantas no chão;
as caravanas paravam,
e os romeiros que passavam
às solidões perguntavam:
55
-É este o deus Napoleão?
E lá nas plagas fagueiras,
onde as brisas forasteiras,
entre selvas de palmeiras
corre o sagrado Jordão,
60
o lago dizia ao prado,
o prado ao monte elevado,
o monte ao céu estrelado:
-Vistes passar Napoleão!
Dizei, auras do Ocidente,
65
dizei, tufão inda quente
do bafejo incandescente
do não vencido esquadrão,
como é ele? é belo, ousado?
Tem o rosto iluminado?
70
Tem o braço denodado?
-Sempre é grande Napoleão?
E as águias no céu corriam,
e os areais se volviam,
e horrendas feras bramiam
75
no imenso da solidão;
mas as vozes do deserto
se erguiam como um concerto
e vinham saudar-me perto:
-Tu és, senhor, Napoleão!
80
-Se sou! que Marengo o conte,
de Austerlitz o horizonte,
e aquela soberba ponte
que transpus como o tufão!
E a minha vida de Ajácio,
85
e o meu sublime palácio,
e os pescadores do Lácio
que só dizem -Napoleão!
Se o sou! que digam as plagas,
onde do sangue nas vagas,
90
coberta de enormes chagas
dorme vil população;
digam da Ásia as bandeiras,
digam longas cordilheiras,
que se abatiam, rasteiras,
95
ao corcel de Napoleão!
Se o sou! diga Santa Helena
onde a mais sublime cena
fechou tranqüila e serena
minha história de Titão,
100
digam as ondas bravias,
digam torvas penedias,
onde as rijas ventanias
vêm murmurar: -Napoleão.
E serei! do céu, da glória,
105
nem dos bronzes da memória
nem das páginas da história
meus feitos se apagarão!
Assim na rocha isolada
pelas espumas banhada,
110
disse a sombra desterrada,
de prantos lavando o chão.
As névoas rolam nos céus,
da noite escura nos véus
soltam negros escarcéus
115
rugidos de imprecação;
mas das sombras a espessura
a face da onda escura,
o salgueiro que murmura
tudo fala -Napoleão!
120
Volúvel tribo a solidão percorre
5
das borboletas de brilhantes cores;
soluça o arroio; diz a rola amores
nas verdes balsas donde o orvalho escorre.
Tudo é luz e esplendor; tudo se esfuma
às carícias da aurora, ao céu risonho,
10
ao flóreo bafo que o sertão perfuma!
Porém minh'alma triste e sem um sonho
repete olhando o prado, o rio, a espuma:
-Oh! mundo encantador, tu és medonho!
À medida que avanço, os pensamentos
borbulham-me no cérebro, ferventes,
como as ondas do mar,
e me arrastam consigo, alucinado,
10
à casa da formosa criatura
de meu doido cismar.
Latem os cães; as portas se franqueiam
rangendo sobre os quícios; os criados
acordem pressurosos;
15
subo ligeiro a longa escadaria,
fazendo retinir minhas esporas
sobre os degraus lustrosos.
No seu vasto salão iluminado,
suavemente repousando o seio
20
entre sedas e flores,
toda de branco, engrinaldada a fronte,
ela me espera, a linda soberana
de meus santos amores.
Corro a seus braços trêmulo, incendido
25
de febre e de paixão... A noite é negra,
ruge o vento no mato;
os pinheiros se inclinam, murmurando:
-Onde vai este pobre cavaleiro
com seu sonho insensato?...
30
Por que teu vulto se levanta airoso,
5
tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
no meu retiro vens tentar-me ainda?
Por que me falas de venturas longas,
por que me apontas um porvir de amores?
10
E o lume pedes à fogueira extinta,
doces perfumes a polutas flores?
Não basta ainda essa existência escura,
página treda que a teus pés compus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
15
dias sem crenças e serões sem luz?
Não basta o quadro de meus verdes anos
manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
onde pranteio desprezado e só?
