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De Cantos do ermo e da cidade

Eu amo a noite

Eu amo a noite quando deixa os montes,

bela, mas bela de um horror sublime,

e sobre a face dos desertos quedos

seu régio selo de mistério imprime.

Amo o sinistro ramalhar dos cedros
5

ao rijo sopro da tormenta infrene,

quando antevendo a inevitável queda

nandam aos ermos um adeus solene.

Amo os penedos escarpados onde

desprende o abutre o prolongado pio,
10

e a voz medonha do caimã disforme

por entre os juncos de lodoso rio.

Amo os lampejos verde-azuis, funéreos,

que às horas mortas erguem-se da terra

e enchem de susto o viajante incauto
15

no cemitério de sombria serra.

Amo o silêncio, os areais extensos,

os vastos brejos e os sertões sem dia,

porque meu seio como a sombra é triste,

porque minh'alma é de ilusões vazia.
20

Amo o furor do vendaval que ruge,

das asas densas sacudindo o estrago,

silvos de balas, turbilhões de fumo,

tribos de corvos em sangrento lago.

Amo as torrentes que da chuva túmidas
25

lançam aos ares um rumor profundo,

depois raivosas, carcomendo as margens,

vão dos abismos pernoitar no fundo.

Amo o pavor das soledades, quando

rolam as rochas da montanha erguida,
30

e o fulvo raio que flameja e tomba

lascando a cruz da solitária ermida.

Amo as perpétuas que os sepulcros ornam,

as rosas brancas desbrochando à lua,

porque na vida não terei mais sonhos,
35

porque minh'alma é de esperanças nua.

Tenho um desejo de descanso, infindo,

negam-me os homens; onde irei achá-lo?

A única fibra que ao prazer ligava-me

senti partir-se ao derradeiro abalo!...
40

Como a criança, do viver nas veigas,

gastei meus dias namorando as flores,

finos espinhos os meus pés rasgaram,

pisei-os ébrio de ilusões e amores.

Cendal espesso me vendava os olhos,
45

doce veneno lhe molhava o nó...

Ai! minha estrela de passadas eras,

Por que tão cedo me deixaste só?

Sem ti, procuro a solidão e as sombras

de um céu toldado de feral caligem,
50

e gasto as horas traduzindo as queixas

que à noite partem da floresta virgem.

Amo a tristeza dos profundos mares,

as águas torvas de ignotos rios,

e as negras rochas que nos plainos zombam
55

da insana fúria dos tufões bravios.

Tenho um deserto de amarguras nalma,

mas nunca a fronte curvarei por terra!...

Ah! tremo às vezes ao tocar nas chagas,

nas vivas chagas que meu peito encerra!
60


A casa era pequenina...

Não era? Mas tão bonita

que teu seio inda palpita

lembrando dela, não é?

Queres voltar? Eu te sigo;
5

eu amo o ermo profundo...

A paz que foge do mundo

preza os tetos de sapê.

Bem vejo que tens saudades...

Não tens? Pobre passarinho!
10

De teu venturoso ninho

passaste à dura prisão!

Vamos, as matas e os campos

estão cobertos de flores,

tecem mimosos cantores
15

hinos à bela estação.

E tu mais bela que as flores...

Não cores... aos almos cantos

ajuntarás os encantos

de teu gorjeio infantil.
20

Escuta, filha, a estas horas,

que a sombra deixa as alturas,

lá cantam as saracuras

junto aos lagos cor de anil...

Os vaga-lumes em bando
25

correm sobre a relva fria,

enquanto o vento cicia

na sombra dos taquarais...

E os gênios que ali vagueiam,

mirando a casa deserta,
30

repetem de boca aberta:

Acaso não virão mais?

Mas, nós iremos, tu queres,

não é assim? Nós iremos;

mais belos reviveremos
35

os belos sonhos de então.

E, à noite, fechada a porta,

tecendo planos de glórias,

contaremos mil histórias,

sentados junto ao fogão.
40


I

Filha dos cerros onde o sol se esconde,

onde brame o jaguar e a pomba chora,

são horas de partir, desponta a aurora,

deixa-me que te abrace e que te beije.

