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O leitor, de Machado de Assis a Jorge Luís Borges

Regina Zilberman



«Estudo ou romance, isto é simplesmente um livro de verdades, um espisódio singelamente contado, na confabulação íntima dos espíritos, na plena confiança de dois corações que se estimam e se merecem»1.


Machado de Assis                


«Que otros se jacten de las páginas que han escrito; a mí me enorgullecen las que he leído»2.


Jorge Luis Borges                






A ascensão da Estética da Recepção, ao final dos anos 60 e durante os anos 70, do século XX, conferiu maior transparência teórica ao exame dos processos de leitura pressupostos pelos textos literários. Numa de suas vertentes, aquela liderada por Hans Robert Jauss, a Estética da Recepção encarou o problema da leitura desde o ponto de vista das repercussões que uma dada obra alcança ao longo do tempo, seja enquanto impacto sobre o público, seja enquanto ação sobre a criatividade de outros escritores. Com isso, propiciou a emergência de novas teses sobre a História da Literatura e a Literatura Comparada, pois deixou de ver a primeira como sequência ininterrupta de fatos estéticos ordenados cronologicamente e a segunda como influência de uma tradição artística sobre outra3. Noutra vertente, que tem Wolfgang Iser como seu principal porta-voz, a leitura constitui o modo de ser de uma obra literária, que só se realiza quando absorvida e decrifrada por seu destinatário; eis porque ela trata de prever seus modos de compreensão e interpretação, delineando o leitor implícito que tem em vista, papel transferido ao leitor real, a quem compete concretizá-lo na prática4.

De um modo ou de outro, a Estética da Recepção alterou a perspectiva com que se passou a encarar as relações entre narrador e leitor e forneceu novos elementos para se refletir sobre o caráter comunicativo da obra literária. Mais importante é que ela relativizou compartimentações tradicionais, ao liberar as obras de suas determinações de época ou de lugar. Em outras palavras, propôs que, ao invés de se pensar as criações literárias na sua relação com seu período ou espaço geográfico de produção, como faz a História da Literatura ao associar as obras às regiões onde foram escritas ou ao momento quando foram publicadas, procure-se examiná-las enquanto resposta a uma questão fundamental: como pressupuseram elas a comunicação com o leitor, que é seu interlocutor principal? A resposta a essa pergunta supera as condições de produção de um texto, pois todos supostamente querem dialogar com o público; e supera igualmente as delimitações de época e lugar, porque outra ambição da obra literária é permanecer válida, quer dizer, legível, para além de seu tempo e do espaço geográfico em que foi concebida e realizada.

Machado de Assis e Jorge Luís Borges foram dois escritores que se depararam com essa questão e tematizaram-na em seus textos. Concebem uma imagem do leitor, mas também introduzem-na na tessitura do texto. Ao fazê-lo, revelam que estavam interessados em manter vivo e aceso o diálogo com o leitor, o que aponta para o caráter social de suas obras. Com isso, desfazem a crítica de que muitas vezes foram alvo, acusados de se afastarem de questões políticas marcantes no tempo em que viveram ou até de assumirem posições conservadoras. Ao fertilizarem seus textos com uma proposta criativa e multifacetada de comunicação com o leitor, propõem outro modelo de participação social. Simultaneamente, resolvem um problema candente da cultura latino-americana, que, por decorrer do processo de colonização europeia e tender a reproduzi-la, pesquisa de modo obsessivo sua originalidade, Eles revelam que o encontro da autenticidade da literatura não consiste na representação da nacionalidade ou das peculiaridades locais, contrapostas às que migraram do Velho para o Novo Continente. Consiste, isto sim, na proposta de um confronto com o leitor, agudizando suas percepções e fazendo-o entender a literatura, por extensão, o mundo que o circunda, independentemente do representado no texto ser conhecido ou ter componentes realistas. Eis por que se analisam duas criações desses escritores, o poema «Pálida Elvira», de Machado de Assis, e o conto «Tema del traidor y del héroe», de Jorge Luís Borges, que têm em comum não apenas a tematização da relação entre o leitor e a obra ou o leitor e a vida, mas também o fato de que rejeitam os princípios da mimese nativista. Lidando com figuras fictícias de tempos e espaços distantes, estão próximos porque seu objeto é nós mesmos, seus leitores reais.