20
Ah! não me lembres do passado as cenas,
nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? a quantos outros, dize,
a quantos outros não fizeste o mesmo?
A quantos outros, inda os lábios quentes
25
de ardentes beijos que eu te dera então,
não apertaste no vazio seio
entre promessas de eternal paixão?
Oh! fui um doido que segui teus passos,
que dei-te em versos de beleza a palma;
30
mas tudo foi-se, e esse passado negro
por que sem pena me despertas n'alma?
Deixa-me agora repousar tranqüilo,
deixa-me agora dormitar em paz,
e com teus risos de infernal encanto
35
em meu retiro não me tentes mais!
o gênio da floresta aparecendo
adiante de um vizir, senão eu juro
punir-te rijamente! E no entanto
o vizir derribou a santa selva!
5
Alguns anos depois foi condenado
ao cutelo do algoz. Quando encostava
a cabeça febril no duro cepo,
recuou aterrado: -«Eternos deuses!
Este cepo é de cedro!» E sobre a terra
10
a cabeça rolou banhada em sangue!
Não te esqueças de mim, quando escutares
5
gemer a rola na floresta escura,
e a saudosa viola do tropeiro
desfazer-se em gemido de tristura.
Quando a flor do sertão, aberta a medo,
pejar os ermos de suave encanto,
10
lembre-te os dias que passei contigo,
não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Não te esqueças de mim, quando à
tardinha
se cobrirem de névoa as serranias,
e na torre alvejante o sacro bronze
15
docemente soar nas freguesias!
Quando de noite, nos serões de inverno,
a voz soltares modulando um canto,
lembre-te os versos que inspiraste ao bardo,
não te esqueças de mim, que te amo tanto.
20
Não te esqueças de mim, quando meus olhos
do sudário no gelo se apagarem,
quando as roxas perpétuas do finado
junto à cruz de meu leito se embalarem.
Quando os anos de dor passado houverem,
25
e o frio tempo consumir-te o pranto,
guarda ainda uma idéia a teu poeta,
não te esqueças de mim, que te amo tanto.
Beijava a onda num soluço mago
5
das moles plumas a brilhante alvura,
e a voz ungida de eternal doçura
roçava as nuvens em divino afago.
Vi-te; e nas chamas de fervor profundo
a teus pés afoguei a mocidade
10
esquecido de mim, de Deus, do mundo!
Mas ai! cedo fugiste!... da soidade,
hoje te imploro desse amor tão fundo
uma idéia, uma queixa, uma saudade!
Do ermo os insetos zumbiam na relva,
5
as plantas tremiam de orvalho banhadas,
e aos bandos voavam ligeiras falenas
nas folhas batendo com as asas douradas.
O túrbido manto das névoas errantes
pairava indolente no topo da serra;
10
e aos astros -e às nuvens perfumes- sussurros,
suspiros e cantos partiam da terra.
Nós éramos jovens -ardentes e sós,
ao lado um do outro no vasto salão;
e as brisas e a noite nos vinham no ouvido
15
cantar os mistérios de infinda paixão!
Nós éramos jovens -e a luz de seus olhos
brilhava incendida de eternos desejos,
e a sombra indiscreta do níveo corpinho
sulcava-lhe os seios em brandos arquejos!
20
Nós éramos jovens -e as balsas floridas
o espaço inundavam -de quentes perfumes,
e o vento chorava nas tílias do parque,
e a lua soltava seus tépidos lumes!...
Ah! mísero aquele que as sendas do mundo
25
trilhou sem o aroma de pálida flor,
e à tumba declina, na aurora dos sonhos,
o lábio inda virgem dos beijos de amor!
Não são dos invernos as frias geadas,
nem longas jornadas que os anos apontam.
30
O tempo descora nos risos e prantos,
e os dias do homem por gozos se contam.
Assim nessa noite de mudas venturas,
de louros eternos minh'alma enastrei;
que importa-me agora martírios e dores,
35
se outrora dos sonhos a taça esgotei?
