Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.
Siguiente


Siguiente

História da literatura brasileira

José Veríssimo

À memória cada vez mais amada e mais saudosa de meus pais José Veríssimo de Matos
e
Ana Flora Dias de Matos consagro este livro, remate da minha vida literária, que lhes deve o seu estímulo inicial.

José Veríssimo Dias de Matos
Rio (Engenho Novo),
11 de julho de 1915

Introdução

A literatura que se escreve no Brasil é já a expressão de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente o distinguiu, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse se veio formando desde as nossas primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao espírito português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa persistência no tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado literariamente, que dá à nossa literatura a unidade e lhe justifica a autonomia.

A nossa literatura colonial manteve aqui tão viva quanto lhe era possível a tradição literária portuguesa. Submissa a esta e repetindo-lhe as manifestações, embora sem nenhuma excelência e antes inferiormente, animou-a todavia desde o princípio o nativo sentimento de apego à terra e afeto às suas cousas. Ainda sem propósito acabaria este sentimento por determinar manifestações literárias que em estilo diverso do da metrópole viessem a exprimir um gênio nacional que paulatinamente se diferençava.

Necessariamente nasceu e desenvolveu-se a literatura no Brasil como rebento da portuguesa e seu reflexo. Nenhuma outra apreciável influência espiritual experimentou no período da sua formação, que é o colonial. Também do próprio meio em que se ia daquela formando lhe não proveio então qualquer influxo mental que pudesse contribuir para distingui-la. E como assim foi até quase acabar o século XVIII, não apresenta períodos claros e definidos da sua evolução nesse lapso. As reações que daquele meio porventura sofreu foram apenas de ordem física, a impressão da terra em seus filhos; de ordem fisiológica, os naturais efeitos dos cruzamentos que aqui produziram novos tipos étnicos; e de ordem política e social, resultantes das lutas com os holandeses e outros forasteiros, das expedições conquistadoras do sertão, dos descobrimentos das minas e conseqüente dilatação do país e aumento da sua riqueza e importância. Estas reações não bastaram para de qualquer modo infirmar a influência espiritual portuguesa e minguar-lhe os efeitos. Criaram, porém, o sentimento por onde a literatura aqui se viria a diferençar da portuguesa. As divisões até hoje feitas no desenvolvimento da nossa literatura não parece correspondam à realidade dos fatos. Mostra-o a sua mesma variação e diversidade nos diferentes historiadores da nossa literatura, e até mesmo no principal deles, incoerente consigo mesmo. Após acurado estudo desses fatos tenho por impossível e vão assentá-los em divisões perfeitamente exatas ou dispô-los em bem distintas categorias. Fazê-lo com êxito importaria o mesmo que descobrir outros tantos aspectos diversos e característicos em uma literatura sem autonomia, atividade e riqueza bastantes para se nela passarem as alterações de inspiração, de estesia ou de estilo que discriminam e assentam os períodos literários; uma literatura que em trezentos anos da sua existência apagada e mesquinha não experimentou outras reações espirituais que as da Metrópole, servilmente seguida. Assim sendo, é evidente que os únicos períodos literários aqui verificáveis seriam os mesmos ali averiguados. Quando começava aqui a literatura, lá havia terminado, ou estava terminando, o quinhentismo, a melhor época da portuguesa. Principiava então lá o seiscentismo, prematura e rápida degradação daquele brilhante momento, cuja brevidade era aliás consoante com a da época de esplendor nacional, revendo tudo o que de ocasional e fortuito houvera nos escassos cem anos da dupla glória portuguesa. Mas, como acertadamente nota um novo crítico, «o seiscentismo não terminou em 1699, no último dia do ano, perdurou até a segunda metade do século XVIII e a Arcádia e suas imitações não encerram o século XVIII; a Arcádia de Antônio Dinis só se fundou em 1756. No segundo quartel ainda Antônio José satirizava o gongorismo, que era uma atualidade».

O que, portanto, havia no Brasil era o seiscentismo, a escola gongórica ou espanhola, aqui amesquinhada pela imitação, e por ser, na poesia e na prosa, a balbuciante expressão de uma sociedade embrionária, sem feição nem caráter, inculta e grossa. Que o era, o mais perfuntório exame, a leitura ainda por alto dos versejadores e prosistas dessa época o mostrará irrecusavelmente. Não há descobrir-lhe diferença que os releve na inspiração, composição, forma ou estilo das obras. Sob o aspecto literário são todos genuinamente portugueses, por via de regra inferiores aos reinóis. A única exceção apresentada, a de Gregório de Matos, é impertinente. Da sua obra a só porção distinta, e estimável por outras qualidades que as propriamente literárias, é a satírica ou antes burlesca. A inspiração e feitio desta não destoa, porém, quando se tem presumido da musa gaiata portuguesa do tempo, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Diogo Camacho e quejandos, todos mais ou menos discípulos e imitadores, como o nosso patrício, do espanhol Quevedo, mas todos a ele inferiores. Como aos comuns motivos de satirizar de seus êmulos portugueses juntasse Gregório de Matos o estímulo do seu descontentamento de colonial gorado nas suas ambições e malogrado na sua vaidade, é talvez o seu estro satírico mais rico e, para nós, muito mais interessante que o daqueles. Não é, porém, nem mais original, nem mais subido. A singularidade, mesmo a superioridade de Gregório de Matos, ainda quando bem assente, não bastaria aliás para desabonar o conceito de que o seu exemplo não prejudica a regra geral da nossa evolução literária no período colonial. Um só escritor, uma só obra, salvo proeminência excepcional e de efeitos averiguados, não anula um fato literário como o verificado. A parte séria das composições de Gregório de Matos é genuinamente do pior seiscentismo, como pela língua, estilo e outras feições o é também a sua porção satírica. De resto o seu caso ficou único e isolado, incapaz, portanto, de alterar como quer que fosse a continuidade do nosso desenvolvimento literário. E os fatos provam que em nada o alterou. Simultânea e posteriormente continuou aquele como se vinha fazendo.

Somente para o fim do século XVIII é que entramos a sentir nos poetas brasileiros algo que os começa a distinguir. E só nos poetas. Distinção, porém, ainda muito escassa e limitada e também parcial. Por um ou outro poema em que se revê a influência americana, há dezenas de outros em tudo e por tudo portugueses. Os mesmos poetas do princípio do século XIX, sucessores imediatos dos mineiros e predecessores próximos dos românticos, são ainda e sobretudo seiscentistas, apenas levemente atenuados pelo arcadismo. Esta procrastinação do seiscentismo aqui, como o gongorismo que lhe era consubstancial, e é acaso congênito à gente ibérica, além do motivo geral da mais lenta evolução mental das colônias, poderia talvez explicá-lo o ter aqui vivido, se exibido e influído o mais poderoso engenho português dessa época, o Padre Antônio Vieira. A sua singular individualidade, exaltando-lhe os insignes dotes literários, supera a desprezível feição literária do período e a ampara e defende se não legitima. A corroborar-lhe a má influência, continuada pelos pregadores seus discípulos, vieram as academias literárias, focos e escolas do mais desbragado gongorismo. Somente com os primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando a trilha logo apagada da Plêiade Mineira entra já a cantar com inspiração feita dum consciente espírito nacional. Atuando na expressão principiava essa inspiração a diferençá-la da portuguesa. Desde então somente é possível descobrir traços diferenciais nas letras brasileiras. Não serão já propriamente essenciais ou formais, deixam-se, porém, perceber nos estímulos de sua inspiração, motivos da sua composição e principalmente no seu propósito.

As duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no desenvolvimento da literatura brasileira, são, pois, as mesmas da nossa história como povo: período colonial e período nacional. Entre os dois pode marcar-se um momento, um estádio de transição, ocupado pelos poetas da Plêiade Mineira (1769-1795) e, se quiserem, os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada, porém, em conjunto a obra desses mesmos não se diversifica por tal modo da poética portuguesa contemporânea, que force a invenção de uma categoria distinta para os pôr nela. No primeiro período, o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática ou meramente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática, parece-me arbitrária. Nenhum fato literário autoriza, por exemplo, a descobrir nela mais que algum levíssimo indício de «desenvolvimento autonômico», insuficiente em todo caso para assentar uma divisão metódica. Ao contrário, ela é em todo esse período inteira e estritamente conjunta à portuguesa. Nas condições de evolução da sociedade que aqui se formava, seria milagre que assim não fosse. De desenvolvimento e portanto de formação, pois que desenvolvimento implica formação e vice-versa, é todo o período colonial da nossa literatura, porém, apenas de desenvolvimento em quantidade e extensão, e não de atributos que a diferençassem.

Certo é que na segunda metade do século XVII e princípio do XVIII, poetas brasileiros (não foram aliás mais de três), ocasionalmente, sem intenção nem insistência mostraram-se impressionados pela sua terra, cantaram-lhe as excelências naturais com exagero de apreço e entusiasmo em que é lícito perceber o abrolhar do sentimento nacional, começado a gerar-se com os sucessos da guerra holandesa. Fizeram-no aliás pouco e mediocremente. Em vez de seguir e cavar esse veio que se lhes deparava, perseveraram na poética portuguesa sua contemporânea. Seria desarrazoado, seria forçar os fatos a acomodarem-se às nossas prevenções, enxergar mostras de sentimento literário autonômico nessas singularíssimas exceções. Nem por isso são elas desinteressantes. Testemunham a influência dos aludidos sucessos no espírito dos brasileiros, onde criaram ou ativaram o sentimento nativista. Importam-nos ainda como as primeiras manifestações do impulso de louvar a terra, impulso que se tornaria logo um sestro literário nosso. A quase dois séculos de distância o verificaria Casimiro de Abreu, nos seus sentidos e conhecidos versos:

Todos cantam sua terra

também vou cantar a minha

nas débeis cordas da lira

hei de fazê-la rainha.



Toma outra feição que a puramente portuguesa a nossa literatura no segundo período, o nacional.

Independente e constituído, desenvolvendo-se menos adstrito à exclusiva influência da Metrópole e ao seu absorvente predomínio, entra o país a experimentar o influxo de outras e melhores culturas, sofre novos contatos e reações, que são outros tantos estímulos da sua inteligência e capacidade literária. O maior de todos, porém, não será externo, mas o mesmo sentimento nacional afinal consciente: o desvanecimento da sua independência, da sua maioridade de povo, das suas possibilidades de crescimento com as suas promissoras esperanças de futuro. Por isso a literatura imediatamente posterior à Independência é ostensivamente, intencionalmente nacionalista e patriótica. O germe nativista de que a Prosopopéia, de Bento Teixeira, ao expirar do século XVI, é já o primeiro indício, e a Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, no final do século XVII, um mais visível sinal, germe desenvolvido, podemos dizer nutrido, do calor bairrista de Rocha Pita, e relevado nos poetas do fim do século XVIII, completa com a primeira geração romântica a sua evolução. E resulta da índole claramente nacionalista, mais ainda, patriótica, da literatura de após a Independência.

Este fato determinara-o a mesma reação literária inaugurada na Europa com o Romantismo, que em suma era sobretudo, e esta é a sua mais exata definição, uma revolta contra o que se continuava a chamar de classicismo. Tanto mais fácil foi à nova escola encontrar aqui simpatias, entusiasmos e sequazes, quanto sendo um princípio de independência e liberdade lisonjeava o nosso ardor de ambas no momento. Teve de fato alvoroçado acolhimento, como era próprio de gente nova, em pleno fervor da sua mocidade emancipada, irreflexiva e malquerente de quanto lhe recordava a sua servidão política e mental. Cumpre, todavia, não exagerar essa malevolência, que por honra dos corifeus desse nosso movimento literário nunca se desmandou nas suas reivindicações de autonomia literária, antes guardou nelas uma compostura de bom gosto.

O Romantismo europeu não só influiu os poetas e escritores de todo o gênero, se não os políticos, os oradores, ainda sacros, de que é frisante exemplo Monte Alverne, o maior deles, e os publicistas. Como na Europa, foi também aqui mais que uma escola literária, uma forma de pensamento geral.

Principalmente assinalaram o nosso Romantismo: a simpatia com o índio, a intenção de o reabilitar do juízo dos conquistadores e dos nossos mesmos patrícios coloniais, o errado pressuposto dele ser o nosso antepassado histórico, o amor da natureza e da história do país, encarados ambos com sentimentos e intenções estreitamente nativistas, o conceito sentimentalista da vida, o propósito manifesto de fazer uma literatura nacional e até uma cultura brasileira. Inspirado no preconceito dos méritos do índio revelou-se este propósito em recomendações do ensino da língua tupi, em parvoinhas propostas de sua substituição ao português na adoção de apelidos indígenas ou na troca dos portugueses por estes e no encarecimento de quanto era indígena.

Com estas feições apenas ligeiramente modificadas por novos influxos recebidos de fora ou aqui mesmo nascidos, durou o nosso Romantismo, iniciado pela terceira década do século XIX, até o meado do decênio de 1870. As últimas obras de vulto que ainda a ele, com a sua inspiração indianista, se vinculam, são o Evangelho nas Selvas, de Fagundes Varela, e as Americanas, de Machado de Assis, ambas em 1875.

Pelo fim do Romantismo, esgotado como acabam todas as escolas literárias, tanto por enfraquecimento e exaustão dos seus motivos, como pela natural usura, entram a influir a mente brasileira outras correntes de pensamentos, outros critérios e até outras modas estéticas européias de além Pireneus oriundas das novas correntes espirituais, o positivismo em geral ou o novo espírito científico, o evolucionismo inglês, o materialismo de Haeckel, Moleschott, Büchner, o comtismo, a crítica de Strauss, Renan ou Taine, o socialismo integral de Proudhon, o socialismo literário de Hugo, de Quinet, de Michelet. Outras tendências e feições, criadas por estas novas formas de pensamento, se substituem ao ceticismo, ao desalento, ao satanismo, tudo também literário ou apenas sentimental de Byron, Musset e outros que tanto haviam influenciado a nossa segunda geração romântica. Verifica-se que nenhuma das correntes do pensamento europeu que aturaram no brasileiro levou menos de vinte anos a se fazer aqui sentir. E esta é a regra ainda depois que as nossas comunicações com a Europa se tornaram mais fáceis e mais freqüentes. Destas várias influências contraditórias, e até disparatadas, que todas, porém, simultaneamente atuaram o nosso pensamento, não saiu, nem podia sair, um composto único e ainda menos coerente, como até certo ponto fora no período romântico o espiritualismo cristão ou o puro sentimentalismo dos nossos românticos, sem exceção. Sob o aspecto literário o que delas resultou foi o rompimento, mais ou menos intencional, mais ou menos estrepitoso, mais ou menos peremptório, com o Romantismo. De tal rotura se não gerou, entretanto, um movimento com bastante ressalto, caráter ou homogeneidade que possamos defini-lo com um apelido idôneo. O que se lhe tem dado, como as divisões e subdivisões nele feitas, afigura-se-me inconseqüente com os fatos literários bem apreciados. Não ignoro, e menos contesto, a importância e valia das classificações para compendiar a explicação dos fatos literários. Mas não basta não ignorá-lo ou praticá-las a torto e a direito para podermos alardear filosofia de história literária. Aquele valor e importância só a têm as classificações perfeitas em que quase nada ou mesmo nada fica ao arbítrio do crítico, mas tudo obedece lógica e naturalmente a um justo critério bem estabelecido. Sem isso, que é dificílimo em todas as literaturas e é positivamente impossível em a nossa, tais classificações tanto podem inculcar uma digna tendência filosófica, como uma supina presunção.

O que principalmente distinguiu e afeiçoou este nosso movimento espiritual ou mais propriamente literário posterior ao Romantismo foi o pensamento científico e filosófico triunfante por meados do século XIX -caracterizado pelo preconceito da infalibilidade da ciência e por uma exagerada opinião da sua importância. Esse pensamento, aqui como em toda a parte, recebeu a denominação pouco precisa, mas em suma bastante significativa, de pensamento moderno. Aqui produziu ele maior e mais raciocinado desapego às crenças tradicionais religiosas ou políticas, gerou o acatolicismo ou o agnosticismo em grande número de espíritos e o republicanismo ainda em maior número. Não chegou, porém, a criar manifestação literária alguma bastante considerável e homogênea, e suficientemente distinta, para a podermos nomear com exatidão segundo os seus particulares caracteres literários. Para sair da dificuldade sem, por iludi-la, cair no erro de dar a esta fase da nossa literatura algum apelido desapropositado, parece que o meio mais seguro é lhe verificar a inspiração ou idéia geral e motriz, e consoante ela denominá-la. Era esta declaradamente seguir em arte como em filosofia, e ainda em política, as idéias modernas, o racionalismo científico, o positivismo filosófico, o transformismo e o evolucionismo como um critério geral do pensamento, o liberalismo político, que levava de um lado ao republicanismo, de outro, com duvidosa coerência, ao socialismo. O «pensamento moderno», e a sua competente apologia, foram aqui um tema literário repetido até o fastio e sob esta denominação ou a ainda mais vaga de «idéia nova» se reuniam desencontrados conceitos, sentimentos e aspirações. Dava-lhes, todavia, unidade bastante para ao menos exteriormente os caracterizar. Não sendo possível descobrir-lhes com toda a certeza o acento predominante, a feição literária essencial e por evitar a impertinência e vaidade das tentativas já feitas para grupar em categorias definidas autores e obras desta última fase da nossa evolução literária, parece mais prudente crismá-la segundo o seu principal estímulo mental -a sua superstição das idéias modernas- e chamar-lhe de modernismo. Efetivamente é a influência cosmopolita e onímoda dessas idéias e dominante em a nossa literatura nessa fase e, salvo exceções individuais pouco relevantes, não mais o nacionalismo romântico. Torna-se a poesia -e a poesia foi sempre em cópia e qualidade a porção mais considerável da nossa literatura- menos subjetiva, menos ingênua e sentimentalista, e a diminuição destas suas qualidades acaso, sob o aspecto da emoção, amesquinhou o nosso lirismo. Ao invés ganhou ele em dons verbais de expressão e em virtudes de forma e métrica. A mesma forma aperfeiçoou-se com qualidades de composição e temperança. Nota-se mais o aparecimento em toda a nossa literatura de requisitos de que carecia, e que faltaram sempre à antiga literatura portuguesa, o gosto, o interesse, a capacidade das idéias gerais, preocupações mais largamente humanas e sociais, em vez de pura sentimentalidade e do estreito nacionalismo romântico. Alguns dos principais representantes desta última fase da nossa evolução literária são, sem prejuízo do seu brasileirismo de raiz, cosmopolitas ou universais. Tais são Castro Alves, Tobias Barreto, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Eduardo Prado.

Antes da República, ou por espírito de oposição ao império católico, ou por influência desse pensamento moderno, eram os intelectuais brasileiros quase todos livres-pensadores, ou pelo menos espíritos de um larguíssimo liberalismo, que roçava pelo livre-pensamento. Este liberalismo foi, aliás, a feição conspícua do espírito brasileiro e da vida pública brasileira durante todo o reinado de D. Pedro II. Com a República, que não podia falhar à índole ditatorial e despótica do republicanismo latino e aos efeitos da sua educação pelo jacobinismo francês, atenuou-se essa feição e minguou na política, como na inteligência nacional, aquele espírito liberal.

Uma escola literária não morre de todo porque outra a substitui, como uma religião não desaparece inteiramente porque outra a suplanta. Também não acontece que um movimento ou manifestação coletiva de ordem intelectual, uma época literária ou artística, seja sempre conforme com o seu princípio e conserve inteira a sua fisionomia e caráter. É, pois, óbvio que aqui, como sucedeu na Europa, ficaram germes ou antes restos do Romantismo, como neste haviam ficado do classicismo. Misturados com o «cientificismo» do momento ou influídos por ele, esses remanescente do Romantismo confundiram-se na corrente geral daquele originada, produzindo com outros estímulos e impulsos supervenientes algumas feições diversas na fisionomia literária desta fase. Nenhuma, porém, tão distinta que force a discriminação.

