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O dia de ano-bom de 1835

Vai-te, vai-te... Sepulta-te, não surjas

   do abismo do passado,

ano, que para mim um século foste

   de contínuos tormentos.

Vai-te, vai-te... Nem mais lembrança tua
5

a mente atribulada me enegreça;

desaparece, passa como a nuvem,

que o fúnebre palor da lua aumenta

   em sossegada noite;

como um sonho, que agita a fantasia
10

   de adormecido enfermo;

ou como um pensamento malformado

   no delírio da febre.

Mas como te olvidar, se a consciência

ao grito da vontade se rebela?
15

E acintosa a memória inda conserva

   tua lembrança triste?

E sem cessar traidora fantasia

malgrado meu me está representando

   mil desgostosas cenas?
20

Eterna ficará tua lembrança

   à minha alma presente,

para d'amarga vida despertar-me

   os passados reveses,

como ao lado do altar pendente voto
25

o naufrágio recorda, e o salvamento.

Como depois de borrascosa noite,

   rutila alva serena,

do seio do futuro inexaurível,

novo ano, sai, assoma mais fagueiro,
30

   e as lágrimas estanca,

que pela dor mil vezes arrancadas,

do coração aos olhos me subiam.

Faze que esta ilusão que a alma consola,

esta esperança, último refúgio
35

que na desgraça o malfadado encontra,

núncio me seja de um melhor futuro.

Sê meu Íris de paz, e o meu santelmo.

Assaz desditas minhas juz me outorgam

de merecer-te ao menos um sorriso;
40

assaz para um favor sofrido tenho.

Esta que ora desfruto paz serena,

este descanso que piedosa destra

concede a meu espírito agitado,

   este celeste sopro
45

de alma ventura que respiro agora,

   esta luz que me aclara,

já deixa-me entrever porvir brilhante,

e o horizonte da Pátria me apresenta,

da longe Pátria, tão por mim chorada.
50

Vem, ano-novo, vem; traze-me alegres

notícias de meus pais, da Pátria minha.

   Traze-me este consolo,

este consolo ao menos, que me afague

   na distância em que vivo.
55

Outra ambição não tenho, outra... E o que pode

minha alma cobiçar de mor valia?

Coração como o meu, ermo de inveja,

exempto de vaidade, a pouco aspira;

só de nobres desejos se alimenta.
60

E tornarei a ver-te, oh Pátria cara?

Teus montes saudarei? tuas florestas?

Teus rios? e o teu céu azul sem nódoa?

Ainda abraçarei os pais anosos?

Mas em que dia? Quando? Como tarda!
65

Vem, ano-novo; vem, minha esperança!

   por ti eu suspirava.

qual um amante pelo bem amado.

Vem, oh núncio de paz; vem consolar-me.

Oxalá que não toques ao teu termo
70

antes qu'eu volte ao paternal albergue.


Roma

As ruínas de Roma

À claridade da Lua

Oh que espetáculo fúnebre e sublime!

Aqui foi Roma! -Aqui ergueu-se altiva

   a Senhora do Mundo!

E de tanta grandeza eis o que resta!

Quantas trombetas no Universo soam,
5

e os fastos marciais da augusta Roma

   sonorosas proclamam!

Quantas vozes de Roma o nome entoam!

Mas uma vista só destas relíquias,

estas colunas, qu'inda se sustentam
10

meias fora das covas, meias dentro,

como espectros alçados dos sepulcros;

este mesmo silêncio, tudo fala,

sem turbar os sentidos assombrados!

Oh grandezas, quão perto estais do nada!
15

Eu saudei-vos, ruínas, quando o dia

sobre vós seus fulgores entornava,

vosso florido manto realçando;

quão longe então estáveis

desta mística, horrível majestade!
20

Oh que não é o sol o astro dos mortos!

nem se cobre de púrpura o cadáver!

Tu és, oh lua, o astro das ruínas!

no páramo celeste solitária

plácida alvejas, de palor tingindo
25

estes negros destroços,

qual a trêmula lâmpada suspensa

no asilo dos finados,

que só das trevas o horror aclara,

para mais realçar o horror da morte.
30

Como uma ave de agouro em clima estranho,

de tão longínquas plagas transportado,

plagas à culta Europa ainda ignotas

quando já isto tudo eram ruínas,

eis-me aqui sobre o monte Palatino!
35

E amanhã? -Onde irei? só Deus o sabe.

Oh pó erguido! Oh pedras! Oh ruínas!

Que sublimes lições estais ditando

nessa muda linguagem dos sepulcros!

Oh desgraçado o povo que as não ouve!
40

Desgraçado quem não as compreende!

   Vós sois mais eloqüentes

Que os vossos oradores, cujas vozes

vezes mil noutros tempos ecoastes:

Vossa voz só nos seios d'alma soa,
45

como a terrível voz da consciência,

ou como o gelo, que entorpece o corpo,

e a vida toda ao coração concentra.

O que há aí mais sublime que esse Mário,

gênio de morte, um homem curvo à morte,
50

sentado nas ruínas de um Império?

Seu rosto baço... seu olhar sombrio...

Que idéia o pensamento lhe revolve?

Quem não dirá que em torno d'ele giram,

   dos destroços erguidos,
55

milhões de espectros, cujas negras sombras

em seu feroz semblante se desenham?

   Quem não dirá que ele ouve

   carpidores gemidos,

   magoados queixumes
60

de angustiadas mães, de tristes órfãos,

que lhe pedem seu pão, e o amaldiçoam?

Da Humanidade inteira és símb'lo, oh Mário!