Deixa-me que te abrace e que te beije,
5

que sobre o teu meu coração palpite,

e dentro dalma sinta que se agite

quanto tenho de teu impresso nela.

Quanto tenho de teu impresso nela,

risos ingênuos, prantos de criança,
10

e esses tão lindos planos de esperança

que a sós na solidão traçamos juntos.

Que a sós na solidão traçamos juntos,

sedentos de emoções, ébrios de amores,

idólatras da luz e dos fulgores
15

de nossa mãe sublime, a natureza!

De nossa mãe sublime, a natureza,

que nossas almas numa só fundira,

e a inspiração soprara-me na lira

muda, arruinada nos mundanos cantos.
20

Muda, arruinada nos mundanos cantos,

mas hoje bela e rica de harmonias,

banhada ao sol de teus formosos dias,

santificada à luz de teus encantos!

II

Adeus! Adeus! A estrela matutina
25

pelos clarões da aurora deslumbrada

apaga-se no espaço,

a névoa desce sobre os campos úmidos,

erguem-se as flores trêmulas de orvalho

dos vales no regaço.
30

Adeus! Adeus! Sorvendo a aragem fresca,

meu ginete relincha impaciente

e parece chamar-me...

Transpondo em breve o cimo deste monte,

um gesto ainda, e tudo é findo! O mundo
35

depois pode esmagar-me.

Não te queixes de mim, não me crimines,

eu depus a teus pés meus sonhos todos,

tudo o que era sentir!

Os algozes da crença e dos afetos
40

em torno de um cadáver de ora em diante

hão de embalde rugir.

Tu não mais ouvirás os doces versos

que nas várzeas viçosas eu compunha,

ou junto das torrentes;
45

nem teus cabelos mais verás ornados,

como a pagã formosa, de grinaldas

de flores rescendentes.

Verás tão cedo ainda esvaecida,

a mais linda visão de teus desejos,
50

aos látegos da sorte!

Mas eu terei de Tântalo o suplício!

Eu pedirei repouso de mãos postas,

e será surda a morte!

Adeus! Adeus! Não chores, que essas lágrimas
55

coam-me ao coração incandescentes,

qual fundido metal!

Duas vezes na vida não se as vertem!

Enxuga-as, pois; se a dor é necessária,

cumpra-se a lei fatal!
60


Deixo aos mais homens a tarefa ingrata

de maldizer teu nome desditoso;

por mim nunca o farei:

Como a estrela no céu vejo tu'alma,

e como a estrela que o vulcão não tolda,
5

pura sempre a encontrei.

Dos juízos mortais toda a miséria

nos curtos passos de uma curta vida

também, também sofri,

mas contente no mundo de mim mesmo,
10

menos grande que tu, porém mais forte,

das calúnias me ri.

A turba vil de escândalos faminta,

que das dores alheias se alimenta

e folga sobre o pó,
15

há de soltar um grito de triunfo,

se vir de leve te brilhar nos olhos

uma lágrima só.

Oh! Não chores jamais! A sede imunda,

prantos divinos, prantos de martírio,
20

não devem saciar...

O orgulho é nobre quando a dor o ampara,

e se lágrima verte é funda e vasta,

tão vasta como o mar.

É duro de sofrer, eu sei, o escárnio
25

dos seres mais nojentos que se arrastam

ganindo sobre o chão,

mas a dor majestosa que incendeia

dos eleitos a fronte os vis deslumbra

com seu vivo clarão.
30

Curve-se o ente imbele que, despido

de crenças e firmeza, implora humilde

o arrimo de um senhor,

o espírito que há visto a claridade

rejeita todo o auxílio, rasga as sombras,
35

sublime em seu valor.

Deixa passar a doida caravana,

fica no teu retiro, dorme sem medo,

da consciência à luz;

livres do mundo um dia nos veremos,
40

tem confiança em mim, conheço a senda

que ao repouso conduz.


