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De Cantos meridionais

Ao Sr. Tomaz de Aquino Borges

dorme! Bendito o arcanjo tenebroso

cujo dedo imortal

gravou-te sobre a testa bronzeada

o sigilo fatal!
5

Dorme! Se a terra devorou sedenta

de teu rosto o suor,

mãe compassiva agora te agasalha

com zelo e com amor.

Ninguém te disse o adeus da despedida,
10

ninguém por ti chorou!

Embora! A humanidade em teu sudário

os olhos enxugou!

A verdade luziu por um momento

de teus irmãos à grei:
15

Se vivo foste escravo, és morto... livre

pela suprema lei!

Tu suspiraste como o hebreu cativo

saudoso do Jordão,

pesado achaste o ferro da revolta,
20

não o quiseste, não!

Lançaste-o sobre a terra inconsciente

de teu próprio poder!

Contra o direito, contra a natureza,

preferiste morrer!
25

Do augusto condenado as leis são santas,

são leis porém de amor:

Por amor de ti mesmo e dos mais homens

preciso era o valor...

Não o tiveste! Os ferros e os açoites
30

mataram-te a razão!

Dobrado cativeiro! A teus algozes

dobrada punição!

Por que nos teus momentos de suplício,

de agonia e de dor,
35

não chamaste das terras africanas

o vento assolador?

Ele traria a força e a persistência

à tu'alma sem fé,

nos rugidos dos tigres de Benguela,
40

dos leões de Guiné!...

Ele traria o fogo dos desertos,

o sol dos areais,

a voz de teus irmãos viril e forte,

o brado de teus pais!
45

Ele te sopraria às moles fibras

a raiva do suão

quando agitando as crinas inflamadas

fustiga a solidão!

Então ergueras resoluto a fronte,
50

e, grande em teu valor,

mostraras que em teu seio inda vibrava

a voz do Criador!

Mostraras que das sombras do martírio

também rebenta a luz!
55

Oh! teus grilhões seriam tão sublimes,

tão santos como a cruz!

Mas morreste sem lutas, sem protestos,

sem um grito sequer!

Como a ovelha no altar, como a criança
60

no ventre da mulher!

Morreste sem mostrar que tinhas nalma

uma chispa do céu!

Como se um crime sobre ti pesasse!

Como se foras réu!
65

Sem defesa, sem preces, sem lamentos,

sem círios, sem caixão,

passaste da senzala ao cemitério!

Do lixo à podridão!

tua essência imortal onde é que estava?
70

Onde as leis do Senhor?

Digam-no o tronco, o látego, as algemas

e as ordens do feitor!

Digam-no as ambições desenfreadas,

a cobiça fatal,
75

que a eternidade arvoram nos limites

de um círculo mortal!

Digam-no o luxo, as pompas e grandezas,

lacaios e brasões,

tesouros sobre o sangue amontoados,
80

paços sobre vulcões!

Digam-no as almas vis das prostitutas,

o lodo e o cetim,

o demônio do jogo, a febre acesa

em ondas de rubim!...
85

E no entanto tinhas um destino,

uma vida, um porvir,

um quinhão de prazeres e venturas

sobre a terra a fruir!

Eras o mesmo ser, a mesma essência
90

que teu bárbaro algoz;

foram seus dias de rosada seda,

os teus de atro retroz!...

Pátria, família, idéias, esperanças,

crenças, religião,
95

tudo matou-te, em flor no íntimo d'alma,

o dedo da opressão!

Tudo, tudo abateu sem dó, nem pena!

Tudo, tudo, meu Deus!

E teu olhar à lama condenado
100

esqueceu-se dos céus!...

Dorme! Bendito o arcanjo tenebroso

cuja cifra imortal,

selando-te o sepulcro, abriu-te os olhos

à luz universal!
105


A meu predileto amigo o Sr. Dr. Betoldi

a cidade ali está com seus enganos,

seu cortejo de vícios e traições,

seus vastos templos, seus bazares amplos,

seus ricos paços, seus bordéis salões.
5

A cidade ali está: sobre seus tetos

paira dos arsenais o fumo espesso,

rolam nas ruas da vaidade os coches

e ri-se o crime à sombra do progresso.

A cidade ali está: sob os alpendres
10

dorme o mendigo ao sol do meio-dia,

chora a viúva em úmido tugúrio,

canta na catedral a hipocrisia.

A cidade ali está: com ela o erro,

a perfídia, a mentira, a desventura...
15

Como é suave o aroma das florestas!