Do pó tirada pela mão do Eterno,

desde o berço do sol té seu sepulcro,
65

quantas sofrido tem vicissitudes?

Quantas fases tem tido? E marcha ainda!

Quantas vezes na marcha tortuosa,

qual no mar o baixel, que o vento busca,

longas calmas sofreu, longas tormentas?
70

E qual o fim será da Humanidade?

Que porto lhe destina a Providência?

Mas quem pode do seio do futuro

   arrancar este arcano?

Confia, Humanidade, em teu Piloto
75

confia; a Providência é quem te guia.

Oh Deus, Mário também serás um dia!

A vista espraiarás pelo Universo,

   e só verás ruínas!...

E todos esses luminosos Mundos,
80

do santuário teu fanais brilhantes,

   ter-se-ão extinguido!

E a quem dirás então? -Eis-me sozinho

sentado sobre o exício do Universo,

concentrado em mim mesmo, no infinito;
85

dei fim à Humanidade; ei-la em poeira;

um sopro de meus lábios sumiu tudo!

Quem te ouvirá, oh Deus? -A Eternidade!

Oh futuro, oh futuro inacessível

aos mortais olhos, só a Deus presente!
90

Oh pó erguido! oh pedras! oh ruínas!

Ah! quantas gerações aqui passaram,

cujos rastos impressos na poeira

o vento os dissipou, como seus nomes

pela esponja do tempo extintos foram!
95

De quantas cenas testemunhas fostes!

Que infâmias vistes, que cruéis delitos

   inda aos homens ocultos!

   Que batalhas! que horrores!

Que milhões de cadáveres caíram.
100

Entre estes sete montes, como pedras

despegado se têm destes fragmentos!

   Tudo isto era um só monte,

era um vasto redil de armentio gado2.

Que acesa lava em borbotões fervendo
105

   engoliu estes Templos?

Que estragador, ardente meteoro,

despejado do Inferno, talou tudo?

Oh Guiscard! oh Guiscard! estas muralhas

escapadas do incêndio, e enfumaçadas,
110

inda te chamam fero, inda te acusam!3

   Lá stá o Capitólio!

Quantos cativos Reis, ao carro atados

do seu triunfador, ali subiram!

Ali Mânlio morou; dali a um passo
115

foi as águas mortais beber do Tibre4.

Aqueles muros Catilina viram,

e aos acentos de Cícero tremeram.

Ali se decretava a liberdade,

a escravidão dos Reis, e dos Impérios.
120

Ali entre punhais expirou César,

só por querer cingir a calva fronte

co'o diadema real, depondo os louros;

mas o que ao grande César foi negado,

Tibérios, e Calígulas tiveram!
125

Tanto dos homens a injustiça pode,

ou tanto a corrupção que o brio extingue.

Ah! saiamos daqui, que profanado

foi este monte, habitação dos Grachos,

e do imortal filósofo de Túsculo,
130

   pelo mais ruim tirano.

   Eis seu palácio de ouro;

nero aqui se entregava aos seus delírios.

Lá palideja ao longe aquela torre5

Como um fantasma ao clarear da lua!
135

   Ali ria-se Nero

com satânicos olhos cintilantes,

nos quais de Roma a imagem se pintava

envolta em crepitantes labaredas,

e o povo que expirava emaranhado
140

entre as ondas de fogo, e de fumaça.

Cantor do inferno, o monstro, o parricida

tanto horror celebrava ao som da Lira!

   O que não mancha um monstro?

Oh! que o seu coração era de ferro!
145

   Os hórridos gemidos,

   os gritos d'agonia

das moribundas vítimas das chamas,

aos ouvidos de Nero acordos eram!

Triste Jerusalém, co'os teus despojos
150

ergueu-se este arco a Tito triunfante.

   Este outro a Constantino,

vencedor de Maxêncio e de Licínio,

herói, que a Cruz alçou no Capitólio,

aras pagãs a Cristo consagrando.
155

Mas silêncio... Silêncio... Ouço gemidos,

que se escapam dali, entre as arcadas

   do Flávio anfiteatro!

   quem a esta hora geme?

Estas pedras serão? espectadoras
160

outrora de cruéis, sangrentas cenas,

que doídas talvez inda hoje chorem,

quando homens, que as pisavam, aplaudiam

   o espetáculo infame?

Não, não; são os cristãos, são penitentes,
165

que abraçados co'a Cruz prostrados jazem,

e choram sobre o chão de pó, e sangue,

as palavras ouvindo do Eremita6,

que n'alma lhes embebe a Eternidade.

Orai, cristãos, orai; pedi ao Eterno,
170

por vós, por vossos pais, por vossos filhos.

Que sons funéreos de sagrados bronzes

   longos vão reboando

nestas imensas, lúgubres arcadas?

Oh meu Deus, que terrível pensamento
175

estes sons repetidos me despertam!

Aquela vasta cúpula, que o gênio

nos ares colocou em glória tua,

e às egípcias pirâmides supera;

aquela torre, donde agora partem
180

os sons, que estas abóbadas retumbam;

todo aquele soberbo monumento,

rico de mil prodígios espantosos,

tudo isso cairá!... serão ruínas!

Futuras gerações sobre seus combros
185

de mausoléus, de estátuas, de colunas,

subirão, oh meu Deus; e a essas pedras

perguntarão:Que mãos vos elevaram?

   Que mãos vos destruíram?

Ind'hoje eu vi o sol, num lago de ouro,
190

entre montanhas de rubins acesos,

atrás daquela cúpula ocultar-se.