Visões da noite

Passai, tristes fantasmas! O que é feito

das mulheres que amei, gentis e puras?

Umas devoram negras amarguras,

repousam outras em marmóreo leito!

Outras no encalço de fatal proveito
5

buscam à noite as saturnais escuras,

onde, empenhando as murchas formosuras,

ao demônio do ouro rendem preito!

Todas sem mais amor! sem mais paixões!

Mais uma fibra trêmula e sentida!
10

Mais um leve calor nos corações!

Pálidas sombras de ilusão perdida,

minh'alma está deserta de emoções,

passai, passai, não me poupeis a vida!


O canto dos sabiás

Serão de mortos anjinhos

o cantar de errantes almas,

dos coqueirais florescentes

a brincar nas verdes palmas,

estas notas maviosas
5

que me fazem suspirar?

São os sabiás que cantam

nas mangueiras do pomar.

Serão os gênios da tarde

que passam sobre as campinas,
10

cingido o colo de opalas

e a cabeça de neblinas,

e fogem, nas harpas de ouro

mansamente a dedilhar?

São os sabiás que cantam...
15

Não vês o sol declinar?

Ou serão talvez as preces

de algum sonhador proscrito,

que vagueia nos desertos,

alma cheia do infinito,
20

pedindo a Deus um consolo

que o mundo não pode dar?

São os sabiás que cantam...

Como está sereno o mar!

Ou, quem sabe? As tristes sombras
25

de quanto amei neste mundo,

que se elevam lacrimosas

de seu túmulo profundo,

e vêm os salmos da morte

no meu desterro entoar?
30

São os sabiás que cantam...

Não gostas de os escutar?

Serás tu, minha saudade?

Tu, meu tesouro de amor?

Tu que às tormentas murchaste
35

da mocidade na flor?

Serás tu? Vem, sê bem-vinda

quero-te ainda escutar!

São os sabiás que cantam

antes da noite baixar.
40

Mas ah! delírio insensato!

Não és tu, sombra adorada!

Não são cânticos de anjinhos,

nem de falange encantada,

passando sobre as campinas
45

nas harpas a dedilhar!

São os sabiás que cantam

nas mangueiras do pomar!


O resplendor do trono

Que vale a pompa e o resplendor do trono!

Triste vaidade! O alvergue de um colono

mais encantos encerra e mais doçuras!

De calma consciência à sombra amiga

floresce o riso e o júbilo se abriga,
5

livre de enganos e visões escuras.

Quem não aspira da grandeza aos combros

tem segura a cabeça sobre os ombros,

e a vereda conhece onde caminha;

dorme sem medo, acorda sem pesares,
10

e vê, feliz, a prole junto aos lares

vigorosa estender-se como a vinha.

Sob os dosséis dos sólios a mentira

boceja e o corpo sensual estira

no tapete macio dos degraus...
15

são sempre incertos do reinante os passos!

Ame embora a verdade, ocultos laços

prendem-o cego aos cálculos dos maus!

Oh! Ditoso mil vezes o operário!

ama o trabalho, e o módico salário
20

de prantos nem de sangue está manchado!

Combates não planeja em vasta liça!

Nem das vítimas ouve da injustiça

a queixa amarga e o clamoroso brado!

Não desperta alta noite em sobressalto!
25

Nem dos cuidados ao cruento assalto

sobre o ouro e o cetim geme e delira!

Qual manso arroio sobre a terra corre,

e no meio dos seus tranqüilo morre

como a nota de um canto em branda lira!
30

Não invejeis as pompas das alturas!

O raio deixa os vales e as planuras,

a tempestade preza as serranias!...

Quereis saber da majestade a glória?

Lede nos régios túmulos a história
35

dos soberanos de passados dias!


A vida na cidades me enfastia,

enoja-me o tropel das multidões,

o sopro do egoísmo e do interesse

mata-me nalma a flor das ilusões.

Mata-me nalma a flor das ilusões
5

tanta mentira, tão fingido rir,

e cheio e farto de tristeza e tédio

rejeito as glórias de falaz porvir!