Ah! lembra-me ainda! -nem um candelabro
lançava ao recinto seu brando clarão,
apenas os raios da pálida lua
transpondo as janelas batiam no chão.
40
Vestida de branco -nas cismas perdida,
seu mórbido rosto pousava em meu seio,
e o aroma celeste das negras madeixas
minh'alma inundava de férvido anseio.
Nem uma palavra seus lábios queridos
45
nos doces espasmos diziam-me então:
que valem palavras, quando ouve-se o peito
e as vidas se fundem no ardor da paixão?
Oh! céus! eram mundos... ai! mais do que mundos
que a mente invadiam de etéreo fulgor!
50
Poemas divinos -por Deus inspirados,
e a furto contados em beijos de amor!
No fim do seu giro, da noite a princesa
deixou-nos unidos em brando sonhar;
correram as horas -e a luz da alvorada
55
em juras infindas nos veio encontrar!
Não são dos invernos as frias geadas,
nem longas jornadas que os anos apontam...
o tempo descora nos risos e prantos,
e os dias do homem por dores se contam!
60
Ligeira... essa noite de infindas venturas
somente em minh'alma lembranças deixou...
Três meses passaram, e o sino do templo
à reza dos mortos os homens chamou!
Três meses passaram -e um lívido corpo
65
jazia dos círios à luz funeral,
e, à sombra dos mirtos, o rude coveiro
abria cantando seu leito afinal!...
Nós éramos jovens, e a senda terrestre
trilhávamos juntos, de amor a sorrir,
70
e as flores e os ventos nos vinham no ouvido
contar os arcanos de um longo porvir!
Nós éramos jovens, e as vidas e os seios,
o afeto prendera num cândido nó!
Foi ela a primeira que o laço quebrando
75
caiu soluçando das campas no pó!
Não são dos invernos as frias geadas,
nem longas jornadas que os anos apontam,
o tempo descora nos risos e prantos,
e os dias do homem por dores se contam!
80
1861
Amo nas plantas, que na tumba crescem,
5
de errante brisa o funeral cicio:
porque minh'alma, como a sombra, é triste,
porque meu seio é de ilusões vazio.
Amo a desoras sob um céu de chumbo,
no cemitério de sombria serra,
10
o fogo-fátuo que a tremer doideja
das sepulturas na revolta terra.
Amo ao silêncio do ervaçal partido
de ave noturna o funerário pio,
porque minh'alma, como a noite, é triste,
15
porque meu seio é de ilusões vazio.
Amo do templo, nas soberbas naves,
de tristes salmos o troar profundo;
amo a torrente que na rocha espuma
e vai do abismo repousar no fundo.
20
Amo a tormenta, o perpassar dos ventos,
a voz da morte no fatal parcel,
porque minh'alma só traduz tristeza,
porque meu seio se abrevou de fel.
Amo o corisco que deixando a nuvem
25
o cedro parte da montanha, erguido,
amo do sino, que por morto soa,
o triste dobre na amplidão perdido.
Amo na vida de miséria e lodo,
das desventuras o maldito seio,
30
porque minh'alma se manchou de escárnios,
porque meu seio se cobriu de gelo.
Amo o furor do vendaval que ruge,
das asas negras sacudindo o estrago;
amo as metralhas, o bulcão de fumo,
35
de corvo as tribos em sangrento lago.
Amo do nauta o doloroso grito
em frágil prancha sobre mar de horrores,
porque meu seio se tornou de pedra,
porque minha'alma descorou de dores.
40
O céu de anil, a viração fagueira,
o lago azul que os passarinhos beijam,
a pobre choça do pastor no vale,
chorosas flores que ao sertão vicejam,
A paz, o amor, a quietação e o riso
45
a meus olhares não têm mais encanto,
porque minh'alma se despiu de crenças,
e do sarcasmo se embuçou no manto.
1861
Passei tristonho dos salões no meio,
atravessei as turbulentas praças
curvado ao peso de uma sina escura;
as turbas contemplaram-me sorrindo,
5
mas ninguém divisou a dor sem termos
que as fibras de meu peito espedaçava.