O poema «Pálida Elvira», publicado em 1870, no livro Falenas, constitui-se de 97 estrofes, cada uma contendo oito versos decassílabos, num total de 776 linhas5. Nele, um escritor, misto de poeta e pesquisador de manuscritos antigos, apresenta a história de Elvira, moça que, com o tio, «o velho Antero» (p. 184), habita numa casa, «junto à encosta de um outeiro» (p. 181), à beira de um lago. O poema é narrativo e, ao longo dos seus versos, conta o romance da moça e de Heitor, poeta que aparece em casa de Antero, promete casar com a sobrinha, seduz a jovem e foge. Depois de muito vagar pelo mundo, Heitor retorna, para descobrir que Elvira morrera, mas lhe deixara um filho. Desconsolado, o rapaz se atira às águas do lago e morre. A última estrofe, logo após referir o suicídio de Heitor, é interrompida, porque o manuscrito, fonte de informações do narrador, termina abruptamente. Diz a estrofe:


«Pouco tempo depois ouviu-se um grito,
Som de um corpo nas águas resvalado;
À flor das vagas veio um corpo aflito.
Depois... o sol tranquilo e o mar calado.
Depois... Aqui termina o manuscrito,
Que ora em letra de forma é publicado,
Nestas estrofes pálidas e mansas.
Para te divertir de outras lembranças».


(p. 212)                


Esta estrofe, a de número CVII, encerra um diálogo encetado no primeiro verso do poema. Aqui, o narrador se dirige à «leitora amiga» (p. 180), em que supõe de imediato uma série de sentimentos e sensações, pois situa a abertura no texto no horário crepuscular, «quando [...] no ocidente / surge a tarde esmaiada e pensativa e vem apontando a noite, e a casta diva / [sobe] lentamente pelo espaço» (p. 180). Que o cenário se apresente nesses termos é importante, porque determina as condições para a leitora entender a interioridade de Elvira, protagonista da narrativa a seguir. Porque essa é uma «hora de amor e de tristeza», a leitora pode «voar às lúcidas esferas», e então entender Elvira:


«Que assentada à janela, erguendo o rosto,
O vôo solta à alma que delira
E mergulha no azul de um céu de agosto;
Entenderás então porque suspira,
Vítima já de um íntimo desgosto,
A meiga virgem, pálida e calada,
Sonhadora, ansiosa e namorada».


(p. 181)                


Assim, a última frase do poema encerra o diálogo começado na primeira; mas, ao mesmo tempo, dá-lhe outro sentido. O narrador invoca de início uma «leitora amiga» que, diante da natureza sugestiva, divaga e se alça a vôos poéticos, as «lúcidas esferas» citadas na segunda estrofe, razão pela qual pode compreender Elvira e se comunicar com a personagem, estabelecendo uma ponte com ela, condição primeira para o acompanhamento e leitura da história subsequente, apresentada pelo narrador amistoso. Este, porém, ao final, apresenta outra faceta de sua amizade: ele deseja distrair o leitor, afastando-o de outras lembranças. Confessa ter composto um texto ilusionista, que, se faz voar, como fazem a leitora e Elvira, também retira-as do contato com a realidade imediata, talvez menos desejável, porém mais dura.

Eis a contradição aparente do poema de Machado de Assis, nascida da proposta do texto, qual seja, o diálogo entre o narrador e o leitor. Este tipo de interlocução não é exclusivo desta obra, estando presente em outros escritos de Machado de Assis, autor que amplia as possibilidades de representação de situações de leitura numa obra literária.

Uma dessas possibilidades diz respeito à apresentação de cenas de leitura, como ocorre em vários dos Contos fluminenses6, livro coetâneo de «Pálida Elvira». Nesse, ou nas novelas publicadas no período e não aproveitadas naquela coletânea, as personagens, se não são leitoras exemplares, têm suas preferências demarcadas, Paulo e Virgínia sendo a mais constante e mais característica, como se verifica no trecho abaixo, extraída de um dos textos mais antigos de Machado de Assis, o conto «Questão de vaidade», de 1864:

«Na sala, sobre a mesa, estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era; levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia. Um lenço marcado com a firma de Sara, atirado sobre as folhas abertas, para marcar a página, indicava quem estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre»7.