Como é doce das serras a frescura!

A cidade ali está: cada passante

que se envolve das turbas no bulício

tem a maldade sobre a fronte escrita,
20

tem na língua o veneno e nalma o vício.

Não, não é na cidade que se formam

os fortes corações, as crenças grandes,

como também nos charcos das planícies

não é que gera-se o condor dos Andes!
25

Não, não é na cidade que as virtudes,

as vocações eleitas resplandecem,

flores de ar livre, à sombra das muralhas

pendem cedo a cabeça e amarelecem.

Quanta cena infernal sob essas telhas!
30

Quanto infantil vagido de agonia!

Quanto adultério! Quanto escuro incesto!

Quanta infâmia escondida à luz do dia!

Quanta atroz injustiça e quantos prantos!

Quanto drama fatal! Quantos pesares!
35

Quanta fronte celeste profanada!

Quanta virgem vendida aos lupanares!

Quanto talento desbotado e morto!

Quanto gênio atirado a quem mais der!

Quanta afeição cortada! Quanta dúvida!
40

Num carinho de mãe ou de mulher!

Eis a cidade! Ali a guerra, as trevas,

a lama, a podridão, a iniqüidade;

aqui o céu azul, as selvas virgens,

o ar, a luz, a vida, a liberdade!
45

Ali medonhos, sórdidos alcouces,

antros de perdição, covis escuros,

onde ao clarão de baços candeeiros

passam da noite os lêmures impuros;

E abalroam-se as múmias coroadas,
50

corpos de lepra e de infecção cobertos,

em cujos membros mordem-se raivosos

os vermes pelas sedas encobertos!

Aqui verdes campinas, altos montes,

regatos de cristal, matas viçosas,
55

borboletas azuis, loiras abelhas,

hinos de amor, canções melodiosas.

Ali a honra e o mérito esquecidos,

mortas as crenças, mortos os afetos,

os lares sem legenda, a musa exposta
60

aos dentes vis de perros objetos!

Presa a virtude ao cofre dos banqueiros,

a lei de Deus entregue aos histriões!

Em cada rosto o selo do egoísmo,

em cada peito um mundo de traições!
65

Depois o jogo, a embriaguez, o roubo,

a febre nos ladrilhos do prostíbulo,

o hospital, a prisão... Por desenredo

a imagem pavorosa do patíbulo!

Eis a cidade!... Aqui a paz constante,
70

serena a consciência, alegre a vida,

formoso o dia, a noite sem remorsos,

pródiga a terra, nossa mãe querida!

Salve, florestas virgens! Rudes serras!

Templos da imorredoura liberdade!
75

Salve! Três vezes salve! Em teus asilos

Sinto-me grande, vejo a divindade!


Ao Rio de Janeiro

Adeus! Adeus! Nas cerrações perdida

vejo-te apenas, Guanabara altiva,

mole, indolente, à beira-mar sentada,

sorrindo às ondas em nudez lasciva.

Mimo das águas, flor do Novo Mundo,
5

terra dos sonhos meus,

recebe azinha no passar dos ventos

meu derradeiro adeus!

A noite desce, os boqueirões de espuma

rugem pejados de ferventes lumes,
10

e os loiros filhos do marinho império

brotam do abismo em festivais cardumes.

Sinistra voz envia-me aos ouvidos

um cântico fatal!

Permita o fado que a teu seio eu volte,
15

oh! meu torrão natal!

Já no horizonte as plagas se confundem,

o céu e a terra abraçam-se discretos,

leves os vultos das palmeiras tremem

como as antenas de sutis insetos.
20

Agora o espaço, as sombras, a saudade,

o pranto e a reflexão...

A alma entregue a si, Deus nas alturas...

Nos lábios a oração!

Tristes idéias, pensamentos fundos
25

nublam-me a fronte descaída e fria,

como esses flocos de neblina errante

que os cerros vendam quando morre o dia.

Amanhã, que verei? Talvez o porto,

talvez o sol... não sei!
30

Brinco do fado, a dor é minha essência,

o acaso minha lei!...

Que importa! A pátria do poeta o segue

por toda a parte onde o conduz a sorte,

no mar, nos ermos, do ideal nos braços,
35

respeita o selo imperial da morte!

Oceano profundo! Augusto emblema

da vida universal!

Leva um adeus ainda às alvas praias

de meu torrão natal.
40


A flor do maracujá

Pelas rosas, pelos lírios,

pelas abelhas, sinhá,

pelas notas mais chorosas

do canto do sabiá,

pelo cálice de angústias
5

da flor do maracujá!