Pois bem, oh sol, tu passarás um dia

nesse mesmo lugar onde declinas;

não ouvirás os sons religiosos
195

   dos órgãos, que hoje escutas;

descoberto verás o santuário,

prostradas as colunas em pedaços,

   quebrados os altares,

aberto, e destruído o Vaticano;
200

aí se aninharão noturnas aves,

reptis passearão na relva e musgo;

e apenas ouvirás seus tristes guinchos!

E o que dirás, oh sol, de tanto estrago?

Dirás, sem suspender a marcha tua:
205

   «Mais que as obras dos homens,

   de Deus duram as obras.

Tudo o que é dos mortais a morte sela.

Jamais minguei de luz, tanta luz dando

desde que Jeová do caos tirou-me.
210

   Por que caíste, oh Templo?

Tu, que espanto do mundo outrora foste?

   Tu, que outrora soberbo

meu luminoso oceano dividias,

erguendo tua sombra até meu rosto?»
215

Quantas vezes o filho pisa a terra

que o cadáver do pai, ou mãe encobre,

inda enfeitado co'as herdadas jóias?

Assim da. prisca Roma a filha herdeira

da pompa sua, majestosa se ergue
220

sobre o imenso esqueleto mutilado,

   da augusta soberana.

Filha de Roma, cairás como ela!

Estes desenterrados obeliscos,

que agora entre teus muros se levantam,
225

arrancados do Egito, quantas quedas

de cidades têm visto, e terão inda

novos leitos no pó de Impérios novos!

Filha de Roma, cairás como ela!

As obras dos mortais como eles morrem;
230

nem duram as cidades mais que os cedros,

que espontânea produz a Natureza;

nova planta da extinta se alimenta;

   Fênix é o Universo,

que, morrendo, renasce a cada instante.
235

Tudo o que o homem vê morte respira;

e se tu, oh meu Deus, não és eterno,

o que é eterno então? o que? o Nada?

Transitório será tudo no Mundo?

E o dever, e a justiça em que se firmam?
240

Oh Razão, o que és tu? -Ímpios, calai-vos,

   loucos sois delirantes.

   Não, oh sábio Spinosa,

tu não eras ateu, não te entenderam7;

um Deus há sempiterno, o Ser dos seres.
245

Filha de Roma, cairás como ela.

Outra herdará teu nome, e teus tesouros,

e com tuas riquezas adornada,

seu estrado fará do teu sepulcro.

Mas quando este Universo se aniquile,
250

na memória de Deus serás eterna.


Roma, 25 de janeiro de 1835

Oriso da fortuna

Não te rias, oh fortuna!

Teu riso me é suspeitoso;

contra a desgraça não clamo,

não quero ser venturoso.

Vai-te, oh fortuna,
5

não me atormentes;

já não te creio,

em tudo mentes.

Enquanto te procurava

andei errados caminhos;
10

e das rosas que murcharam

só me restam os espinhos.

Vai-te, oh fortuna,

não me atormentes;

já não te creio,
15

em tudo mentes.

Por cousa tão transitória

é loucura amofinar-nos;

os bens que hoje nos outorgas,

amanhã podes tirar-nos.
20

Vai-te, a fortuna,

não me atormentes;

já não te creio,

em tudo mentes.

Com bem pouco me contento,
25

conformei-me co'a desgraça;

já me tenho por ditoso,

já rejeito a tua graça.

Vai-te, oh fortuna,

não me atormentes;
30

já não te creio,

em tudo mentes.

Não sei o que é a ventura,

nem sei se sou desgraçado.

Por bens que podem ser males,
35

eu não troco o meu estado.

Vai-te, oh fortuna,

não me atormentes;

já não te creio,

em tudo mentes.
40

Rápidos passam os dias,

e a cada passo que damos,

à morte, que é sempre certa,

ligeiramente marchamos.

Vai-te, oh fortuna,
45

não me atormentes;

já não te creio,

em tudo mentes.

É só ditoso na terra

quem vive em paz com sua alma;
50

quem das penas que aqui sofre,

só do céu espera a palma.

Vai-te, oh fortuna,

não me atormentes;

já não te creio,
55

em tudo mentes.


Albano, março de 1835.

O suspiro à pátria

Roma, no Coliseu

Já que do coração rompeste os seios,

onde terna saudade te gerara,

e quando mais minha alma nas da Pátria

   idéias se engolfava,

da clausura do peito te escapaste,
5

   onde mais não cabias,

fugitivo roçando inertes lábios,

triste suspiro meu!... Já que teu eco

o silêncio quebrou misterioso

do sepulcral horror deste recinto;
10

sai, oh suspiro! sai... Não mais ressoes,

   inútil não te percas,

nestas longas abóbadas quebradas,

murmurando tu só de estância em estância,

como um lúgubre som de ave noturna,
15

a quem prazem as trevas, e os destroços.

Teu doloroso som repercutido

na oposta parte, tal pavor inspira,

que um gemido parece das entranhas

   desta imensa ruína;
20

eu mesmo que exalei-te, eu mesmo tremo,

e mortos tremeriam se te ouvissem;

   que farão os viventes!

Hirtos na fronte tenho inda os cabelos,

   frio, trêmulo o corpo,
25

como um tronco de gelo ao vento exposto;

e o triste coração onde habitaste,

recobrando de novo o movimento,

com desusada força ora palpita,

   e monótono soa,
30

como soa o martelo sobre a incude.

Temem os olhos de se abrir às trevas,

e de ver coroado o anfiteatro

de alvas sombras de mortos, e de espectros,

que para mais terror me pinta a mente.
35

Voa, suspiro meu, voa, não tardes;

núncio vai ser do estado em que me deixas.