A dificuldade geralmente verificada desta discriminação sobe de ponto aqui, onde por inópia da tradição intelectual o nosso pensamento, de si mofino e incerto obedece servil e canhestramente a todos os ventos que nele vêm soprar, e não assume jamais modalidade formal e distinta. Sob o aspecto filosófico o que é possível notar no pensamento brasileiro, quanto é lícito deste falar, é, mais talvez que a sua pobreza, a sua informidade. Esta é também a mais saliente feição da nossa literatura dos anos de 70 para cá. Disfarça-as a ambas, ou as atenua, o íntimo sentimento comum do nosso lirismo, ainda em a nossa prosa manifesto, a sensibilidade fácil, a carência, não obstante o seu ar de melancolia, de profundeza e seriedade, a sensualidade levada até a lascívia, o gosto da retórica e do reluzente. Acrescentem-se como característicos mentais a petulância intelectual substituindo o estudo e a meditação pela improvisação e invencionice, a leviandade em aceitar inspirações desencontradas e a facilidade de entusiasmos irrefletidos por novidades estéticas, filosóficas ou literárias. À falta de outras qualidades, estas emprestam ao nosso pensamento e à sua expressão literária a forma de que, por míngua de melhores virtudes, se reveste. Aquelas revelam mais sentimentalismo que raciocínio, mais impulsos emotivos que consciência esclarecida ou alumiado entendimento, revendo também as deficiências da nossa cultura. Mas por ora, e a despeito da mencionada reação do espírito científico e do pensamento moderno dele inspirado, somos assim, e a nossa literatura, que é a melhor expressão de nós mesmos, claramente mostra que somos assim.

Literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte, isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem é, a meu ver, literatura. Assim pensando, quiçá erradamente, pois não me presumo de infalível, sistematicamente excluo da história da literatura brasileira quanto a esta luz se não deva considerar literatura. Esta é neste livro sinônimo de boas ou belas letras, conforme a vernácula noção clássica. Nem se me dá da pseudonovidade germânica que no vocábulo literatura compreende tudo o que se escreve num país, poesia lírica e economia política, romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até o que se não escreve, discursos parlamentares, cantigas e histórias populares, enfim autores e obras de todo o gênero.

Não se me impõe o conceito com tal grau de certeza que eu me não atreva a opor-lhe a minha heresia, quero dizer a minha humilde opinião. Com o mais recente e um dos mais justamente apreciados historiadores da literatura francesa, o Sr. G. Lanson, estou que «a literatura destina-se a nos causar um prazer intelectual, conjunto ao exercício de nossas faculdades intelectuais, e do qual lucrem estas mais forças, ductilidade e riqueza. É assim a literatura um instrumento de cultura interior; tal o seu verdadeiro ofício. Possui a superior excelência de habituar-nos a tomar gosto pelas idéias. Faz com que encontremos num emprego o nosso pensamento, simultaneamente um prazer, um repouso, uma renovação. Descansa das tarefas profissionais e sobreleva o espírito aos conhecimentos, aos interesses, aos preconceitos de ofício; ela «humaniza» os especialistas. Mais do que nunca precisam hoje os espíritos de têmpera filosófica; os estudos técnicos de filosofia, porém, nem a todos são acessíveis. É a literatura, no mais nobre sentido do termo, uma vulgarização da filosofia: mediante ela são as nossas sociedades atravessadas por todas as grandes correntes filosóficas determinantes do progresso ou ao menos das mudanças sociais; é ela quem mantém nas almas, sem isso deprimidas pela necessidade de viver e afogadas nas preocupações materiais, a ânsia das altas questões que dominam a vida e lhe dão um sentido ou um alvo. Para muitos dos nossos contemporâneos sumiu-se-lhes a religião, anda longe a ciência; da literatura somente lhes advém os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito ou ao mister embrutecedor». Não se poderia definir com mais cabal justeza, nem com mais elegante simplicidade, a literatura e sua importância.

Muitos dos escritores brasileiros, tanto do período colonial como do nacional, conquanto sem qualificações propriamente literárias, tiveram todavia uma influência qualquer em a nossa cultura, a fomentaram ou de algum modo a revelam. Bem mereceram, pois, da nossa literatura. Erro fora não os admitisse sequer como subsidiários, a história dessa literatura. É também principalmente como tais que merecem consideradas obras, aliás por outros títulos notáveis, como a de Gabriel Soares ou os Diálogos das Grandezas do Brasil. Os portugueses que no Brasil escreveram, embora do Brasil e de cousas brasileiras, não pertencem à nossa literatura nacional, e só abusivamente pode a história destas ocupar-se deles. O mesmo sucede com outros estrangeiros que aqui fizeram literatura como o hispano-americano Santiago Nunes Ribeiro, o espanhol Pascoal, ou os franceses Emile Adet e Louis Bourgain. Aqueles pelo caráter e estilo de suas letras eram, como os mesmos brasileiros natos, portugueses, e como o eram igualmente de nascimento e forçosamente de sentimento -que este se não naturaliza- como quaisquer outros estrangeiros, não cabem nesta história. No seu primeiro período ela é a dos escritores portugueses nascidos no Brasil, no segundo dos autores brasileiros de nascimento e atividade literária. Os portugueses que para cá vieram fazer literatura após a Independência, Castilhos, Zaluares, Novais e outros, nem pela nacionalidade ou sentimento, nem pela língua ou estilo, não pertencem à nossa literatura, onde legitimamente não se lhes abre lugar. São por todas as suas feições portugueses. Assim, os brasileiros que, alheando-se inteiramente do Brasil, em Portugal exerceram toda a sua atividade literária, como o infeliz e engenhoso Antônio José e o preclaro Alexandre de Gusmão, também não cabem nela. Tudo autoriza a crer que Antônio José e Alexandre de Gusmão não teriam sido literariamente o que foram se houvessem ficado no Brasil. Foi, pois, Portugal, a sua pátria literária, como o Brasil foi a pátria literária de Gonzaga.

Não existe literatura de que apenas há notícia nos repertórios bibliográficos ou quejandos livros de erudição e consulta. Uma literatura, e às modernas de após a imprensa me refiro, só existe pelas obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo e permanente e não momentâneo e contingente. A literatura brasileira (como aliás sua mãe, a portuguesa) é uma literatura de livros na máxima parte mortos, e sobretudo de nomes, nomes em penca, insignificantes, sem alguma relação positiva com as obras. Estas, raríssimas são, até entre os letrados, os que ainda as versam. Não pode haver maior argumento da sua desvalia.

Por um mau patriotismo, sentimento funesto a toda a história, que necessariamente vicia, e também por vaidade de erudição, presumiram os nossos historiadores literários avultar e valorizar o seu assunto, ou o seu próprio conhecimento dele, com fartos róis de autores e obras, acompanhados de elogios desmarcados e impertinentes qualificativos. Não obstante o pregão patriótico, tais nomes e obras continuaram desconhecidos eles e elas não lidas. Não quero cair no mesmo engano de supor que a crítica ou a história literária têm faculdades para dar vida e mérito ao que de si não tem. Igualmente não desejo continuar a fazer da história da nossa literatura um cemitério, enchendo-a de autores de todo mortos, alguns ao nascer. No período colonial haverá esta forçosamente de ocupar-se de sujeitos e obras de escasso ou até nenhum valor literário, como são quase todas as dessa época. Não sendo, porém, esse o único da obra literária, nem o ponto de vista estético e só de que podemos fazer a história literária, cumpre do ponto de vista histórico, o mais legítimo no caso, apreciar autores e livros que, ainda àquela luz medíocres, têm qualquer importância como iniciadores, precursores, inspiradores ou até simples indículos de movimentos ou momentos literários. É justamente naquele período de formação, o mais insignificante sob o aspecto estético, mas não o menos importante do ponto de vista histórico, que mais numerosos se nos depararão obras e indivíduos de todo mofinos. Temos, porém, de contar com eles, pois nessa formação atuaram sequer com o seu exemplo e ajudaram a manter a tradição literária da raça. No segundo período da constituição da literatura a que, sem maior impropriedade, já podemos chamar de nacional, cumpre-nos ser ainda mais escassos em admitir tipos de insuficiente representação literária. Cabe excluir-lhe da história, que deve ser a da literatura viva, indivíduos e obras que virtudes de ideação ou de expressão não assinalaram bastante para poderem continuar estimados além do seu tempo. Obras que apenas o acompanharam, sem nele influírem ou se distinguirem, ou que nem ao menos lhe representam dignamente o espírito e capacidade, ou ainda que não sejam a expressão de uma conspícua personalidade, apenas terão lugar à margem da literatura e da sua história. Parece um critério, não infalível mas seguro, de escolha, a mesma escolha feita pela opinião mais esclarecida dos contemporâneos, confirmada pelo juízo da posteridade. Raríssimo é que esta seleção, mesmo no Brasil, onde é lícito ter por menos alumiada a opinião pública, não seja ao cabo justa, e só os que lhe resistem são dignos da história literária. Não pode esta, a pretexto de opiniões pessoais de quem a escreve, desatender à seleção natural que o senso comum opera nas literaturas. Cumpre-lhe antes acatá-la se não tem argumentos incontestáveis a opor-lhe. Em que pese à nossa pretensão de letrados, são os eleitos daquela opinião os que cabem na história da literatura, que não queira invadir o domínio da bibliografia nem merecer o reproche de simplesmente impressionista.

A história da literatura brasileira é, no meu conceito, a história do que da nossa atividade literária sobrevive na nossa memória coletiva de nação. Como não cabem nela os nomes que não lograram viver além do seu tempo também não cabem nomes que por mais ilustres que regionalmente sejam não conseguiram, ultrapassando as raias das suas províncias, fazerem-se nacionais. Este conceito presidiu à redação desta história, embora com a largueza que as condições peculiares à nossa evolução literária impunham. Ainda nela entram muitos nomes que podiam sem inconveniente ser omitidos, pois de fato bem pouco ou quase nada representam. Porém uma seleção mais rigorosa é trabalho para o futuro.

Os elementos biográficos, necessários à melhor compreensão do autor e da sua época literária, como outros dados cronológicos, são da maior importância para bem situar nestas obras e autores e indicar-lhes a ação e reação. A história literária deve, porém, antes ser a história daquelas do que destes. Obras e não livros, movimentos e manifestações literárias sérias e conseqüentes, e não modas e rodas literárias, eiva das literaturas contemporâneas, são, a meu ver, o imediato objeto da história da literatura. Um livro pode constituir uma obra, vinte podem não fazê-la. São obras e não livros, escritores e não meros autores que fazem e ilustram uma literatura. Em a nossa deparam-se-nos a cada passo sujeitos que sem vocação nem engenho literário, embora não de todo sem entendimento ou estro, produziram, geralmente em moços, um livro, um ou mais poemas ou outra pequena e não repetida obra literária. Outros até a repetem em maior número de volumes. Mais que a vocação que não tinham, moveu-os a vaidade, a presunção da notoriedade que a autoria dá ou quejando passageiro estímulo. No reinado de D. Pedro II, monarca amador de letras e caroável aos letrados, por lhe armar à benevolência e patrocínio, foi comum fingirem-se muitos de amantes daquelas e as praticarem, mesmo assiduamente, mais porventura do que lhes pedia a vocação ou consentia o talento. Alguma vez foi esse labor sincero, se bem que efeito de uma inspiração circunstancial e momentânea, que se não repetindo descobre-lhe a insuficiência. Tais autores esporádicos, amadores sem engenho nem capacidade literária, e tais obras casuais, produtos de uma inspiração fortuita ou interesseira, não pertencem à literatura e menos à sua história.

Seja qual for o nosso parecer sobre o valor da obra literária, isolada ou em relação com o seu meio e tempo, prevalece a noção do senso comum que em todo caso ela precisa de virtudes de pensamento e de expressão com que logre a estima e agrado geral. A que não as tiver é obra de nascença morta. As qualidades de expressão, porém, não são apenas atributos de forma sob o aspecto gramatical ou estilístico, senão virtudes mais singulares e subidas de íntima conexão entre o pensamento e o seu enunciado. Não é escritor senão o que tem alguma cousa interessante do domínio das idéias a exprimir e sabe exprimi-la por escrito, de modo a lhe aumentar o interesse, a torná-lo permanente e a dar aos leitores o prazer intelectual que a obra literária deve produzir.

Confesso haver hesitado na exposição da marcha da nossa literatura, se pelos gêneros literários, poesia épica, lírica ou dramática, história, romance, eloqüência e que tais, consagrados pela retórica e pelo uso, ou se apenas cronologicamente, conforme a seqüência natural dos fatos literários. Ative-me afinal a este último alvitre menos por julgá-lo em absoluto o melhor que por se me antolhar o mais consentâneo com a evolução de uma literatura, como a nossa, em que os fatos literários, mormente no período de sua formação, não são tais e tantos que lhes permitam a exposição e estudo conforme determinadas categorias. Nesse período e ainda no seguinte aqueles diferentes gêneros não apresentam bastante matéria à história, sem perigo desta derramar-se ociosamente. Ao contrário expor esses fatos na ordem e segundo as circunstâncias em que eles se passam, as condições que os determinam e condicionam e as feições características que afetam, parece fará mais inteligível a nossa evolução literária com a vantagem de guardar maior respeito ao princípio da última unidade da literatura. Nesta, como na arte e na ciência, é conspícua a função do fator individual. Um escritor não pode ser bem entendido na sua obra e ação senão visto em conjunto, e não repartido conforme os gêneros diversos em que provou o engenho.

Refugi também à praxe das citações mais ou menos extensas dos autores tratados, limitando-as a raros exemplos, quando absolutamente indispensáveis à justificação de algum conceito. É possível, e até provável, que mais de um deste livro se encontre e ajuste, com os de outrem. Apesar da diversidade proverbial dos gostos e da variedade das determinantes das nossas opiniões, não é infinita a capacidade de variação em assuntos dos quais o gosto individual não é mais o único juiz. Forçosamente hão de algumas vezes as nossas opiniões coincidir com alheias. O importante é que as minhas eu as tenha feito com estudo próprio e direto dos fatos e monumentos literários e isso protesto ter sempre feito. Muito presumido e tolo seria o escritor, máxime o historiador literário, que supusesse não dizer senão cousa de todo originais e inéditas ou poder evitar os infalíveis encontros de opiniões:

Il faut être ignorant comme un maître d'école

Pour se flatter de dire une seule parole

Que personne ici-bas n'ait pu dire avant vous.



Por motivos óbvios de discrição literária não se quisera este livro ocupar senão de mortos. Esta norma, porém, era quase impossível segui-la na última fase da nossa literatura, vivendo ainda, como felizmente vivem, alguns dos principais representantes dos movimentos literários nela ocorridos; calar-lhes os nomes seria deixar suspensa a história desses movimentos. Ainda assim apenas ocasionalmente, por amor de completar ou esclarecer a exposição, se dirá de vivos.

Tal o espírito em que após mais de vinte e cinco anos de estudo da nossa literatura empreendo escrever-lhe a história. Não me anima, em toda a sinceridade o digo, a presunção de encher nenhuma lacuna nem de prevalecer contra o que do assunto há escrito, certamente com maior cabedal de saber e mais talento. Não há matéria que dispense novos estudos. Existe sempre, em qualquer uma, lugar para outros labores. Não desconheço o que devo aos meus beneméritos predecessores desde Varnhagen até o Sr. Sílvio Romero.

Pela cópia, valia e influência de sua obra de investigação da nossa história literária, é aquele o verdadeiro fundador da história da nossa literatura. Depois dele esta, em que pese à ingrata presunção em contrário, não fez mais que repeti-lo, ampliando-o. Cronologicamente, não o ignoro, o precederam, Cunha Barbosa, Norberto Silva, Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva, Bouterwek, Sismonde de Sismondi e Ferdinand Denis. Nenhum, porém, fez investigações originais ou estudos acurados e alguns apenas se ocuparam da nossa literatura ocasional e episodicamente. E todos, repito, até o advento de Varnhagen, a fizeram superficialmente, apenas repetindo parcas noções hauridas em noticiadores portugueses, divagando retoricamente a respeito, sem nenhum ou com escasso conhecimento pessoal da obra literária aqui feita. Decididamente o primeiro que o teve cabal foi Varnhagen. Prestante e estimável como recolta de documentos da poesia brasileira, que sem ele se teriam talvez perdido, tem somenos mérito como informação histórica o Parnaso Brasileiro, do Cônego Januário da Cunha Barbosa. Pereira da Silva nenhuma confiança e pouca estima merece como historiador literário. Nunca investigou seriamente coisa alguma e está cheio de erros de fato e de apreciação já no seu tempo indesculpáveis. Magalhães apenas mostrou a sua ignorância do assunto, que não estudou, limitando-se a uma amplificação retórica. Depois de Varnhagen é Norberto Silva o mais operoso, o mais seguro dos primitivos estudiosos da nossa literatura, cuja história projetou escrever. As suas numerosas contribuições para ela, infelizmente na maior parte avulsas e dispersas em prefácios, revistas e jornais, são geralmente relevantes. Aproveitando inteligentemente o trabalho destes e de outras fontes de informação e as notícias e esclarecimentos pessoais de Magalhães e Porto Alegre, o austríaco Fernando Wolf publicou (Berlim, 1863) a sua ainda hoje muito estimável Histoire de la Littérature Brésilienne, a primeira narrativa sistemática e exposição completa, até aquela data, da nossa atividade literária, compreendendo o Romantismo. Trouxe-a até os nossos dias o Sr. Dr. Sílvio Romero numa obra que quaisquer que sejam os seus defeitos não é menos um distinto testemunho da nossa cultura literária no último quartel do século passado. A História da Literatura Brasileira do Sr. Dr. Sílvio Romero é sobretudo valiosa por ser o primeiro quadro completo não só da nossa literatura mas de quase todo o nosso trabalho intelectual e cultura geral, pelas idéias gerais e vistas filosóficas que na história da nossa literatura introduziu, e também pela influência excitante e estimulante que exerceu em a nossa atividade literária de 1880 para cá.

Com diverso conceito do que é literatura, e sem fazer praça de filosofia ou estética sistemática, aponta esta apenas a fornecer aos que porventura se interessem pelo assunto uma noção tão exata e tão clara quanto em meu poder estiver, do nosso progresso literário, correlacionado com a nossa evolução nacional. E foi feita, repito-o desenganadamente, no estudo direto das fontes, que neste caso são as mesmas obras literárias, todas por mim lidas e estudadas, como aliás rigorosamente me cumpria.

Rio, 4 de dezembro de 1912.

José Veríssimo

A primitiva sociedade colonial

O início da colonização do Brasil pelos portugueses coincidiu com a mais brilhante época da história deste povo e particularmente com o mais notável período da sua atividade mental. É o século chamado áureo da sua língua e literatura, o século dos seus máximos prosadores e poetas, com Camões à frente.

Essa curta renascença geral e florescimento literário de Portugal não passou, porém, nem podia passar, à sua grande colônia americana. Se aquela interessava à massa da nação, que lhe assistia às manifestações e experimentava os efeitos, esta apenas tocava o círculo estreito que ali, como então em toda a Europa, advertia em poetas e literatos. Roda de fidalgo, de cortesãos, de eclesiásticos, dos quais, justamente os mais cultos, raríssimos se iam a conquistas e empresas ultramarinas. O grosso dos que se nelas metiam eram da multidão ignara que constituía a maioria da nação, o «vulgo vil sem nome» de que, com o seu desdém de fidalgo e letrado, fala o Camões, chefiados por barões apenas menos incultos do que eles. Nem o empenho que os cá trazia lhes consentia outras preocupações que as puramente materiais de a todo o transe assenhorearem a terra, lhe dominarem o gentio e aproveitarem a riqueza, exagerada pela sua mesma cobiça.

Não é, pois, de estranhar que em nenhum dos primeiros cronistas e noticiadores do Brasil, no primeiro e ainda no segundo século da colonização, mesmo quando já havia manifestações literárias, se não encontre a menor referência ou alusão a qualquer forma de atividade mental aqui, a existência de um livro, de um estudioso ou cousa que o valha. O padre Antônio Vieira, homem de letras como era, em toda a sua obra, abundante de notícias, referências e informes do Brasil do século XVII, apenas uma vez, acidental e vagamente lhe alude à literatura. Foi quando, escrevendo ao mordomo-mor do Reino, contou, jogando de vocábulo, que na Bahia, «sobre se tirarem as capas aos homens (por decisão de um novo governador) têm dito mil lindezas os poetas, sendo maior a novidade deste ano (1682) nestes engenhos do que nos de açúcar.»