Outra técnica de Machado de Assis leva-o a seguidamente invocar o leitor de seu próprio texto, estabelecendo com ele afinidade e parceria, segundo um companheirismo que coloca a ambos, narrador e leitor, acima da média das personagens e, por consequência, acima da situação concreta representada no texto, que, pelo seu realismo, está muito próxima da experiência existencial do público do escritor. Essa familiaridade pode ser verificada no mesmo «Questão de vaidade», em que o narrador imagina uma cena em que ambos, ele e o leitor, este um indivíduo «perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio a fim», compartilham um ambiente comum, íntimo e qualificado para a apresentação de histórias, ficcionais ou verídicas:

«Suponha o leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro paredes de uma sala; o leitor assentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa, à moda americana, eu a fio comprido em uma rede do Pará que se balouça voluptuosamente, à moda brasileira, ambos enchendo o ar de leves e caprichosas fumaças, à moda de toda gente.

Imagine mais que é noite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do jardim, por entre cujos arbustos se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte.

Sobre a mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água para fazer uma tintura de chá. Não sei se o leitor adora como eu a deliciosa folha da Índia. Se não, pode mandar vir café e fazer com a mesma água a bebida de sua predileção.

[...]

Ora, como é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos ambos percorrido toda a planície do passado, apanhando a folha do arbusto que secou ou a ruína do edifício que abateu.

Do passado vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam com aquela abundância de coração própria dos moços, dos namorados e dos poetas.

Finalmente, nem o futuro nos escapa. Com o mágico pincel da imaginação traçamos e colorimos os quadros mais grandiosos, aos quais damos as cores de nossas esperanças e da nossa confiança.

Suponha o leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar a nossa viagem pelo tempo, é já meia-noite. Seriam horas de dormir se tivéssemos sono, mas cada qual de nós, avivado o espírito pela conversação, mais e mais deseja estar acordado.

Então o leitor, que é perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio a fim, descobre que eu também me entrego aos contos e novelas, e pede que lhe forje alguma coisa do gênero.

E eu para ir mais ao encontro dos desejos do leitor imaginoso, não lhe forjo nada, alinhavo alguns episódios de uma história que sei, história verdadeira, cheia de interesse e de vida. E para melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta algumas cartas em papel amarelado, e antes de começar a narrativa, leio-as, para orientá-lo no que vou lhe contar.

O leitor arranja as suas pernas, muda de charuto, e tira da algibeira um lenço para o caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E, feito isto, ouve as minhas cartas e a minha narrativa.

Suponha o leitor tudo isto e tome as páginas que vai ler como uma conversa à noite, sem pretensão nem desejo de publicidade».


(pp. 7-9)                


«Pálida Elvira» e «Questão de vaidade» partem da mesma situação inicial: narrador e leitor estabelecem uma relação amistosa e igualitária, condição para a audição da história. Além disso, o leitor está posicionado num ambiente apropriado ao entendimento da narrativa, o que, somado ao privilégio de se equiparar ao narrador, confere-lhe superioridade.

«Questão de vaidade», contudo, não se encerra pela ruptura indicada a propósito de «Pálida Elvira». Depois de encerrar a história, diz o narrador à guisa de conclusão:

«CONCLUSÃO

Depois de contar esta história, o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou café, e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.

Vem rompendo a aurora e esta vista desfaz as ideias, porventura melancólicas, que a minha narrativa tenha feito nascer».


(pp. 89-90)                


Eis aí a primeira razão para a ruptura: enquanto que o narrador de «Questão de vaidade» faz o relato para um ouvinte masculino, o de «Pálida Elvira» escreve para uma «leitora amiga». Além disso, ele vai aos poucos desfazendo essa amizade por estabelecer mediações que o distanciam da destinatária do texto. A primeira dessas mediações foi referida: decorre da divisão de papéis sexuais, sendo que leitores homens e leitoras mulheres comportam-se de modo diferente, e a leitura conforme o modelo feminino não aparece como aconselhável.