O caminho te indico; aos ares sobe;

deixa de Roma os solitários campos,

esta terra de sangue, e de cadáveres,
40

e às praias chega da querida Pátria,

tão longes praias! -Quem me dera eu vê-las!

   Mas no longo trajeto

vai por mim os lugares visitando,

por onde eu já passei triste e saudoso.
45

Oh! quão gratas me são reminiscências!

   Delas compõe-se a vida,

os prazeres são elas da velhice.

Do afadigado albor de um curto dia

   eis tudo o que nos fica!
50

   Toma a Flamínia estrada;

passa o lúrido Tibre, outrora rubro,

quando o campo cedeu a Constantino

o bárbaro Maxêncio;

verás Assis no cimo da colina
55

as cinzas adorar do santo filho.

   Do Trasimeno às margens

a poeira verás de ossos romanos,

e um sussurro ouvirás, que diz: Aníbal!

Chega aos campos que o Arno fertiliza;
60

entra em Florença, e em Santa Cruz visita

   de Dante a sepultura.

Sentado está com merencório gesto;

dir-se-á qu'inda do Inferno hórridas cenas

se lhe antolham; e o mísero Ugolino
65

mirrado entre cadáveres corruptos

dos inocentes filhos, miserandos,

como esfaimado tigre ossos roendo.

Pousa na destra o rosto, e co'a sinistra

   sustenta o imortal livro;
70

chora de um lado a Poesia, e do outro

Itália veneranda está dizendo:

-ONORATE L'ALTISSIMO POETA.

Buonarotti, Alfieri, Machiavelli,

verás aí também; tudo saúda.
75

Nem a Toscana deixes sem que vejas

essa Pisa, onde as Artes renasceram.

Contempla de Bosqueto a maravilha,

o campo santo, a torre que pendente

ameaça cair como um gigante.
80

Vai ouvir o sussurro do teu vôo

nesse museu de mortos de Bolonha.

Ligeiro passa por Modena, e Parma;

passa de Lódi a celebrada ponte,

essa que o peso suportou ingente
85

   do Gênio das vitórias.

Passa o Apenino, e o Pó, e a Milão chega;

e em sua Catedral misteriosa,

que prostrado me viu venerabundo,

ao som do órgão sagrado, que reboa
90

nas góticas abóbadas, respira

   religioso acento.

Mensageiro de dor, ah! não visites

outros lugares, que o prazer inspirem.

cansa o prazer ao homem quando é longo,
95

mas tu, melancolia, jamais cansas

aquém d'alma os arroubos saboreia.

Pela margem do lago, que tranqüilo,

   azul-celeste e puro,

a vida da inocência simboliza,
100

os Alpes busca, por heróis trilhado;

os Alpes, como braços da Natura,

que erguidos para o céu a Deus adoram.

Sobe o Simplão; penetra as galerias;

se o nome do Brasil na pedra achares,
105

minha mão o gravou, beija esse nome.

Noutra pedra verás meu nome escrito,

   se os gelos o não cobrem;

sentado aí subi meu pensamento

té ao trono de Deus, e pela Pátria
110

   dirigi-lhe meus votos.

Desce, verás de Brigg argênteos cumes,

que ígneos raios refletem, simulando

claros elmos de exército em parada.

Continua teu vôo; Sion passa,
115

chega à bela Genebra, que se espelha

no lago cor do céu, e no seu Ródano,

que o remanso do lago veloz deixa,

para ir levar fertilidade aos campos,

como, mal que desperta, ao leito foge,
120

e asinha o lavrador busca o trabalho.

Da infância de Rousseau deixando o berço,

pobres vilas da França irás passando,

   ricas cidades vendo.

A Poligny chegando, a rocha vinga,
125

e na gótica estância, que talhada

foi aí pela mão da Natureza,

Brasil, lerás nas rústicas pilastras.

Numa aba da montanha, junto à estrada,

onde oculto desliza manso arroio,
130

acharás uma imagem veneranda

da Rainha dos céus, três vezes pura,

dos cristãos caminhantes protetora.

Inda a seus pés verás murchas saudades,

por minhas mãos colhidas na montanha.
135

De cidade em cidade irás vagando;

entra em Paris, Rainha das cidades.

   Mas ah! triste suspiro,

se esses ares alegres te abrandarem,

se o seu bulício perturbar teu vôo,
140

dos mortos no jardim vai açoutar-te,

e entre jazigos tua dor recobra.

Como me apraz dos mortos o remanso!

Como dos mirtos sepulcrais o aroma

faz o prazer libar da Eternidade!
145

Oh grata habitação! Oh paz suave!

Quando às minhas fadigas porei termo?

Oh meu suspiro, se acabar pudesses

entre outros mil suspiros confundido

nessa triste mansão! -Mas não, tens inda
150

   de dar tua mensagem.

Passa a sombria pátria de Corneille

onde se ergue o honroso monumento

da magnânima Virgem

pelo céu inspirada,
155

que a fereza dos homens queimou viva.

Pelas margens do Sena aos mares voa;

atravessa o Oceano, tão profundo

   como a dor de minha alma.

Passa o Oceano, imagem do infinito.
160

Entrarás num imenso ancoradouro,

de altíssimas montanhas torneado,

onde repousa perenal verdura,

que as espáduas dos montes engrinalda.

   Oh sem-par maravilha!
165

resupino, grandíssimo gigante

ao longe assoma, e do Janeiro a barra

ao viajor cansado patenteia?

Igual outro não há; errar não podes.