Entretanto no tempo de Vieira, a maior parte do século XVII, já no Brasil havia manifestações literárias no medíocre poema de Bento Teixeira (1601) e nos poemas e prosas ainda então inéditas mas que circulariam em cópias ou seriam conhecidas de ouvido, de seu próprio irmão Bernardo Vieira Ravasco, do padre Antônio de Sá, pregador, de Eusébio de Matos e de seu irmão Gergório de Matos, o famoso satírico, de Botelho de Oliveira, sem falar nos que incógnitos escreviam relações, notícias e crônicas da terra, um Gabriel Soares (1587), um Frei Vicente do Salvador, cuja obra é de 1627, o ignorado autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil e outros de que há notícia.

Não trouxeram, pois, os portugueses para o Brasil algo do movimento literário que ia àquela data em sua pátria. Mas evidentemente trouxeram a capacidade literária já ali desde o século XIII pelo menos revelada pela sua gente e que naquele em que aqui se começaram a estabelecer atingia ao seu apogeu. As suas primeiras preocupações de ordem espiritual, que possamos verificar, produziram-se quase meio século após o descobrimento com a chegada dos primeiros jesuítas em 1549, e sob a influência destes. As escolas de ler, escrever e contar, gramática latina, casos de consciência, doutrina cristã e mais tarde retórica e filosofia escolástica, logo abertas por esses padres nos seus «colégios», imediatamente à sua chegada fundados, foram a fonte donde promanou, no primeiro século, toda a cultura brasileira e com ela os primeiros alentos da literatura.

A terra achada «por tanta maneira graciosa» pelos seus descobridores, e que aos primeiros que a descreveram se deparou magnifica, só muito mais tarde entrou a influir no ânimo dos seus filhos os incitamentos das suas excelências. E isso de leve e de passagem, embora com repetições que fariam dessa impressão uma sensação duradoura e característica em a nossa poesia.

A gente que a habitava, broncos selvagens sem sombra de literatura, e cujos mitos e lendas passaram de todo despercebidos aos primeiros colonizadores e a seus imediatos descendentes, não podia de modo algum influir na primitiva emoção poética brasileira. Só com o tempo e muito lentamente, pelo influxo de sua índole, do seu temperamento, da sua idiossincrasia na gente resultante dos seus primeiros cruzamentos com os europeus, viria ela a atuar no sentimento brasileiro. Mas ainda por forma que ninguém pode, sem petulância ou inconsciência, gabar-se de discriminar e explicar. É da mesma natureza indireta, reflexa, imponderável, a influência que possa haver tido e que certamente teve no mesmo sentimento o elemento africano, que desde o primeiro século se caldeou com os portugueses e o índio para a constituição do nosso povo. Ainda que o gentio selvagem, com quem entraram os conquistadores em contato, tivesse uma poesia de forma métrica, o que é mais que duvidoso, não se descobre meio de demonstrar não só que ela houvesse em tempo algum influído na inspiração dos nossos primeiros poetas, ou como poderia ter influído. Absolutamente se não descobriu até hoje, mau grado as asseverações fantasistas e gratuitas em contrário, não diremos um testemunho, mas uma simples presunção que autorize a contar quer o índio, quer o negro, como fatores da nossa literatura. Apenas o teriam sido mui indiretamente como fatores da variedade étnica que é o brasileiro. Mas ainda assim a determinação com que cada um deles entrou para a formação da psique brasileira, e portanto das suas emoções em forma literária, é impossível, se não nos queremos pagar de vagas palavras e conceitos especiosos. Há bons fundamentos para supor que os primeiros versejadores e prosistas brasileiros eram brancos estremes, e até de boa procedência portuguesa. É, portanto, o português, com a sua civilização, com a sua cultura, com a sua língua e literatura já feita, e até com o seu sangue, o único fator certo, positivo e apreciável nas origens da nossa literatura. E o foi enquanto se não realizou o mestiçamento do país pelo cruzamento fisiológico e psicológico dos diversos elementos étnicos que aqui concorreram, do qual resultou o tipo brasileiro diferenciado por várias feições físicas e morais do seu principal genitor, o português. Forçosamente lenta em fazer-se, e ainda mais em atuar espiritualmente, não podia esta mestiçagem haver influído na mente brasileira senão superficial, indefinida e morosamente. Em todo caso as duas raças inferiores apenas influíram pela via indireta da mestiçagem e não com quaisquer manifestações claras de ordem emotiva, como sem nenhum fundamento se lhes atribuiu.

A sociedade que aqui existiu no primeiro século da conquista e da colonização (1500-1600) e a que desta se foi desenvolvendo pela sua multiplicação, logo aumentada pelo cruzamento com aquelas raças, era em suma a mesma de Portugal nesse tempo, apenas com o amesquinhamento imposto pelo meio físico em que se encontrava. A todos os respeitos nela predominava o português. Índios e negros eram apenas o instrumento indispensável ao seu propósito de assenhorear e explorar a terra e à necessidade de sua preparação. Salvo exceções diminutas, esse português pertencia às classes inferiores do Reino, e quando acontecia não lhes pertencer pela categoria social, era-o de fato pelas condições morais e econômicas. Soldados de aventura, fidalgos pobres e desqualificados, assoldadados de donatários, capitães-mores e conquistadores, tratantes ávidos de novas mercancias, clérigos de nenhuma virtude, gente suspeita à polícia da Metrópole, além de homiziados, de degradados, eram, em sua maioria, os componentes da sociedade portuguesa, para aqui transplantada. Os seus costumes dissolutos, a sua indisciplina moral e mau comportamento social são o tema de acerbas queixas não só dos jesuítas, que acaso no seu rigor de moralistas austeros lhes exageravam os defeitos, mas das autoridades régias dos cronistas e mais noticiadores. Justamente ao tempo da constituição das capitanias gerais a sociedade portuguesa tinha descido ao último grau de desmoralização e relaxamento de costumes. Um dos mais perspicazes observadores da primitiva sociedade colonial brasileira, o autor incógnito dos Diálogos das Grandezas do Brasil, explicando em 1618 por que apesar da abundância da terra era tanta a carestia das cousas de maior necessidade, atribui a culpa à negligência e pouca indústria dos moradores que todos não pensavam senão em voltar ao Reino sem cuidarem do adiantamento e futuro da mesma terra. «O Estado do Brasil todo em geral, escreve ele no seu estilo ingenuamente vernáculo, se forma de cinco condições de gente a saber: marítima, que trata de suas navegações e vem aos portos das capitanias deste Estado com suas naus e caravelas carregadas de fazendas que trazem por seu frete, aonde descarregam e adubam as suas naus e as tornam a carregar, fazendo outra vez viagem com carga de açúcares, pau do Brasil e algodão para o Reino, e de gente desta condição se acha, em qualquer tempo do ano, muita pelos portos das capitanias. A segunda condição de gente são os mercadores, que trazem do Reino as suas mercadorias a vender a esta terra, e comutar por açúcares, do que tiram muito proveito; e daqui nasce haver muita gente dessa qualidade nela com as suas lojas de mercadorias abertas, e tendo correspondência com outros mercadores do Reino que lhas mandam. Como o intento destes é fazerem-se somente ricos pela mercancia, não tratam do aumento da terra, antes pretendem de a esfolarem tudo quanto podem. A terceira condição de gente são oficiais mecânicos de que há muitos no Brasil de todas as artes, os quais procuram exercitar, fazendo seu proveito nelas, sem se lembrarem de nenhum modo do bem comum. A quarta condição de gente é de homens que servem a outros por soldada que lhe dão, ocupando-se em encaixotamento de açúcar, feitorizar canaviais de engenho e criarem gados, com nome de vaqueiros, servirem de carreiros e acompanharem seus amos, e de semelhante gente há muita por todo este Estado, que não tem nenhum cuidado do bem geral. A quinta condição é daqueles que tratam da lavoura e estes tais se dividem ainda em duas espécies: uma a dos que são mais ricos, têm engenhos com o título de senhores deles, nomes que lhes cede Sua Majestade e suas cartas e provisões, e os demais têm partidos de canas; a outra, cujas forças não abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos, legumes, e todos, assim uns como os outros, fazem as suas lavouras e granjearias com escravos da Guiné...; e como o de que vivem é somente do que granjeiam com os tais escravos, não lhes sofre o ânimo ocupar a nenhum deles em cousa que não seja tocante a lavoura, que professam de maneira que têm por tempo perdido o que gastam em plantar uma árvore que lhes haja de dar fruto em dois ou três anos, por lhes parecer que é muita demora; porque se ajunta a isto o cuidar cada um deles que logo em breve tempo se hão de embarcar para o Reino, e não basta a desenganá-los desta opinião mil dificuldades que a olhos vistos lhe impedem podê-la fazer; por maneira que este pressuposto que têm todos em geral de se haverem de ir para o Reino com a cobiça de fazerem mais quatro pães de açúcar, quatro covas de mantimentos, não há homem em todo este Estado que procure nem se disponha a plantar árvores frutíferas nem fazer as benfeitorias das plantas que se fazem em Portugal e pelo conseguinte se não dispõem a fazerem criações de gado e outras, e se algum o faz é em muita pequena quantidade e tão pouca que a gasta toda consigo mesmo e com a sua família. E daí resulta a carestia e falta destas coisas...»

É o depoimento de uma testemunha de vista, inteligente, bem intencionada e insuspeita por sua nacionalidade, sobre os elementos de que se ia formando a vida econômica da nova sociedade portuguesa na América, e a primeira delegação do desapego à terra pelos seus mesmos povoadores, daquilo que um historiador nosso chamou transoceanismo (Capistrano de Abreu). Ainda mesmo para a apreciação do presente, não perderam todo o interesse estas suas observações, cuja exatidão aliás outros documentos contemporâneos confirmam.

Assim escreve no começo do século XVII o nosso historiador Frei Vicente do Salvador: «E deste modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraizados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal, e se as fazendas e bem que possuem souberam falar também lhes houveram de ensinar a dizer como os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é Papagaio Real, para Portugal, porque tudo querem para lá. E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra não como senhores mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.»

Não numera o autor do Diálogos nem os oficiais públicos da governança, nem a clerezia, nem os homens d'armas da conquista e defesa da colônia. Eram a gente parasita sempre suspirosa por tornar à terra, sem nenhum ânimo de ficada aqui. Oficiais e mecânicos e ainda somenos indivíduos, mal aqui chegados tornavam-se de uma filáucia que deu na vista a mais de um observador. A escravidão exonerando-os de trabalhar e habituando-os a viver como no Reino viam viverem os fidalgos, insuflavam-se das fumaças destes. Brandônio, no terceiro Diálogo, observava ao seu interlocutor Alviano que a gente do Brasil era mais afidalgada do que ele imaginava, e aos seus escravos incumbia todo o trabalho. Com estes informes devemos crer não andam muito longe da verdade os noticiadores da corrupção que logo eivou a primitiva sociedade colonial brasileira.

O seu primeiro estabelecimento foi, com a única exceção de São Paulo, todo no litoral, à beira-mar. As suas vilas e cidades primitivas, desde São Vicente e Olinda até a do Salvador, enquanto não entraram a construir casas de adobe à moda de Portugal, não se diferenciariam notavelmente das aldeias indígenas aqui encontradas, construídas de paus toscos ou folhagens. E como ali continuariam a viver desconfortavelmente, incomodamente, sordidamente, faltos de móveis, de alfaias e de asseio, segundo viviam os mesmos fidalgos e burgueses no Reino.

As mulheres brancas eram raras, as donas e senhoras raríssimas. As famílias existentes na maior parte teriam vindo constituídas de Portugal e muito poucas seriam. As formadas aqui, por motivo de escassez de mulheres brancas, seriam ainda menos. As demais resultavam de uniões irregulares dos colonos com as suas negras, conforme principiaram os portugueses a chamar às índias, ou do seu casamento com estas, como começou a acontecer por influência dos jesuítas, e mais tarde foi acoroçoado pelo rei. As numerosas filhas ilegítimas ou legitimadas do Caramuru casaram com fidalgos e soldados da conquista e seriam mamelucas ainda escuras, do primeiro sangue, e umas broncas caboclas. Ao contrário do que passou na América inglesa, excetuando algum eclesiástico ou alto funcionário, quase não veio para o Brasil nenhum reinol instruído, e ainda incluindo estes pode dizer-se que no primeiro século da colonização não houve aqui algum representante da boa cultura européia dessa gloriosa era.

O mais antigo assento da primeira sociedade brasileira, que não desmereça o nome de civilizada, foi a capitania de Pernambuco de Duarte Coelho. Este fidalgo da primeira nobreza portuguesa e ilustrado por bizarros feitos militares na Índia desde 1534 se estabeleceu na sua capitania com a sua mulher, da casa dos Albuquerques, um cunhado, outros fidalgos e cavaleiros de suas relações ou parentescos, e muitos colonos, os melhores talvez dos que nesses tempos vieram ao Brasil. A sua colônia foi a mais bem ordenada e a mais em governada de todas e a que mais prosperou. Mas mesmo aí não faltam testemunhos da descompostura dos costumes coloniais. Jerônimo de Albuquerque, cunhado do austero donatário, quando casou de ordem da rainha escandalizada com a sua libertinagem, fêz-se acompanhar de onze filhos naturais que tivera, uns da filha do tuxaua Arco Verde, outros de suas mancebas índias. A ordem e polícia material criada pela forte e esclarecida vontade de Duarte Coelho parece ter aí correspondido ao princípio da maior homogeneidade social, nos elementos mais coerentes da colonização e no maior número e melhor qualidade dos primeiros colonos. Também as da terra favoreciam-lhe o aproveitamento, facilitando ainda, com o seu adiantamento e a obra do seu donatário, pela maior proximidade do Reino e mais freqüentes e rápidas comunicações com ele. Duarte Coelho não parece ter sido um fidalgo sem letras, e as apreciaria porque elas, com João de Barros, o tinham celebrado e a parentes seus por suas façanhas na Índia. Dois dos seus descendentes e sucessores na capitania-mor de Pernambuco foram homens de letras. Não admira, pois, que desta sociedade onde já havia sociabilidade e luxo, saísse a mais antiga obra literária brasileira, a Prosopopéia, de Bento Teixeira, em 1601.

A fundação do governo-geral da Bahia e conseqüente centralização da vida colonial da cidade do Salvador, expressamente fundada para esse efeito, criou na segunda metade do século XVI, quando justamente começava a definhar a prosperidade de Pernambuco, a segunda sociedade menos grosseira que houve no Brasil. Não era tão escolhida como a de Duarte Coelho a colônia trazida por Tomé de Sousa. Era, porém, mais numerosa e compunha-se de mais variados e a certos respeitos mais prestáveis elementos de colonização, oficiais e mestres de ofícios, mecânicos, técnicos, artesãos, além dos agricultores e obreiros comuns. Trouxe mais o governador-geral a primeira leva daqueles padres que iam ser o principal instrumento da civilização do país, como ela somente se podia fazer aqui -os jesuítas. A cidade cresceu em número e importância de prédios e aumentou em população. Os jesuítas fundaram colégio e outros religiosos conventos distribuindo todos instrução aos meninos portugueses e indígenas. Ao redor da cidade fizeram-se engenhos. Todo o Recôncavo se foi povoando, contribuindo para o aumento de Salvador, que se fazia uma pequena corte tão disparatada nos seus vários aspectos, costumes e vestuários, quanto o eram os elementos que a formavam: fidalgos, cavaleiros, funcionários, mecânicos, soldados, índios, negros, bem trajados uns, maltrapilhos outros, seminus aqueles. Gibões de veludo e seda bordados de ouro e enfeites de penas à guisa de roupa. Muitos frades, padres em demasia.

Por divertimentos comuns, ou jogos ilícitos ou festas de igreja, e extraordinariamente touradas, cavalhadas, canas. Soltura de costumes, viver desregrado, hábitos de ociosidade. Enfim a vida das sociedades coloniais incipientes, compostas de elementos disparatados, e dispostos a desforrarem-se da disciplina e constrangimento das metrópoles por uma vida à manga lassa. Procuravam conter-lhe os ímpetos e desmandos, aliás com pouca eficácia, o governador e seus auxiliares e os padres, principalmente, a acreditá-los, os jesuítas, que aliás constantemente ralham contra esta sociedade. O decorrer dos tempos lhe não modificou consideravelmente a constituição política e moral. Ela permaneceu essencialmente a mesma na sua feição étnica, na sua constituição fisiológica, como na sua formação psicológica, isto é, permaneceu portuguesa, ao menos até as guerras holandesas, na primeira metade do século XVII. Por isso é que durante todo o período colonial, salvo algumas raras, mofinas e intermitentes manifestações de nativismo, a literatura aqui é inteiramente portuguesa, de inspiração, de sentimento e de estilo. Não faz senão imitar inferiormente, sem variedade nem talento, a da mãe pátria. E milagre seria se assim não fosse.

Capítulo II

Primeiras manifestações literárias

Os versejadores

As literaturas começam sempre por um livro, que freqüentemente não tem outro mérito que o da prioridade. Literatura oral, como foi primeiramente a nossa, é apenas uma acepção particular, larga demais e abusiva desse vocábulo. Não importa que esse livro seja uma obra-prima ou sequer estimável; basta que tenha a intenção, o feitio e o caráter da obra literária. E que se lhe possa descobrir, ou mesmo emprestar, uma representação da sociedade ou da vida que o produziu. Mas o só fato de ser o ponto de partida de uma literatura lhe marca na história dela um lugar irrecusável.

Qual foi o brasileiro que, quando ainda mal se esboçava aqui uma sociedade, escreveu e publicou uma obra literária?

Há várias e incertas notícias de uma crônica escrita em Pernambuco talvez antes do século de 600. Seria porventura o primeiro escrito feito no Brasil. Sobre se não saber nada a seu respeito, nem do seu autor, sequer se era brasileiro, é duvidoso tivesse essa obra alguma importância para a história da nossa literatura. Mas independentemente da sua existência e qualificação literária «foi Pernambuco o lugar em que abrolhou a flor literária em nossa pátria».

«Para este resultado -explana o insigne sabedor que o verificou- concorreu mais de um fator. Pernambuco desenvolveu-se regularmente; Duarte Coelho desde o desembarque e empossamento da terra domou os índios, que nunca mais fizeram-lhe frente com bom êxito; os colonos viram logo remunerados os seus labores; o solo era fértil; a vida fácil; a sociabilidade e o luxo consideráveis; a população branca em geral de origem comum (Viana) apresentando menos elementos disparatados, mais depressa tendia à unificação; o sentimento característico do nosso século XVI -o desprezo e desgosto pela terra brasileira, o transoceanismo... ali primeiro arrefeceu. Acrescente-se a facilidade e freqüência de viagens à Europa, a conseqüente abundância de comodidades, cuja ausência algures tornava o país detestado e detestável; o natural versar de livros históricos, como o de João de Barros, em que fulgiam os nomes de Albuquerque e Duarte Coelho, a tendência literária dos capitães-mores de terra... que escreveram livros.»

Em 1601 saía em Lisboa, da imprensa de Antônio Alvarez, um opúsculo de dezoito páginas, in-4º, trazendo no alto da primeira do texto este título: Prosopopéia Dirigida a Jorge Dalbuquerque Coelho, Capitão, e Governador de Pernambuco, Nova Lusitana, etc. O nome do autor Bento Teyxeyra vinha, assim escrito, embaixo do Prólogo, no qual fazia ao seu herói o oferecimento da obra.

É um poema de noventa e quatro oitavas, em verso endecassílabo, sem divisão de cantos, nem numeração de estrofes, cheio de reminiscências, imitações, arremedos e paródias dos Lusíadas. Não tem propriamente ação, e a prosopopéia donde tira o nome está numa fala de Proteu, profetizando post facto, os feitos e a fortuna, exageradamente idealizados, dos Albuquerques, particularmente de Jorge, o terceiro donatário de Pernambuco, ao qual é consagrado.

Não tem mérito algum de inspiração, poesia ou forma. Afora a sua importância cronológica de primeira produção literária publicada de um brasileiro, pouquíssimo valor tem. No meio da própria ruim literatura poética portuguesa do tempo -aliás, a só atender à data em que possivelmente foi este poema escrito, a melhor época dessa literatura- não se elevaria este acima da multidão de maus poetas iguais.