O exilado está só por toda a parte!
Quando, à tardinha, dos floridos vales
eu via o fumo se elevar tardio
10
por entre o colmo de tranqüilo albergue,
murmurava a chorar: -Feliz aquele
que à luz amiga do fogão doméstico,
rodeado dos seus, à noite, senta-se.
O exilado está só por toda a parte!
15
Onde vão estes flocos de neblina
que o euro arrasta nas geladas asas?
Onde vão essas tribos forasteiras
que à tempestade se esquivar procuram?
Ah! que me importa?... também eu doidejo,
20
e onde irei, Deus o sabe, Deus somente.
O exilado está só por toda a parte!
Desta campina as árvores são belas,
são belas estas flores que se vergam
das auras estivais ao débil sopro;
25
mas nem a sombra que no chão se alonga,
nem o perfume que o ambiente inunda
são dessa gleba divinal que adoro.
O exilado está só por toda a parte!
Mole e lascivo no tapiz da selva
30
serpeia o arroio, e o deslizar queixoso
peja de amor as solidões dormentes;
mas nunca o rosto refletiu-me um dia,
nem foi seu burburinho enlanguescido
que embalou minha infância a descuidosa.
35
O exilado está só por toda a parte!
-Por que chorais? me perguntou o mundo;
contai-nos vossa dor, talvez possamos
saná-la às gotas de elixir suave;
mas, quando eu suspendi a lousa escura
40
que o túmulo cobria-me da vida,
riram-se pasmos sem sondar-lhe o fundo.
O exilado está só por toda a parte!
Vi o ancião da prole rodeado
sorrir-se calmo e bendizer a Deus,
45
vi junto à porta da nativa choça
as crianças beijarem-se abraçadas;
mas de filho ou de irmão o santo nome
ninguém me deu, e eu fui passando triste.
O exilado está só por toda a parte!
50
Quando verei essas montanhas altas
que o sol dourava nas manhãs de agosto?
Quando, junto à lareira, as folhas lívidas
deslembrarei de meu sombrio drama?
Doida esperança! as estações sucedem-se
55
e sem um gozo vou descendo à campa.
O exilado está só por toda a parte!
Brandas aragens, que roçais fagueiras
das maravilhas nas cheirosas frontes,
aves sem pátria, que cortais os ares,
60
irmãs na sorte do infeliz romeiro,
ah! levai um suspiro à pátria amada,
último alento de cansado peito.
O exilado está só por toda a parte!
Quando nas folhas de lustrosos plátanos
65
novos luares descansarem gratos,
já sobre a estrada de meus pés os
traços
o pegureiro não verá, que passa!
Mísero! ao leito de final descanso
ninguém meu sono velará chorando.
70
O exilado está só por toda a parte!
As torrentes de idéias que se cruzam,
o pensamento eterno que se move
no levante da vida,
são auras santas, arrebóis esplêndidos,
10
que precedem à vinda triunfante
de um sol imorredouro.
O murmurar profundo, enrouquecido,
que do seio dos povos se levanta,
anuncia a tormenta;
15
essa tormenta salutar e grande
que o manto roçará, prenhe de fogo,
na face das nações.
Preparai-vos, ó turbas! Preparai-vos,
rebatei vossos ferros e cadeias,
20
algozes e tiranos!
A hora se aproxima pouco a pouco,
e o dedo do Senhor já volve a folha
do livro do destino!
Grande há de ser o drama, a ação
gigante,
25
majestosa a lição! luzes e trevas
lutarão sobre os orbes!
O abismo soltará seus tredos roncos,
e o frêmito dos mares agitados
se unirá aos das turbas.
30
Os reis convulsarão nos tronos frágeis,
buscando embalde sustentar nas frontes
as úmidas coroas...
Debalde!... o vendaval na fúria insana
os levará com elas, envolvidos
35
num turbilhão de pó!
Vis, abatidos, o fidalgo e o rico
sairão de seus paços vacilantes
nos podres alicerces...