Rejeito as glórias de falaz porvir,

galas e festas, o prazer talvez,
10

e busco altivo as solidões profundas

que dormem quedas do Senhor aos pés.

Que dormem quedas do Senhor aos pés,

ao doce brilho dos clarões astrais,

ricas de gozos que não tem o mundo,
15

pródigas sempre de beleza e paz!


Longe, longe das águas-marinhas,

sobre vastas campinas pousada,

sempre aos raios de um sol resplendente,

se ostentava risonha morada.

Nas planícies que a vista não vence
5

espalhadas pastavam cem reses,

ora junto das fontes tranqüilas,

escondidas no mato outras vezes...

Ao portão, de manhã, reunidas,

meio ocultas no véu da neblina,
10

o senhor esperar pareciam

sempre amigo da luz matutina.

E, depois que seu vulto bondoso

da janela sorrindo as olhava,

se afastavam contentes, pulando
15

sobre a grama que o orvalho banhava.

Quando além das montanhas o dia

apagava seu raio final,

acudindo do amo aos clamores

todo o gado se achava no val.
20

E em torno dele um círculo formando

humildes e silentes,

cada qual por sua vez se adiantando,

vinham lamber o sal que apresentavam

as mãos benevolentes,
25

as mãos benevolentes que adoravam.

e o manso gado as falas lhe entendia

e os tenros bezerrinhos

saltitavam trementes de alegria

a seus meigos carinhos...
30

Talvez sondasse nesses pobres brutos,

sob esses pêlos ríspidos, hirsutos,

um oculto clarão,

raio de encarcerada inteligência,

que a doida, pobre e mísera ciência,
35

trucidando sem pena a criação,

procura sempre, mas procura em vão.

Passaram tempos, e o vaqueiro é morto...

Da velha habitação só muros restam,

e às já despidas, murchas laranjeiras
40

espinheiros entestam.

Sobre montões de pedra as lagartixas

leves se arrastam sobre o musgo vil.

Traidoras vespas nos esteios podres

formaram seu covil.
45

O sol, que outrora derramava em torno

raios de luz, torrentes de alegria,

hoje atira do espaço ao lar deserto

um riso de ironia.

Não mais perfumes pelos ares giram,
50

não mais os ventos suspirando passam,

somente impuro odor, silvo de serpes

no ambiente perpassam.

Parece que ao pairar nesses lugares

todo o seu ódio o estrago sacudira,
55

e o espírito do mal no chão gretado

a saliva cuspira.

Viajor, viajor, não te aproximes

do ermo sítio que o terror marcou,

a mão de Deus talvez ardendo em iras
60

pesada ali tocou.

Porém quando no ocidente

vai baixando o orbe imortal,

as reses sempre constantes

se ajuntam todas no val.
65

E nessa mesma paragem,

onde as chamava o senhor,

talvez do defunto à sombra

reúnem-se ao derredor.

E mugem, mugem debalde,
70

tristonhas cavando o chão,

fitando doridos olhos

no astro rei da amplidão.

Mas o sol não as escuta,

mas o sol caindo vai,
75

imagem de um deus cruento,

cruenta imagem de pai.

E o caminheiro, que ao longe

das serras descendo vem,

não passa perto das ruínas,
80

procura outra senda além.


A lenda do Amazonas

Quando vestido de brilhante púrpura

surgia o sol no céu,

deixei a medo os majestosos píncaros

onde habita o condor,

e guardando do frio os seios trêmulos
5

nas dobras do brial,

como errante cegonha ou pomba tímida,

Às planícies voei.

Em meus cabelos ciciavam, lânguidos,

os sopros da manhã,
10

clarões e névoas, iriantes círculos,

giravam-me ao redor...

Mas sobre o leito de tecidos flácidos,

inclinada a sorrir,

deixava-me rolar aos doces cânticos
15

dos gênios do arrebol.

Já perdendo de vista os Andes túrbidos

sobre rochas pousei...