O poeta ou era de si medíocre, ou bem novo e inexperiente quando o escreveu. Confessa aliás no seu Prólogo, já gongórico antes do gongorismo (tanto o vício é da nossa raça) que eram as suas «primeiras primícias». Não se sabe se veio a dar fruto mais sazonado. Nos seus setecentos e cinqüenta e dois versos apenas haverá algum notável, pela idéia ou pela forma. São na maioria prosaicos, como banais são os seus conceitos. A língua não tem a distinção ou relevo, e o estilo traz já todos os defeitos que maculam o pior estilo poético do tempo, e seriam os distintivos da má poesia portuguesa do século seguinte, o vazio ou o afetado da idéia e a penúria do sentimento poético, cujo realce se procurava com efeitos mitológicos e reminiscências clássicas, impróprios e incongruentes, sem sombra do gênio com que Camões, com sucesso único, restaurara esses recursos na poesia do seu tempo.

Conforme a regra clássica, começa o poema pela invocação. É de justiça reparar que começa com uma novidade, a invocação é desta vez dirigida ao Deus dos cristãos. Além do Deus, invoca a Jorge de Albuquerque «o sublime Jorge em que se esmalta a estirpe de Albuquerque excelente» com versos diretamente imitados do Lusíadas. A memória fresca do poema de Camões está por todo o poema do nosso patrício, em que não há só reminiscências, influências mas versos imitados, parodiados, alguns quase integralmente transcritos, e ainda alusões à grande epopéia portuguesa. Nada porém comparável ao gênio criador com que Camões soube imitar e superar os seus modelos.

Depois da invocação preceitual segue-se no poema de Bento Teixeira, como também era de regra, a «narração» expressamente designada do livro.

A ação do poema é falada ou narrada. Proteu a diz de sobre o recife de Pernambuco. Seis estrofes o descrevem, de um modo insípido, pura e secamente topográfico:

Para a parte do sul onde a pequena

ursa, se vê de guardas rodeada,

onde o Céu luminoso mais serena,

tem sua influição, e temperada.

Junto da nova Lusitânia ordena,

a natureza, mãe, bem atentada,

um porto tam quieto e tam seguro,

que pera as curvas naus serve de muro.



E assim por diante sem nada que lhe eleve o tom até à poesia.

Dali, por ordem de Netuno, profetiza Proteu, num largo canto em louvor dos Albuquerques e nomeadamente de Jorge, a quem se endereça esta prosopopéia. Vê Proteu:

A opulenta Olinda florescente

chegar ao cume do supremo estado

será de fera e belicosa gente

o seu largo distrito povoado

por nome terá, Nova Lusitânia,

das leis isenta da fatal insônia.



Esta Lusitânia será governada por Duarte Pacheco «o grão Duarte» que o poeta, pela voz de Proteu, compara a Enéias, a Públio Cipião, a Nestor e a Fábio. E tudo o que até então tinha passado com os Pachecos e Albuquerques, já celebrados por Camões, ocorre a Proteu que o profetiza posteriormente desmedindo-se no louvor e encarecimento. Acaba o poema pouco originalmente, com as despedidas do poeta, repetindo a promessa de voltar com um novo canto,

Por tal modo que cause ao mundo espanto.



Jorge de Albuquerque Coelho, o motivo senão o herói deste poema, era filho de Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, onde Jorge nasceu, em Olinda, em 1539. O enfático padre Loreto Couto, falando dele como de sujeito verdadeiramente extraordinário, assevera que «ainda que Pernambuco não tivera produzido outro filho bastaria este para a sua imortal glória». E mais, que «foi este insigne pernambucano um daqueles espíritos raros para cuja produção tarda séculos inteiros a natureza, pois à sua rara virtude e insigne valor, acrescentou uma erudição rara e conhecimento das letras humanas».

Uma e outro não teriam sido adquiridos no Brasil. Se são exatas, como parece, as notícias de Jaboatão, Jorge Albuquerque criou-se em Portugal, onde aos 14 anos se achava. Com 20 voltou a Pernambuco, donde tornou ao Reino, em 1555, aos 26 anos, após a sua brilhante campanha contra os índios da capitania. Nesta viagem para Portugal sofreu o naufrágio célebre da nau Santo Antônio que o levava, cuja relação, escrita pelo piloto Afonso Luís e reformada por Antônio de Castro, foi atribuída a Bento Teixeira. Em Portugal «foi de todos aplaudido de cortesão, generoso, discreto, liberal, afável e modesto». Em suma, se havemos de crer os seus panegiristas mais próximos dele e os que os copiaram, teria sido um portento de gentilezas guerreiras e de virtudes civis.

Poemas como a Prosopopéia do nosso patrício, que este herói motivou, em tudo medíocre, endereçados a potentados e magnates, armando-lhes à benevolência e proteção, eram freqüentíssimos e superabundavam na bibliografia da época.

Em todos os tempos poetas e literatos foram inclinadíssimos à bajulação dos poderosos. Casando-se geralmente pouco o seu gênio com o árduo de uma existência de trabalho e esforço próprio, e amando sobretudo os lazeres da vida ociosa, propícios às suas invenções e imaginações, para o haverem sacrificam de boa mente à vaidade dos grandes dos quais sem mais fadiga que a de contá-los e louvá-los, esperam lucrar tais ócios, muito seus queridos. Igualmente caroáveis da grandeza, pompa e luxo desses magnates, com os quais facilmente se embevecem, à satisfação desse gosto imolam brios e melindres. Em Portugal tais poetas e literatos faziam até parte da domesticidade da corte ou das grandes casas fidalgas e ricas, que os aposentavam e pensionavam, em troca dos poemas e escrituras com que infalivelmente celebravam a família em cada um dos seus sucessos domésticos, nascimentos, casamentos, mortes, façanhas guerreiras, vantagens sociais obtidas, aniversários. Como havia destes poetas efetivos, privados, caseiros, os havia também ocasionais, mas não menos prontos ao louvor hiperbólico, à lisonja enfática, à bajulação rasteira, em câmbio da proteção solicitada ou em paga de alguma graça obtida. Na sociedade de então o homem de letras, ainda sem público que o pudesse manter, e até forçado e apenas muito limitadamente exercer a sua atividade, quase só dos principais pelo poderio e riqueza, que acaso lhes estimassem as prendas sem os estimar a eles, podia viver. Freqüentemente eram estes que lhe mandavam imprimir as obras, que sem tais patronos dificilmente achariam editores. Tais costumes, explicáveis e porventura desculpáveis pelas condições do tempo, passaram naturalmente do Reino à sua colônia da América, onde os vice-reis, governadores e capitães-generais e mores faziam de reis pequenos, e os fazendeiros, senhores de engenho e outros magnates locais substituíram e arremedavam os grãos-senhores da Metrópole. Tanto passaram que desde as suas primeiras manifestações, a poesia, e depois toda a espécie de literatura, inspirou-se grandemente aqui daqueles motivos, e foi consideravelmente áulica. Aulicismo, arcadismo, gongorismo foram sempre aliás traços característicos das letras portuguesas.

Quer em Portugal, quer no Brasil duraram estes costumes até o século XVIII. Não sei aliás se é possível dizer estejam de todo extintos. Mais certo será tenham antes variado e se transformado do que desaparecido completamente as formas e modos com que poetas e literatos sempre atiraram ao patrocínio dos poderosos, adulando-os em prosa e verso. Seja que ainda pesa sobre eles essa herança, seja porque continuam a preferir alcançar por tais meios o que só com fadiga e dificuldade lhes daria trabalho mais honesto, certo é não desapareceu o costume de todo. Bento Teixeira fica, pois, sendo, não só o primeiro em data dos poetas brasileiros, mas o patriarca dos nossos «engrossadores» literários. E de ambos os modos progenitor fecundíssimo de incontável prole.

É muito provável que simultaneamente com ele, se não antes, houvesse o Brasil produzido outros versejadores áulicos, isto é, cujo principal motivo de inspiração fosse angariar o patrono de algum poderoso da terra. O mundo dividiu-se sempre entre patronos e clientes. Todavia não sabemos de nenhum que o antecedesse ou viesse ao seu tempo.

Conjetura-se com bons fundamentos houvesse composto o seu poema nos últimos anos do século, com certeza depois do desastre de D. Sebastião em África, em 1578, a que já o poema se refere. Talvez nos arredores de 1596, que neste ano ainda vivia Jorge de Albuquerque e o poema foi composto quando ele vivo.

De Bento Teyxeyra, como ele o assinou, ou Bento Teixeira Pinto, como também lhe escreveram o nome, nada mais se sabe além da parca notícia do bibliógrafo Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, publicada em 1741; que nasceu em Pernambuco e era «igualmente perito na poética e na história». Não diz nem o lugar nem a data do nascimento. Um cronista pernambucano, posterior a Barbosa Machado, o citado padre Couto, noticiador geralmente de segunda mão, apenas acrescenta que era de Olinda. Dele não há nenhuma notícia contemporânea, e estas mesmas vagas informações de mais de um século posteriores, não foram jamais verificadas ou ampliadas por quaisquer investigações ulteriores. Outras notícias que dele há em escritores mais modernos são de pura inventiva de seus autores.

Chama-lhe de «perito na história» o bibliógrafo Machado, e com este o padre Couto, que apenas o repete, por lhe atribuírem ambos a obra em prosa Diálogos das grandezas do Brasil. Como começou a provar Varnhagen em 1872, e pode-se hoje ter por incontestável, essa obra, porventura a mais interessante da primitiva literatura do Brasil, não é de Bento Teixeira. E é pena, pois vale mais do que a sua trivial e insípida Prosopopéia. Como quer que seja, marca esta o primeiro passo dos brasileiros na vida literária, é o primeiro documento da sua vontade e capacidade de continuar na América a atividade espiritual da Metrópole.

Publicada ali, ali mesmo se teria sumido, confundida na massa enorme de quejandas produções. Talvez ficasse até desconhecida no Brasil. Não só não há menção ou memória dela além das duas indicadas, ambas em suma de origem portuguesa, mas outro poeta brasileiro, Manoel Botelho de Oliveira, dando à luz um livro de versos um século depois, gabava-se de ser o primeiro brasileiro que os publicava. E dos dois únicos exemplares originais que se lhe conhecem, o único existente no Brasil, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, veio de Portugal (onde está o outro na Biblioteca Nacional de Lisboa) na coleção de livro do citado Barbosa Machado.

O apreço da terra, mesmo uma exagerada admiração dela, da sua natureza, das suas riquezas e bens, é uma impressão comum nos primeiros que do Brasil escreveram, estranhos e indígenas. Como veremos, será essa impressão que, fazendo-se emoção e estímulo de inspiração, imprimir à nossa literatura o primeiro traço da sua futura diferenciação da portuguesa. Não é desapropositado notar que a primeira manifestação do gênio literário brasileiro é um poema relativo a cousas da terra embora ainda sem emoção que lhe dê maior relevo e significação.

Antes, porém, de Bento Teixeira e de versejadores de igual jaez, que porventura houve, ou simultaneamente com aquele, versejaram também padres jesuítas compondo cantigas devotas para os seus catecúmenos. Esta primitiva literatura jesuítica se não limitava, entretanto, a tais cantigas. Desde que esses padres aqui se estabeleceram, por meado do século XVI, compreendia discursos em prosa e verso, epigramas ou poemas conceituosos alusivos aos motivos das festividades, diálogos em verso ou prosa ou misturados de ambos e cenas dialogadas representadas em tablados ou ramadas à guisa dos autos no Reino, infalivelmente sobre um assunto de devoção e edi-ficação. Comumente misturavam-se neste autos o latim e o português e também o castelhano. Serviam-lhe de atores ou recitadores os índios amansados e menos broncos, algum discípulo europeu dos jesuítas e até um destes padres. Das festividades em que tinham lugar estas manifestações literárias -se tal se lhes pode chamar- dá repetidas notícias o padre Fernão Cardim, deixando ver quão freqüentes e gerais eram em toda a costa brasílica1. Dos autores de tais produções o mais, ou antes o único, conhecido é o padre José de Anchieta, figura tão verdadeiramente venerável que não conseguiu desmerecê-la a admiração carola com que tem sido exalçado. Noticia o seu confrade padre Simão de Vasconcelos que Anchieta «compôs com vivo e raro engenho, muitas obras poéticas, em toda a sorte de metro, em que era mui fácil, todas ao divino e a fim de evitar abusos e entretenimentos menos honestos. Entre estes foram a de mais tomo o livro da vida e feitos de Mem de Sá, terceiro governador que foi deste Estado, em verso heróico latino; várias comédias, passos, éclogas, descrições devotíssimas que ainda hoje andam na sua mesma letra; e a vida da Virgem Senhora Nossa em verso elegíaco»2. Em a sua Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, em 1663, já o mesmo padre assim informava da particular atividade literária do seu eminente companheiro: «Era destro em quatro línguas: portuguesa, castelhana, latina e brasílica; em todas elas traduziu em romances pios com muita graça e delicadeza, as cantigas profanas que então andavam em uso; com fruto das almas, porque deixadas as lascívias não se ouvia pelos caminhos outra cousa senão cantigas ao divino, convidados os entendimentos a isso do suave metro de José»3.

Das suas comédias, ou melhor autos sacros, a mais considerável é a Pregação Universal, circunstancialmente mencionada pelo seu biógrafo, e da qual são conhecidos alguns trechos, como o são algumas outras, bem poucas aliás, composições suas. São puras obras de catequização, devoção e edificação sem intuitos nem qualidades literárias, apenas conhecidas de fragmentos e sem unidade de estilo ou sequer de língua, pois as escrevia, consoante o interesse do momento, em português, latim ou castelhano e ainda em tupi e até misturava estes idiomas. Mas estas mesmas composições, como o seu poema da Vida de Mem de Sá ou da Vida da Virgem Maria, ambos em latim, o que basta para excluí-los da nossa literatura, e mais as suas notícias e informações do Brasil e do trabalho de catequese e colonização que aqui ao seu tempo se fazia, e até a sua Gramática da língua mais usada na costa do Brasil (Coimbra, 1596) estão manifestamente revelando no piedoso jesuíta uma vocação de escritor. Foi seguramente um poeta, menos, porém, nestas obras, a que apenas salva a ingenuidade da intenção e a pureza do sentimento que lhas inspirou, que pelo seu ardente e esquisito sentimento do divino e profunda simpatia com o gentio cuja se fez apóstolo. A sua obra poética, a sua criação é, com a sua puríssima vida, toda votada ao ideal da sua vocação, esse apostolado, que foi simultâneo um milagre de entendimento e de ingenuidade. Quanto às suas composições poéticas, essas apenas lhe autorizam a menção do nome, por outros e melhores títulos glorioso, entre os nossos primitivos versejadores. São tanto literatura como os diversos catecismos bilíngües escritos no período colonial.

Os prosistas

I. Portugueses

A prosa portuguesa chamada, não se sabe ao certo por que, de clássica é do século XVI. Não são, porém, dessa era, mas da seguinte, os seus mais acabados modelos. Apreciada sem os comuns preconceitos do casticismo, verifica-se não atingiu ainda então a expressão cabal e perfeita de um pensamento que por largo e humano merecesse viver.

Desde o século anterior, o sentimento português com as suas especiais qualidades exprimiu-se em magníficas formas poéticas que iniciavam o peculiar lirismo nacional e entravam a dar à poesia portuguesa a sua distinção. Quiçá essa raça sentimental e poética carecia de um pensamento tão particular quanto o era o seu sentimento. Não se lhe encontra a expressão na prosa. O seu foi aliás sempre mesquinho e de repetição. Faltou-lhe imaginação criadora, poder de generalização, faculdades filosóficas. A prosa, a linguagem apropriada ao revelar ficou-lhe em todo o tempo inferior à poesia. Mesmo no período apelidado áureo da literatura portuguesa, a prosa vacilou entre o «estilo metafísico bárbaro dos rudes escritores do século XV», segundo a qualificação de Herculano, e o falso polimento culto do século XVII. Sincretizam-se as duas feições ainda nos melhores escritores dessa época, deparam-se-nos ambas sem grande esforço de procura nos mais afamados.

No Brasil, desde que se começou a escrever prosa a que já possamos chamar de literária, foram justamente os defeitos dessa prosa portuguesa, a dureza e simultaneamente o amaneirado do frasear, o inchado e o retorcido da expressão, com o sacrifício intencional da sua correnteza e naturalidade, que predominaram. Quando aqui se começou a fazer prosa, a feição dominante da portuguesa era o gongorismo, o hipérbaton, as construções arrevesadas e rebuscadas, os trocadilhos. Um estilo presumidamente poético ou eloqüente, mas de fato apenas túmido e enfático. Era esse o estilo culto do qual o padre Vieira, inconsciente de que era por muito o seu, dizia, praticando-o na sua mesma censura: «Este desventurado estilo de que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, e os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto não é escuro, é negro boçal e muito cerrado.» Se tal era ainda nos melhores escritores da Metrópole e estilo literário da época em que se começou a escrever no Brasil, que podia ele ser na grossa colônia nascente?

Do século XVI escrito no Brasil, se não por brasileiro nato, por brasileiro adotivo, nacionalizado por longa residência no país e enraizamento nele por família aqui constituída e bens aqui adquiridos, só nos resta um livro, o Tratado descritivo do Brasil, por Gabriel Soares de Sousa, terminado em 1587. Nem pelo estímulo que o originou, nem pelo seu propósito, nem pelo estilo é o livro de Gabriel Soares obra literária. Era, como diríamos hoje, um memorial de concessão apresentado ao Governo, como justificativa dos favores que para a sua empresa de exploração do país lhe pedia o autor. A obra, porém, lhe excedeu o propósito. Deu a este memorial desusada extensão e uma amplitude que o fez abranger a história e a geografia, no seu mais largo sentido, da grande colônia americana então sob o domínio espanhol. A sinceridade da sua longa, minuciosa e exata informação não chegam a prejudicar-lhe os gabos e encarecimentos da terra, que no forasteiro aclimado revêem uma viva e tocante afeição ao seu exótico país de adoção, onde passara da pobreza à abastança, a que consagrara o melhor da sua existência e atividade, onde amara e fora amado, fizera família e iria morrer na busca aventurosa e dura das suas riquezas nativas. Podíamos portanto adotá-lo por nosso se acaso este simpático feitio de sua obra não revisse também o propósito de empreiteiro de facilitar-se a mercê impetrada, justificando-a sobejamente com a notícia interesseira da terra que se propunha a explorar.

Como não era um letrado e a sua «tenção, conforme declara, não foi escrever história que deleitasse com estilo e boa linguagem», e não esperava «tirar louvor desta escritura», saiu-lhe a obra, embora rude de feitura e pouco castigada de linguagem, menos eivada dos vícios literários do tempo, e, por virtude do próprio assunto, muito mais interessante e proveitosa ainda hoje do que a maior parte das que então mais classicamente se escreviam, sermonários, vidas de santos, crônicas de reis, de príncipes e magnates, livros de devoção e milagrices.

Nunca publicada antes que o fizesse sem ainda lhe saber o autor, em 1825, a Academia Real das Ciências de Lisboa, a obra de Gabriel Soares, sem embargo de inédita, não passou desapercebida aos curiosos do seu objeto, imediatos ou posteriores ao inteligente e laborioso reinol. Se a não compulsou o nosso primeiro cronista nacional, Frei Vicente do Salvador, conheceram-na e versaram-na o clássico autor dos Diálogos de vária história, Pedro de Mariz, Jaboatão, o perluxo cronista franciscano, Simão de Vasconcelos, o não menos difuso e não menos gongórico cronista jesuíta, o bom autor da Corografia brasileira, Aires de Casal, e depois, mas ainda em antes dela impressa, outros historiadores e noticiadores do Brasil, Roberto Southey, Ferdinand Denis, Martius. As numerosas cópias manuscritas (Varnhagen dá notícia de vinte) que sem embargo do seu volume (de mais de trezentas páginas impressas in 8º) desta obra se fizeram, indicam que se permaneceu inédita não foi porque a houvessem por desinteressante ou somenos. Somente o suspicaz ciúme com que a metrópole evitava a divulgação das suas colônias pode explicar assim ter permanecido obra de tanta valia.