Pelo jasmim, pelo goivo,

pelo agreste manacá,

pelas gotas de sereno

nas folhas do gravatá,
10

pela coroa de espinhos

da flor do maracujá!

Pelas tranças de mãe-dágua

que junto da fonte está,

pelos colibris que brincam
15

nas alvas plumas do ubá,

pelos cravos desenhados

da flor do maracujá!

Pelas azuis borboletas

que descem do Panamá,
20

pelos tesouros ocultos

nas minas do Sincorá,

pelas chagas roxeadas

da flor do maracujá!

Pelo mar, pelo deserto,
25

pelas montanhas, sinhá!

Pelas florestas imensas,

que falam de Jeová!

Pela lança ensangüentada

da flor do maracujá!
30

Por tudo o que o céu revela,

por tudo o que a terra dá

eu te juro que minh'alma

de tua alma escrava está!...

Guarda contigo este emblema
35

da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos

de tantas rimas em -á-

mas ouve meus juramentos,

meus cantos, ouve, sinhá!
40

Te peço pelos mistérios

da flor do maracujá!


O balanço da rede, o bom fogo

sob um teto de humilde sapé;

a palestra, os lundus, a viola,

o cigarro, a modinha, o café;

Um robusto alazão, mais ligeiro
5

do que o vento que vem do sertão,

negras crinas, olhar de tormenta,

pés que apenas rastejam no chão;

E depois um sorrir de roceira,

meigos gestos, requebros de amor,
10

seios nus, braços nus, tranças soltas,

moles falas, idade de flor;

Beijos dados sem medo ao ar livre,

risos francos, alegres serões,

mil brinquedos no campo ao sol posto,
15

ao surgir da manhã mil canções:

Eis a vida nas vastas planícies

ou nos montes da terra da Cruz:

sobre o solo só flores e glórias,

sob o céu só magia e só luz.
20

Belos ermos, risonhos desertos,

livres serras, extensos marnéis,

onde muge o novilho anafado,

onde nitrem fogosos corcéis...

Onde a infância passei descuidoso.
25

Onde tantos idílios sonhei,

onde ao som dos pandeiros ruidosos

tantas danças da roça dancei...

Onde a viva e gentil mocidade

num contínuo folgar consumi,
30

como longe avultais no passado!

Como longe vos vejo daqui!

Se eu tivesse por livro as florestas,

se eu tivesse por mestre a amplidão,

por amigos as plantas e as aves,
35

uma flecha e um cocar por brasão;

não manchara minh'alma inspirada,

não gastara meu próprio vigor,

não cobrira de lama e de escárnios

meus lauréis de poeta e cantor!
40

Voto horror às grandezas do mundo,

mar coberto de horríveis parcéis,

vejo as pompas e galas da vida

de um cendal de poeira através.

Ah! nem creio na humana ciência,
45

triste acervo de enganos fatais,

o clarão do saber verdadeiro

não fulgura aos olhares mortais!

Mas um gênio impiedoso me arrasta,

me arremessa do vulgo ao vaivém,
50

e eu soluço nas sombras olhando

minhas serras queridas além!


É menos bela a aurora,

a neve é menos pura

que uma criança loura

no berço adormecida!

Seus lábios inocentes,
5

meu Deus, inda respiram

os lânguidos aromas

das flores de outra vida!

O anjo de asas brancas

que lhe protege o sono
10

nem uma nódoa enxerga

naquela alma divina!

Nunca sacode as plumas

para voltar às nuvens,

nem triste afasta ao vê-la
15

a face peregrina!

No seio da criança

não há serpes ocultas,

nem pérfido veneno,

nem devorantes lumes.
20

Tudo é candura e festas!

Sua sublime essência

parece um vaso de ouro

repleto de perfumes!

E ela cresce, os vícios
25

os passos lhe acompanham,

seu anjo de asas brancas

pranteia ou torna ao céu.

O cálice brilhante

transborda de absinto,
30

e a vida corre envolta

num tenebroso véu!

Depois ela envelhece.

fogem os róseos sonhos,

o astro da esperança
35

do espaço azul se escoa...

Pende-lhe ao seio a fronte

coberta de geadas,

e a mão rugosa e trêmula

levanta-se e abençoa!
40

Homens! O infante e o velho

são dois sagrados seres,

um deixa o céu apenas,

o outro ao céu se volta,

um cerra as asas débeis
45

e adora a divindade...

O outro a Deus adora

e as asas níveas solta!