A leitora feminina, a quem se dirige o narrador, é aquela capaz de entender Elvira. Mas, ao contrário do leitor «perspicaz e apto» de «Questão de vaidade», que, junto com o narrador, analisa personagens e situações relatadas8, a leitora de «Pálida Elvira» só pode entender a protagonista por se identificar a ela, por ter vivido situações semelhantes, portanto, por experimentar o assunto pelo lado emocional. Essa concepção de leitura é tão forte no texto, que se reproduz na sua interioridade: também Elvira é leitora, e leitora de Lamartine, o mesmo que amou uma Elvira e escreveu o poema Le Lac, inspirador dos sentimentos manifestados pela personagem do poema de Machado de Assis:


«Sobre uma mesa havia um livro aberto;
Lamartine, o cantor aéreo e vago,
Que enche de amor um coração deserto;
Tinha-o lido; era a página do Lago.
Amava-o; tinha-o sempre ali bem perto,
Era-lhe o anjo bom, o deus, o orago;
Chorava aos cantos da divina lira...
É que o grande poeta amava Elvira!».


(p. 182)                


A trajetória posterior de Elvira é determinada por essa circunstância: admiradora de Lamartine, apaixona-se por um poeta, o jovem Heitor que aparece em sua casa e conquista seu coração. A situação é prevista antes de que o rapaz apareça, pois a atitude da moça perante o amor é determinada pela sua leitura predileta:



«Elvira! o mesmo nome! a moça os lia,
Com lágrimas de amor, os versos santos,
Aquela eterna e lânguida harmonia
Formada com suspiros e com prantos;
Quanto escutava a musa da elegia
Cantar de Elvira os mágicos encantos,
Entrava-lhe a voar a alma inquieta,
E com o amor sonhava de um poeta.

Ai, o amor de um poeta! amor subido!
Indelével, puríssimo, exaltado,
Amor eternamente convencido,
Que vai além de um túmulo fechado,
E que através dos séculos ouvido,
O nome leva do objeto amado,
Que faz de Laura um culto, e tem por sorte
Negra foice quebrar nas mãos da morte».


(p. 183)                


A identificação é a atitude que pauta a leitura de Elvira, criando -lhe expectativas para o futuro e fazendo- a entender o mundo e as pessoas a partir dos livros consumidos. Não é outra, porém, a atitude da leitora de Machado: também ela, conforme previa a abertura do poema, compreende o desenrolar da história de Elvira desde suas experiências pessoais, facultando a aproximação entre as duas criaturas, a protagonista e a leitora, com a consequente identificação. Sem esse tipo de afinidade, não há meios de se decifrarem os acontecimentos presenciados no texto, só assim pode-se saber por que, visto pela primeira vez o poeta Heitor, a jovem por ele se apaixone perdidamente:



«E trava-lhe da mão, e brandamente
Leva-o junto d'Elvira. A moça estava
Encostada à janela, e a esquiva mente
Pela extensão dos ares lhe vagava.
Voltou-se distraída, e de repente,
Mal nos olhos de Heitor o olhar fitava,
Sentiu... Inútil fora relatá-lo;
Julgue-o quem não puder exp'rimentá-lo.

[...]

Entra a leitora numa sala cheia;
Vai isenta, vai livre de cuidado:
Na cabeça gentil nenhuma ideia,
Nenhum amor no coração fechado.
Livre como a andorinha que volteia
E corre loucamente o ar azulado.
Venham dois olhos, dois, que a alma buscava.
Eras senhora? ficarás escrava!».


(pp. 189-190)                


Tanto a leitora de Machado, interlocutora do poema «Pálida Elvira», quanto a leitora de Lamartine, a Elvira do poema, não estabelecem o devido distanciamento entre o lido e o vivido. O leitor masculino age de modo diferente, e a definição dessa segunda atitude de leitura corresponde a outra das mediações entre o narrador e a «leitora amiga», determinantes da ruptura verificada ao final do texto.

Igualmente o leitor masculino atua nos dois planos construídos pelo poema, um deles sendo o do diálogo entre o narrador e seu destinatário, o outro sendo o das personagens, elas igualmente leitoras. Portanto, «Pálida Elvira» pressupõe também ser lido por representantes do sexo masculino; estes, todavia, não são genéricos, como a «leitora amiga», mas primeiramente profissionais da leitura, vale dizer, críticos literários. Eis por que quando o narrador se dirige ao leitor homem refere-se à sua atividade, como no trecho a seguir:


«Não me censure o crítico exigente
O ser pálida a moça; é meu costume
Obedecer à lei de toda a gente
Que uma obra compõe de algum volume».


(p. 182)                


ou ao fato de dominar as regras de poética, circunstância própria ao leitor mais qualificado como é o leitor profissional:


«[...] Perdão, leitores,
Eu bem sei que é preceito dominante
Não misturar comidas com amores;».