Gabriel Soares de Sousa, nascido em Portugal pelos anos de 1540, veio para o Brasil pelos de 1565 a 1569. Na Bahia estabeleceu-se como colono agrícola. Ali casou e prosperou a ponto de nos dezessete anos de estada se fazer senhor de um engenho de açúcar, e abastado, como do seu testamento se depreende. Ganhando com a fortuna posição, foi dos homens bons da terra e vereador da Câmara do Salvador. Um irmão seu que, parece, o precedera no Brasil havia feito explorações no sertão de São Francisco, onde presumira haver descoberto minas preciosas. Falecido ele, quis Gabriel Soares prosseguir as suas explorações e descobrimentos. Com este propósito passou à Europa em 1584, a fim de solicitar da Corte da Madri autorização e favores para o seu empreendimento de procura e exploração de tais minas. Por justificar os seus projetos e requerimentos, e angariar-se a boa vontade dos que podiam fazer-lhe as graças pedidas, nomeadamente do Ministro D. Cristóvão de Moura, redigiu nos quatro anos de 1584 a 1587 o longo memorial, como ele próprio lhe chamou, que conservado inédito até o século passado, foi nele publicado sob títulos diferentes, o qual constitui uma verdadeira enciclopédia do Brasil à data da sua composição.

Gabriel Soares, sujeito de bom nascimento se não fidalgo de linhagem, suficientemente instruído, sobreinteligente, era curioso de observar e saber, e excelente observador como revela o seu livro. Embora determinado por uma necessidade de momento, não foi este composto de improviso e de memória. Para o redigir serviu-se, como declara, das »muitas lembranças por escrito» que nos dezessete anos da sua residência no Brasil fez do que lhe pareceu digno de nota. Obtidas as concessões e favores requeridos, nomeado capitão-mor e governador da conquista que fizesse e das minas que descobrisse, partiu para o Brasil em 1591, com uma expedição de trezentos e sessenta colonos e quatro frades. Malogrou-se-lhe completamente a empresa, pois não só naufragou nas costas de Sergipe mas depois veio, com o resto da expedição que conseguira salvar do naufrágio e reconstituíra na Bahia, a perecer nos sertões pelos quais se internara. Seus ossos, mais tarde trazidos para a Bahia, foram e se acham sepultados na capela-mor da igreja do mosteiro de S. Bento, tendo sobre a lápide que os recobre o epitáfio: «Aqui jaz um pecador» segundo o disposto no seu testamento. Deste documento induz-se que era homem abastado, devoto, nimiamente cuidadoso da salvação da sua alma, mediante esmolas, obras pias, missas e quejandos recursos que aos católicos se deparam para o conseguir.

Não é propriamente a obra de Gabriel Soares literária, nem pela inspiração, nem pelo propósito, nem pelo estilo. Só o é no sentido, por assim dizer material, da palavra literatura. O estilo é, como pertinentemente mostrou Varnhagen, aliás achando-lhe encanto que lhe não conseguimos descobrir rude, primitivo e pouco castigado, mas em suma menos viciado dos defeitos dos somenos escritores contemporâneos, mais desartificioso do que o começavam a usar os seus coevos, como de homem que não fazia literatura e não cuidava de imitar os que a faziam.

É grande, porém, o mérito especial dessa obra. Varnhagen se o encareceu não o exagerou demasiado escrevendo, ele que mais do que ninguém a estudou e conheceu: «Como corógrafo o mesmo é seguir o roteiro de Soares que o de Pimentel ou de Roussin; em topografia ninguém melhor do que ele se ocupou da Bahia; como fitólogo faltam-lhe naturalmente os princípios da ciência botânica; mas Dioscórides ou Plínio não explicam melhor as plantas do velho mundo que Soares as do novo, que desejava fazer conhecidas. A obra contemporânea que o jesuíta José de Acosta publicou em Sevilha em 1590, com o título de História natural e moral das Índias e que tanta celebridade chegou a adquirir, bem que pela forma e assuntos se possa comparar à de Soares, é-lhe muito inferior quanto à originalidade e cópia de doutrina. O mesmo dizemos das de Francisco Lopes de Câmara e de Gonçalo Fernandez de Oviedo. O grande Azara, com o talento natural que todos lhe reconhecem, não tratou instintivamente, no fim do século passado, da zoologia austro-americana melhor que o seu predecessor português; e numa etnografia geral de povos bárbaros, nenhumas páginas poderão ter mais cabida pelo que respeita ao Brasil, o que nos legou o senhor do engenho das vizinhanças de Jequiriçá. Causa pasmo como a atenção de um só homem pôde ocupar-se em tantas cousas «que juntas se vêem raramente», como as que se contêm na sua obra, que trata a um tempo, em relação ao Brasil, de geografia, de história, de topografia, de hidrografia, de agricultura entretrópica, de horticultura brasileira, de matéria médica indígena em todos os seus ramos e até de mineralogia». Não é excessivo este juízo, e quem o emitia tinha competência para o fazer.

Um outro português, o padre Jesuíta Fernão Cardim, que também viveu no Brasil, deixou dois escritos de pouco tomo, pelos quais tem sido, a meu ver impertinentemente, incluído na história da nossa literatura como um dos seus primitivos escritores. Menores são ainda que os de Gabriel Soares os seus títulos a pertencer à nossa literatura. O a todos os respeitos mais considerável e melhor dos seus dois escritos são duas cartas que desde o Brasil endereçou ao Provincial da Companhia em Portugal, recontando-lhe, miudamente, e de modo verdadeiramente interessante, uma viagem de inspeção jesuítica por algumas de nossas capitanias. Varnhagen, que as descobriu, publicou-as em 1847 com o título factício de Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, etc., desde o ano de 1583 ao de 1590. Embora documento interessantíssimo para o estudo das missões jesuíticas e da mesma vida colonial no primeiro século, não tem a obra de Fernão Cardim, se obra se lhe pode chamar, o interesse bem mais geral, a importância e a valia da de Gabriel Soares. A sua inclusão na nossa literatura é tão legítima como o seria a de toda a correspondência jesuítica daqui desde Nóbrega até o padre Antônio Vieira, e ainda além. No desenvolvimento da nossa literatura não teve esta de Fernão Cardim sequer a parte que é lícito atribuir à de Gabriel Soares, pelo que desta aproveitaram os posteriores autores brasileiros.

Outro escrito que se lhe imputa com fundados motivos mas sem absoluta certeza é a monografia, como lhe chamaríamos hoje, Do princípio e origem dos índios do Brasil e dos seus costumes, adorações e cerimônias, título também factício.

Pertence a esta primeira fase da literatura colonial e a mesma sorte destes, o curioso escrito Diálogos das grandezas do Brasil, descobertos e divulgados por Varnhagen.

Ignora-se-lhe ainda hoje o autor. Ao invés do que primeiramente supôs Varnhagen, que o atribuiu a brasileiro, nomeadamente a Bento Teixeira, o poeta da Prosopopéia, deve de tê-lo escrito em português. Mas um português, como tantos aqui houve, e dos quais é Gabriel Soares ótimo exemplar, naturalizado por longo estabelecimento na terra, afeiçoado a ela, identificado com ela, a ponto de tomar-lhe calorosamente a defesa contra um patrício recém-chegado e de exagerar-lhe as excelências como um zeloso patriota. Quem quer que fosse, era homem instruído, grande conhecedor do Brasil, simpaticamente curioso dos seus aspectos naturais e sociais e de todas as exóticas feições da nova terra. Instruído, esclarecido e judicioso, as suas muitas observações sobre a administração, os hábitos, a economia e mais faces do país, são geralmente bem feitas e acertadas. Algumas surpreendem-nos pela agudeza e perspicácia. Tais são, em 1618, apenas passado um século do descobrimento e não acabado ainda o da colonização, os seus reparos da indolência, indiferença e índole afidalgada dos moradores do Brasil que tudo fiavam do escravo, escusando-se ao trabalho. Mais notável é ainda que tenha desde então verificado a influência civilizadora da América na Europa, ou ao menos no europeu, para cá imigrado e aqui tornado, graças à riqueza adquirida e à sua indistinção de classes, de rústico em policiado. Realmente a parte da América na civilização, na polícia, como diziam os nossos clássicos, e escreve o autor dos Diálogos das grandezas, é muito maior do que se não pensa. São milhões os europeus que tendo para ela vindo de todo broncos, grosseiramente trajados, sem nenhuns hábitos de asseio, conforto ou civilidade, e com as manhas inerentes à sua miserável posição na mãe pátria, logram com a fortuna crescer de situação e emparelhar com as melhores classes americanas. Destas tomam estilos de vida, imitadas por elas das melhores da Europa, das quais acolá os preconceitos de casta, aqui desconhecidos, os traziam afastados. A transformação começada pelo que podemos chamar o hábito externo se completa pelo convívio dessas classes, cujo comércio lhes é facilitado pela fortuna e posição aqui facilmente adquiridas. Muitíssimos além desta educação indireta, a fazem formalmente freqüentando as nossas escolas ou particularmente tomando mestres, o que lhes seria muito mais difícil nos seus países de origem. E a América restitui à Europa desbastados da sua grosseria originária, limpos, no rigor da expressão, civilizados, polidos, com o melhor feitio físico e social, milhões de sujeitos que lhe vêm boçais e crassos. Devolve-lhe cavalheiro quem lhe chegou labrego. É admirável que este fato interessantíssimo não tenha escapado ao perspicaz observador dos Diálogos das grandezas, que, notando-o, do mesmo passo o atesta aqui desde o começo do século XVII. «O Brasil é praça do mundo, assenta-se ele, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal nome, e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom modo de falar, honra dos termos de cortesia, saber bem negociar e outros atributos desta qualidade». E como seu interlocutor lhe retorquisse que não devia de ser assim, e antes pelo contrário, pois o Brasil se povoara primeiramente com «degradados e gente de mau vier» e por conseguinte pouco político, pois carecendo de nobreza lhe faltava necessariamente a polícia, Brandônio, pseudônimo com que se disfarça o autor, retruca-lhe: «Nisso não há dúvida, mas deveis saber que esses povoadores, que primeiramente vieram povoar o Brasil, a poucos lanços pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar, e os filhos de tais já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos com se ajuntarem a isso o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgas, os quais casaram nele e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assaz nobres. Então como neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar, e este comércio o tratam com os naturais da terra, que geralmente são dotados de muita habilidade, ou por natureza do clima, ou do bom céu de que gozam, tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela.»

Literariamente estes Diálogos, sem serem romance ou novela, são uma ficção, a primeira escrita no Brasil. O processo de diálogos, já o notou Varnhagen, estava então em moda em Portugal, para a exposição de idéias e noções de ordem moral, política ou econômica. São principalmente desta ordem as que intenta divulgar o autor deste, com o propósito manifesto de propaganda, como hoje diríamos, do Brasil, por um português que laços diversos de interesse e amor apegariam à terra, da qual fala carinhosamente. Pela língua e estilo, embora não sejam nem uma nem outro primorosos, são estes Diálogos o que melhor nos legou a escrita portuguesa no Brasil nesta primeira fase da produção literária aqui. Por ambos é de um quinhentista que, justamente por não ser um literato, não trazia ainda a eiva do século literário que começava. Escrevendo, com interesse e amor, de cousas novas, inéditas, bem conhecidas suas, fê-lo com maior objetividade, inteligência e simpleza do que era comum em livros portugueses contemporâneos. E, ao menos para nós brasileiros, mais interessantemente. Em nenhum outro sobre o Brasil e aqui escrito na mesma época ou ainda imediatamente depois, se encontram tantos testemunhos de mestiçagem que aqui se começava a operar, e já ia mesmo relativamente adiantada, da comunhão das gentes diversas que neste país se encontraram. E como ao cabo é tal mestiçagem, não só fisiológica senão psicológica também, que distinguirá o grupo brasileiro, dar-lhe-á feição própria e atuará a sua expressão literária, são os Diálogos das grandezas um estimável subsídio da nossa história literária.

II. Brasileiros

O primeiro brasileiro conhecido que escreveu prosa num gênero literário, qual é a história, e de feitio a se lhe poder qualificar a obra de literária, foi Frei Vicente do Salvador. É por ele que começa a nossa literatura em prosa.

Vicente Rodrigues Palha, como no século se chamava Frei Vicente, segundo as escassas notícias que dele temos, nasceu em Matuim, umas seis léguas ao norte da cidade da Bahia, em 1564. Como a maioria dos homens instruídos da época, estudou com os jesuítas no seu colégio de São Salvador, e depois em Coimbra, em cuja Universidade se formou em ambos os direitos e doutorou-se. Voltando ao Brasil ordenou-se sacerdote, chegou a cônego da Sé baiana e vigário-geral. Aos trinta e cinco anos fêz-se frade, vestindo o hábito de São Francisco e trocando o nome pelo de Frei Vicente de Salvador. Missionou na Paraíba, residiu em Pernambuco e cooperou na fundação da casa franciscana do Rio de Janeiro, em 1607, sendo o seu primeiro prelado. Tornou posteriormente a Pernambuco, onde leu um curso de artes, no convento da ordem, em Olinda. Regressando à Bahia aí foi guardião do respectivo convento, em 1612. Eleito em Lisboa custódio da Custódia franciscana brasileira, no mesmo ano de 1612 teve de voltar a Pernambuco. Após haver estado em Portugal, regressado novamente à Bahia, como guardião, tornado ao Rio e mais uma vez à Bahia, aí faleceu entre os anos de 1636 a 1639. Estas diferentes viagens, este trato de diversas terras e populações devia ter-lhe completado a educação escolar com aquela, a certos respeitos melhor, que se faz no comércio do mundo. A ela podemos atribuir a singular objetividade do seu estilo. Foram grandes e bons os seus serviços à sua ordem e à sua pátria por vários lugares e postos da sua atividade. Passou por excelente religioso e bom letrado. A sua obra faz acreditar merecida esta reputação.

Essa obra, História do Brasil, concluída a 20 de dezembro de 1627, ficou inédita até 1888. Escreveu-a o bom e douto frade a pedido, poderíamos dizer por encomenda, de Manoel Severim de Faria, um dos mais considerados eruditos portugueses contemporâneos, que lhe prometera publicá-la à sua custa.

Como ninguém melhor que Varnhagen conheceu o Tratado descritivo do Brasil de Gabriel Soares, ninguém melhor que o sr. Capistrano de Abreu conhece a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, cujo foi se não o revelador, glória que cabe também a Varnhagen, o divulgador a capacíssimo editor. Com igual autoridade ao seu ciente predecessor na historiografia brasileira, julga assim o sr. Capistrano de Abreu a obra do frade baiano: «Sua história prende-se antes ao século XVII que ao século XVI, neste com as dificuldades das comunicações, com a fragmentação do território em capitanias e das capitanias em vilas, dominava o espírito municipal: brasileiro era o nome de uma profissão; quem nascia no Brasil, se não ficava infamado pelos diversos elementos de seu sangue, ficava-o pelo simples fato de aqui ter nascido -um mazombo, se de algum corpo se reconheciam membros, não estava aqui mas no ultramar: portugueses diziam-se os que o eram e os que o não eram. Frei Vicente do Salvador representa a reação contra a tendência dominante: Brasil significa para ele mais que expressão geográfica, expressão histórica e social. O século XVII é a germinação desta idéia como o século XVIII é a maturação.

«A sua História não repousa sobre os estudos arquivais. Haveria dificuldade em examinar arquivos? Ou não era o seu espírito inclinado a leitura penosa de papéis amarelecidos pelo tempo? Daí certa laxidão no seu livro: muitos fatos omitidos que hoje conhecemos e que ele com mais facilidade e mais completamente poderia ter apurado, contornos enfumados, datas flutuantes, dúvidas não satisfeitas. Até certo ponto a História de Frei Vicente é comparável à geografia do meritíssimo padre Mateus Soares, um século mais tarde: correta onde determinava posições astronômicas; em outros pontos fundada sobre roteiros de bandeirantes e mineiros.

Mas esta pecha resgata-a por qualidades superiores. A História possui um tom popular, quase folclórico; anedotas, ditos, uma sentença do bispo de Tucumã, uma frase do Rei do Congo, uma denominação de Vasco Fernandes. Mais ainda: vê-se o Brasil qual era na realidade, aparece o Branco, aparece o Índio, aparece o Negro; o preto Bastião percebe-se que fez rir a boas gargalhadas o nosso autor. Informações por que suspirávamos, e que não esperávamos encontrar, ele as oferece às mãos cheias, ora num traço fugitivo, ora demoradamente: leia-se por exemplo o último capítulo do livro IV, relativo a construção de engenhos: antes nada se sabia a tal respeito. Há também o pensamento que a prosperidade do Brasil está no sertão, que é preciso penetrar o oeste, deixar de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição do bandeirismo ao transoceanismo: e daí a porção de roteiros que debalde se procuraria em outras obras.»

Dos mesmos méritos que do seu ponto de vista de historiador lhe verifica o sr. Capistrano de Abreu, pode concluir a crítica literária para lhe avaliar os quilates nesta espécie. É um livro que poderíamos chamar de clássico se não nos agarrássemos à estreita concepção gramatical e retórica que o vocábulo tomou em Portugal. A sua língua correta, expressiva e até às vezes colorida, mais porventura do que o costuma ser a dos escritores seus contemporâneos, tem sobre a destes a superioridade da singeleza e da naturalidade, virtudes neles raras. E poderíamos acrescentar da familiaridade, como o mostram o já aludido simile da exploração dos portugueses limitada à costa com o arranhar das praias pelos caranguejos, e que tais, tirados das novidades que à sua pena inteligente ofereciam os aspectos inteiramente inéditos do país que historiava e descrevia. É muito mais agradável de ler que Gabriel Soares e para nós brasileiros ao menos do que muitos dos chamados clássicos portugueses, cronistas como ele. Tem espírito, tem chiste, quase poderíamos dizer que às vezes tem até humour. Há sobretudo nele uma desenvoltura de pensar e de dizer que aumentam o sabor literário à sua História. Sirvam de exemplo estas suas reflexões sobre o nome do Brasil: É porventura por isso (refere-se à troca do nome de Terra de Santa Cruz pelo de Brasil), ainda que ao nome de Brasil ajuntarem o de estado e lhe chamem estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável, que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoado alguns lugares, e sendo a terra tão grande e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.

«Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso que hão feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois intitulando-se senhores da Guiné por uma caravelinha que lá vai e vem, como disse o rei do Congo, do Brasil que não quiseram intitular. Nem depois da morte de el-rei Dão João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos.»

É do mesmo espírito e tom a sua observação, já atrás citado do desapego dos moradores à terra.

Não é só historiador que reconta, observa e reflexiona, é também moralista avisado que sem biocos fradescos, compara, aprecia e generaliza, e sabe fazê-lo com graça natural e frase que desta mesma naturalidade tira a elegância. São outro documento destes seus dotes, e até da sua perspicácia psicológica, estas suas finas observações sobre a obra da catequese, com que também inculca o que era no fundo a superficial cristianização do selvagem. Soube o seu espírito realista discernir, e dizer sem os rebuços que lhe punham os jesuítas, alguns motivos da passividade com que o índio se prestava a certas práticas religiosas. É demais dizê-lo com uma deliciosa sem-cerimônia. «Confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância, porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção com que acudiam à igreja e quando lhes tangiam o sino, à doutrina ou à missa, corriam com um ímpeto e estrépido que pareciam cavalos, mas em breve tempo começaram a esfriar de modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto. Só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são muito amigos de novidades; como dia de São João Batista por causa das fogueiras e capelas, dia da comemoração geral dos defuntos, para ofertarem por eles, dia de Cinza e de Ramos e principalmente das endoenças para se disciplinarem, porque o tem por valentia. E tanto é isto assim que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente uma semana santa, chegando à aldeia nas oitavas da Páscoa e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então presidia, dizendo: «Como havia de haver no mundo que se disciplinasse até os meninos e ele sendo tão grande e valente, como de feito era, ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar.» Respondia-lhe eu «que todas as coisas tinham seu tempo, e que nas endoenças se haviam disciplinado em memória dos açoutes que Cristo senhor nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe que fizesse o que quisesse, com que logo se foi açoutar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam por festas metendo de vinhos nas ilhargas.»4

É precioso o texto, assim pela arguta observação de certos característicos hoje muito conhecidos do selvagem, a sua inconstância de propósito, o seu amor da novidade, o seu ponto de honra de valentia bruta, como pela língua que sendo boa, conforme a melhor do tempo, escapa entretanto aos feios vícios desta do empolado, das construções arrevesadas e do estilo presumidamente pomposo. A sua frase é ao contrário chã, sem artifício e já, como viria legitimamente a ser brasileira, quando não se propusesse indiscretamente a arremedar a portuguesa, menos invertida, mais direta do que esta. Mais um exemplo para acabar com a comprovação das qualidades do nosso primeiro prosador. Descreve-nos no cap. XLIV a primeira missão jesuítica à Ibiapaba, dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira.