Sobre rochas pousei... as virgens cândidas,

louras filhas do ar,
20

trocaram-me do corpo a etérea túnica

por manto de cristal,

cantaram-me ao ouvido um hino mágico

que falava de amor,

tão meigo e triste como a voz da América
25

em seu berço de luz.

Cingiram-me a cabeça dos mais límpidos

diamantes e rubins;

das borboletas leves e translúcidas

do verde Penamá
30

formaram-me sutil, brilhante séquito;

aspergeram-me os pés

do perfume das flores mais balsâmicas

das savanas sem fim,

e, me apontando da floresta os dédalos
35

pejados de frescor

deram-me abraços mil, ardentes ósculos,

e deixaram-me só...

E deixaram-me só; nos vastos âmbitos

sem rumo, me perdi,
40

meus olhos inundaram-se de lágrimas,

quis aos montes voltar...

Mas o treno saudoso dos espíritos

À minh'alma falou,

e ao grato acento dessas queixas místicas
45

de novo me alentei.

Desci das brenhas pensativa, atônita,

olhos fitos além,

meu manto sobre a rocha um surdo estrépido

desprendia ao roçar...
50

E meus cabelos borrifados, úmidos

de sereno estival,

salpicavam, ao sol, de infindas pérolas

o desnudado chão.

Os velhos cedros com seus ramos ásperos,
55

saudaram-me ao passar,

os cantores das matas, em miríades,

os coqueirais senis

bradaram numa voz: -oh! filha esplêndida

da eterna criação,
60

corre, que ao lado do soberbo tálamo

por ti suspira o mar!...

Ao meio-dia, extenuada, mórbida

pelo intenso calor,

de um mundo ignoto sob a imensa cúpula
65

solitária me achei.

Argênteas fontes, sonorosos zéfiros,

rumores divinais,

grutas de sombra e de frescura próvidas,

multicores dosséis,
70

a cujo abrigo um turbilhão de pássaros

cruzava a trinar

um não sei quê de vago e melancólico,

de infinito talvez,

acenderam-me ao seio a chama insólita
75

de estranha sensação!

Sentei-me ao lado de um rochedo côncavo

e procurei dormir...

e procurei dormir; -as plagas túmidas,

o indizível amor
80

que transudava dos sussurros épicos

dos sombrios pinhais,

em cujas grimpas ramalhavam séculos,

dormia a tradição;

da rola do deserto as flébeis súplicas,
85

a tênue, frouxa luz

coando entre os rasgados espiráculos

desse zimbório audaz

por mil colunas desmarcadas, ríspidas,

sustentado ante o céu,
90

vedaram-me o repouso, e a mente estática.

Em santa reflexão

senti volver-se as cenas de outras épocas.

Ah! que tudo passou!

Como o sol era belo e a terra lúcida!
95

Como era doce a paz!

Da família indiana em noite plácida

junto ao fogo a dançar!

Como era calmo e belo e vivo o júbilo

das filhas de Tupã
100

depondo junto ao fogo os anchos cântaros

e atrás dos colibris

correndo alegres nos relvosos páramos!

E a voz do pescador

sobre as águas plangentes e diáfanas
105

de ameno ribeirão!

E o rápido silvar das setas rápidas

os urros do jaguar,

a volta da caçada, os hinos férvidos

nos festins anuais!
110

Tudo findou-se! A mão cruel, mortífera,

de uma idade feroz

tantas glórias varreu, e nem um dístico

deixou no chão sequer!

Apenas no deserto ermos sarcófagos
115

sem mais cinzas, nem pó,

negras imagens de figuras híbridas,

soltas aqui e ali,

resistem do destino ao rijo látego!...

Mas das eras de então
120

nada revelam no silêncio gélido!...

Meu Deus e meu Senhor!

eu que vi construir-se o imenso pórtico

do edifício imortal,

donde ao vivo luzir dos astros fúlgidos
125

todo o ser rebentou,

eu que pelas planícies inda cálidas

de vosso bafejar,

vi deslizar o Tigre, o Eufrates célebre,

o sagrado Jordão...
130

Eu sem nome, sem glórias e sem pátria,

entre os densos cocais,

ia, bem como as gerações sem número,

absorta escutar

dos santos querubins a voz melódica!...
135

Eu que pobre e sem guia,

pobre e sem guia nos desertos áridos,

teu poder, grande Deus,

pressentia no ar, no céu, nos átomos...