(p. 185)                


O mesmo se passa no âmbito da história narrada: Antero, o tio de Elvira, em casa de quem vive a moça e onde chega o jovem Heitor, é



«Erudito e filósofo profundo,
Que sabia de cor o velho Homero,
E compunha os anais do Novo Mundo;
Que escrevera uma vida de Severo,
Obra de grande tomo e de alto fundo;

Que resumia em si a Grécia e Lácio,
E num salão falava como Horácio;
[...]».


(p. 184)                


É o mesmo Antero quem diz a Heitor que «um bom poeta é hoje quase um mito» (p. 189), frase que o coloca no mesmo paradigma do leitor-«homem sisudo», que rejeita obras como a que o narrador lhe oferece agora:


«[...] Neste lance
Se o meu leitor é já homem sisudo,
Fecha tranquilamente o meu romance,
Que não serve a recreio nem a estudo;
[...]».


(p. 183)                


Homens sisudos, críticos exigentes, eruditos não são leitores de «Pálida Elvira». Aproximam-se do texto por exigência da profissão ou do gosto, mas se afastam dele porque a obra não corresponde às suas expectativas. Não serve para o estudo, é demasiadamente fiel ao cânone do gênero, falta-lhe a densidade dos clássicos -preocupações, todas essas, da leitura masculina. Aqueles não são parceiros para um texto dessa natureza, parceria a ser transferida para a mulher, mas, ao fim e ao cabo, indesejada pelo narrador. A presença da ironia é a última das mediações empregadas, a que deixa a «leitora amiga» fora do campo das pretensões do narrador.

Que a ironia recorta o texto sugerem-no as citações anteriores, onde se verificam o uso exagerado da linguagem empolada do Ultra Romantismo, o excesso de exclamações e a presença de personagens estereotipadas, como a virgem pálida, o sedutor leviano e depois arrependido e o tio severo, porém acolhedor. Porém, ela se aplica com mais intensidade, sobretudo quando o narrador desconstrói as regras de composição de narrativas sentimentais. Procedimentos diferentes possibilitam a realização dessa tarefa, como o fato de o narrador conferir chão materialista à história e às personagens:


«[...] Eu não vi, nem sei se algum amante
Vive de orvalho ou pétalas de flores;
Namorados estômagos consomeml
Comem Romeus, e Julietas comem».


(p. 185)                


Ou a confissão de que apenas segue a norma da poética do gênero escolhido para desmascará-la, conforme acontece na cena em que, logo após ter aureolado o poeta Heitor, comenta:



«Demais, era poeta. Era-o. Trazia
Naquele olhar não sei que luz estranha
Que indicava um aluno da poesia.
Um morador da clássica montanha,
Um cidadão da terra da harmonia,

[...]

Um poeta! e de noite! e de capote!
Que é isso, amigo autor? Leitor amigo,
Imagina que estás num camarote
Vendo passar em cena um drama antigo.
Sem lança não conheço D. Quixote
Sem espada é apócrifo um Rodrigo;
Herói que às regras clássicas escapa,
Pode não ser herói, mas traz a capa».


(p. 188)                


Ou ainda a observação de que precisa controlar seu discurso para não perder a atenção do leitor, sinal evidente de que tem pleno domínio sobre a matéria ficcional:


«Resumamos, leitora, a narrativa.
Tanta estrofe a cantar etéreas chamas
Pede compensação, musa insensiva,
Que fatigais sem pena o ouvido às damas.
Demais, é regra certa e positiva
Que muitas vezes as maiores famas
Perde-as uma ambição de tagarela;
Musa, aprende a lição; musa, cautela!».


(p. 198)                


Todos estes são sintomas de que o escritor conhece as regras do fazer literário e pode desarticulá-las, sem perder de vista os objetivos de sua escrita. Ao mesmo tempo, indicam que, embora ele represente, dentro e fora do relato, leitores possíveis, não espera que seu leitor implícito se identifique com esses modelos.