Estes se partiram de Pernambuco o ano de mil seiscentos e sete em o mês de janeiro, com alguns gentios das suas doutrinas, ferramenta e vestidos, com que os ajudou o Governador para darem aos bárbaros. Começaram seu caminho por mar e prosseguiram ao longo da costa cento e vinte léguas para o norte o Rio de Jaguaribe, onde desembarcaram. Daí caminharam por terra e com muito trabalho outras tantas léguas até os montes de Ibiapaba, que será outras tantas aquém do Maranhão, perto dos bárbaros que buscavam, mas acharam o passo impedido de outros mais bárbaros e cruéis do gentio tapuia, aos quais tentearam os padres pelos índios seus companheiros com dádivas, para que quisessem sua amizade, e os deixassem passar adiante, porém não fizeram mas antes mataram os embaixadores, reservando somente um moço de dezoito anos que os guiasse aonde estavam os padres, como o fez seguindo-os muito número deles. Saindo o padre Francisco Pinto da sua tenda, onde estava rezando, a ver o que era, por mais que com palavras cheias de amor e benevolência os quisesse quietar, e os seus poucos índios com flechas pretendiam defendê-lo, eles, com a fúria com que vinham mataram o mais valente, com que os mais não puderam resistir-lhe nem defender o padre, que lhe não dessem com um pau roliço tais e tantos golpes na cabeça que lha quebraram e o deixaram morto. O mesmo quiseram fazer ao padre Luís Figueira, que não estava longe do Companheiro, mas um moço da sua companhia, sentindo o ruído dos bárbaros o avisou, dizendo em língua portuguesa: «Padre, padre, guarda a vida» e o padre se meteu à pressa em os bosques, onde, guardado da Divina Providência, o não puderam achar, por mais que o buscaram, e se foram contentes com os despojos que acharam dos ornamentos que os padres levavam para dizer missa, e alguns outros vestidos e ferramenta para darem, com o que teve lugar o padre Luís Figueira de recolher seus poucos companheiros, espalhados com medo da morte, e de chegar ao lugar daquele ditoso sacrifício, onde acharam o corpo estendido, a cabeça quebrada e desfigurado o rosto, cheio de sangue e lodo, limpando-o e levando-o. E composto o defunto em uma rede em lugar de ataúde lhe deram sepultura ao pé de um monte, que não permitia então outro aparato maior o aperto em que estavam; porém nem Deus permitiu que estivesse assim muito tempo, antes me disse Martins Soares, que agora é capitão daquele distrito, que o tinham já posto em uma igreja, onde não só os portugueses e cristãos, que ali moram, é venerado, mas ainda dos mesmos gentios.»5

As três outras versões deste fato existentes na literatura da nossa língua, principalmente a dos padres Antônio Vieira e José de Morais, fornecem-nos oportunidades de avaliarmos de Frei Vicente do Salvador como escritor. Neste passo ao menos não lhe sai mal o confronto, mesmo com o do muito maior deles, o grande exemplar dos melhores escritores portugueses, Vieira. Ao passo que a dos dois jesuítas é nesse estilo que o padre Manuel Bernardes, com tanto sal e a propósito chamou de «fraldoso e dilatado», a do modesto frade brasileiro, embora sem a correção gramatical daqueles, é simultaneamente precisa, sucinta e sóbria, sem sacrifício da clareza. Do que sabemos de Frei Vicente do Salvador e do que nos revela a sua obra, foi ele, no melhor sentido do qualificativo, de ânimo ingênuo. Como escritor é este ainda o que mais lhe assenta, e que o sobreleva, com outros dons já ditos, a todos os escritores do Brasil, nacionais ou portugueses, nesta primeira fase da literatura aqui. Se houvéramos nós brasileiros de fazer a lista dos nossos clássicos, isto é, daqueles escritores que sobre bem escreverem a sua língua, conforme o uso do seu tempo, melhor nos representassem o sentimento, o entendimento e a vontade que faz de nós uma nação, o primeiro dessa lista seria por todos os títulos Frei Vicente do Salvador com a sua História do Brasil.

É ele o único prosista brasileiro da fase inicial da nossa literatura.

A prosa brasileira assim tão dignamente estreada não se continuou pelo resto do século. À copiosa produção poética desse momento de modo algum correspondem escritos em prosa, que não sejam papéis e documentos de administração ou de informação do país, já oficiais, já particulares, estes oriundos na maior parte das ordens religiosas, maiormente da Companhia de Jesus. Esses mesmos permaneceram inéditos, ou são apenas de notícia conhecidos. Nenhum foi reduzido a livro. Informa o bibliógrafo português Barbosa Machado, escrevendo aliás um século depois, que um dos poetas dessa época, que também foi funcionário real e militara pela metrópole na colônia, Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio Vieira, deixara manuscrita uma Descrição topográfica, eclesiástica, civil e natural do Estado do Brasil. Esta obra não veio jamais a lume e ninguém a conhece. A julgar pelo título seria uma repetição no século XVII do Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares, do século XVI, com a diferença de ser feita por brasileiro, porventura mais completa e com certeza piorada pela presunção literária e pelo estilo gongórico do autor, que era o da época.

Escreveu mais Vieira Ravasco em Discurso político sobre a neutralidade da coroa de Portugal nas guerras presentes das coroas da Europa e sobre os danos que da neutralidade podem resultar a essa coroa e como se devem e podem obviar (1692?) e remédios políticos com que se evitarão os danos que no discurso antecedente se propõem (datado da Bahia, 10 de junho de 1693). Estes dois papéis, respectivamente de 13 e 16 folhas, apareceram em cópia moderna na Exposição de História do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em 1881. À falta de outros méritos, esses escritos fariam de Vieira Ravasco o primeiro em data dos nossos publicistas.

Exceto estes escritos de Ravasco, e aqueles outros supostos ou apenas referidos, os quais aliás não são propriamente literários, a única prosa que se fazia na colônia, afora a da conversação, era a dos sermões.

Admitindo, mais por seguir o uso que por convicção, seja o sermão um gênero literário, e haja de fazer parte da história da literatura, parece incontestável que só o será e só caberá nela quando tenha sido posto por escrito. Sem isto pertenceria quando muito à literatura oral, e desta não há história.

O sermão, porém, teve no passado uma importância, mesmo literária, muito grande, muito maior do que tem hoje. Social ou mundanamente foi um divertimento, um espetáculo que, conforme o pregador, podia despertar interesse e atrair concurso tão alvoroçado ou numeroso de ouvintes como outros quaisquer do tempo: um auto de fé, uma corrida de touros, um jogo de canas, uma representação teatral ou alguma solenidade da Corte. Mas, como espetáculo gratuito e aberto ao povo, era mais concorrido do que estes, só a abastados ou favorecidos acessíveis. Tanto mais que não constituía o sermão só por si o espetáculo, mas era apenas um «número» nos que a igreja oferece aos seus fiéis, com a prodigalidade, a pompa, a encenação semipagã das suas pitorescas cerimônias. Ajudava, pois, o sermão a sociabilidade de uma gente de natureza retraída e triste, qual a portuguesa, em tempo em que à sociabilidade se deparavam poucos ensejos de exercer-se. Servia de elemento de instrução pela discussão de problemas morais e noções de toda a ordem, que ao redor deles forçosamente surgiam, e mais pela forma de os expor. De um ou de outro modo, excitavam as inteligências, punham e resolviam questões, assentavam ou retificavam opiniões, suscitavam emoções e forneciam, como os discursos acadêmicos ou parlamentares de hoje, temas às conversações. Foi a sua repetição importuna e corriqueira, a sua vulgarização, a trivialidade dessaborida e fatigante dos seus processos, dos seus estilos, dos seus «truques» a inópia do pensamento, invariavelmente o mesmo, que o alimentava, e da língua constantemente a mesma que falava, com o mesmo arranjo e corte do assunto, o mesmo aparelho de erudição, idênticos recursos retóricos, e até iguais entonações e gestos no orador, que acabaram com o sermão, como gênero literário estimável. Prejudicou-o também a sua cada vez mais crescente incoerência com os tempos. Foi um grande expediente de propaganda e edificação religiosa, e ainda moral, não só quando as almas eram mais sensíveis a tal recurso de lição oral bradada de cima de um púlpito, mas quando, sendo pouco vulgar a imprensa, e menos ainda a capacidade de leitura, encontrava o sermão nas massas analfabetas ou pouco lidas, ou ainda com poucas facilidades de ler, ouvintes numerosos e de boa vontade. Com a multiplicação dos livros, mesmo religiosos, à literatura parenética oral se foi substituindo a literatura piedosa escrita. Ceci tuera cela. E a decadência do sermão acompanhada com grande avanço pela da oratória sagrada, não diminuiu apenas a importância do gênero; teve ainda uma influência retrospectiva. Amesquinhou lançou no olvido os produtos do seu bom tempo.

Na língua portuguesa o único orador sagrado que porventura ainda tem leitores é o padre Antônio Vieira. Tem-nos aliás antes como clássico muito apreciado da língua, como exemplar de escrita vernácula e numerosa, que como professor de religião ou moral. Nem há já, mesmo entre as pessoas piedosas, se não são de todo ignaras, quem lhe sofra a filosofia inconsistente ou a ciência e erudição atrasadíssimas ainda para o seu tempo, além dos obsoletos e até ridículos processos retóricos. Na língua francesa também não há mais de três oradores sagrados com leitores. Bossuet, Massillon e Bourdaloue. Destes mesmo o que mais se lê, quiçá o único ainda em verdade lido, é Bossuet. Nenhum deles é, aliás, como também não foi Vieira, apenas orador sagrado. Foram personagens consideráveis no seu tempo, e, além de ações memoráveis, deixaram obras literárias pelas quais se recomendam e à sua obra oratória. São justamente tais ações, o papel que desempenharam e a influência que tiveram na sua época os dois maiores deles, Bossuet e Vieira, que mais que os seus méritos literários lhes fazem viver os sermões.

Nenhum dos sermonistas brasileiros coloniais exerceu no seu meio e tempo ação ou influência que se lhes refletisse nos sermões, dando-lhes a vida e emoção que ainda descobrimos nos de Vieira. Nenhum, também, em que pese aos seus excessivos elogiadores, possui qualidades essenciais ou formais que lhe dessem aos sermões publicados, -que os inéditos esses de todo não pertencem à literatura- aquilo que lhes não pôde emprestar a sua existência obscura.

Desses o que, parece, teve mais talento, melhor língua estilo e mais força oratória foi o padre Antônio de Sá (1620-1678), jesuíta, natural do Rio de Janeiro. Exerceu o Ministério do púlpito no Brasil e em Portugal e, parece, também ocasionalmente em Roma, ao mesmo tempo em que ilustrava o púlpito português o padre Vieira. Deste foi, como acontecia com todos os pregadores da época, discípulo e seguidor. Dos seus sermões, avulsamente publicados ainda em sua vida, e depois coligidos em 1750, se verifica que por alguns aspectos o foi superiormente. Para o nosso gosto atual, talvez sobrelevando ao mestre e êmulo no estilo nimiamente ornado e culto do tempo, e notavelmente de Vieira, com quem o nosso bairrismo literário o tem querido emparelhar. Nem pela cópia, número e mais excelência de linguagem, nem pelo teso, vigoroso e pessoal do estilo, nem pelo arrojo, riqueza e variedade da imaginação e dos tropos acompanha Antônio de Sá a Vieira, do qual é, ainda com valor próprio que se lhe não pode negar, pálido reflexo. Mas também o não acompanha no gongorismo, no abuso dos trocadilhos e menos no atrevimento e despejo de conceitos e comparações com que o celebrado orador português, no seu materialismo religioso, roça não raro pela chocarrice e pela indecência, senão pela blasfêmia. Não obstante os seus reais méritos, a boa qualidade da sua língua e estilo, mesmo o talento que revela em seus sermões, Antônio de Sá é apenas um nome que se encontra nas antologias didáticas e cuja obra, fora dos curtos trechos destas, ninguém mais lê e quase todos ignoram inteiramente.

É que de fato, a despeito do nosso catolicismo consuetudinário, os sentimentos que o inspiraram não têm mais a virtude de interessar-nos e comover-nos. E só vive a obra literária cuja emoção geradora persiste apesar do tempo, sempre capaz de provocar em nós emoção idêntica. Isto é que o sermão, quando se não misturam nele, como nos de Bossuet ou Vieira, interesses verdadeiramente humanos, ou bocados da nossa vida e das nossas paixões, quando é apenas expediente de edificação religiosa, não mais consegue. Perdeu, pois, o essencial dos atributos literários: o dom da emoção.

Numerosos nomes de pregadores podem, no período colonial, juntar-se ao do padre Antônio de Sá e os nossos historiadores literários não se têm poupado a fazê-lo. Uns viram as suas obras publicadas, as de outros o foram posteriormente. Alguns são apenas mencionados por noticiadores, às vezes posteriores de um século, o que não impediu fossem por aqueles julgados e elogiados, como se os houveram conhecido mais que por vagas notícias. Nem há como verificar as versões que uma vez inventadas vão sendo repetidas sem crítica por quantos do assunto têm escrito. Se o maior deles, como parece ter sido Antônio de Sá, sumiu-se de todo no recesso escuro de alguma livraria pública, onde apenas lhe freqüentem a obra insetos bibliófagos, e não há descobrir-lhes o influxo na mentalidade do seu tempo na sua literatura, parece inútil, ou vão alarde de facílima erudição, nomear os outros.

A oratória sagrada no Brasil foi sem dúvida, no período colonial e no início do nacional, uma revelação e porventura um estimulante, em estreitos limites aliás, da cultura do momento. Era uma das formas por que se manifestava a inteligência e cultura brasileira, principalmente eclesiástica. Mas como outras dessas formas de expressão, a poesia, a história, os panegíricos pessoais ou da terra, os escritos morais, tinham os sermões a mesma inferioridade de toda essa literatura convencional, retórica, sem alguma relevância de engenho, sentimento ou expressão. Só mais tarde, quando os oradores sagrados se fizeram também, sob a influência do momento histórico, oradores e até tribunos políticos, e exprimiam ou ressumavam as paixões nacionais na época da Independência, se nos deparam alguns, bem poucos aliás, cuja obra, somente por este aspecto, ainda não morreu de todo.

Capítulo III

O grupo Baiano

A atividade literária dos brasileiros, na segunda fase do período colonial, particularmente na última metade do século XVII, manifesta-se quase exclusivamente pela poesia. Aliás em todo esse período a literatura brasileira compôs-se em grandíssima parte de poesia. «O Brasil foi uma Arcádia antes de ser uma nação», verificou finalmente um crítico de meados do século passado. O que não é, no século XVII, poesia, e poesia de bem pouca poesia, é sermão ou literatura oficial, crônicas, relações, memoriais de caráter estilo burocrático. A natural pobreza da primeira fase do mesmo período, da qual só ficou um nome de poeta e um poema, sucede a sua anormal abundância na segunda metade do século XVII. Anormal pela sua desproporção com o meio, uma sociedade embrionária, incoerente, apenas policiada, e inculta, e anormal ainda pela sua correlação com a prosa, de todo muda nesse momento. Relaciona a poesia quase uma dúzia de poetas. A que atribuir-lhes a gênese?

Primeiro ao natural incentivo da própria inspiração, inconscientemente estimulada pela tradição literária da metrópole, sobretudo poética. A estes primeiros incitamentos juntou-se o aumento da cultura colonial, pela educação distribuída dos colégios dos jesuítas. Fazia-se esta principalmente nos poetas latinos lidos, comentados, aprendidos de cor. Dessa educação, sempre e em toda a parte literária, e apontando apenas ao brilhante e vistoso, eram elementos principais exercícios retóricos de poesia, o que aliás não obstou a que da Companhia jamais saísse um verdadeiro poeta, em qualquer língua. Influíam mais para a produção poética brasileira, em época em que as preocupações eram forçosamente muito outras que as literárias, as solenidades oficiais, celebrando faustos sucessos da monarquia, os abadessados e outeiros desde que aqui houve conventos, isto é, desde o fim do século XVI, as festividades escolásticas inventadas ou pelo menos sistematicamente praticadas pelos jesuítas, quase sempre acompanhadas de representações teatrais, das quais há notícia desde aquele século, as academias ou assembléias de letrados que reciprocamente se liam versos e prosas -versos sobretudo- e conversavam de letras, ainda em antes de se fundarem como sociedades constituídas, no século XVIII. Eram tudo costumes da metrópole logo transplantados para a colônia. Em tais festas e solenidades, como nessas academias, havia sempre recitação de versos inspirados pelos mesmos motivos delas e consagrados a lhes louvar os objetos ou promotores. É justamente nessas festas que, com certeza desde os princípios do século XVIII, se verifica a influência do indígena e do negro em costumes e práticas do Brasil e porventura do seu sentimento no sentimento brasileiro.

Além do natural gosto de se publicarem, e da vaidade, muito de raiz em poetas e literatos, de aparecerem e luzirem, estimulava-os o empenho ou a necessidade de angariarem a benevolência e a proteção dos promotores ou patronos dessas festividades ou objetos delas, governadores, capitães-generais, capitães-mores, prelados.

Ainda em fins do século XVI começou o descobrimento das minas de ouro, que, continuado pelo XVII e seguido do achado dos diamantes, criou no país uma riqueza maior, mais fácil e mais pronta que o pau-brasil, o açúcar e mais produtos indígenas da sua primitiva exportação. Simultaneamente deu-se a interpresa dos holandeses contra a colônia. O primeiro ouro, e até a só bem fundada esperança dele, com a cata cobiçosa das esmeraldas, entrara a influir nos moradores, quer nativos, mamelucos e mazombos, quer adventícios, reinóis ou emboabas, a opinião das grandezas da terra. Disso à bem-querença e orgulho dela, com a conseqüente presunção dos merecimentos deles próprios seus moradores, ia apenas um passo. Não distaria muito este sentimento de um incipiente patriotismo. De 1624 a 1654 sofrera o Brasil, da Bahia ao Maranhão, assaltos, ocupações e conquistas dos holandeses. Salvador, com o seu Recôncavo, fora duas vezes investida e de uma tomada. Relativamente, na expugnação do invasor maior fora a parte dos colonos que a da metrópole. Disso houveram eles clara consciência. Os nossos sucessos nessas lutas, com as suas conseqüências políticas e sociais, e ainda morais, haviam exaltado a nascente alma brasileira com os primeiros ardores daquele sentimento, então apenas existente sob a forma rudimentar de apego à terra natal, a que temos chamado nativismo. Essas lutas dão lugar a uma copiosa literatura histórica: O valeroso Lucideno, de Fr. Manoel Calado (1648), O castrioto lusitano, de Fr. Rafael de Jesus (1679), as Memórias diárias, de Duarte de Albuquerque (1654) e ainda a Jornada... para se recuperar a cidade do Salvador, do P. Bartolomeu Guerreiro (1625) e menores e menos importantes escritos relativos a essas guerras. A esses cumpre juntar as numerosas genealogias que posteriormente a essa época se começaram a escrever, umas hoje publicadas, outras ainda inéditas, provando histórias e genealogias o acordar de uma consciência coletiva nos naturais da terra e a satisfação que a si mesmo se queriam dar da sua valia presente e passada, e de que não era tão somenos a sua prosápia. Não obstante todos estrangeiros, portugueses, os seus autores falaram da terra e dos seus naturais com tanta estima e encômio que lhes aumentara a consciência que começavam a ter de si e do seu torrão natal, por eles defendido com boa vontade, resolução, denodo verdadeiramente admiráveis. Não só admiráveis mas fecundos, porque principalmente desse padecer por ela lhes viria a certeza de quanto a amavam e quanto lhes ela merecia o seu amor. O nacionalismo brasileiro dataria daí.