   Aí é que te eu mando;
170

essa é a Pátria minha, a Pátria amada,

que a vida deu a quem me deu a vida!

Aí respira ainda a mãe anosa,

o encanecido pai, e irmãos queridos!

Verás se para amá-la razão tenho!
175

Mas não me capta amor grandeza sua.

Pobre fosse ela, pequenina aldeia,

por ela meu amor igual seria;

que este nome de Pátria é tão suave

como o nome de mãe, de pai, de amigo;
180

e a mãe, e o pai, e o amigo inda que pobres

a um nobre coração gratos são sempre.

   Venturoso suspiro,

antes que em doce riso te convertas,

nesse mágico céu da Pátria minha,
185

à paternal mansão ligeiro adeja

   como o meu pensamento;

beija dos caros pais as mãos rugosas,

   e soluçando diz-lhes,

que o filho humilde a Deus rogando fica
190

   por eles, pela Pátria;

sobre os restos de Roma, pensativo,

um suspiro exalou, que à Pátria envia.


Roma, 20 de fevereiro de 1835

Ao meu ilustre mestre e amigo o Reverendíssimo Senhor Fr. Francisco de Monte-Alverne

Eis-me em Roma! Da Pátria tão distante!

Inda de vós conservo tal lembrança,

que às vezes se me antolha a imagem vossa;

a ela me dirijo, falo, escuto,

e cuido que ela me ouve, e me responde.

Como de um tão bom mestre, tão amigo

poderá o discípulo esquecer-se?

Quantas vezes aqui, nos sacros templos,

ouço santas palavras destes padres;

cuido ver-vos no púlpito elevado;

mas desconheço as vozes, e nem sinto

bater-me o coração dilacerado

da grave dor cristã; nem em transportes

subir minha alma ao céu como um eflúvio

da flor erguido; então saudoso exclamo:

Quem me dera inda ouvir o grande Alverne!

Roma é bela, é sublime, é um tesouro

de milhões de riquezas; toda a Itália

é um vasto museu de maravilhas.

Eis o qu'eu dizer posso; esta é a Pátria

do pintor, do filósofo, e do vate.

Embalde Roma invoco, e a musa empenho,

para um quadro traçar destes prodígios;

sem cessar uma voz me fala n'alma:

da louca pretensão que te alucina,

desiste, oh fantasia! não te é dado

achar uma linguagem tão facunda,

tão sublimes imagens com que pintes

dignamente esta imensa maravilha.

Como é possível descrever ao vivo

todo o horror da montanha que vomita

fogo, lavas, e fumo do ancho seio?

Quem pode retratar a majestade

do vasto Coliseu, quando o argenteia

do noctículo globo o incerto lume,

seus raios pelas fendas enfiando?

As projetadas sombras como espectros;

rotos muros, longuíssimas abóbadas;

um gemido escapado de repente

do pobre, que ante a Cruz seus males chora;

um fúnebre arquejar de ave sinistra;

uma voz, que além soa murmurando?

Quem narrar pode os pensamentos todos,

que d'alma em torno em turbilhões volteiam,

inda mais pavorosos que as ruínas?

Quem, penetrando as negras catacumbas,

escondidas da terra nas entranhas,

dos mártires cristãos leitos de morte,

onde não entra o sol, nem entra a lua,

e só pequena luz, na mão do guia,

trêmula, moribunda bruxuleia,

como pálida estrela, ou como um olho

do gênio habitador daquelas trevas;

quem não se enche de horror? Quem falar pode?

Só ver, e emudecer; a língua é fraca;

as grandes comoções não se descrevem.

Como é tão eloqüente a lisa pedra

que só diz: -Aqui jaz Torquato Tasso!

Quando todos os mármores ligados,

inda assim receber não poderiam

seus versos imortais por epitáfio!

Assim eu, receando dizer pouco,

não podendo pintar tanta grandeza,

eloqüente serei nada dizendo.


Roma, abril de 1835

Ao Ilmo e Exmo Sr. José Joaquim da Rocha

Dignatário da Imperial Ordem do Cruzeiro, deputado da ex-Assembléia Constituinte do Brasil, ex-ministro Plenipotenciário nas cortes de Paris e de Roma etc.

Os serviços que prestastes à Pátria; o amor, e o

respeito que vos consagram os brasileiros residentes

em Paris; o título de Pai com que eles vos honram;

o seu legítimo pesar, e as lágrimas que vistes

correr de seus olhos, no momento em que deles
5

vos separastes, que bem previam eles que um

vácuo tinha de ficar em seus corações; são os justos

motivos que me inspiraram estes mesquinhos

versos, que hoje vos ofereço. Possam eles ser tão

gratos à vossa alma, como a todos nos será grata
10

a vossa lembrança.


Roma, abril de 1835

Folga minha alma, quando se me antolha

a cândida virtude,

e Varões dignos de louvor me indica.

Eu prostro-me a seus pés venerabundo;

que a mente minha, de louvar ansiosa,
5

encômios jamais nega à heroicidade.

Apareça quem já colheu aromas,

   que impura a minha destra

nas aras da lisonja profanara.

Descerra os lábios, rígida virtude,
10

diz se ouvidos teus já se irritaram,

se coraste de pejo ao ouvir meus cantos?

Não, não, tu me respondes; fiel sempre

   aos sacros meus ditames,

hinos teceste à Pátria, à Liberdade,
15

e a Varões beneméritos, que eu prezo.

Canta, canta; que é esse o único prêmio

de quem sem egoísmo à Pátria serve.

Orgão é da verdade a consciência;

e da virtude é órgão
20

o coração que fala, e nunca mente.