Com efeito, nem a «leitora amiga», nem o «homem sisudo» parecem se situar no horizonte das expectativas de leitura de «Pálida Elvira». Da primeira o narrador se despede antes de a história terminar, porque, quando isto acontece, ele já tem outro sujeito leitor em mente; do segundo o narrador espera o abandono, pois, como o «romance [...] não serve a recreio nem a estudo», o «homem sisudo» «condena tudo; / Abre um volume sério, farto e enorme, / Algumas folhas lê, boceja... e dorme» (p. 183). «Pálida Elvira» não se dirige nem a um, nem a outra, e sim àquele que, conhecendo as regras do gênero ultra-romântico sentimental e de aventuras, não mais acredita nelas, podendo então se distanciar o suficiente para se divertir com os efeitos obtidos por quem as critica e desconstrói. O poema foi efetivamente escrito para «divertir de outras lembranças», como proclama o último verso, isto é, para afastar do conhecido e abrir caminho para novas experiências.

Com isso, Machado contradiz igualmente a norma de leitura que está na base do comportamento da «leitora amiga» e de Elvira: a leitura não está aí para facultar a identificação e, assim, impedir o distanciamento que diverte e conscientiza. Leituras daquela espécie são virtualmente condenáveis, e não é para leitores desse tipo que Machado deseja escrever. Mas, como também não pode evitar os leitores que têm à disposição, sintetizados na «leitora amiga», no «homem sisudo» e no crítico exigente, mostra que quem o lê -seja que for- não segue esse caminho, estando, pelo contrário, na direção certa desejada pelo escritor. A identificação é substituída pela pedagogia, e o leitor converte-se no bom aluno que vai acompanhar as pegadas designadas pelo mestre de leitura.

Outra é a proposta apresentada por Jorge Luís Borges em «Tema del traidor y del héroe», conto, pertencente à coleção de Ficciones, publicada em 1944, em que se discute, por outro percurso, o lugar da leitura na vida das sociedade. O narrador se apresenta em primeira pessoa no parágrafo inicial do relato, para indicar que está imaginando escrever um texto com o argumento que resume a seguir. Conforme o plano ainda em esboço, um outro narrador, Ryan, bisneto do conspirador, mas heroico, Fergus Kilpatrick, quer escrever a biografia do bisavô. A execução do plano depende do deciframento do enigma relativo ao assassinato de Kilpatrick, eliminado «en la víspera de la rebelión victoriosa que había premeditado y soñado»9.

Ryan se detém nos eventos que precederam o assassinato de Kilpatrick, ocorrido num teatro, como os anúncios para não estar presente naquele local, os indicios de que seria traído, os presságios inexplicáveis racionalmente. O narrador crê encontrar aqui um paralelismo entre a historia do bisavô e a de César, sendo induzido a supor «una secreta forma del tiempo, um dibujo de líneas que se repiten» (p. 497). A teoria de que a historia se repete a si mesma acrescenta outra: a história copia a literatura, pois outros eventos ocorridos na noite do crime reproduzem cenas de tragédias de William Shakespeare. Ryan conclui: «Que la historia hubiera copiado a la historia ya era suficientemente pasmoso; que la historia copie a la literatura es inconcebible...» (p. 497).

A investigação, contudo, não encerra nesse ponto: Ryan se volta à biografia de James Alexander Nolan, «el más antiguo de los compañeros del héroe» (p. 497), e descobre que ele fora intérprete de Shakespeare e tradutor de Júlio César para o gaélico. Por ocasião da morte de Kilpatrick, havia sido incumbido de descobrir e revelar o traidor que se escondia entre os rebeldes irlandeses. Nolan denuncia o próprio Kilpatrick com provas irrefutáveis, e Kilpatrick não nega que tenha traído seus companheiros; pede apenas que seu castigo não prejudique a pátria. A solução surge de uma ideia de Nolan, que concebe o assassinato de Kilpatrick num teatro, para que o traidor, até aí figura idolatrada pelos irlandeses, morresse como um herói e não prejudicasse a rebelião. Para executar a ideia, Nolan precisa de um roteiro, encontrado no «enemigo inglés William Shakespeare» (p. 498):

«Repetió escenas de Macbeth, de Julio César, La pública y secreta representación comprendió varios días. El condenado entró en Dublin, discutió, obró, rezó, reprobó, pronunció palabras patéticas y cada uno de esos actos que reflejaría la gloria, habia sido prefijado por Nolan. Centenares de actores colaboraron con el protagonista; el rol de algunos fue completo; el de otros, momentáneo. Las cosas que dijeron e hicieron perduran en los libros históricos, en la memoria apasionada de Irlanda. Kilpatrick, arrebatado por ese minucioso destino que lo redimía y que lo perdia, más de una vez enriqueció con actos y palabras improvisadas el texto de su juez. Así fue desplegándose en el tiempo el populoso drama, hasta que el 6 de agosto de 1824, en un palco de funerarias cortinas que prefiguraba el de Lincoln, un balazo anhelado entró en el pecho del traidor y del héroe, que apenas pudo articular, entre dos efusiones de brusca sangre, algunas palabras previstas».