Não há entretanto nos poetas nomeados qualquer revelação formal de haverem sido estimulados por essa exaltação patriótica. É, porém, quase inadmissível que não a tenham ainda inconscientemente experimentado, sentindo-se, como todos os seus patrícios, mais dignos e maiores, levantados como foram os brasileiros no próprio conceito e até no da metrópole, pela galhardia com que em tão apertada conjuntura se houveram. Não deve ser inteiramente fortuita a coincidência do florescimento, mofino embora, da nossa poesia na segunda metade do século XVII sucedendo ao nosso esforço e triunfo nas guerras com os flamengos. Apenas haverá nesses poetas alguma esquiva referência ou alusão a tais sucessos ainda frescos. É, porém, seguramente notável que as primeiras manifestações do nacionalismo brasileiro sob a forma ainda primitiva do apego por assim dizer material à terra, da ufania das suas excelências e belezas nativas, como sob a forma grosseira da animadversão ao reinol, datem justamente de após esses acontecimentos.

Nesse momento também a Bahia, a cidade do Salvador e a sua comarca, berço da civilização brasileira, pátria e domicílio desses poetas, crescera e se desenvolvera, avantajando-se a todos os respeitos aos demais centros de população da colônia. A crer os cronistas coevos, propensos aliás todos, pois que o hiperbólico e o pomposo estavam na feição do tempo, ao exagero, era a cidade, desde o primeiro século da sua fundação, uma povoação adiantada, de muita comodidade e riqueza. «A Bahia é a cidade de El-Rei e a Corte do Brasil» -escrevia o padre Fernão Cardim, já em 1585. Tudo é relativo. A nós hoje a Bahia se nos afigura ainda uma cidade atrasada, de escasso conforto, comparada a outras mesmo do Brasil, como Rio de Janeiro e S. Paulo. Como quer que seja a cidade do Salvador, na sua extravagância e incoerência de todas as primitivas cidades americanas, meios aldeamentos de índios, meios acampamentos militares, meias povoações civis, aglomerações de choupanas, fortalezas, casas de moradia, residências oficiais, todas mesquinhas e feias, era a sede do Governo-Geral e assento dos seus membros, autoridades civis e militares, cujas funções aliás ainda se confundiam. Dessas autoridades o maior número eram fidalgos de condição e tratamento. Era também a sede do único bispado do país, com a sua sé e o que ela implica de cônegos e mais dignidades. Possuía já muitas igrejas, alguns conventos e um colégio dos jesuítas, cujas aulas quase todos os letrados do tempo haviam freqüentado. No seu tempo se fazia justamente ouvir a voz eloqüente e florida do padre Antônio Vieira e a sua palavra de um tão literário sabor. Tinha «muitas casas sobradadas e de pedra e cal, telhadas e forradas como as do Reino» das quais ao tempo de Gandavo, que o diz, «havia ruas muy cumpridas e formosas». No tempo daqueles poetas teria de uns mil ou mil e quinhentos moradores, e os seus arredores dois mil e quinhentos a três mil. Desde meio século antes destes poetas, havia na cidade uma boa praça em que se corriam touros, e nela «umas nobres casas» onde residiam os governadores. Numa outra praça faziam-se cavalhadas, que, continuadas no século XVII, Gregório de Matos devia de celebrar em suas sátiras. Não faltavam moradores ricos de bens de raiz, peças de prata e ouro, arreios de montaria e tais alfaias de casa, que muitos possuíam dois a três mil cruzados em jóias de ouro e prata lavrada. Mais de cem deles usufruíam rendas de mil a cinco mil cruzados e mais, não faltando capitais de vinte e sessenta mil. Tratavam-se grandemente. Tinham cavalos, criados e escravos. Vestiam-se, principalmente o mulherio, com grandeza e luxo, não usando elas, «por não ser fria a terra» senão sedas. Mesmo a gente somenos acompanhava este luxo. Os peões usavam calção e gibão de cetim e damasco e traziam as mulheres com vasquinhas e gibões da mesma fazenda. Eram bem arranjadas as casas, e nas mesas comum o serviço de prata, andando as senhoras ataviadas de jóias de ouro. Fernão Cardim, descrevendo as boas recepções feitas ao visitador jesuíta e seu séquito na Bahia e arredores, não lhe esquece nem de mencionar os grandes repastos que lhes ofereciam e as iguarias servidas, galinhas, perus, patos, cabritos, leitões, todo o gênero de pescado e mariscados de toda a sorte, como lhe não esquece notar a limpeza e concerto do serviço, na maioria de prata, nem os ricos leitos de seda, etc. Quem conhece as nossas cidades sertanejas de hoje em dia, ou as conheceu há trinta anos ou mais, não terá dificuldade em imaginar o que seria a Bahia dos fins do século XVI e do século XVII: um misto incongruente de civilização e barbaria, de luxo e desconforto. Já então havia nela uma grande população negra e mestiça. Os costumes não eram de forma alguma austeros, antes soltos, como foram sempre os das sociedades incipientes, quando os não continha uma severa disciplina moral, qual a dos puritanos da Nova Inglaterra. Afora de guerrear o indígena, que às vezes ainda ameaçava a cidade ou o Recôncavo, ou de ir atacá-lo nos seus sertões para o descer ou reduzir, além da preocupação de agressões possíveis de estrangeiros cobiçosos do Brasil, resumia-se a atividade daquelas populações na cultura dos engenhos de açúcar vizinhos da cidade ou espalhados pelo Recôncavo. Mas esse trabalho como qualquer outro, e também a granjearia dos alimentos naturais -caça, pesca, frutos da terra, era todo exclusivamente feito por escravos, o que criava para a população livre, indígena ou forasteira, ócio propícios aos vícios e mais costumes. «Os encargos de consciência são muitos, escrevia o padre Cardim ao seu Provincial, os pecados que se cometem neles (engenhos) não têm conta: quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; (e jogando de vocábulo com o açúcar, principal riqueza da terra) bem cheio de pecados vai esse doce, por que tanto fazem, grande é a paciência de Deus que tanto sofre». É também a impressão de Froger como de outros viajantes estrangeiros, citados por Southey, que pela Bahia passaram aquele tempo. E a obra satírica, como a mesma vida de Gregório de Matos, confirma essa descompostura de costumes. A essa população mistura incongruente de fidalguia e de ralé portuguesa, de negros e mulatos, e índios e mamelucos, de numerosa soldadesca e não menos copiosa clerezia, ocupavam-na também as devoções festivais nas sessenta e tantas igrejas da cidade e seus subúrbios.

Afora as festas de igreja, em cuja freqüência e esplendor emulariam as diversas religiões, missas solenes, procissões, ladainhas, novenas, vias-sacras e outras da bela e rica liturgia católica, espetáculos diletos da gente ibérica, tinha os moradores da Bahia para diverti-los touros, não menos dela prezados, as cavalhadas, as festividades por motivos de júbilos nacionais da metrópole, representações teatrais dos colégios dos jesuítas ou acompanhando essas festividades, os abadessados, obrigados aos tradicionais outeiros poéticos da península. Na cidade e nos seus arredores era comum fazerem-se comédias. A essas representações consagrou Gregório de Matos mais de um dos seus poemas.45 A escravatura africana muito numerosa, com a facilidade e despejo de costumes produzidos pela escravidão, a soltura da vida colonial devia dar a esses divertimentos, a que cumpre juntar os batuques, candomblés, cateretês e outras importações d'África, já aqui mestiçadas com quejandas de Portugal e do país, um singular pico de talvez maior licença que a da sociedade portuguesa da época.

Os moradores mais abonados mandavam os filhos estudar a Coimbra, depois de os haverem feito cursar as aulas preparatórias locais, mormente as dos jesuítas, que eram as mais recomendadas e freqüentadas. Além das matérias de religião e teologia, estudavam-se nessas aulas o latim e sua literatura e conjuntamente a história e geografia antigas e a mitologia. Nelas explicou e comentou Sêneca, está-se a ver com que abuso de sutilezas e desmancho de trocadilhos, o padre Antônio Vieira. Os jesuítas mantinham em seu colégio uma livraria, ou biblioteca como hoje chamamos, em que certamente com livros de religião e teologia se achariam os poetas antigos e os portugueses e espanhóis de mais nomeada e estimação. Por citações de Botelho de Oliveira, um dos poetas maiores do grupo baiano, verifica-se que eram aí conhecidos entre os letrados, Tasso, Marini, Gongora, Lope de Vega, Camões, Jorge de Montmor, Gabriel Pereira de Castro. E o seriam com certeza ainda outros, famosos naquele tempo. A educação jesuítica, quase a única dos nossos primeiros poetas e letrados, é essencialmente formalística, apenas vistosa, de mostra e aparato, parecendo não apontar senão a ornamentar a memória. Não é porventura temerário atribuir-lhe a feição geral, abundante destes estigmas, do século da decadência literária portuguesa, já bem estreada, e o caráter incolor, e dessaborido como um tema de escolar, da primeira poesia brasileira.

Nesta cidade e sociedade, simultaneamente rudimentar e gastada, nasceram, criaram-se, viveram e produziram no século XVIII os poetas que se convencionou reunir sob o vocábulo de grupo baiano. Além de os juntar o acidente de existirem no mesmo lugar e momento, associa-os a comunhão na mesma poética portuguesa da época. São eles, por ordem de nascimento: Bernardo Vieira Ravasco (1617-1697), irmão do padre Antônio Vieira; Frei Eusébio de Matos (1629-1692); Domingos Barbosa (1632-1685); Gonçalo Soares da França (1632-1724?); Gregório de Matos, irmão de Eusébio (1633-1696); Manoel Botelho de Oliveira (1636-1711); José Borges de Barros (1657-1719); Gonçalo Ravasco Cavalcanti de Albuquerque, primo do outro Ravasco (1659-1725) e João de Brito Lima (1677?). Com a só exceção de Botelho de Oliveira, nenhum deixou livro impresso, sendo que dos outros, excetuado Gregório de Matos, de quem existe manuscrita parte considerável da sua produção, apenas nos restam amostras, resguardadas em antologias e repertórios do século XVIII. Dessas amostras não podemos induzir senão o medíocre engenho desses versejadores. Nenhuma autoriza a sentir a perda do resto. Apenas se haveria perdido com ele mais algum sinal, como o da Ilha de Maré, de Botelho de Oliveira, da impressão da terra e dos seus últimos sucessos nesses poetas, e, portanto, a confirmação interessante do despontar do nosso nacionalismo.

Cento e quatro anos depois da Prosopopéia de Bento Teixeira, saía à luz em Lisboa outro livro de brasileiro, uma coleção de poemas líricos, com este título, muito do tempo: Música do Parnaso em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas com seu descante cômico reduzido em duas comédias, oferecida ao Excelentíssimo Senhor Dom Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque do Cadaval, etc., e entoada por Manuel Botelho de Oliveira, Fidalgo da Casa de Sua Majestade. Na oficina de Miguel Menescal, Impressor do Santo Ofício, Ano de 1705, in 4º, 240 págs.

Manoel Botelho de Oliveira é o único desses poetas cuja obra foi publicada ainda no seu tempo. Daí lhe vem a relativa, e ainda assim muito apoucada, notoriedade. Há nessa obra, aliás num só dos seus poemas, o primeiro sintoma de emoção estética produzida pela terra em um dos seus naturais, e literariamente exprimida. E a expressão não é, sob este aspecto, de todo somemos. Entre os poemas do tempo é acaso o único que ainda leiamos com aprazimento.

Segundo a mais antiga e única notícia que do poeta existe, Botelho de Oliveira «nasceu na cidade da Bahia, capital da América portuguesa, no ano de 1636, filho de Antônio Álvares Botelho, capitão de infantaria paga, fidalgo da Casa de Sua Majestade. Estudou na Universidade de Coimbra jurisprudência cesárea (direito romano), exercitando na sua pátria a advocacia das causas forenses por muitos anos com grande crédito da sua literatura. Foi vereador do Senado da sua pátria e capitão-mor de uma das comarcas dela. Teve grande instrução da língua latina, castelhana, italiana, como também da poesia, metrificando com suavidade e cadência. Faleceu a 5 de janeiro de 1711».

O livro de Botelho de Oliveira, a primeira coleção de poesias publicada por brasileiro, contém, afora os poemas em português, espanhol, latim e italiano (os quatro coros de rimas a que alude o título), duas comédias em castelhano: Hay amigo para amigo e amor-engaños y zelos, das quais a primeira parece havia já sido impressa antes de sair novamente no volume Música do Parnaso.

Não há neste principal documento dos começos da nossa poesia, ou melhor, da poesia portuguesa no Brasil, distinção notável, é pobre de sentimento e inspiração. A língua, como a metrificação, é correta, ainda boa, se bem não escapem ambas aos vícios e defeitos do tempo. O chamado catálogo da Academia de Lisboa inclui a Música do Parnaso nos livros que se haviam de ler para a organização do dicionário da língua, projetado pela mesma Academia. Os poemas, sonetos, canções madrigais e quejandas composições nas fórmulas da poética em moda, ou são laudatórios, endereçados a diversas personagens, geralmente próceres da república, por vários motivos, nenhum bastante comovente para inspirar um poeta, ou são versos de amor, mas do amor obrigatório dos poetas, versos frios, sem paixão, a certa Anarda, a amante proverbial que lhos inspira. Também os há simplesmente galantes, endereçados a outras damas ou a conta de outras: Pintura dos olhos de uma dama, pintura de uma dama namorada de um letrado e quejandos... O nosso cronologicamente primeiro lírico (já que Bento Teixeira presume-se de épico) não foi, pois, senão um correto e vernáculo versejador como os teve a nossa língua às dezenas na mesma época e depois. Esta sua obra poética apenas lhe daria direito a uma menção na história da nossa literatura, como um nome desvalioso e desinteressante à sua evolução não fora o acidente feliz do seu poema A Ilha de Maré, que unicamente o salva de um esquecimento completo e merecido. Ao inconsciente estímulo do nativismo, gerado dos acontecimentos no meio dos quais nasceu e se fez homem, sentiu-se um dia Botelho de Oliveira sinceramente tocado pelas belezas e dons do seu torrão natal, e sob esta comoção cantou-o ingenuamente, caso então extraordinário, e não sem lindeza. Aquela insignificante ilha da baía de Todos os Santos, provavelmente o seu berço, não podia conter ela só tanta cousa como ele lhe põe no poema em que a celebra, tantas e tão boas prendas. É a sua Bahia, é o mesmo Brasil, que o poeta embevecido resume na sua ilha natal e que, cantando-a, canta com manifesta satisfação e ufania:

Esta ilha de Maré, ou de alegria

que é termo da Bahia

tem quase tudo quanto o Brasil todo,

que de todo o Brasil é breve apodo.



Dele embevecido faz já, o que é a mesma marca do nativismo brasileiro, ingênuas comparações desfavoráveis a Portugal e à Europa, dando a primazia à sua terra:

Tenho explicado as fruitas e legumes

que dão a Portugal muitos ciúmes;

tenho recopilado

o que o Brasil contém para invejado

e para preferir a toda a terra.



Este poema, que pode ainda hoje ser lido com aprazimento, graças ao seu pitoresco, à sua cor local e simplicidade, inicia na poesia brasileira o seu tocante sestro de cantar a terra natal. Meio século depois, Santa Rita Durão pouco mais fará que repetir e desenvolve com mais largo estro e mais advertido sentimento, a inspiração da Ilha de Maré, quando no canto VII do Caramuru celebra as riquezas naturais e produções do Brasil.

Esta emoção, que não é mais a simples impressão da terra do versejador da Prosopopéia, Botelho de Oliveira foi o primeiro a exprimi-la. Outro poeta baiano, o Anônimo Itaparicano, a repetiria no século XVIII, e ela nunca mais desapareceria da poesia brasileira. Antes permaneceria nesta como uma das suas emoções mais peculiares e um dos seus mais comuns motivos de inspiração, concorrendo para dar-lhe as feições que pouco a foram distinguindo da portuguesa. Justamente no momento em que, com o Romantismo, a separação entre as duas literaturas se estabelece e acentua, o maior poeta brasileiro, Gonçalves Dias, lhe achará a forma definitiva e sublime na sua ingenuidade, na Canção do Exílio. E apenas haverá poeta no nosso Romantismo em que se não ouça essa nota amorável da terra pátria.

Botelho de Oliveira é, com a sua Ilha de Maré, o mais frisante exemplo, em nossa primitiva literatura, ao conceito da gênese do sentimento brasileiro após os sucessos da primeira parte do século XVII, os acrescimentos geográficos e econômicos da colônia e as suas lutas vitoriosas contra

Holanda pérfida e nociva



como ele disse.

O que nos legaram os outros, excetuando sempre Gregório de Matos, é muito pouco para lhe podermos avaliar com segurança o mérito. Mas sobre insignificante tem tudo o mesmo ar de família da pior poesia contemporânea.

Capítulo IV

Gregório de Matos

Do grupo baiano o mais conhecido, o mais interessante e curioso e ainda, em suma, o mais distinto, é Gregório de Matos. Se, como parece, são realmente suas as numerosas composições métricas que, em cópias do século XVIII, chegaram até nós, foi ele também o nosso mais copioso poeta dos tempos coloniais. Há vários volumes manuscritos de obras suas. São umas sérias, outras satíricas e burlescas, a máxima parte aliás, mais burlescas do que satíricas. São estas não só as mais porém as únicas conhecidas, tanto dos historiadores da nossa literatura como do vulgo dos letrados.

Da porção séria da obra de Gregório de Matos não julgaram aqueles dever ocupar-se. Deste descuido resultou uma noção imperfeita e uma idéia errada do poeta. Fizeram dele um herói literário, um precursor do nosso nacionalismo, um antiescravagista, um gênio poético, um repúblico austero, quiçá um patriota revoltado contra a miséria moral da colônia. Houvessem procurado conhecer a parte não satírica de sua obra, ou sequer lido atentamente a parte satírica publicada,6 única que conheceram, haveriam escusado cair em tantos erros como juízos.

Único entre os poetas e escritores coloniais, coube a Gregório de Matos a fortuna de ter um biógrafo ainda, quase seu contemporâneo. Esta sua biografia48 escrita por volta do meado do século XVIII, mais de quarenta anos depois dele morto, e o fato das numerosas cópias dos seus poemas provam a fama que havia adquirido e a estima em que era tido. Uma e outra não deixaram de atuar nos que modernamente o estudaram, aliás com preconceitos nacionalistas já de todo desapropositados. É também ele acaso o único dos nossos poetas de quem, antes dos mineiros, encontramos lembrança em autores portugueses. O bispo do Pará, D. Fr. João de S. José, nas suas Memórias, de meados do século XVIII, consagra-lhe um parágrafo.

O seu parcialíssimo biógrafo noticiou, e todos o têm repetido, que o padre Antônio Vieira dizia que «maior fruto faziam as sátiras de Matos que os sermões de Vieira». Pode ser, mas em toda a obra de Vieira referente ao Brasil se não encontra a mais vaga alusão ao poeta, e não é de crer o asserto na boca do soberbo jesuíta.

Filho de um escudeiro fidalgo emigrado da província portuguesa e proprietário na Bahia de uma senhora brasileira de boa geração e afazendada, Gregório de Matos cedo foi mandado estudar a Portugal. Ali se doutorou em leis em Coimbra, onde se lhe revelou o engenho poético e a índole satírica. Na indisciplina geral da sociedade portuguesa, mais do que estreada naqueles princípios do século XVII, teria a Universidade, isto é, a corporação de seus alunos, como sempre teve, parte conspícua. Não se precisa de grande esforço de imaginação para ver o nosso brasileiro, naturalmente com boa mesada, reputação de rico, desenvolto, talentoso, chistoso e trêfego, representando saliente papel nas famosas troças e tropelias daquela rapaziada irrequieta e bulhenta. «Anda aqui, escrevia desde Coimbra a um amigo da Corte um seu condiscípulo, Belchior da Cunha Brochado, ao depois desembargador na Bahia, anda aqui um estudante brasileiro tão refinado na sátira que com suas imagens e seus tropos parece que baila Momo às cançonetas de Apolo.» Imagina-se o furor que ele faria em Coimbra.