Firme Varão, imóvel nas tormentas

que vezes o Brasil amedrontaram,

Rocha, quem no Brasil teu nome ignora?

Tu foste um dos primeiros que firmaram
25

   a Independência nossa.

De tua alma o vigor, e o entusiasmo,

os povos animavam, que te ouviam;

e unindo-se em prol da augusta causa,

para ser seu apoio te escolheram.
30

Quando a injustiça e a ingratidão armadas

   os raios da vingança

contra os Varões da Pátria fulminaram,

salvo não foste, não; a Pátria viu-te,

inda no seu desmaio, com teus filhos
35

inocentes, marchar ao injusto exílio.

Quem não sabe que a morte te aguardava,

   dura, afrontosa morte,

nessa terra, onde algemas se forjavam

para o Brasil escravizar de novo?
40

Quem perfídia tão negra não conhece,

e os intentos da cega tirania?

Da sorte das Nações só Deus decide.

quando elas o invocam,

e credoras se fazem do que aspiram,
45

Deus um Anjo velar sobre elas manda;

esse Anjo tutelar não mais as deixa,

esse Anjo é quem contrários planos burla.

Por milagre desse Anjo salvo foste;

por milagre desse Anjo
50

cem, e cem vezes o Brasil foi salvo

das cruas garras de cruéis abutres;

só por milagre dele em breve espero

ver o Brasil subir à mor altura.

Oh! que doce é no meio dos perigos
55

   de horrenda tempestade,

já lânguido de fome, e de fadiga,

ver aberta numa onda a sepultura,

e armada contra si dura companha

exclamar: -Tudo sofro pela Pátria!
60

Outro tanto dizer muitos não podem.

   digno tu és de inveja!

Ah! se invejosos tens, eu os desculpo.

Sempre a inveja assim foi; sempre ela investe

a quem mais por virtudes se distingue;
65

sempre vilões Aristides tiveram.

Mas quando a imparcial posteridade,

   que só a láurea outorga

a quem por ações nobres merecera,

teus títulos julgar, ela gostosa
70

tecerá teus encômios; e o meu hino

á memória dos homens será grato.

Quemdeu fulgor ao sol, deu alma ao homem,

   também cobriu os campos

co'o brilhante matiz de lindas flores;
75

nem porque de mil sóis mantém a ordem,

desleixa as pequeninas criaturas

ao acaso, sem lei, sem um instinto.

Assim o homem digno de tal nome,

   que memorandos feitos
80

em prol da Humanidade praticara,

não despreza as domésticas virtudes;

aquelas de imortal glória o revestem,

estas o resplendor da glória esmaltam.

Quantos o Mundo viu Coriolanos,
85

   que o esclarecido nome

infamaram depois com ações negras?

Tu porém sempre firme, sempre o mesmo,

és à Pátria fiel, e a vida tua

sempre tem sido de virtude exemplo.
90


Uma noite no Coliseu

Ameu amigo Francisco de Sales Torres Homem.


É sublime o espetáculo, que ofrecem

da prisca Roma os pálidos destroços,

quando da noite a plácida lanterna

branquejando na abóbada cinzenta,

seu fúnebre clarão, como alvas flores,
5

entre eles vagamente enfia, estende.

Tudo é confuso então, tudo é mistério,

tudo infunde pavor, melancolia!

Dos sonhos na mansão julga-se a mente,

de escarpados rochedos rodeado,
10

de sombras, de fantasmas, que vagueiam,

que num arco se escondem, noutro surgem.

Os fanais que no campo amarelejam,

circulados de auréolas moribundas,

a lembrança despertam desses fogos,
15

que às vezes os cadáveres exalam

de noite, das recém-abertas campas.

Que profundos, terríveis pensamentos

a uma alma pensativa não inspiram

estas relíquias da grandeza antiga
20

da augusta mãe de heróis, que agora vemos

como num cemitério esparsos ossos

ao tempo branqueando. Aqui o homem

estrangeiro não é; ele conhece

estas ruínas, e com elas fala
25

uma mística língua, que alma entende.

Mas ah! inda esta terra hoje é manchada

com sangue humano! Ind'hoje estas colunas

dos derrocados templos de ímpios deuses,

de ímpios Romanos os punhais ocultam.
30

Nem no reino da morte há segurança!

Por toda parte o crime o homem segue!

Não passeiam aqui brancos fantasmas

entre os sombrios arcos nem as grutas

do palácio dos Césares somente
35

ao mocho gemedor asilo prestam.

Não, não; são assassinos que profanam

deste precinto o lúgubre silêncio,

tão propício aos filósofos, e aos vates.

À sombra das ruínas solitárias
40

Oh! que nefandos crimes vis sicários,

da Humanidade opróbrio, não perpetram,

sem temor do seu Deus, e da justiça!

Como que calejada a consciência,

cansada de gritar, os abandona.
45

Como de nós tão perto a morte vimos,

neste mesmo lugar, onde sentados

ouvimos soluçar ave agoureira,

que no templo de Vênus acoutada,

sufocados gemidos arrancava
50

do íntimo do peito; como um homem,

que nas vascas da morte, em vão lutando,

sem esperança já, socorro implora.

Oh severa ciência, tu condenas

estes, da nossa infância, preconceitos.
55

Mas quem pode negar que ruins desditas

pressagiadas são milhões de vezes?

Se a negra borboleta que esvoaça

em torno do casal, e nele pousa;

se o tétrico carpir de ave noturna;
60

se d'alma o repentino abatimento

certas palpitações inopinadas;

os sonhos, as visões, nada anunciam;

se é falsa crença de alma alucinada,

que à infância, e à velhice o medo incute,
65

ao menos na do homem própria essência,

misteriosa essência, apoio encontra;

que a Razão, do céu filha, não tão fácil

se eclipsa pela opaca sombra do erro.