(p. 498)                


As investigações de Ryan não o levam apenas a descobrir que a morte de Kilpatrick consistia numa soma de punição e consagração, fornecendo à revolução emergente as personagens imprescindíveis ao sucesso: o herói vitimado e o criminoso não identificado, fator fundamental para incendiar a revolta contra o povo opressor, o inglês. Aprofundando a pesquisa, verifica que um lugar fora deixado para ser preenchido no futuro, o do próprio investigador que se deparasse com a verdade:

«Ryan sospecha que el autor los intercaló para que una prsona, en el porvenir, diera con la verdad. Compreende que él también forma parte de la trama de Nolan...».


(p. 498)                


Talvez por essa razão resolva contrariar o roteiro e «silenciar el descubrimiento», publicando «un livro dedicado a la gloria del héroe» (p. 498); mas o narrador conclui, encerrando o relato: «también eso, tal vez, estaba previsto» (p. 498).

A semelhança do poema de Machado de Assis, o conto de Borges constrói-se sobre dois planos. Em «Pálida Elvira», os dois planos dividiam-se entre os leitores, o da «leitora amiga», com quem dialogava o narrador, e o de Elvira, admiradora de Lamartine. No «Tema del traidor y del héroe», os planos repartem-se entre dois narradores; um emprega a primeira pessoa e confessa estar projetando um argumento «que ya de algún modo me justifica, en las tardes inútiles» (p. 496); o segundo é Ryan, mais comprometido que o outro, porque ambiciona redigir a biografia do heroico bisavô e resolver os enigmas que cercam seu assassinato. O primeiro narrador deixa claro que seu argumento lida com dados fictícios, tanto que, no início do segundo parágrafo, ainda não decidiu onde e quando situará a ação; escolhe a Irlanda e a data de 1824 «para comodidad narrativa» (p. 496). Ryan, por seu turno, está convencido de que lida com um fato histórico, verídico, empanado por um enigma cujo deciframento lhe cabe, deixando-o ainda mais nítido para seus leitores, patriotas como ele e admiradores da sorte de seu país.

A descontinuidade entre os dois narradores repete um processo de «Pálida Elvira», não ao nível da leitura, mas ao nível da narração: ambos os narradores anónimos, o do poema de Machado e o do conto de Borges, tal como se apresenta no parágrafo inicial, desacreditam o fato relatado a seguir, gerando a intranquilidade do leitor, que, por isso, se distancia do narrado. O segundo narrador do conto de Borges, o bem intencionado Ryan, se propõe, contudo, a interpretar a história, reexaminando o passado de seu país desde o ponto de vista dos heróis. A revelação surpreende-o duas vezes: descobre que o roteiro veio da literatura, mais especificamente de Shakespeare, comprovando até a veracidade da famosa frase do dramaturgo inglês, extraída do mesmo Macbeth que serviu de inspiração a Nolan: «Life's but a walking shadow, a poor player / That struts and frets his hour upon the stage / And then is heard no more: its a tale / Told by an idiot, full of sound and fury, / Signifying nothing»10. E descobre que mesmo o papel, que desempenharia mais de cem anos depois, estava previsto, tanto ao tentar recusá-lo enquanto pesquisador da verdade, quanto ao render-se à sua execução, ajudando a propagar o mito.

O conto lida com um tema caro às histórias nacionais para desmascará-lo. Como Machado, Borges está desconstruindo um enredo conhecido, armado pelo Romantismo. Em «Pálida Elvira», trata-se de desmontar clichés sentimentais; no conto de Borges derruba-se o mito do herói, sobretudo àqueles que servem às causas libertárias e patrióticas. O escritor argentino vai até mais longe, pois não é difícil constatar no trecho citado acima, relativo ao projeto de Nolan, o pano de fundo oferecido pelo mito de Jesus de Nazaré, que, como Kilpatrick, entra na cidade sagrada, Jerusalém, para ser aclamado e, depois, sacrificado, procedimento que colaborou sobremaneira à deificação do herói do Cristianismo11.