Vi também sob o sol
140

afogarem-se os orbes no crepúsculo

de uma noite fatal,

e à lareira da vida erguer-se impávido

o nada aterrador!

Vi num combate pavoroso e tétrico,
145

torva, escura epopéia,

o fantasma do estrago, a morte esquálida

vencer a criação,

devorar-lhe sem penas as quentes vísceras,

dilacerar sem dó
150

da madre natureza as fibras íntimas!

Vi à luz dos fuzis,

do abutre da tormenta a insana cólera

a floresta cair;

vi negras feras e serpentes pérfidas,
155

demônios de furor,

alastrarem a terra de cadáveres

de pobres animais;

e deste solo de imundícias lúbrico,

também vi se elevar
160

a própria vida de destroços pútridos!...

Meu Deus e meu Senhor,

o que diz esta lei crua e fatídica?...

Sobre o vale da dor,

sobre o vale da dor mirando as nuvens,
165

cismando no porvir,

eu também moça sinto-me decrépita!

Vê-me a aurora nascer,

mas ouve a noite meus cantares fúnebres!

A alvorada outra vez
170

das cinzas de meus restos inda tépidas

rediviva me vê!...

Eu murmurava assim triste e perplexa

cortando a solidão...

As estrelas surgiam belas, nítidas
175

no céu de puro anil,

o bando vagabundo das lucíolas,

rastejando os pauís

derramavam clarões débeis e fátuos

nas plantas ao redor,
180

línguas de fogo verde-azul fosfórico

cruzavam-se no ar...

A terra e os astros num sorrir recíproco

pareciam se unir,

uma para beijar o azul sidéreo,
185

outros para verter

no seio que sofre um doce bálsamo.

A branca lua

pura se erguia na celeste abóbada,

tudo era paz e amor,
190

vozes e saudações, hinos angélicos!

Um tênue, langue véu

senti passar-me pelos olhos ávidos;

um perfume feliz

ungiu-me a fronte de venturas ébria,
195

pensei adormecer!

Mas ah! Quando de novo abri as pálpebras,

reclinado a meus pés,

coroado de espumas e chamas vívidas,

prostrado estava o Mar.
200

Como a noite era bela e a terra lúcida!


O que eu adoro em ti não são teus olhos,

teus lindos olhos cheios de mistério,

por cujo brilho os homens deixariam

da terra inteira o mais soberbo império.

O que eu adoro em ti não são teus lábios,
5

onde perpétua juventude mora,

e encerram mais perfumes do que os vales

por entre as pompas festivais da aurora.

O que eu adoro em ti não é teu rosto

perante o qual o marmor descorara,
10

e ao contemplar a esplêndida harmonia

Fídias, o mestre, seu cinzel quebrara.

O que eu adoro em ti não é teu colo,

mais belo que o da esposa israelita,

torre de graças, encantado asilo,
15

aonde o gênio das paixões habita.

O que eu adoro em ti não são teus seios,

alvas pombinhas que dormindo gemem,

e do indiscreto vôo duma abelha

cheias de medo em seu abrigo tremem.
20

O que eu adoro em ti, ouve, é tu'alma,

pura como o sorrir de uma criança,

alheia ao mundo, alheia aos preconceitos,

rica de crenças, rica de esperança.

São as palavras de bondade infinda
25

que sabes murmurar aos que padecem,

os carinhos ingênuos de teus olhos

onde celestes gozos transparecem!...

Um não sei quê de grande, imaculado,

que faz-me estremecer quando tu falas,
30

e eleva-me o pensar além dos mundos

quando, abaixando as pálpebras, te calas.

E por isso em meus sonhos sempre vi-te

entre nuvens de incenso em aras santas,

e das turbas solícitas no meio
35

também contrito hei-te beijado as plantas.