Do querubim que dorme

na face alva e rosada
50

o traço existe ainda

dos beijos dos anjinhos,

assim como na fronte

do velho brilha e fulge

a luz que do infinito
55

aponta-lhe os caminhos!

Nestas infaustas eras,

quando a família humana

quebra sem dó, sem crenças,

o altar e o ataúde,
60

nos olhos da criança

creiamos na inocência,

e nos cabelos brancos

saudemos a virtude!


Quando cansada da vigília insana

declino a fronte num dormir profundo,

por que teu nome vem ferir-me o ouvido,

lembrar-me o tempo que passei no mundo?

Por que teu vulto se levanta airoso,
5

ébrio de almejos de volúpia infinda?

E as formas nuas, e ofegante o peito,

no meu retiro vens tentar-me ainda?

Por que me falas de venturas longas?

Por que me apontas um porvir de amores?
10

E o lume pedes à fogueira extinta?

Doces perfumes a polutas flores?

Não basta ainda essa ignóbil farsa,

páginas negras que a teus pés compus?

Nem estas fundas, perenais angústias,
15

dias sem crenças e serões sem luz?

Não basta o quadro de meus verdes anos,

manchado, roto, abandonado ao pó?

Nem este exílio, do rumor no centro,

onde pranteio desprezado e só?
20

Ah! Não me lembres do passado as cenas!

Nem essa jura desprendida a esmo!

Guardaste a tua? A quantos outros, dize,

a quantos outros não fizeste o mesmo?

A quantos outros, inda os lábios quentes
25

de ardentes beijos que eu te dera então,

não apertaste no vazio peito

entre promessas de eternal paixão?

Oh! Fui um doido que segui teus passos!

Que dei-te, em versos, da beleza a palma!
30

Mas tudo foi-se! e esse passado negro

por que sem pena me despertas nalma?

Deixa-me agora repousar tranqüilo!

Deixa-me agora descansar em paz!...

Ai! com teus risos de infernal encanto
35

em meu retiro não me tentes mais!


Minh'alma é como um deserto

por onde romeiro incerto

procura uma sombra em vão;

é como a ilha maldita

que sobre as vagas palpita
5

queimada por um vulcão!

Minh'alma é como a serpente

que se torce ébria e demente

de vivas chamas no meio;

é como a doida que dança
10

sem mesmo guardar lembrança

do cancro que rói-lhe o seio!

Minh'alma é como o rochedo

donde o abutre e o corvo tredo

motejam dos vendavais;
15

coberto de atros matizes,

lavrado das cicatrizes

do raio, nos temporais!

Nem uma luz de esperança,

nem um sopro de bonança
20

na fronte sinto passar!

Os invernos me despiram,

e as ilusões que fugiram

nunca mais hão de voltar!

Tombam as selvas frondosas,
25

cantam as aves mimosas

as nênias da viuvez;

Tudo, tudo, vai finando,

mas eu pergunto chorando:

Quando será minha vez?
30

No véu etéreo os planetas,

no casulo as borboletas

gozam da calma final;

porém meus olhos cansados

são, a mirar, condenados
35

dos seres o funeral!

Quero morrer! Este mundo

com seu sarcasmo profundo

manchou-me de lodo e fel!

Minha esperança esvaiu-se,
40

meu talento consumiu-se

dos martírios ao tropel!

Quero morrer! Não é crime

o fardo que me comprime

dos ombros lançá-lo ao chão;
45

do pó desprender-me rindo

e, as asas brancas abrindo,

perder-me pela amplidão!

Vem, oh! morte! A turba imunda

em sua ilusão profunda
50

te odeia, te calunia,

pobre noiva tão formosa

que nos espera amorosa

no termo da romaria!

Virgens, anjos e crianças,
55

coroadas de esperanças,

dobram a fronte a teus pés!

Os vivos vão repousando!

E tu me deixas chorando!

Quando virá minha vez?
60

Minh'alma é como um deserto

por onde o romeiro incerto

procura uma sombra em vão;

é como a ilha maldita

que sobre as vagas palpita
65

queimada por um vulcão!


Gastei meu gênio, desfolhei sem pena

a flor da mocidade entre os enganos,

e, cansado das lidas deste mundo,

procurei o deserto aos vinte anos.

A cavalo, sem rumo, o olhar tristonho,
5

na boca o saibo de fatal veneno,

percorria as campinas e as montanhas

da bela terra de Amador Bueno.