O processo como os escritores procedem à desconstrução é igualmente significativo: Machado e Borges revelam como se forjam os mitos, indicando que sua fonte é a literatura. Seja ao seguir regras da poética dos gêneros sentimentais, seja ao buscar na tragédia um modelo de comportamento a seguir, de um modo ou de outro é da ficção que provêm as referências necessárias à organização da sociedade.

Em «Pálida Elvira», a identificação determinava o comportamento das duas leitoras indicadas no texto: tanto a «leitora amiga» como a protagonista retiravam das leituras exemplos de atitudes e visão de mundo, através dos quais pautavam suas relações com a sociedade. Em «Tema del traidor y del héroe», é a sociedade como um todo que regula seu comportamento desde as leituras feitas. Não apenas isso: um grande leitor -no caso, Nolan- organiza a sociedade para que ela se reconheça como tal. Não houvesse ele forjado um mito, a revolução nem aconteceria, muito menos seria bem sucedida. A história enquanto sucessão de eventos é caótica ou traiçoeira, «a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing». E preciso que um sentido lhe seja atribuído, e este é buscado na ficção, único lugar onde os fatos têm ordem e significação.

Não é, pois, a história que rege nossas ações, e sim a fantasia, berço da literatura. Igualmente esse roteiro está previsto no conto de Borges: o narrador primeiro, ao contrário de Ryan, não pesquisa o passado, e sim inventa um argumento, que, diz ele, «escribiré tal vez» (p. 496). A observação inicial, que a princípio, parece contrariar a veracidade do relato, acaba, conforme uma leitura circular, por reafirmá-la, pois, a se acreditar no relato, a imaginação é que fornece os fatos históricos e dá-lhes substância. É por criar o que vai acontecer que o acontecido mostra-se verdadeiro. Mas o texto que leremos ainda não redigido, porque o narrador no momento apenas cogita escrevê-lo no futuro. Tal como Nolan, o narrador não lida com o passado, mas projeta o futuro; entretanto, o porvir não consiste num vir-a-ser, e sim numa nova compreensão do que aconteceu, descoberta que, da sua vez, não altera a versão dos eventos já consagrada pelo tempo. Tanto o narrador primeiro quanto Nolan sabem o que acontecerá: aparecerá Ryan, cujas investigações propiciarão conhecer o que verdadeiramente sucedeu, mas que não ousará contrariar o mito, não apenas deixando-o como está, mas ainda corroborando-o.

Outra vez a narrativa confirma pressupostos que aparentemente negava. Enquanto investigava, Ryan chegou «a suponer una secreta forma del tiempo, um dibujo de líneas que se repiten» (p. 497). A sequência do relato parece desmentir essa suposição, pois a repetição se devia à apropriação do roteiro sugerido pelas tragédias de Shakespeare. A conclusão do conto, contudo, leva o leitor a retomar a abertura, e, nesse revisão, verificar que o futuro é unicamente escrita, escrita que se debruça invariável e incansavelmente sobre o passado. As linhas do tempo dão voltas contínuas, e o porvir consiste na eterna retomada, para endossá-los, dos mitos cristalizados pelo tempo.

É enquanto planejadores do futuro que Nolan e o narrador se confundem e se identificam. Nolan é, porém, também o leitor que extraiu da ficção modos de comportamento para os homens e formas de organização para a sociedade. Como a «leitora amiga» e Elvira, encontrou na arte possibilidades de experiência traduzidas em atos concretos. Ao contrário dele, o leitor do «Tema del traidor y del héroe» fica sem alternativas de ação, embora consciente de que o fluxo da história pouco lhe diz, em contraposição à literatura, de onde retira tudo, a começar pela desconfiança perante o mito e os relatos do passado.

Machado e Borges estão empenhados em desarticular as convicções de seus leitores; mas fazem-no confiando em que a leitura exerça seu papel, o de estabelecer o diálogo primordial sem o qual a literatura não subsiste, muito menos sua produção poética e ficcional. Eis aí a aposta que lançam, que os aproxima no tempo e que assinala a afinidade de ambos diante do universo do leitor.





 
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