E como és linda assim! Chamas divinas

cercam-te as faces plácidas e belas,

um longo manto pende-te dos ombros

salpicado de nítidas estrelas!
40

Na doida pira de um amor terrestre

pensei sagrar-te o coração demente...

Mas ao mirar-te deslumbrou-me o raio...

tinhas nos olhos o perdão somente!


O arrependimento

Tens razão: já, soberana,

viste-me curvo a teus pés!

Alma que do mal se ufana,

tarde conheço quem és!

Mas a imagem que eu buscava,
5

por quem meu ser suspirava...

Nem pressentiste sequer,

quando uma fada invocando

me vergava soluçando,

prestava culto à mulher.
10

Tens razão, por grata estrela

tomei teu brilho falaz,

sinistra luz da procela,

círio das horas fatais!

Segui-te através de enganos,
15

cheio de sonhos insanos,

cheio de amor e de afã!

Sombra de arcanjo caído!

Busto inda quente, incendido

pelos beijos de Satã!
20

Na fronte cor de açucena

tinhas brilho sedutor,

mas eras qual essa flor,

cujo perfume envenena!

Tinhas nos olhos brilhantes
25

os reflexos cambiantes

de uma aurora de verão,

mas como a charneca escura

só podridão, lama impura,

guardavas no coração!
30

Na negra esteira dos vícios

que os decaídos formaram,

teus funestos artifícios

iludido me arrojaram!

Amei-te: amar foi perder-me!
35

Foi beijar da terra o verme,

crendo-o Deus da vastidão...

Em vez do sol que buscava,

louco afoguei-me na lava

de medonho, atroz vulcão!
40

Da vida estraguei por ti

das quadras a mais risonha;

mas hoje sinto a peçonha

que nos teus lábios bebi!

Em meio de minha idade
45

tenho nalma a soledade,

na fronte o gelo eternal;

sinto a morte nas artérias,

e ao medir minhas misérias

me orgulho de ser mortal!
50


Vem despontando a aurora, a noite morre,

desperta a mata virgem seus cantores,

medroso o vento no arraial das flores

mil beijos furta e suspirando corre.

Estende a névoa o manto e o val percorre,
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cruzam-se as borboletas de mil cores,

e as mansas rolas choram seus amores

nas verdes balsas onde o orvalho escorre.

e pouco a pouco se esvaece a bruma,

tudo se alegra à luz do céu risonho
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e ao flóreo bafo que o sertão perfuma.

Porém minh'alma triste e sem um sonho

murmura, olhando o prado, o rio, a espuma:

-Como isto é pobre, insípido, enfadonho!


Desde a quadra mais antiga

de que rezam pergaminhos,

cantam a mesma cantiga

na floresta os passarinhos.

Têm o mesmo aroma as flores,
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mesma verdura as campinas,

a brisa os mesmos rumores,

mesma leveza as neblinas.

Tem o sol as mesmas luzes,

tem o mar as mesmas vagas,
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o deserto as mesmas urzes,

a mesma dureza as fragas.

Os mesmos tolos o mundo,

a mulher o mesmo riso,

o sepulcro o mesmo fundo,
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os homens o mesmo siso.

E neste insípido giro,

neste vôo sempre a esmo,

vale a pena, em seu retiro,

cantar o poeta, mesmo?
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A um monumento

Triste negra vassalagem

do mais baixo servilismo,

negreja no espaço a imagem

consagrada ao despotismo.

E em torno dela agrupados,
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vergonha de nossa idade!

Estão os vultos sentados

dos filhos da liberdade!

O povo curva-se e passa,

porque não vê a ironia
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que encerra essa brônzea massa

indigna da luz do dia.

Porque nunca leu a história

das turvas eras passadas,

folhas brilhantes de glória,
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mas de sangue borrifadas.

Porque não conhece o drama

do mártir que ali morrera,

por zelar a sacra chama

que a liberdade acendera.
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Pobre turba! Néscia e fátua,

na sua soberania,

beija os pés à fria estátua

que há de esmagá-la algum dia!