Dali já conhecido e estimado pelo engenho poético e gênio folgazão, parece saiu também com bons créditos de leguleio, confirmados pouco depois na prática de advocacia com um bom letrado, com quem trabalhou em Lisboa. A metrópole foi-lhe, como a tantos outros brasileiros, caroável e propícia. Teve em Lisboa os lugares de juiz do crime e de juiz de órfãos. Como tal uma de suas sentenças figura nos Comentários de Pegas às ordenações do Reino. Cresceu em créditos e considerações de jurista e jurisperito, com bons augúrios de aumentos na magistratura, quando de súbito se viu baldado nas suas pretensões a maiores cargos e, ao que parece, malquisto da Corte ou do Governo. O seu biógrafo, o licenciado Pereira Botelho, cujas são estas notícias, duvidosas por serem de uma única testemunha, que não era sequer presencial, não diz claramente o motivo deste desfavor.

Das suas retorcidas explicações, no mais sesquipedal estilo do tempo, pode-se porém induzir sem risco de erro que à sua veia satírica, tão bem iniciada em Coimbra, deveu Gregório de Matos a sua desgraça. Deu-lhe provavelmente curso e criou-se inimigos entre os poderosos. Mas ainda nesta conjuntura não lhe foi a fortuna de todo adversa, pois lhe deparou um favorecedor no primeiro arcebispo nomeado para a Bahia. Sem obstáculo de não ter Gregório de Matos mais que as ordens menores, o nomeou tesoureiro-mor da sua catedral, acrescentando-lhe o cargo de vigário-geral. De Lisboa veio Matos amatalotado com um patrício, que recolhia à terra como desembargador da Relação. Se são exatos os dados do seu biógrafo, teria Gregório de Matos, quando regressou à terra natal para nela viver, 58 anos feitos. Era já um pouco tarde para se lhe afazer e afeiçoar. Não seria uma natureza afetiva, como não o são em geral os satíricos. Mostra-o se ter deixado ficar em Portugal, donde só saiu obrigado das circunstâncias. Voltando do desterro de Angola, deixou-se também, por puro espírito de boêmia, ficar em Pernambuco, sem mais se lhe dar da família que na Bahia fizera e abandonara. É certo que entre os seus poemas alguns há à sua futura mulher e à morte de seus filhos. São porém os versos de praxe dos poetas enamorados. Nos feitos aos filhos a retórica do tempo escondeu o sentimento real que porventura os inspirou.

Pelo seu gênio malédico e satírico, pela irritação com que deixara Portugal, pelo desapego da terra, onde se encontrava deslocado e contrafeito, e a qual não cuidou de afeiçoar-se, achou-se naturalmente mal e contrariado nesta, e em oposição com ela. Mais de trinta anos de Portugal lhe tornaram insuportável a mesquinha vida da sua mesquinha Bahia.

Muito vaidoso, como soem geralmente ser poetas e literatos, era-o extremamente do seu título de doutor, do seu saber jurídico, da posição que tivera no Reino, e até de ser branco. Sentia-se, pois, afrontado com a indiferença dos seus patrícios e vizinhos, insensíveis a estas suas superioridades. Acham-se-lhe fartos documentos deste seu estado d'alma, em todo caso revelador de pouco espírito, em vários passos de sua obra. Na Epístola ao Conde do Prado, filho do governador-geral Marquês das Minas, claramente o descobre:

Era eu em Portugal

sábio, discreto, entendido,

poeta melhor que alguns

douto como os meus vizinhos.

E chegando a esta terra

logo não fui nada disto

porque um direito entre tortos

parece que anda torcido.



Desvanece-se grandemente do seu título de doutor e de vez em quando o alardeia. No Benze-se o poeta de várias ações que observava na sua pátria, ralha:

Que pregue um douto sermão

um alarve, um asneirão;

e que esgrima em demasia

quem nunca lá da Sofia

soube ler um argumento

anjo bento!



A Sofia é a Universidade de Coimbra, alcunha que lhe veio da rua desse nome ficava. Nas Verdades lastima-se:

Os doutos estão nos cantos

Os ignorantes na praça.



Nos Milagres do Brasil exprobra:

Um branco muito encolhido,

um mulato muito ousado,

um branco todo coitado,

um canaz todo atrevido.

O saber muito abatido

a ignorância e ignorante

muito ufano e mui farfante

sem pena ou contradição:

milagres do Brasil são.



Mostra Gregório de Matos particular ojeriza a negros e mulatos, aos quais por via de regra chama de cães. Tinha consciência e orgulho de sua prosápia e sangue estreme. Lastima, é certo, os negros e teve uma vez expressões de comiseração pelos escravos (pelo que já o deu a crítica indígena por abolicionista), mas a conta que de uns e outros fazia era a do reinol do mazombo, isto é, do branco filho de português como ele. Nos citados Milagres do Brasil sobram exemplos desta sua ojeriza. E na também citada Epístola ao Conde do Prado:

Pois eu por limpo e por branco

Fui na Bahia mofino



Não suporta o menospreço da gente da Bahia à sua superioridade, e não lhe sofre a paciência a este jurista que a sua qualidade de branco e outras partes lhe não dêem insenções e regalias:

Não sei para que é nascer

neste Brasil empestado

um homem branco e honrado

sem outra raça.

Terra tão grosseira e crassa

que a ninguém se tem respeito

salvo se mostra algum jeito

De ser mulato!

[...]

Os brancos aqui não podem

mais que sofrer e calar

e se um negro vão matar

chovem despesas.

Não lhe valem as defesas.

Do atrevimento de um cão,

porque acorda a Relação

sempre faminta.



E, mais, ainda nos Citados Milagres do Brasil:

Que vos direi do mulato,

que vos não tenha já dito,

se será amanhã delito

falar dele sem recato?

[...]

Imaginais que o insensato

do canzarrão fala tanto

porque sabe tanto ou quanto?

Não, se não por ser mulato;

ter sangue de carrapato,

seu estoraque de congo

cheirar-lhe a roupa a mondongo.



Ao revés era extremamente caroável de mulatas e crioulas. O sátiro que nele descobriu a crítica imaginosa de Araripe Júnior, prodigalizou-se em versos amantéticos, babosos, de velho femeeiro, a esse tipo feminino, de que a Bahia teve sempre a primazia. Mas ainda nestes requebros não é raro revelar-se-lhe, na ironia com que insensivelmente descambam em sátira, aquela quizília de raça. Os seus apetites grosseiros eram, porém, mais fortes que esta sua idiossincrasia, e ele é sobretudo o cantor da mulata.

Na Bahia, o seu primeiro ato inconsiderado foi andar a secular, apenas revestindo as vestes sacerdotais, a que o obrigavam as suas funções, quando as exercia, o que foi motivo de escândalo. Se como sujeito douto, que se vira bem aceito no Reino, onde ocupara boa posição, se encontrou mal aqui, por outro lado a sua índole desabusada, solta devia achar a terra à sua feição. Que importa que ele tenha deblaterado contra ela e contra os seus vícios e defeitos quando da sua mesma obra verificamos, de modo a não deixar dúvida, que se compôs perfeitamente com tudo aquilo de que ralha e viveu deleitosamente a mesma vida que tão crua e insistentemente reprova aos seus concidadãos? O capadócio que era de índole e condição, achou na sua terra onde expandir os seus instintos nativos se não atávicos, influídos de mais a mais pelo meio. Gregório de Matos é a mais perfeita e mais ilustre expressão desse tipo essencialmente nacional, do qual foi e continua a ser a Bahia a fecunda progenitora, o capadócio.

É ele o seu mais eminente protótipo, como é também o primeiro boêmio da nossa literatura, com a vantagem sobre os aqui procriados pelo romantismo de o ser de nascença e originalmente, e não de macaqueação de Paris. Porque nele se completasse cabalmente o tipo do capadócio, era também insigne cantador de modinhas, tocador de viola, um solfista, como então se chamava. Ao último remate da sua caracterização, só lhe faltou ser mestiço, se com efeito não era, o que quase custa a crer. Mas se a indolência, o desleixo, a incúria, certas qualidades brilhantes mas superficiais de espírito, a debilidade de caráter, a lascívia exuberante, são os sinais mais comuns e aparentes do mestiço, ele moralmente o era, apesar da sua presunção de branco puro, da sua vaidade de douto, dos seus muitos anos de Portugal e da educação portuguesa.

Quis, talvez, conciliar duas cousas incompatíveis, e de o não ter, por impossível, conseguido, resultou o seu profundo desgosto da terra, manifestado com uma reiteração e variedade de formas que lhe estão revendo a sinceridade fundamental. As duas cousas que quis acordar eram a consideração pública pelos seus talentos, letras e graduação social com a vida dissoluta que, a despeito dos péssimos costumes locais, seria ainda assim escandalosa, segundo ressalta das anedotas da sua vida e o deixa de manifesto a sua obra. Como não o conseguisse, e por hora da moralidade humana que jamais soçobra totalmente não o podia alcançar, rebelou-se, fazendo-se ao mesmo tempo o flagelo e o divertimento dos seus concidadãos, o «boca do inferno», como é de tradição o alcunhavam. Não se limitava a versejar por sua conta, se não que fazia versos para outros. Como fosse de fato quem satíricos e malédicos mais e melhor os fazia, atribuíam-lhe quantos neste gênero apareciam, de autoria desconhecida. Não é, pois, improvável que dos existentes com o seu nome, os haja que não sejam seus. Só se empresta aos ricos. Disso queixa-se ele, deixando na sua mesma queixa a marca da sua vaidade:

Saiu a sátira má

e empurraram-me os perversos,

porque enquanto a fazer versos

só eu tenho jeito cá.

Noutras obras de talento

só eu sou o asneirão

mas sendo sátira, então

só eu tenho entendimento.



Achou-se, portanto, em guerra com a sociedade cujo era, de cujos vícios e manhas comparticipava, para cuja imoralidade contribuía com o seu exemplo de vida desregrada e ainda torpe, como o testemunham os seus poemas publicados e inéditos. Tinha aliás consciência da animadversão recíproca dele e de sua cidade:

Querem-me aqui todos mal,

e eu quero mal a todos,

eles e eu por nossos modos

nos pagamos tal por tal:

e querendo eu mal a quantos

me têm ódio tão veemente

o meu ódio é mais valente

pois sou só e eles tantos.



E noutro passo dos inéditos da Biblioteca Nacional (Cod. 34-29, pág. 403) malsina assim cinicamente da terra:

Porque esta negra terra

nas produções, que erra,

cria venenos mais que boa planta:

comigo a prova ordeno

que me criou para mortal veneno.



É estranho que aquela confissão tão pessoal seja apenas o desenvolvimento, feito aliás com vantagem, destes versos do espanhol Quevedo, tantas vezes imitado e até plagiado por Gregório de Matos:

Muchos dicen mal de mi,

y yo digo mal de muchos;

mi decir es más valiente

por ser tantos y yo ser uno.



Foi justamente esta situação singular em que o puseram a sua índole e o seu engenho que deu a Gregório de Matos a sua feição particular e distinta e o singularizou em a nossa literatura colonial. Enganaram-se redondamente os que pretenderam fazer dele ou quiseram ver nele um precursor da nossa emancipação literária, cronologicamente o primeiro brasileiro da nossa literatura. É de todo impertinente supor-lhe filosofias e intenções morais ou sociais. É simplesmente um nervoso, quiçá um nevrótico, um impulsivo, um espírito de contradição e denegação, um malcriado rabugento e malédico. Mas estes mesmos defeitos, se lhe não permitem figurar com a fisionomia com que o fantasiaram, serviram grandemente à sua feição literária e lha revelaram, embora parcialmente, sobre todas as do seu tempo. Em todo caso, mereceria Gregório de Matos aquela apreciação se houvera apenas sido o poeta satírico de sua obra e da tradição, o díscolo que só ele entre os seus contemporâneos malsinou do regime colonial e dos vícios públicos e particulares que o pioravam, e que, num impulso de despeito pessoal, foi o único a sentir aquilo que devia, volvidos dois séculos, ser o germe do pensamento da nossa independência:

Que os brasileiros são bestas

e estarão a trabalhar

toda a vida por manterem

Magamos de Portugal.



E mais, se a esse feitio pessoal do seu estro juntasse traços literários que o diferençassem de qualquer modo da poesia portuguesa contemporânea. Mas isto justamente não acontecia. O sátiro era bifronte, e o poeta, ainda na sátira, seguia sem discrepância apreciável a moda poética ali em voga sem nenhuma espécie de originalidade, senão a de ser aqui o único que ralhava do meio.

Numa face tinha o riso escarninho e petulante e o jeito obsceno do capadócio, na outra a compostura cortesã acadêmica, devota, do doutor de Coimbra, do magistrado, do vigário-geral, do procurador da mitra. Com uma zomba, ri, chalaceia, maldiz, descompõe, injuria, enxovalha, ridiculariza a terra e sociedade a que pertence, e faz praça desavergonhada dos seus amores reles, da sua vida despejada e indecorosa; com a outra, tal qual os seus confrades em musa do tempo, louvaminha, bajula, incensa a magnates e poderosos, ou verseja motivos e temas futilíssimos, com tropos, imagens, trocados e jogos de vocábulos em nada destoantes da poética do tempo, da qual a sua se não afasta em cousa alguma. Como satírico, não destoa Gregório de Matos, nem pela inspiração, nem pela expressão da musa gaiata portuguesa coeva, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Fr. Vahia, Diogo Camacho e quejandos, todos como eles, sequazes do espanhol Quevedo, de quem foi o nosso patrício servil imitador. Também não há, nem na inspiração, nem na expressão da poesia não satírica de Gregório de Matos algum sinal que o estreme entre os seiscentistas e gongoristas seus contemporâneos. Emparelha em tudo e por tudo com eles.

Salvo o pouco que dela publicou Varnhagem no seu Florilégio (I,17-104), esta feição da obra poética de Gregório de Matos ficou até hoje desconhecida, mesmo dos que sobre ele mais longamente discorreram. Existe entretanto na Biblioteca Nacional material manuscrito mais que bastante para o estudo completo do poeta, sem o qual não podemos ter dele uma noção cabal. Desse estudo, que fizemos, resultará a certeza de que Gregório de Matos é antes um poeta burlesco, picaresco, até chulo, à maneira de Quevedo, seu modelo, e dos satíricos portugueses seus contemporâneos, do que satírico ao modo de um Horácio, de um Juvenal ou de um Boileau.

E não porque não houvesse nele talento para o ser. Que o havia mostram-no os seus poemas Aos vícios, belo de conceito e forma, os dous Retratos dos governadores Câmara Coutinho e Sousa de Menezes, e, acaso sobre todos a sátira que começa

Que néscio que eu era então

quando cuidava o não era!



São todos modelos de boa poesia do gênero, em que podemos admirar imaginação, chiste e conceito, além da beleza métrica e da excelente língua, numerosa e propriíssima. Estas mesmas qualidades se nos deparam em outros seus poemas, já burlescos, já sérios, mas apenas parcialmente, em alguma estrofe, em algum verso. Geralmente, porém, ele é o tipo do poeta descuidado, desmazelado, como foi o tipo do homem desleixado. Versejava a torto e a direito, por conta própria ou alheia, sem escolha do momento ou do assunto, sem respeito ao próprio estro, nem decoro de quem era. Prodigalizava a veia inesgotável em temas como «A uma briga que teve certo vigário com um ouvires por causa de uma mulata», «A prisão de duas mulatas por uma querela que delas deu o célebre capitão... de alcunha o Mangará pelo furto de um papagaio», «A mulata... que chamava seu um vestido que trazia de sua senhora», «A mulata Vicência amando ao mesmo tempo a três sujeitos», «A um crioulo chamado o Luzia a quem vasaram um olho por causa de uma negra» e quejandas. Dele se conta que vendo em Pernambuco duas mulatas engalfinhadas numa briga que as pôs ridiculamente descompostas, pôs-se a gritar: «Aqui d'El-Rei, contra o Sr. Caetano de Melo!». A razão de seu grito, explicava depois, era ter o governador deste nome lhe defendido versejar, quando se lhe deparavam assuntos como aquele. A historieta é interessante por muito significativo do estímulo e feitio poético de Gregório de Matos. E crescidíssimo número das suas composições chamadas satíricas não têm motivos diversos daquele que se lastimava de perder.

Não são melhores se não por menos indecorosos, os móveis de sua inspiração de outra ordem que a burlesca. Verseja por governadores, potentados, bispos e arcebispos, com louvores e enaltecimentos hiperbólicos e peditórios indignos. Verseja também por espetáculos de comédias a que assiste, por festas a que vai, por sucessos sem nenhuma importância, por beldades diversas, e por fim verseja devotamente como um libertino arrependido ou antes medroso do inferno.

Ao mesmo governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho, de quem fez numa das suas temíveis e melhores sátiras o célebre retrato, endereçou Gregório de Matos um Memorial em forma de soneto pedindo uma esmola (sic), o qual assim termina:

Seguiram os três reis planeta louro,

guie-me a minha estrela o peditório

com que na vossa mão ache um tesouro.



Entre vários sonetos seus a arcebispos, todos destoantes da reputação que lhe fizeram de poeta isento e homem de brios, depara-se-nos este a D. João Franco de Oliveira, que do bispado de Angola passava ao arcebispado da Bahia, e que reproduzimos por dar a medida da poética de Gregório de Matos:

Hoje os Matos incultos da Bahia

se não suave for, ruidosamente

cantem a boa vinda do eminente

príncipe desta sacra monarquia.

Hoje em Roma de Pedro se lhe fia

segunda vez a barca e o tridente

porque a pesca que fez já no Oriente

o destinou para a do meio-dia.

Oh se quisesse Deus que sendo ouvida

a musa bronca dos incultos Matos

ficasse vossa púrpura atraída

Oh se como Aream, que a doces tratos

uma pedra atraiu endurecida

atraísse eu, Senhor, vossos sapatos!



Não esqueçamos que o poeta que assim saudava o arcebispo era vigário-geral e procurador da mitra. A estes versos de louvor a poderosos, vezo muito corriqueiro nos poetas contemporâneos, juntava Gregório de Matos alguns poemas de inspiração mais alta, como este soneto:

À Instabilidade das Coisas do Mundo:

Nasce o sol, e não dura mais que um dia

depois da luz se segue a noite escura

em tristes sonhos morre a formosura,

em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o sol, por que nascia?

Se é tão formosa a luz, por que não dura?

Como a beleza assim se transfigura?

Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no sol e na luz falte a firmeza

na formosura não se dê constância

e na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância

e tem qualquer dos bens por natureza

e firmeza somente na inconstância.



Ou como este sobre A vida solitária, último paradeiro dos varões prudentes:

Ditoso tu que na palhoça agreste

viveste moço e velho respiraste,

Berço foi em que moço te criaste

essa será, que para morto ergueste.

Aí do que ignoravas aprendeste

aí do que aprendeste me ensinaste,

que os desprezos do mundo que alcançaste

armas são com que a vida defendeste.

Ditoso tu que longe dos enganos

a que a Corte tributa rendimentos

tua vida dilatas e deleitas

Nos palácios reais se encurtam anos

porém tu, sincopando os aposentos

mais te dilatas quando mais te estreitas.



Estas transcrições dão a medida do valor poético de Gregório de Matos e, parece, justificam o nosso conceito de que ele se não distingue notavelmente dos poetas portugueses e brasileiros seus contemporâneos. Que não teve a mínima influência literária no seu tempo ou posteriormente, provam-no de sobejo as obras dos seus confrades de grupo e as do século XVIII, o século das Academias literárias e, ao menos até antes dos mineiros, de extrema pobreza poética.

A importância literária da sua copiosa obra poética é singularmente levantada por lances interessantíssimos à história dos nossos costumes e da sociedade do seu tempo. Desta nos deixou, mormente na parte satírica ou burlesca, precioso elemento de estudo, das suas maneiras e hábitos, dos seus mesmos sentimentos e feições morais. A sua língua, que julgamos poder qualificar de clássica, tem modalidades, idiotismos, adágios, fraseados, muito peculiares, e alguns certamente já brasileiros. O seu vocabulário, que está a pedir um estudo especial, é abundante em termos castiços, arcaicos e raros, espanholismos e brasileirismos. Costumes, usos e manhas nossas aparecem-lhe nos versos em alusões, referências, expressões, que documentam o grau adiantado da mestiçagem entre os três fatores da nossa gente que aqui se vinha operando desde o primeiro século da nossa existência. É sobretudo esta feição documental da sociedade do seu tempo que sobreleva Gregório de Matos aos seus contemporâneos e ainda a todos os poetas coloniais antes dos mineiros, todos eles sem fisionomia própria. O único que em suma a tem é ele.

Siguiente