E errantes sobre a terra irão chorando,
40
mendigar um farrapo ao vagabundo,
e um pedaço de pão!
Estranho povo surgirá da sombra
terrível e feroz cobrindo os campos
de cruentos horrores!
45
O palácio e a prisão irão por terra,
e um segundo dilúvio, então de sangue,
o mundo lavará!
O sábio em seu retiro, estupefato,
verá tombar a imagem da ciência,
50
fria estátua de argila,
e um pálido clarão dirá que é
perto
o astro divinal que às turbas míseras
conduz a redenção!
Como aos dias primeiros do universo,
55
o globo se erguerá banhado em luzes,
reflexos de Deus;
e a raça humana sob um céu mais puro
um hino insigne enviará, prostrada
aos pés do Onipotente!
60
Irmãos todos serão; todos felizes;
iguais e belos, sem senhor nem peias,
nem tiranos e ferros!
O amor os unirá num laço estreito,
e o trânsito da vida uma romagem
65
se tornará celeste!
A hora se aproxima pouco a pouco;
o dedo do Senhor já volve a folha
do livro do destino!...
Ergue-se a tela do teatro imenso,
70
e o mistério infinito se desvenda
do drama do Calvário!
Salve! minh'alma vos procura embalde,
5
embalde triste vos estendo os braços...
Cercam-me o corpo rebatidos muros,
prendem-me as plantas enredados laços!...
Pátria da liberdade! antros profundos!
Vastos palácios! eternais castelos!
10
Mandai-me os gênios das sombrias grutas
de meus grilhões espedaçar os elos!...
Ah! que eu não possa me esquivar dos homens,
matar a febre que meu ser consome,
e entre alegrias me arrojar cantando
15
nas secas folhas do sertão sem nome!
Ah! que eu não possa desprender aos ermos
o fogo ardente que meu crânio encerra,
gastar os dias entre o espaço e Deus
nas matas virgens da colúmbia terra!
20
Eu não detesto nem maldigo a vida,
nem do despeito me remorde a chaga,
mas ah! sou pobre, pequenino e débil
e sobre a estrada o viajor me esmaga!
Que faço triste no rumor das praças?
25
Que busco pasmo nos salões dourados?
Verme do lodo me desprezam todos,
o pobre e os grandes de esplendor cercados!
Fere-me os olhos o clarão do mundo,
rasgam-me o seio prematuras dores,
30
e à mágoa insana que me enluta as noites,
declino à campa na estação das flores.
E há tanto encanto nas florestas virgens,
tanta beleza do sertão na sombra,
tanta harmonia no correr do rio,
35
tanta delícia na campestre alfombra...
Que inda pudera reviver de novo,
e entre venturas flutuar minh'alma,
fanada planta que mendiga apenas
a noite, o orvalho, a viração e a calma!
40
Ai! se eu pudesse de minh'alma aos elos
5
prender tu'alma enfebrecida e cálida,
erguer na vida os festivais castelos
que tantas noites planejaste, pálida;
Ai! se eu pudesse nos teus olhos turvos
beber a vida da volúpia ao véu,
10
bem como os juncos sobre as ondas curvos
a chuva bebem que derrama o céu,
Talvez que as mágoas que meu peito ralam
em cinzas frias se perdessem logo,
como as violas que ao verão trescalam
15
somem-se aos raios de celeste fogo!
Oh! vem Lucília! é tão formosa a aurora
quando uma fada lhe batiza o alvor,
e a madressilva, que ao frescor vapora
os ares peja de lascivo amor...
20
Sou moço ainda; de meu seio aos ermos
posso-te louco arrebatar comigo...
De um mundo novo na solidão sem termos
deitar-te à sombra de amoroso abrigo!
Tenho um dilúvio de ilusões na fronte,
25
um mundo inteiro de esperanças n'alma,
ergue-te acima de azulado monte,
terás dos gênios do infinito a palma!...
(Sobre uma página de Byron)
Que pesar me consome? ah! não procures
5
erguer a lousa de um pesar profundo,
nem apalpares a matéria lívida,
e a lama impura que pernoita ao fundo!