Não se opõe à Razão a crença nossa,
70

que nem sempre à Razão o céu concede

a mina profundar inescrutável,

onde de efeitos mil se oculta a causa.

Que mistério é maior que o gérmen do homem?

Que mistério é maior que a vida sua?
75

Que mistério é maior que a sua morte?

Oh mistérios sublimes! -Donde, oh homem,

a evidência te veio, que este mundo,

que fora de ti vês, real exista?

Na terra para mim tudo é mistério,
80

eu, o que sei, e tudo quanto ignoro.

Dia aziago foi todo este dia,

desde o surgir do sol, té seu ocaso

o coração pejado de tristeza

procura a solidão, ama o mistério.
85

Bela era a noite, mais que o dia bela!

alvinitente a lua rutilava,

como um rosto de virgem pudibunda,

que em seu jardim passeia solitária.

Ao Capitólio fui, e foi comigo
90

o Amigo fiel; juntos passamos

de Tito o arco, e ao pé do Palatino

de um mocho ouvimos hórridos gemidos,

que os ares magoavam, ressoando

do Coliseu nos longos corredores.
95

Um pouco repousamos sobre o muro

do cesáreo palácio esboroado.

O mocho carpidor gemeu três vezes;

os nossos corações se apavoraram,

e ambos involuntários suspiramos.
100

Tristes versos, que a mente ali ditou-nos,

com lutuosas vozes repetimos.

Depois de meditar sobre os presságios,

marchamos para o Flávio anfiteatro.

Co'um archote na mão, de estância em estância,
105

cobertos de compridas, brancas vestes,

como fantasmas gravemente andando,

mais e mais o horror destes recessos

destarte nossos vultos aumentavam.

Oh! quem pode narrar cenas tão fúnebres?
110

Do archote a luz o teto avermelhava,

co'a fria luz da lua contrastando;

cinéreo fumo, deslizando em ondas,

fugitivos duendes simulando;

e para mais pavor, do fundo peito,
115

deixávamos sair longos suspiros,

que em toda a galeria reboavam.

Cansados de gozar de mil maneiras

essas cenas sublimes, regressamos

para o nosso aposento, atrás deixando
120

o arco triunfal de Constantino.

Tudo estava em silêncio, imóvel tudo;

só ressoava o som dos nossos passos,

e ante nós nossa sombra caminhava.

Eis que chegando ao sítio onde sentados
125

ave sinistra soluçar ouvimos,

três, de punhais armados, negros vultos,

como da terra erguidos, nos investem

qual nosso susto foi! Nos feros rostos,

nos cintilantes olhos desses monstros
130

de suas almas vis o intento lemos.

Nas lâminas luzentes co'os reflexos

do claro astro da noite, e que apontadas

sobre os peitos estavam, nossa morte

com cor sanguínea víamos pintada.
135

Só pelo Amigo cada qual temia.

e qual foi, oh minha alma, nesse ensejo

o pensamento teu?... A Pátria! A Pátria!

não mais vê-la: -Morrer tão longe dela;

sem por ela ter feito um sacrifício!
140

Distante de meus pais... Oh Providência!

Ouviste o coração que te invoca,

e tu salvaste o Amigo, e me salvaste

das cruas garras dos sedentos tigres.

Mais que o áureo metal é cara a vida;
145

para louvar a Deus vivos estamos.


Roma, 11 de abril de 1835

Para que vim eu ao mundo

Do céu as estrelas

acaso no brilho

são todas iguais?

são umas mais belas,

e outras parecem
5

funéreos fanais.

Assim são os fados

dos tristes mortais.

Cada qual tem sua sorte;

um foi para a dor gerado,
10

e outro pela ventura

ao nascer foi embalado.

Quanto mais penso, mais creio

neste mistério profundo;

e a mim mesmo então pergunto:
15

Para que vim eu ao mundo?

Como resposta esperando,

escuto silencioso;

no coração, que palpita,

murmura um som lutuoso.
20

Soa essa voz em meu peito

como em caverna profunda,

como um suspiro exalado

pela vaga gemebunda.

Para a dor, me diz, nasceste;
25

para a dor, para o tormento;

teus males só terão termo

co'o teu último momento.

Sofrer, tal é meu fado! -Eu me resigno.

E que hei de fazer? Curta é a vida...
30

E quem me tolhe qu'eu de todo a encurte?

Não serei livre de lançar por terra

um fardo que me acurva, um fardo inútil?

É a vida para uns néctar suave,

tóxico é para mim;... devo tragá-lo?
35

   Acaso Deus me disse

a ti toca sofrer por mil que gozam.

Mas eu blasfemo, oh céus! Que voz me grita:

«Mortal, olha o que fazes! Contra a vida

não ouses atentar. Quem vida deu-te
40

só quando lhe aprouver tirar-ta pode.»

Oh meu Deus! compaixão; minha alma humilde

graça implora da sua insana idéia.

Rir, ou chorar, eis só o que o homem sabe;

se não canta, blasfema!
45

A sorte choremos,

que avessa nos é;

mas não blasfememos,

vivamos co'a Fé.

Qual a esponja de líquido embebida,
50

de perpétua, letal melancolia

   pejado tenho o peito;

   minha alma amortecida,

e como que em seu túmulo encerrada,

só pela dor à vida é revocada.
55

Oh minha alma, tu és como a lanterna

do cemitério,

que ante o altar, sobre um esquife solta

palor funéreo.