Era no mês de agosto, o mês dos risos,

das doces queixas, das canções sentidas,
10

quando no céu azul, ermo de nuvens,

passam as andorinhas foragidas.

Quando voltam do exílio as garças brancas,

quando as manhãs são ledas e sem brumas,

quando sobre a corrente dos ribeiros
15

pende o canavial as alvas plumas;

Quando palram no mato os periquitos,

quando corre o tatu pelas roçadas,

quando chilra a cigarra nos fraguedos

e geme a juriti nas assomadas;
20

Quando os lagartos dormem no caminho,

quando os macacos pulam nas palmeiras,

quando se casa o grito da araponga

à triste e surda voz das cachoeiras;

Então que de poemas nas florestas!
25

Que de sonhos de amor pelas choupanas!

Que de selvagens, místicos rumores

dos lagos pelas verdes espadanas!

Um brando véu da languidez divina

paira sobre a cabeça dos viventes,
30

vergam-se as maravilhas sobre as hastes,

refrescam-se os cipós sobre as torrentes.

Quedam-se as borboletas nos pomares,

gemem os sabiás pelos outeiros,

chamam-se enamorados os canários,
35

e os fulvos bem-te-vis nos ingazeiros.

O lavrador recolhe-se à palhoça,

reclina-se na esteira e se espreguiça,

e entre os folguedos da bendita prole

se entrega ao doce vício da preguiça.
40

O viandante pára nas estradas,

abre os alforjes, e do mato à sombra,

depois de cheio e farto, fuma e sonha

da mole grama da macia alfombra.

A natureza inteira ama e soluça,
45

ébria de afrodisíacos perfumes,

e a mente solitária do poeta

se abrasa em chamas de insensatos lumes.

Foi quando vi Mimosa a vez primeira,

beija-flor do deserto, agreste rosa,
50

gentil como a Dalila da Escritura,

mais ingênua, porém, mais amorosa...

Punha-se o sol; as sombras sonolentas

mansamente nos vales se alongavam,

bebiam na taberna os arrieiros
55

e as bestas na poeira se espojavam.

O fogo ardia vívido e brilhante

no vasto rancho ao lado do jirau,

onde os tropeiros sobre fulvos couros

entregavam-se ao culto do pacau.
60

A cachaça alegrava os olhos todos,

as cuias de café se repetiam,

e as fátuas baforadas dos cachimbos

nos caibros fumarentos se perdiam.

A viola soava alegremente...
65

que meigas notas! Que tanger dorido!

Vida de sonhos, drama de aventuras,

não, vós não morrereis no mar do olvido!

Mimosa estava em pé sobre a soleira

da exígua entrada da mesquinha venda,
70

saudosa, como à sombra do passado

um tipo de balada ou de legenda.

Saudosa, sim, cercada do prestígio

dessa beleza vaga, indefinível,

cuja expressão completa em vão procura
75

o pobre pensador sobre o visível!

Que faz lembrar o que existiu, é certo,

porém aonde e quando? Que tortura

a memória impotente e em vez de um fato

mostra ao poeta o abismo da loucura!
80

Indeciso clarão de uma outra vida!

fugitivo ondular, dobra ligeira

do manto do ideal estremecendo

entre bulcões de fumo e de poeira!

Raio de Deus na face da matéria!
85

Frouxo luzir do sol da poesia!

Eu vos contemplarei a pura essência?

Eu poderei gozar-vos algum dia?

Nada de digressões. Minha heroína

fumava um cigarrinho branco, leve,
90

delgado como um brinco de criança,

como um torrão de açúcar ou de neve.

E o vapor azulado lhe vendava

de quando em quando as faces peregrinas...

parecia uma fada do Oriente,
95

uma visão do ópio entre neblinas.

A saia de ramagens caprichosas

caía-lhe em prodígios da cintura,

entre os bordados da infiel camisa

tremiam dois delírios de escultura.
100

Sobre a direita a perna esquerda curva,

capaz de enlouquecer Fídias -o mestre,

dava um encanto singular ao vulto

daquela altiva perfeição campestre.

Depois em tamanquinhos amarelos
105

pés de princesa, pés diminutivos,

cútis morena revelando à vista,

do pêssego e do jambo os tons lascivos.

Olhos ébrios de fogo, vida e gozo,

sombrias palpitantes mariposas,
110

cabelos negros, bastos, enastrados

de roxos manacás e rubras rosas.

Eis Mimosa! Seu corpo trescalava

o quente e vivo aroma da alfazema,

perfume de cabocla e de roceira,
115

porém que para mim vale um poema!