Não são as flores da ambição
pisadas,
não é a estrela de um porvir perdida...
10
Que esta cabeça coroou de sombras
e a tumba inclina ao despontar da vida!
É este enojo perenal, contínuo,
que em toda a parte me acompanha os passos,
e ao dia incende-me as artérias quentes,
15
me aperta à noite nos mirrados braços!
São estas larvas de martírio e dores
sócias constantes do judeu maldito!
Em cuja testa, dos tufões crestada,
labéu de fogo cintilava escrito!
20
Quem de si mesmo desterrar-se pode?
quem pode a idéia aniquilar que o mata?
Quem pode altivo esmigalhar o espelho
que a torva imagem de Satã retrata?
Quantos encontram inefáveis gozos
25
nesses prazeres, para mim tormentos!
quantos nos mares onde a morte enxergo
abrem as velas do baixel aos ventos!
O meu destino é vaguear e sempre!
Sempre fugindo funeral lembrança...
30
Férreo estilete que me rasga os músculos,
voz dos abismos que me brada: -Avança!
Que pesar me consome? ai! não mais tentes,
espera a lousa de um pesar profundo,
somente a morte encontrarás nas bordas,
35
e o inferno inteiro a praguejar no fundo!
(Cançoneta)
Manso o regato murmura
na verdura
descrevendo giros mil,
some-se a estrela brilhante,
10
vacilante,
no horizonte cor de anil.
Ergue-te, oh! meu passarinho,
de teu ninho,
vem gozar da madrugada...
15
Modula teu terno canto,
doce encanto
de minh'alma amargurada.
Vem junto à minha janela,
sobre a bela
20
verdejante laranjeira,
beber o eflúvio das flores,
teus amores,
nas asas de aura fagueira.
Desprende a voz adorada,
25
namorada,
poeta da solidão,
ah! vem lançar com encanto
mais um canto,
no livro da criação!
30
Oh! meu sabiá formoso,
sonoroso,
já desponta a madrugada...
Deixa teu ninho altaneiro,
vem ligeiro
35
saudar a luz da alvorada.
Eu lembro-me de ti, por que tu'alma
é o sol de minh'alma e de meu gênio;
e neste exílio que infernal me cerca,
mísera planta, desfaleço e morro
ao frio toque de hibernal geada!
10
Quando das franjas do Ocidente róseo
um raio ainda me clareia o cárcere,
e um tom suave de tristeza e luzes
mistura o dia à palidez da noite,
eu lembro-me de ti!
15
Eu lembro-me de ti, porque teu seio
guarda um tesouro de piedade santa,
e nesse instante que o pesar duplica
faltam-me as vozes de teus lábios meigos
E o doce orvalho de amorosos olhos!
20
Quando nas bordas de meu leito escuro
fatais espectros de pavor se cruzam,
e exausto, e lívido, eu procuro embalde
o grato sono que meus olhos deixa,
eu lembro-me de ti!
25
Eu lembro-me de ti, porque saudosa
sonho-te a imagem soluçando ao longe,
e a fronte curva, e umedecidas pálpebras,
meu nome dizes ao tufão que passa,
à brisa doida que te morde as tranças!
30
Quando meu corpo se debate em febre,
e a lava ardente nas artérias corre...
quando cruenta, de funéreos risos,
pressinto a morte levantar-se perto,
eu lembro-me de ti!
35
Eu lembro-me de ti que és minha vida,
último alívio neste mundo insano,
anjo da guarda que à minh'alma aflita
pudera as trevas espancar com as asas,
lavar-lhe as manchas num Jordão de lágrimas!
40
Ai! tudo os homens entre nós quebraram:
a paz, o riso, as esperanças áureas;
mas de teu peito me arrancar não podem,
nem a minh'alma desprender da tua!...
Eu lembro-me de ti!...