A sorte choremos,
60

que avessa nos é;

mas não blasfememos,

vivamos co'a Fé.

Oh prazer! Oh doçura da existência!

   meta tão desejada
65

de todos os mortais, para quem inda

brilha no céu a estrela da esperança.

Oh benigno sol, que a vida aqueces,

para mim te eclipsaste!

E se às vezes fosfórico lampejas,
70

quando eu, afeito à dor, não te desejo,

é para exacerbar meu sofrimento.

Ah! nem me afaga da esperança o riso,

nem me consola amor; tudo me foge.

A sorte choremos,
75

que avessa nos é;

mas não blasfememos,

vivamos co'a Fé.


Bolonha, maio de 1835

O cárcere de Tasso

Em Ferrara

Que vim eu aqui ver? -Uma masmorra

   úmida, estreita, onde respiro apenas!

Se a fronte elevo, o negro teto roço;

se estendo os braços, a largura abranjo;

dous passos bastam a medir seu fundo.
5

Que vim eu aqui ver? -Nomes escritos

de um lado e de outro de centenas de homens,

que como eu curiosos peregrinos

vieram visitar este recinto.

Vós, meus olhos, nada vedes;
10

mas minha alma no passado

um vate vê encerrado

nesta lúgubre prisão.

Aqui chorou longos dias,

longas noites, longos anos,
15

quem por olhos soberanos

enlouqueceu de paixão.

Tasso aqui como um escravo

amargurou a existência;

de um senhor a inclemência
20

a morte aqui lhe quis dar.

Triste ele a ausência carpia

de sua cara princesa.

Seu amor, sua beleza

causaram só seu penar.
25

Livre, qual Deus o criara,

entre ramos adejando,

melodias exalando,

passa a vida o rouxinol.

Saúda o sol quando nasce,
30

redobra o canto co'o dia,

enche os ares de harmonia,

geme ao deitar-se do sol.

Mas se preso na gaiola

mão tirana o encadeia,
35

inda assim ele gorjeia,

para dar alívio à dor.

Assim, oh grande Torquato,

neste cárcere horroroso

gemer te viram saudoso
40

a Liberdade, e o Amor.

Fado! Fado do vate!... A Itália toda

as doçuras gostava de teus versos;

gofredo ao céu da glória remontava

sobre as sonoras asas de teu gênio;
45

e tu, oh Tasso, aqui nesta masmorra

como um vil criminoso definhavas!

Fado do vate! rigoroso fado!

Mas Tasso ousou amar de um duque a filha!

Oh Ferrara! cem duques teus cingidos
50

de áureas c'roas, de púrpura cobertos,

   um só Tasso não valem.

Um vate é mais que um rei. Reis faz o povo,

e a seu grado os desfaz, como do mármore

tira o escultor um Nume, e quando apraz-lhe
55

em simples animal converte-o, ou quebra-o.

Mas tu, sagrado fogo d'harmonia,

quem te acende nas almas dos poetas?

O mágico poder com que convertes

Aquiles num herói, Páris num fraco,
60

acaso dos mortais herdaste, oh vate?

Ou foi prenda do céu a lira tua,

a lira, que imortais sons desferindo,

vive no tempo, e impõe silêncio à inveja?

Muros desta prisão! muros, que outrora
65

   um tesouro encerrastes,

vós, que insensíveis testemunhas fostes

   dos suspiros de Tasso,

dizei, muros, se acaso vós pudestes

   tolher do engenho as asas?
70

Ou se o tirano a glória nodoou-lhe?

Vingou a Humanidade a afronta sua,

como um astro no céu Tasso rutila,

e o nome do tirano negrejando,

aumenta-lhe o fulgor, que o ilumina.
75

Mas oh da Providência altos arcanos!

Que mais sofra na vida, quem co'a morte

nova vida imortal viver começa!

   Assim homens ingratos,

enquanto vivo o mérito premiam!
80

   Ah! consola-te, oh Tasso,

que o único não foste, que da sorte

   sorveu tragos amargos.

Quase é do vate estrela o infortúnio!

Como os mártires são, que só morrendo
85

   a apoteose recebem.

Aquele a quem a Grécia ergueu altares,

Homero, mendigou de porta em porta!

Tu, oh Ravena, o fugitivo Dante

viste iracundo praguejar seu fado.
90

Camões, rival de Tasso, o pão esmola

ante os olhos de Lísia. E tu, oh Silva8,

   da minha Pátria filho,

a fogueira subiste com pé firme,

que a inocência teus passos vigorava;
95

e entre as chamas, por mãos ímpias acesas,

teu último suspiro ao céu subiste.

   Ante esse bruto povo,

   que outrora te aplaudira.

Tu Cláudio octogenário9, na masmorra
100

para a afronta evitar te deste a morte.

Lá de horrenda prisão correm ferrolhos,

   a dura porta se abre,

lá sai Dirceu10 saudoso, suspirando

   pela cara Marília,
105

   lá vai morrer proscrito

nas inóspitas plagas Africanas.

Fado do vate! rigoroso fado!

Porém dos vates

por que lamento
110

A triste sorte?

Pode o tormento,

ou pode a morte,

inda que seja

Dura, afrontosa,
115

fazer que a história

não perpetue

sua memória?

Raivosa a inveja

arme- se embora,
120

e os acometa.

Do vate a glória,

é qual planeta,

que no céu mora,

no céu lampeja,
125

para honra dos humanos,

e opróbrio dos tiranos.


Ferrara, 3 de maio de 1835