45
Régio manto do globo! povo infindo
de soberbos Titães! gênio da força,
salve três vezes!... Das espáduas amplas
10
derribas todo o jugo que te oprime,
tragas gigantes de carvalho e cedro,
e a fronte erguendo majestosa e bela
diademas de pérolas atiras
às estrelas do céu, e ao mundo cospes
15
a férvida saliva em desafio!
Quantos impérios celebrados, fortes
não floresceram de teu trono às bases
sublime potestade! e onde estão eles?
O que é feito de Roma, Assíria e
Grécia,
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Cartago, a valorosa? As vagas tuas
lambiam-lhes os muros, quer nos tempos
de paz e de bonança, quer na quadra
em que chuvas de setas se cruzavam
à face torva das hostis falanges!
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Tudo esb'roou-se, se desfez em cinzas,
sumiu-se como os traços que o romeiro
deixa de Núbia na revolta areia!
Só tu, oh! mar, sem termos, imutável
como o quadrante lúgubre do tempo,
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ruges, palpitas sem grilhões nem peias!
Nunca na face desse azul sombrio,
onde tranqüilas, ao chorar das brisas,
poesias do céu, flores do éter,
as estrelas se miram namoradas...
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Nunca o fogo e a lava, a guerra e a morte,
a armada dos tiranos há deixado
um vestígio sequer de seus destroços!
Tal como à tarde do primeiro dia
que ao orbe clareou, hoje te ostentas
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na tua majestade horrenda e bela!
Espelho glorioso onde entre fogos
se mostra onipotente, nas tormentas
a face do Senhor! Monstro sublime
cujas garras de ferro o globo abraçam...
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Até que um dia, quem o sabe? exausto
lance o último alento! ah! no teu seio
talvez tremendo espírito se agite,
misto sombrio de paixões sem freios,
cuja expressão vislumbra-te no rosto,
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ora hediondo de compressos músculos,
ora suave como o louro infante
sobre o seio materno, ora cruento
gotejando suor, escuma e raiva!
Níobe eterna! de teu ventre túmido
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os monstros dos abismos rebentaram,
em cujo dorso de argentadas conchas
os raios das estrelas resvalavam:
de teu lodo fecundo, inextinguível,
brotaram continentes cujas grimpas
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iam bater na abóbada cerúlea;
teus paços de coral e de esmeraldas
encerravam princesas vaporosas,
louras ondinas, encantados gênios,
soberbas divindades! Entretanto
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viste tudo cair! riscada a Atlântida
da face do universo, os brônzeos deuses
desterrados pra sempre, e só restou-te
uma voz gemedora que chorava:
-Já não vive o Deus Pã! oh! Pã
é morto!
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Oceano sem fundo! vagas túmidas
abismo de mistério, ah! desde a infância
preso na teia da atração divina
eu vos busquei sedento! sobre as praias,
curvas como os alfanjes dos eunucos,
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eu me perdia nos dourados dias
da santa primavera, ouvindo os brados
dos marinhos corcéis, molhando as plantas
na gaze salitrosa que envolvia
a areia cintilante! após mais tarde
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sentava-me no cimo dos rochedos,
suspirando de amor aos verdes olhos,
aos moles braços que do salso leito
erguiam-se tão meigos e adorados!...
Amo-te ainda, oh! mar! amo-te muito,
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mas não tranqüilo umedecendo a proa
da gôndola lasciva, nem chorando
às carícias da lua! Amo-te horrível,
arrogante e soberbo, repelindo
os furacões que roçam-te nas crinas,
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quebrando a asa de fogo que das nuvens
procura te domar, batendo a terra
com teus flancos robustos, levantando
triunfante e feroz no tredo espaço
a cabeça estrelada de ardentias!
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Amo-te assim, oh! mar, porque minh'alma
vê-te imenso e potente, desdenhoso
rindo às quimeras da cobiça humana!
Amo-te assim! ditoso no teu seio
zombo do mundo que meu ser esmaga,
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sou livre como as vagas que me cercam
e só a tempestade e a Deus respeito.
Salve, oceano onipotente e eterno!
Santo espelho de Deus, três vezes salve!